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sexta-feira, 14 de outubro de 2022

O BLOCO REVOLUCIONÁRIO E AS ELEIÇÕES

 


O BLOCO REVOLUCIONÁRIO E AS ELEIÇÕES

 

Nildo Viana

 

A luta operária realiza avanços e retrocessos durante o processo histórico. A explicação disso remete a um conjunto de determinações. O aparato estatal, a ilusão democrática, o consumismo, a cultura (ideologias, doutrinas, discursos, etc.), o capital comunicacional, entre inúmeras outras determinações, travam a luta operária. Com o desenvolvimento do capitalismo, a estratégia burguesa vai se ampliando e agora invade o lazer, a cotidianidade, os sentimentos, as divisões sociais, no sentido de impedir uma autonomização do proletariado. Não é nosso objetivo discutir essa questão mais geral e sim algo mais específico. Trata-se da questão das eleições e do bloco revolucionário e sua relação com a estagnação da luta operária. Sem dúvida, as eleições são parte da “ilusão democrática” e o bloco revolucionário deveria ser um ponto de apoio para a autonomização do proletariado. Por isso, é fundamental uma reflexão sobre a relação do bloco revolucionário com as eleições e de ambos com o movimento operário.

As eleições reforçam as ilusões democráticas. Elas amortecem a luta de classes ao desviar a insatisfação social existente para a arena eleitoral e disputas pelo poder estatal. Além dos candidatos “messiânicos” (os “salvadores da pátria”), as promessas irrealizáveis, a tentativa de “lavagem cerebral” do aparato estatal e capital comunicacional, o próprio período eleitoral aparece como um momento de “democracia”, no qual o “povo” escolhe os governantes, e de possibilidade de mudança. Sem dúvida, uma parte da população não se ilude com isso, pois eleições após eleições, a sua vida não muda, a corrupção continua, as coisas pioram em vários aspectos e momentos. Outra parte, por outras determinações, como setores da juventude e da intelectualidade, também recusa o processo eleitoral. Estes setores, em sua maioria, são integrantes do bloco revolucionário. Porém, para grande parte da população a ilusão democrática persiste.

Nesse sentido, as eleições realizam o processo de amortecer as lutas de classes. E isso é ainda mais verdade com o oportunismo dos partidos de esquerda que canalizam todas as suas forças para conseguir retorno eleitoral. assim, uma das determinações (embora de efeito temporário) da estagnação do movimento operário é o processo eleitoral. O bloco revolucionário, tem, por conseguinte, a tarefa de combater a ilusão eleitoral. O bloco revolucionário deveria ser a fração mais resoluta, a que tem uma percepção mais global e acima dos interesses pessoais, partidários, grupais ou até mesmo de setores das classes trabalhadoras, dentre aqueles que lutam pela transformação social, tal como Marx definiu ao tratar da posição dos comunistas. Porém, aqui encontramos um elemento problemático, que é a ambiguidade no interior do bloco revolucionário. Essa ambiguidade se manifesta não apenas no processo eleitoral, mas em diversas outras questões. Contudo, o nosso objetivo se limita a analisar a relação entre bloco revolucionário e o processo eleitoral, o que nos faz focalizar apenas esse aspecto da questão.

O bloco revolucionário deveria ser o setor mais avançado da luta política, trabalhando no sentido de contribuir com a autonomização do proletariado para que este assumisse independência de classe e lutasse por seus interesses, tanto os imediatos quanto o histórico e fundamental, que é transformação radical e total das relações sociais, o que significa lutar pela abolição do capital, e, por conseguinte, pela sua autoabolição. A autonomização do proletariado significa que ele deixa de seguir ao reboque do capital, dos governos, dos partidos, de outras classes sociais (burocracia, intelectualidade, etc.), rompe com a hegemonia burguesa e ideias dominantes, e, ao mesmo tempo, recusa a burocracia e os seus falsos representantes e dirigentes. Esse processo de autonomização significa que a classe operária passa a se ver como classe e reconhecer o processo de exploração e dominação ao qual está submetida, bem como a necessidade de revolução social. O proletariado caminha espontaneamente para tal autonomização, pois seu modo de vida e condição de classe, as relações instituídas com a burguesia e o resto da sociedade, gera sua insatisfação e contestação, gera a luta. O trabalho alienado, mortificador, além dos problemas políticos e econômicos, as crises financeiras, a ameaça do desemprego, entre milhares de outras determinações (que afetam diferentemente setores distintos da classe operária e sob formas e intensidades diferentes em contextos sociais e históricos distintos), tendem a jogar o proletariado na luta. Na luta, o proletariado avança e desenvolve sua consciência, suas formas de organização, sua unificação, e, nesse processo, passa de classe determinada pelo capital para classe autodeterminada (ou, como disse Marx usando linguagem hegeliana, “de classe em-si a classe para-si”). Porém, a classe dominante sabe disso e por isso usa todos os seus recursos (aparato estatal, meios oligopolistas de comunicação, instituições de ensino, etc.) para amortecer os conflitos de classes e evitar a autonomização do proletariado.

O proletariado realiza sua autolibertação, mas não faz isso num fantástico mundo isolado, fora da história e das relações sociais. As lutas espontâneas são combatidas e impedidas pelo capital e, nesse processo, recebe a ajuda escusa da esquerda, dos partidos políticos, da classe burocrática e da classe intelectual. O que existe de apoio ao proletariado, uma classe social de assalariados sem grandes recursos, sem grande bagagem cultural, é as demais classes inferiores, que, na maioria das vezes, se encontra num nível inferior de desenvolvimento da consciência e organizacional, bem como de setores da juventude e da intelectualidade, e o bloco revolucionário. De todos esses aliados potenciais, o bloco revolucionário seria o mais sólido no plano intelectual e o mais resoluto no plano da ação e da iniciativa. Os demais também são atingidos pela hegemonia burguesa, pelas necessidades cotidianas, entre outros processos.

Porém, o bloco revolucionário não está livre da hegemonia burguesa e dos demais elementos que atinge o resto da sociedade. A origem de classe de grande parte de seus integrantes, geralmente oriundos das classes superiores, é um dos obstáculos nesse processo, pois esses indivíduos carregam consigo valores, interesses, ideias, que não são efetivamente proletárias (no sentido revolucionário), devido ao lugar social do qual emergem. A isso se soma o lugar onde se encontram, sendo que a maioria são estudantes ou intelectuais e, portanto, estão envolvidos com as escolas e instituições de ensino e suas ideologias, doutrinas, interesses, valores, influências, correntes de opinião. Alguns tentam superar isso caindo no obreirismo e outros equívocos semelhantes, confundindo proletariado como classe determinada e proletariado como classe autodeterminada. Além disso, os limites intelectuais (o que, na contemporaneidade, se torna mais dramático, pois ao mesmo tempo em que o acesso às obras revolucionárias e a informação é facilitado, o grau de leitura e aprofundamento é reduzido, bem como os modismos e a hegemonia se tornaram ainda mais fortes nos meios revolucionários) acabam promovendo interpretações e análises equivocadas, gerando ecletismos e ambiguidades por conta da falta de autonomia intelectual e dificuldade de expressar a perspectiva do proletariado revolucionário.

Neste contexto, a relação entre bloco revolucionário e processo eleitoral deveria ser de luta contra as eleições e afirmação da necessidade de autonomização do proletariado. Porém, as ambiguidades do bloco revolucionário dificultam esse processo. Inclusive, em períodos eleitorais, os setores mais indecisos e volúveis do bloco revolucionário abandonam a posição revolucionária, e alguns não apenas momentaneamente, mas definitivamente (no fundo, abandonam o seu período de “arroubo infantil” e rebeldia, voltando como filhos pródigos ao lar das classes superiores, passando a buscar “vencer na vida”, o que combina bem com o conformismo e conservadorismo, mesmo que seja em sua forma “progressista” e ainda mantendo discurso “esquerdista”). Outros cedem às pressões do progressismo e eleitoralismo, incluindo supostos anarquistas, que seriam antieleitorais por princípio.  Alguns não conseguem se posicionar contra a corrente predominante de opinião que se estabelece nos meios intelectualizados e acabam cedendo ao eleitoralismo. Resta, assim, apenas uma parte do bloco revolucionário, a que efetivamente expressa sem ambiguidades a hegemonia proletária.

Assim, a relação entre bloco revolucionário e eleições é complexa e atualmente é marcada pelo retrocesso. Sem dúvida, a estagnação do movimento operário é uma das principais determinações desse processo. Contudo, a iniciativa do bloco revolucionário hoje pode contribuir com a superação dessa estagnação (e a desestabilização e possível crise que se aproxima é outra ainda mais forte), criando uma retroalimentação. Isso também serviria para fortalecer e ampliar a hegemonia proletária no interior do bloco revolucionário, o que beneficiaria ele nas lutas posteriores e isso, por sua vez, ampliaria sua possibilidade de uma intervenção mais importantes nas lutas de classe que virão. Assim, apenas o voto nulo autogestionário ou outras formas de recusa do processo eleitoral são formas de luta revolucionária, visando deslegitimar a democracia burguesa e contribuir com a autonomização do proletariado.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

O ASSÉDIO ELEITORAL E A MORTE DA DEMOCRACIA

 






O ASSÉDIO ELEITORAL E A MORTE DA DEMOCRACIA

 

Nildo Viana

 

Recentemente surgiram os termos “assédio moral” e “assédio sexual”. A existência dos fenômenos que hoje são denominados “assédio moral” e “assédio sexual” é antiga e muito anterior ao surgimento desses termos, que datam dos anos 1990 e 1970, respectivamente. A existência do fenômeno precede a consciência de sua existência e não poderia ser diferente. Porém, em certos casos a consciência, em nível coletivo, é muito lenta para efetivar tal reconhecimento. Hoje estamos diante da percepção de uma nova forma de assédio, o eleitoral. O assédio eleitoral também não é novo, mas que agora ganha novas formas de manifestação.

O assédio eleitoral no trabalho é reconhecido e é considerado crime. Porém, não é apenas no âmbito do trabalho que existe assédio eleitoral, embora nesse contexto seja mais danoso. O assédio eleitoral, aqui entendido como constrangimento de eleitores para votarem em determinados candidatos ou partidos, pode ocorrer em qualquer lugar, e assumir diversas formas. Esse constrangimento, tanto no âmbito do trabalho quanto em outros, muitas vezes é denunciado, mas na maioria dos casos é ocultado, pois o medo dos que estão submetidos a ele é maior do que a disposição em denunciar.

Nessa concepção mais ampla de assédio eleitoral, o caso se torna ainda mais grave. A democracia representativa, também chamada de democracia burguesa ou democracia partidária, se legitima pelo discurso da “livre escolha” dos eleitores em relação aos candidatos que irá votar, ou que não irá votar, incluindo a possibilidade de voto nulo e voto em branco. O que vem ocorrendo no Brasil, nos últimos tempos, é um índice crescente de assédio eleitoral. A existência do assédio eleitoral em alta escala, por sua vez, corrói a legitimidade da democracia representativa. Ora, se os indivíduos não podem escolher livremente seus candidatos, pois estão submetidos a diversos constrangimentos públicos, tal como em redes sociais virtuais, lugares públicos em geral, então não há “democracia representativa” nem no plano formal. O poder do dinheiro e da publicidade, do discurso eleitoral e suas promessas irrealizáveis, entre outros elementos, já limitam demasiadamente tal legitimidade. O advento do assédio eleitoral via meios oligopolistas de comunicação e internet significa uma total deslegitimação da democracia representativa.

O exemplo mais recente disso é a prática de alguns governos (estaduais e municipais), partidos e candidatos, de pressionar e constranger os indivíduos a votar em seu partido ou candidato. As ameaças de uso da força física são outro elemento que vem se ampliando, bem como o assassinato por motivos eleitorais. Alguns casos recentes na sociedade brasileira mostram isso. Esse processo gera medo e restringe ainda mais a liberdade de escolha e posicionamento, por um lado, e a liberdade de expressar sua escolha e posicionamento, por outro. Hoje em dia, se alguém aparece publicamente para defender voto nulo, o que é um direito de qualquer um, pode ouvir ameaças de agressão física. Se defende candidato X, também. Alguns, simplesmente por não defenderem candidato Y, sofrem riscos de agressão verbal e/ou física.

E isso fica ainda mais grave quando o assédio eleitoral se torna “institucionalizado” e atingindo até candidatos. O caso exemplar é o que vem ocorrendo com o candidato à presidência, Ciro Gomes. Ele vem sendo alvo de assédio eleitoral de diversos defensores da candidatura Lula. Isso pode ser visto através da imprensa, na qual se vê “Carta de lideranças” políticas, solicitação de artistas, etc. pela sua “renúncia”, o que é um absurdo político. Solicitar a um candidato que desista de sua candidatura para apoiar outro candidato é algo que somente pessoas fora da realidade ou fanáticos fariam. E isso é pior ainda tendo em vista que é no primeiro turno de uma eleição de dois turnos. Sem dúvida, para algumas pessoas que pensam que se trata de uma “luta pela democracia” (o PT seria o representante dessa suposta “democracia”) contra o “fascismo” (identificado com Jair Bolsonaro, banalizando a palavra e retirando o seu significado original e autêntico), esse assédio eleitoral parece ter algum sentido. Porém, o raciocínio dessas pessoas parte de uma concepção segundo a qual o outro deve pensar como eu penso. Isso é extremamente antidemocrático, tanto no pensamento (“o outro deve pensar como eu penso e por isso deve abrir mão do que pensa – e, nesse caso, de sua candidatura – para defender o que eu defendo e votar em que eu voto”), quanto na ação (expressar isso e pressionar o outro para acatar tal pensamento). Isso revela que não se trata de uma “luta pela democracia contra o fascismo” e sim de uma luta antidemocrática realizada por falsos democratas para seu partido chegar ao poder. Ao realizar uma luta antidemocrática, mesmo que em nome da democracia, enfraquece essa e fortalece o que considera oposto. Porém, é claro, o que está em jogo não é um princípio abstrato de democracia e sim interesses e luta pelo poder.

Num debate presidencial recente, o assédio eleitoral se manifestou novamente quando uma jornalista perguntou ao candidato Ciro Gomes qual seria a posição do seu partido no Segundo Turno e, caso o partido apoiasse o candidato Lula, se ele sairia do partido[1]. Ciro Gomes não respondeu, obviamente, e falou da “morte do jornalismo”. No fundo, é apenas a miséria do jornalismo, que, assim como grande parte da intelectualidade, abandonou não só o discurso da “neutralidade” ou “imparcialidade”, como também o bom senso. O tema do voto útil não apareceu por acaso e visava constranger Ciro Gomes a se posicionar diante de um suposto segundo turno, o que teria efeitos eleitorais.

Todos esses constrangimentos visam anular determinadas candidaturas em benefício de outra. Se os candidatos no primeiro turno devem renunciar para ajudar a decidir quem vai ganhar nesse momento, então não tem mais sentido a sua existência. O que esses intelectuais partidários deveriam fazer é questionar eleições em dois turnos ao invés de constranger um candidato para que desista em favor do candidato deles. Esses acontecimentos são sinais de que a democracia representativa está perdendo as suas principais fontes de legitimação, a legal e a formal.

A democracia representativa já está bastante desgastada e deslegitimizada e isso vem gerando várias formas de recusa, desde aqueles que reivindicam ditadura, passando pelos críticos que querem seu “aperfeiçoamento” ou que são pessimistas e a consideram falida, até chegar aos que querem uma revolução e sua substituição pela autogestão. Se a democracia representativa não quer morrer em breve, deve reagir. Ela, para tentar sobreviver, deveria combater todas as formas de assédio eleitoral. Para garantir a sua legitimidade formal e legal, a democracia representativa precisa não só permitir que as pessoas possam escolher livremente em quem vão votar (inclusive votando nulo ou em branco), e também abolir a lei antidemocrática que gera o “voto obrigatório” e dificulta a abstenção, bem como impedir o assédio eleitoral.

Obviamente que essa é uma concepção relativamente ingênua da democracia representativa. Embora algumas mudanças, como abolição do voto obrigatório e impedimento de algumas manifestações de assédio eleitoral, sejam possíveis, a democracia representativa não possui vida própria. Ela é controlada pelo aparato estatal, que, por sua vez, é controlado pelo capital, ou seja, pela classe capitalista. Portanto, as mudanças que podem ocorrer são limitadas. Além disso, em suas disputas estão envolvidos políticos profissionais e partidos ávidos pelo poder e que não hesitam em assediar eleitoralmente quem quer que seja, bem como conseguem criar correntes de opinião em favor do constrangimento eleitoral a favor dos seus candidatos e partidos. Na luta pelo poder, eles pouco se preocupam em saber como isso atinge a democracia ou quais as suas consequências sociais e econômicas.

O caso brasileiro atual é mais grave por causa da polarização criada entre Lula e Bolsonaro, entre petistas e bolsonaristas, que são muito parecidos, diga-se de passagem, que gerou um círculo vicioso, no qual há uma retroalimentação. O fanatismo de um lado, reforça o do outro. Mas, pior que isso, o crescimento eleitoral de um reforça o de outro, pois além dos fanáticos dos dois lados, ainda há a rejeição enorme que os dois conseguem no resto da população. Assim, o petismo reforça o bolsonarismo e vice-versa, assim como o antipetismo reforça o antibolsonarismo[2] e vice-versa.

Por fim, podemos dizer que o assédio eleitoral é uma realidade e se torna cada vez mais forte, presente e até mesmo ousado. Mas, para o país do coronelismo, a única coisa que mudou da época do “voto de cabresto” para hoje é que agora não temos mais apenas um coronel e sim dois num mesmo território assediando os eleitores, o que gera violência e extrapolação por parte dos seus adeptos. Isso apenas mostra a aproximação do dobre de finados da democracia representativa. O que interessa mesmo é o que virá depois dela e a luta deve ser pela autogestão social, no qual o autogoverno da população dispensa políticos profissionais, partidos e burocratas.



[2] O antipetismo é muito mais forte e numeroso que o bolsonarismo, pois inclui outros setores da população, partidos, interesses, etc.; bem como o antibolsonarismo é muito mais forte que o petismo, por aglutinar, igualmente, um setor mais vasto da população. Nem todo mundo que é contra Bolsonaro é petista e nem todo mundo que é contra Lula é bolsonarista. 

domingo, 26 de junho de 2022

O "Mundo Real" - Música da banda Zero To End

 


A banda Zero to End está lançando seu álbum Circus e uma das músicas em destaque é Real World (Mundo Real, em português). A música apresenta um panorama da sociedade contemporânea e elenca questões como coronavírus, guerra, injustiça, ódio, etc. A partir de uma crítica social expressa alguns dos dilemas da contemporaneidade.

Abaixo o vídeo da música produzido pela banda, que autorizou gentilmente a nova postagem em versão com legenda contendo tradução para idioma português. Essas e outras músicas de qualidade, com crítica social, podem ser ouvidas na Rádio Germinal (link abaixo do vídeo).



Ouça Rádio Germinal, onde a música não é mercadoria ou mercancia; é crítica, qualidade e utopia:

Site:

http://radiogerminal.com

Aplicativo:

https://play.google.com/store/apps/details?id=br.com.app.gpu1663510.gpuc77f575de74d5f21d62866601f20e66e


terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

AS CONSEQUÊNCIAS DO SUBJETIVISMO

 

 

PODCAST:

https://anchor.fm/the-edition/episodes/SHORTWAVE--The-Consequences-Of-Subjectivism-e1eo4ha


Abaixo versão em português:


AS CONSEQUÊNCIAS DO SUBJETIVISMO

 

Nildo Viana

 

A mutação cultural que ocorreu após a derrota das lutas sociais do final dos anos 1960 gerou a passagem da hegemonia do paradigma reprodutivista para o paradigma subjetivista. Desde 1945 o paradigma reprodutivista, que se manifestou através de ideologias holistas e objetivistas como o funcionalismo, o estruturalismo e a teoria dos sistemas, foi hegemônico até a emergência dessas lutas e sua crise. Em seu lugar, emerge o paradigma subjetivista, que nasce após 1968, mas só se torna hegemônico após 1980, acompanhando a constituição do neoliberalismo, que, junto com outros processos, constitui o regime de acumulação integral, uma nova fase do capitalismo. Nesse contexto, as ideologias subjetivistas se ampliam, difundem, e se tornam hegemônicas. O reino do subjetivismo se instaura e assume várias formas, englobando diversas concepções (neoliberalismo, pós-estruturalismo, multiculturalismo, política de identidades, etc.). O paradigma subjetivista condena o holismo (a totalidade, as metarrativas) e o objetivismo, gerando várias formas de subjetivismo (irracionalismo, relativismo, etc.). Nesse contexto, questionamos: quais são as consequências do subjetivismo?

A supervaloração do sujeito e da subjetividade é uma realidade. Sem dúvida, existem várias interpretações sobre o que é sujeito e o que é subjetividade, bem como “quem é o sujeito” ou “quem são os sujeitos” (no plural, uma das características do subjetivismo é o uso e abuso de plurais). O sujeito pode ser o indivíduo racional do neoliberalismo, os múltiplos sujeitos do pós-estruturalismo e multiculturalismo, o “gênero”, a “raça”, etc. A isso se associa o fortalecimento do hedonismo, narcisismo, sentimentalismo, que são reforçados pelo advento da expansão da internet e redes sociais. Isso, por sua vez, é útil e complementa o neoliberalismo, que tem como uma de suas características a responsabilização da sociedade civil. Assim emerge a ideia do participacionismo, florescem as “organizações não-governamentais”, entre diversos outros fenômenos correlatos.

As consequências desse processo são visíveis. Uma delas atinge os indivíduos, considerados “livres” em muitas concepções subjetivistas, que passam a se responsabilizar por seu fracasso social, gerando depressão, desequilíbrios psíquicos, uso de drogas, etc. Outra consequência atinge as formas de consciência, gerando descrédito para o saber e incentivando a presunção, a pseudocrítica, o relativismo, e, por conseguinte, crenças conspiracionistas, ideias como a da “terra plana” ou que tudo é “construção cultural” ou “representações”. Uma terceira consequência se revela nos seus efeitos na sociedade civil, especialmente nos movimentos sociais, nos quais seus ativistas passam a defender ideias insustentáveis como “vivência” e “lugar de fala”, bem como passam a interpretar o mundo a partir de antinomias fundada no grupismo e divisão “nós” e “eles”.

Poderíamos elencar outras consequências do subjetivismo, mas nos limitaremos a estas. E aqui entra em questão a responsabilidade dos intelectuais, pois foram estes que produziram as ideologias subjetivistas que se espalham, de forma simplificada, pela sociedade. Ora, uma vez que se percebe as consequências negativas do subjetivismo, é momento de realizar a sua crítica e superação e cabe aos intelectuais assumirem a responsabilidade de contribuir com o esclarecimento e resolução do problema que ajudaram a criar.

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NILDO VIANA é professor universitário da Universidade Federal de Goiás/Brasil. É autor de vários livros, entre os quais, “O Capitalismo na Era da Acumulação Integral”; “Hegemonia Burguesa e Renovações Hegemônicas”; “Os Movimentos Sociais”; “O Modo de Pensar Burguês. Episteme Burguesa e Episteme Marxista”; “A Pesquisa em Representações Cotidianas”; “Karl Marx: A Crítica Desapiedada do Existente”, entre outros.

Para acessar a versão em inglês, clique aqui.

The Consequences of Subjectivism - As Consequências do Subjetivismo

 

PODCAST:

https://anchor.fm/the-edition/episodes/SHORTWAVE--The-Consequences-Of-Subjectivism-e1eo4ha


Abaixo artigo em inglês. Para acessar versão em português, clique aqui.


THE CONSEQUENCES OF SUBJECTIVISM

 

Nildo Viana

 

The cultural mutation that took place after the defeat of the social struggles of the late 1960s generated the shift from the hegemony of the reproductive paradigm to the subjectivist paradigm. Since 1945 the reproductivist paradigm, which manifested itself through holistic and objectivist ideologies such as functionalism, structuralism and systems theory, was hegemonic until the emergence of these struggles and their crisis. In its place, the subjectivist paradigm emerges, born after 1968, but only becomes hegemonic after 1980, following the constitution of neoliberalism, which, together with other processes, constitutes the regime of integral accumulation, a new phase of capitalism. In this context, subjectivist ideologies expand, spread, and become hegemonic. The realm of subjectivism is established and takes various forms, encompassing different conceptions (neoliberalism, post-structuralism, multiculturalism, politics of identity, etc.). The subjectivist paradigm condemns holism (totality, metarratives) and objectivism, generating various forms of subjectivism (irrationalism, relativism, etc.). In this context, we ask: what are the consequences of subjectivism?

The overvaluation of the subject and subjectivity is a reality. Undoubtedly, there are several interpretations of what is subject and what is subjectivity, as well as “who is the subject” or “who are the subjects” (in the plural, one of the characteristics of subjectivism is the use and abuse of plurals). The subject can be the rational individual of neoliberalism, the multiple subjects of post-structuralism and multiculturalism, the “gender”, the “race”, etc. To this is associated the strengthening of hedonism, narcissism, sentimentality, which are reinforced by the advent of the expansion of the internet and social networks. This, in turn, is useful and complements neoliberalism, which has civil society accountability as one of its characteristics. Thus, the idea of participationism emerges, “non-governmental organizations” flourish, among several other related phenomena.

The consequences of this process are visible. One of them affects individuals, considered "free" in many subjectivist conceptions, who become responsible for their social failure, generating depression, psychological imbalances, drug use, etc. Another consequence affects the forms of consciousness, generating discredit for knowledge and encouraging presumption, pseudo-criticism, relativism, and, therefore, conspiracy beliefs, ideas such as the "flat earth" or that everything is "cultural construction" or " representations”. A third consequence is revealed in its effects on civil society, especially in social movements, in which its activists start to defend unsustainable ideas such as " life experience" and "place of speech", as well as interpreting the world from antinomies based on groupism and division “us” and “them”.

We could list other consequences of subjectivism, but we will limit ourselves to these. And here the responsibility of intellectuals comes into question, as they were the ones who produced the subjectivist ideologies that spread, in a simplified way, throughout society. Now, once the negative consequences of subjectivism are perceived, it is time to criticize and overcome it, and it is up to intellectuals to take responsibility for contributing to the clarification and resolution of the problem they helped to create.

NILDO VIANA is a university professor at the Federal University of Goiás/Brazil. He is the author of several books, including, “Capitalism in the Age of Integral Accumulation”; “Bourgeois Buguese Hegemony and Hegemonic Renovations”; “The Social Movements”; “The Bourgeois Way of Thinking. Bourgeois Episteme and Marxist Episteme”; “Research in Everyday Representations”; “Karl Marx: The Merciless Critique of the Existing”, among others.



domingo, 13 de fevereiro de 2022

Nau dos Insensatos - Nau dos Insensatos




Título da Música: "Nau dos Insensatos"

Banda: Nau dos Insensatos

Composição: Nildo Viana
Álbum: Homem ao Mar Ano: 2021 Produção: Gérmen Produções Letra: Vejam quem está embarcando no navio Covardes que se aventuram no mar bravio Bem-vindo à nau dos insensatos No comando um capitão caricato Comandando marinheiros gaiatos E com o porão cheio de ratos Gente rica que o dinheiro falsifica Gente pobre que o dinheiro prejudica O mal-estar está presente E todo mundo finge que não sente Você que entra abandone a lucidez Não há autonomia ou esperança No barco da insensatez Você que entra abandone a lucidez Não há autonomia ou esperança No barco da insensatez Intelectuais sem leitura e reflexão Seguem o fluxo da ilusão Burocratas sem normas e ação Seguem sem direção Artistas que fazem sua arte no pinico Reclamando do lixeiro que a joga no lixo O professor que não ensina De sua boca só sai mentira Você que entra abandone a lucidez Não há autonomia ou esperança No barco da insensatez Você que entra abandone a lucidez Não há autonomia ou esperança No barco da insensatez Progressistas loucos por dinheiro e poder Querem ganhar e não sabem perder Conservadores fanáticos pela grana Querendo velejar em sua terra plana Vivente com lugar de fala Tagarela que só atrapalha Modistas criando linguagem neutra Agora o belo é ser um apedeuta Você que entra abandone a lucidez Não há autonomia ou esperança No barco da insensatez Você que entra abandone a lucidez Não há autonomia ou esperança No barco da insensatez E você embarcou no Titanic Tranquilo como se fosse a um piquenique E agora está num barco rumo ao vagalhão Sem bússola e sem capitão! Você que entra abandone a lucidez Não há autonomia ou esperança No barco da insensatez Você que entra abandone a lucidez Não há autonomia ou esperança No barco da insensatez Você que entra abandone a lucidez Não há autonomia ou esperança No barco da insensatez Veja álbum completo em: https://youtu.be/JbNaeM2c7Bw Essas e outras músicas você ouve na Rádio Germinal: http://radiogerminal.com

O MARXISMO DIANTE DO ANTI-HUMANISMO





 O MARXISMO DIANTE DO ANTI-HUMANISMO

 

Nildo Viana*

 

O presente texto parte da tese de que no capitalismo contemporâneo há uma impugnação[1] do humanismo e isso, por sua vez, enfraquece o marxismo. Essa tese precisa ser fundamentada. Isso pressupõe entender a relação entre marxismo e humanismo e a política cultural anti-humanista constituída pela classe dominante a partir do Pós-Segunda Guerra Mundial, bem como sua manifestação contemporânea e consequências para o marxismo. A luta em torno do humanismo parte da luta de classes e a classe dominante é tudo, menos humanista, bem como sabe que esse se relaciona com o marxismo e é por isso considera necessário cortar o vínculo entre ambos ou minar o primeiro para enfraquecer o segundo. Para analisar isso, vamos, inicialmente, discutir a relação entre marxismo e humanismo. Num segundo momento, vamos abordar brevemente a política cultural anti-humanista efetivada contemporaneamente. E por fim vamos mostrar, sinteticamente, os efeitos disso sobre o marxismo e luta cultural que precisa ser travada em torno dessa questão.

Marxismo e Humanismo

O marxismo em seu sentido original é uma práxis revolucionária fundada numa episteme que realiza a crítica radical da sociedade capitalista e aponta para uma nova sociedade, pós-capitalista, radicalmente diferente da atual, expressando os interesses fundamentais do proletariado. Assim, o marxismo, como já dizia Marx, tem a vantagem de ter uma percepção teórica da sociedade, suas lutas e tendências, partir de uma perspectiva de classe e de futuro para avaliar o presente, o que lhe permite, também, ser a “fração mais resoluta” na luta de classes a favor do proletariado (MARX; ENGELS, 1988). No interior do bloco revolucionário[2] o marxismo é o seu setor mais resoluto, radical, consciente e avançado[3]. Apesar de muitos marxistas serem ambíguos, o marxismo é o principal mediador entre o indivíduo que demonstra insatisfação e sua passagem para uma posição revolucionária. Contudo, existe uma mediação na transformação do indivíduo insatisfeito em marxista revolucionário (bem como outras posições críticas e radicais, mesmo com suas ambiguidades). Essa mediação é o humanismo. Entender isso é fundamental para entender a relação entre marxismo e humanismo.

Porém, antes disso, é preciso entender as bases humanistas do marxismo. O marxismo é um humanismo, para parafrasear Sartre (1987). Marx só se tornou um revolucionário a partir do humanismo. O humanismo antropocêntrico de Marx (VIANA, 2020) revela um compromisso com a libertação humana em geral. Se Marx não fosse humanista, não seria marxista. Sem dúvida, o humanismo inicial de Marx era generalista, mas a pesquisa e análise crítica da realidade o fez compreender a luta de classes e entender que o movimento revolucionário do proletariado era o meio para se conseguir a libertação humana.

No entanto, o humanismo marxista se diferencia de outras concepções humanistas. Não poderemos aqui discutir as diversas formas de humanismo, mas apenas destacar que o humanismo marxista se diferencia dos demais. A forma de humanismo mais difundida é o que podemos denominar como espontâneo. O humanismo espontâneo não tem bases teóricas ou ideológicas e sim um conjunto de sentimentos, valores e ideias relativamente vagas. O humanismo espontâneo aponta para a valoração dos seres humanos, sentimentos simpáticos voltados para a humanidade e ideias que expressam tais valores e sentimentos. Marx iniciou com um humanismo espontâneo e foi desenvolvendo uma concepção mais elaborada até chegar a versão mais desenvolvida, que aqui denominamos humanismo marxista. A base desse humanismo é uma concepção de natureza humana segundo a qual esta é constituída pelas necessidades primárias (compartilhada com os animais, como beber, comer, dormir, reproduzir, etc.) e necessidades secundárias (especificamente humanas, que são o seu elemento essencial) e que os seres humanos necessitam realizar tal natureza e isso é impedido pelas sociedades de classes e esse é o motivo da luta por uma sociedade radicalmente diferente. As necessidades secundárias, especificamente humanas, são a práxis e a socialidade, ou, para usar os termos usados por Marx, o trabalho (como objetivação, não-alienado) e a “cooperação” (MARX; ENGELS, 1982). As sociedades de classes pervertem o trabalho e as relações entre os seres humanos, substituindo a autorrealização das potencialidades humanas e a associação colaborativa e enriquecedora em relações sociais marcadas pela alienação, exploração e dominação.

A sociedade capitalista efetiva esse processo de forma específica e gera processos sociais derivados que prejudicam ainda mais os seres humanos, tais como a mercantilização, burocratização e competição (VIANA, 2008). Porém, ela, ao constituir o proletariado e efetivar o desenvolvimento das forças produtivas, permite a passagem para uma sociedade superior que rompe com a alienação, a exploração e a dominação e possibilita a livre manifestação da natureza humana. Porém, essa mesma sociedade cria obstáculos políticos e culturais para tal transformação. Apesar disso, ela não consegue sufocar totalmente a natureza humana e por isso o humanismo espontâneo se torna possível. Claro que, para vastos setores da população, a suas condições desfavoráveis de vida, a alienação, a destruição psíquica, a competição social e os valores associados, são processos que geram desumanização e afastamento do humanismo espontâneo.

Ninguém nasce marxista e somente com o seu desenvolvimento é que pode vir a se tornar marxista[4]. E esse “tornar-se” marxista se dá, geralmente, a partir de indivíduos que eram humanistas espontâneos (com ou sem mediação de outro humanismo, mais refletido, posteriormente). Existem exceções, sem dúvida, como rebeldes e revoltados, mas esses geralmente tendem a ser marxistas ambíguos, pois é o descontentamento com sua posição na sociedade ou ódio e ressentimento que é sua motivação para adesão ao discurso revolucionário e não a libertação humana. O revoltado é movido pelo ódio/ressentimento e o rebelde pela ambição[5]. É por isso que, em certo momento, eles podem se afastar do marxismo, pois, afinal, é possível que encontrem um meio mais eficaz de demonstrar seu ódio ou ascender socialmente.

E por qual motivo o humanismo espontâneo tem esse significado? A razão disso se encontra no fato de que para ser marxista é preciso abandonar os interesses imediatos e egoístas, ou pelo menos reduzi-los e controlá-los, e se preocupar com os demais seres humanos e suas condições de vida, o que significa possuir determinados valores e sentimentos em relação à humanidade. Os indivíduos egoístas, não-humanistas, preocupados apenas com seus próprios interesses, com ascensão social, dinheiro, poder, riqueza, competição, não vão aderir ao marxismo (a não ser que seja o pseudomarxismo, pois através deste pode-se conseguir espaços em organizações burocráticas, benefícios financeiros, etc.). Quanto maior o número de indivíduos que são humanistas espontâneos, maior é o potencial de aumento numérico de futuros marxistas, pois assim existe um solo fértil para que se desenvolva a consciência revolucionária, a crítica, o compromisso com a verdade e com a libertação humana.

Anti-Humanismo e Antimarxismo

Existe um humanismo burguês, mas é raro nos meios burgueses e geralmente promove o abandono do pertencimento de classe, pelo menos temporariamente. Jovens burgueses podem se aproximar do humanismo espontâneo em sua versão burguesa, com sonhos ilusórios de reformas, filantropia e caridade, ou podem se aproximar de posições mais críticas, gerando, inclusive, rupturas familiares (que em muitos casos é substituído por reconciliações a partir de certa idade). Porém, após a Segunda Guerra Mundial, emergiu um anti-humanismo filosófico e científico, em favor de análises do “sistema”, “estrutura”, “organismo”, “função” (VIANA, 2019). O paradigma reprodutivista gerou uma versão anti-humanista – e uma das grandes expressões desse anti-humanismo foi um pseudomarxista, o mais renomado dessa época, Louis Althusser[6] – e uma versão supostamente “humanista” fundada na ideia de integração. As ideologias reprodutivistas (funcionalismo, estruturalismo, ideologias dos sistemas, etc.) colocavam as estruturas e sistemas acima dos seres humanos e dos indivíduos. Eles seriam apenas joguetes de estruturas, sejam elas linguísticas ou sociais (VIANA, 2019).

Porém, as lutas operárias e estudantis do final dos anos 1960 colocaram em questão o reprodutivismo e sua recusa da história. As ideias que postulavam que houve uma “integração da classe operária”, que não haveriam mais “saltos na história” (revoluções) e que a sociedade de consumo caminhava para a sociedade de abundância, entre outras similares, foram superadas pela luta operária e estudantil, bem como radicalização de vários outros setores da sociedade. A rebelião estudantil de Maio de 1968 decretou “o fim do estruturalismo” (DOSSE, 2007; VIANA, 2019) e marcou o primeiro passo para a emergência do marxismo autogestionário e ressurgimento do pensamento crítico. Ao mesmo tempo, emergiu uma forma de contrarrevolução cultural preventiva, um par antinômico do estruturalismo, que recusava a totalidade, a objetividade, etc., em nome da subjetividade e dos “múltiplos sujeitos”, mas o alvo real era o marxismo e por isso elementos das ideologias reprodutivistas podiam ser recuperados (VIANA, 2019). Assim, a passagem do regime de acumulação conjugado para o regime de acumulação integral é marcado pela passagem do paradigma reprodutivista para o subjetivista.

Um novo ataque ao humanismo se institui nesse contexto histórico. Agora não se trata mais do anti-humanismo intelectual centrado em estruturas e sistemas e sim centrado na “diversidade”, na “diferença”, nos fragmentos, múltiplos sujeitos. A crítica da ideia de totalidade e “metanarrativas” e de tudo que é considerado “universal” marca a base intelectual do novo anti-humanismo. A partir dessas bases intelectuais, o humanismo espontâneo perde espaço cada vez maior, pois prolifera o hedonismo, o narcisismo, o neoindividualismo, o empreendedorismo competitivo, a revolta, a rebeldia, o ressentimento, e a luta de grupos que vem para dividir e gerar ódio e separações. A nova política cultural, capitaneada pela UNESCO e por instituições diversas (fundações internacionais como a Rockfeller, Ford e outras, organismos internacionais como Banco Mundial e FMI, além dos Estados nacionais e suas políticas neoliberais) prioriza a diversidade e os grupos sociais, gerando um foco em lutas especifistas e fragmentárias e gerando a chamada “política de identidades”, incentivando os indivíduos a se reduzirem a uma suposta identidade (TARDIEU, 2014).

Esses elementos dificultam a proliferação do humanismo espontâneo, pois fornecem explicações falsas sobre a realidade e direcionam as ações e objetivos para luta de grupos, bem como canaliza o ódio e ressentimento de muitos junto com a busca de ascensão social de outros. A nova interpretação do mundo repassada pelos ideólogos, escolas e universidades, meios oligopolistas de comunicação, reduz tudo a gênero, identidade, “sujeito”, “subjetividade”, etc. em detrimento da espécie humana em geral. Assim, a nova geração é doutrinada nas escolas para respeitar as diferenças e as identidades, o indivíduo e os grupos, focalizando na diferenciação e desumanizando supostos “opressores”, bem como descontextualizando (a destotalização contribui com isso e gera uma despolitização) e despolitizando, reduzindo as complexas relações sociais (de classes, entre os grupos, etc.) a uma luta de grupos ou mesmo ao maniqueísmo. Grande parte da nova geração que emerge após os anos 1980 passa a enxergar o mundo pela lente da diferença e diversidade e numa oposição dogmática e descontextualizada entre “opressores” e “oprimidos”, sendo que as classes sociais, a exploração, a dominação e a alienação são abandonadas ou relegadas a segundo plano. A compaixão, sentimento espontâneo e que se direciona aos seres humanos em geral, é substituída pelo discurso da “empatia”, uma imposição externa e geralmente seletiva, pois a empatia é sempre em relação a um grupo, ao “outro” (e por pertencer a determinado grupo ou estar em determinada situação, e não por ser um ser humano, o que permite entender apenas um lado em detrimento do “outro lado”).  A compaixão é entre iguais em situações diferentes, a “empatia” é entre diferentes com supostas “essências” diferentes.

Isso tudo gera uma impugnação do humanismo, tanto o espontâneo como o que se manifesta em formas refletidas (e isso se reforça reciprocamente). O humanismo marxista, bem como outras formas de humanismo mais estruturados intelectualmente, são esquecidos, desvalorados ou combatidos, a ideia de “natureza humana” é condenada, entre outros processos que reforçam o recuo do humanismo em geral e do espontâneo em particular. Isso significa que, além da crítica ao marxismo em geral, a nova política cultural gera bases intelectuais e ideológicas, bem como valores e sentimentos, anti-humanistas. Ao lado disso, o paradigma subjetivista incentiva o neoindividualismo, o hedonismo, o narcisismo, o grupismo, discurso identitário, e outros processos sociais e culturais que promovem uma impugnação crescente do humanismo espontâneo. E alguns arquitetos ideológicos desse processo depois se perguntam de ondem emerge o “discurso de ódio”, ideias como a da “terra plana” e outras manifestações de irracionalidade e irracionalismo, cuja base se encontra no paradigma subjetivista contemporâneo. O feitiço se virou contra o feiticeiro e este, ao ser atingido pela sua própria criação, passa a questionar a origem dessa feitiçaria como se não tivesse nada a ver com ela.

O Marxismo diante do Anti-Humanismo

Isso atinge, obviamente, o marxismo, pois suas bases humanistas entram em contradição com as ideologias subjetivistas hegemônicas, com os valores e sentimentos predominantes, bem como com os chavões mais difundidos contemporaneamente. A aproximação com o marxismo por grande parte dos indivíduos, especialmente os das gerações mais novas, se torna mais difícil. A eficácia do discurso marxista diminui drasticamente. Assim, a impugnação do humanismo significa um enfraquecimento do marxismo. O número de pessoas que poderiam aderir ao marxismo diminui, bem como a influência da teoria marxista, mesmo estando do lado da verdade e da libertação humana. Isso é reforçado pela renúncia de amplos setores da intelectualidade que não enfrentam e não desafiam as concepções hegemônicas e os processos sociais e culturais associados a elas. O moralismo subjetivista e seu tribunal inquisidor com seus “cancelamentos” é suficiente para amedrontar muitos intelectuais e explicitar a covardia reinante nos meios intelectuais.

Nesse contexto, alguns recuam e se silenciam, outros fazem compromissos e tentam se aliar aos setores hegemônicos (os setores neoliberais progressistas, pós-estruturalistas, multiculturalistas, etc.), bem como ainda emergem aqueles que buscam mesclar o seu pseudomarxismo com o subjetivismo, criando uma salada indigesta. Esse processo de covardia ou omissão de uma grande parte da intelectualidade (o que em muitos casos também está vinculado a interesses imediatos, ou seja, a carreirismo, retorno financeiro, cargos, etc.), bem como a disseminação desses valores, sentimentos, ideias e discursos no interior da juventude, faz com que o marxismo fique numa situação de marginalização ainda mais profunda com o desenvolvimento e fortalecimento do subjetivismo e do anti-humanismo. Isso é reforçado pelos compromissos de grupos, organizações e partidos com setores hegemônicos, aliados a um recuo do movimento operário, que se mantém nas últimas décadas, em sua maioria, no nível das lutas cotidianas ou lutas mais profundas esporádicas ou, ainda, se colocando junto com a multidão sem posição de classe autônoma e independente.

No fim do túnel só se vê escuridão. Os poucos marxistas autênticos resistentes ficam esperando uma reemergência espontânea do movimento operário com lutas radicalizadas para alterar esse quadro, enquanto que outros buscam intervir nessa realidade através de uma luta cultural, de acordo com suas possibilidades, visando fortalecer a tendência revolucionária no interior da sociedade capitalista, e alguns unem as duas coisas. Nos setores ambíguos do bloco revolucionário, as soluções são mais pobres: afirmar a impotência dos grupos revolucionários e cruzar os braços esperando a “autonomia do movimento operário” emergir sem sua intervenção, aderir ao voluntarismo e tentar “mudar o mundo” com ativismo prático ou virtual, mesclar suas concepções (anarquismo, autonomismo, situacionismo, etc.) com o subjetivismo e fugir do isolamento e conseguir espaços (seja de forma consciente ou insciente, seja acompanhado de oportunismo ou ingenuidade, etc.), fazer compromissos com ideologias, modismos, organizações burocráticas, setores oportunistas.

Porém, existe uma luz no fim do túnel. A reemergência do movimento operário sob forma radicalizada nas lutas de classes é uma tendência latente, pois não apenas a situação financeira e a alienação são incentivos para isso, como também a desestabilização e tendência de crise do regime de acumulação integral, especialmente no período pós-pandemia. Outros setores da sociedade também podem radicalizar suas lutas, como parte da juventude e do lumpemproletariado. A sociedade contemporânea acumula males psíquicos, crescimento da pobreza, entre diversas outras contradições sociais, que podem, a qualquer momento explodir. Sem dúvida, o movimento operário pode ressurgir e hegemonizar esse processo, possibilitando sair apenas das reivindicações e revoltas e colocar em evidência o projeto revolucionário. Além disso, a mobilização de outros setores da sociedade podem incentivar o proletariado a se autonomizar e se colocar como classe autodeterminada. Os obstáculos ideológicos, como o subjetivismo e anti-humanismo, tendem a se enfraquecer nesse contexto, mas, mesmo hoje, já começa a se desgastar e perder espaço.

A luta cultural é outro elemento fundamental e que já existe e atua, mas que precisa ser reforçada, seja pela contribuição de novos setores da sociedade, seja pela tendência a maior receptividade em momentos de desestabilização e, mais ainda, de crise (no caso, do regime de acumulação, que pode e tende a se tornar uma crise do capitalismo). Assim, os setores mais avançados, coerentes, organizados, do bloco revolucionário devem, sem cair no voluntarismo e achar que isso é suficiente e que vai promover uma revolução automaticamente, devem avançar na luta cultural, tanto no plano teórico e mais aprofundado, quanto no plano da produção artística, propaganda, etc. Se o resultado imediato disso é apenas fortalecer o bloco revolucionário, já é um ganho que pode ser importante no momento histórico seguinte, aumentando a força desse nas lutas posteriores. Se o resultado imediato for além disso, melhor ainda. E o encontro dessa luta cultural com a reemergência das lutas operárias significaria um momento de retomada do marxismo e de ascensão das lutas sociais.

E a luta cultural deve trabalhar com a ideia de autonomização do proletariado, colocando a necessidade de uma posição de classe autônoma, independente, fora da agenda burguesa e conservadora e também da progressista e burocrática, incluindo a eleitoral. Porém, também deve realizar o confronto com o subjetivismo e suas diversas formas de manifestação, bem como, mais especificamente, com o anti-humanismo. O combate ao anti-humanismo é de suma importância e se relaciona com a luta contra outras ideologias, doutrinas e chavões hegemônicos na contemporaneidade.

A luta cultural, por sua vez, deve ser acompanhada por intervenção direta nas lutas sociais em geral, bem como por tentativas de aproximação com o proletariado, entre outras ações complementares. Se a tendência latente de acirramento das lutas sociais se efetiva, as lutas posteriores poderão avançar mais rápido nos setores mais combativos do movimento operário e onde a luta cultural pela hegemonia proletária tenha avançado mais e todos esses processos contribuem com uma possível confluência entre bloco revolucionário (cujo setores “ambíguos” podem abandonar a ambiguidade e assim contribuir mais efetivamente com o movimento revolucionário) e proletariado.

Nesse contexto, a crítica do anti-humanismo e do subjetivismo é fundamental e é parte da luta cultural pela hegemonia proletária contra a hegemonia burguesa e burocrática. A luz no fim do túnel aparece quando essa tendência latente se torna perceptível e quando ela permite sair do imobilismo e conformismo no sentido de agir para reforçar sua passagem para tendência manifesta e, posteriormente, sua realização efetiva. O anti-humanismo não é apenas uma concepção falsa e conformista, mas desumana. Seres humanos desumanizados não conseguem contribuir com a luta pela libertação humana e por isso é necessário resgatar o humanismo e combater o anti-humanismo, o que é parte desta luta mais geral, mas que é de suma importância e que tem consequências sobre ela.

Referências

ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

 

DOSSE, François. História do Estruturalismo. Vol. 2. O Canto do Cisne. Bauru: Edusc, 2007.

 

FROMM, Erich. O Caráter Revolucionário. Marxismo e Autogestão, Ano 01, Num. 02, jul./dez. 2014 

 

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.

 

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo: Ciências Humanas, 1982.

 

SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. Col. Os Pensadores. 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1987.

 

TARDIEU, Serge. Crítica ao Especifismo. Marxismo e Autogestão, Ano 01, Num. 02, jan./jun. de 2014.

 

VIANA, Nildo. Hegemonia Burguesa e Renovações Hegemônicas. Curitiba: CRV, 2019.

 

VIANA, Nildo. O Manifesto Inaugural do Materialismo Histórico. In: MARX, Karl e VIANA, Nildo. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: O Manifesto Inaugural do Materialismo Histórico. Goiânia: Edições Redelp, 2020.

 

VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.



* Professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília.

[1] Impugnação, aqui, significa não admitir uma determinada opinião ou concepção, promovendo sua censura e condenação.

[2] O bloco revolucionário é composto pelos setores mais organizados, conscientes e ativos que expressam os interesses fundamentais do proletariado, o que significa que se materializa em indivíduos, grupos, organizações, ideias, que são revolucionários, seja de forma mais coerente ou ambígua.

[3] Ou deveria ser, pois muitos marxistas – enquanto indivíduos concretos – são perpassados por ambiguidades, indecisões, avanços e recuos, influências diversas, determinada personalidade, vínculos e valores contraditórios, etc. – e isso pode gerar ambiguidades e limites intelectuais, valorativos, etc. Isso vale para o caso de determinados marxistas, especialmente os representantes do marxismo ambíguo.

[4] Mesmo as crianças que tem pais adeptos do marxismo não se tornam imediatamente marxistas. A razão disso é que o processo de socialização e desenvolvimento da consciência é complexo e possui múltiplas determinações, sendo que, na sociedade capitalista, tudo aponta (escola, meios oligopolistas de comunicação, a maioria esmagadora da população, etc.) para uma concepção conservadora e não-marxista.

[5] Erich Fromm (2014) fez uma reflexão sobre o que denominou “caráter rebelde” que ajuda a entender esta afirmação. A respeito do “revoltado” não conhecemos nenhuma reflexão profunda ao seu respeito.

[6] A esse respeito é possível consultar sua obra A Favor de Marx, no qual ele critica o humanismo (ALTHUSSER, 1979).