O ASSÉDIO ELEITORAL E A MORTE DA DEMOCRACIA
Nildo Viana
Recentemente surgiram os termos “assédio moral” e “assédio
sexual”. A existência dos fenômenos que hoje são denominados “assédio moral” e “assédio
sexual” é antiga e muito anterior ao surgimento desses termos, que datam dos
anos 1990 e 1970, respectivamente. A existência do fenômeno precede a
consciência de sua existência e não poderia ser diferente. Porém, em certos
casos a consciência, em nível coletivo, é muito lenta para efetivar tal
reconhecimento. Hoje estamos diante da percepção de uma nova forma de assédio,
o eleitoral. O assédio eleitoral também não é novo, mas que agora ganha novas
formas de manifestação.
O assédio eleitoral no trabalho é reconhecido e é
considerado crime. Porém, não é apenas no âmbito do trabalho que existe assédio
eleitoral, embora nesse contexto seja mais danoso. O assédio eleitoral, aqui
entendido como constrangimento de eleitores para votarem em determinados candidatos
ou partidos, pode ocorrer em qualquer lugar, e assumir diversas formas. Esse
constrangimento, tanto no âmbito do trabalho quanto em outros, muitas vezes é
denunciado, mas na maioria dos casos é ocultado, pois o medo dos que estão
submetidos a ele é maior do que a disposição em denunciar.
Nessa concepção mais ampla de assédio eleitoral, o caso se
torna ainda mais grave. A democracia representativa, também chamada de
democracia burguesa ou democracia partidária, se legitima pelo discurso da “livre
escolha” dos eleitores em relação aos candidatos que irá votar, ou que não irá
votar, incluindo a possibilidade de voto nulo e voto em branco. O que vem
ocorrendo no Brasil, nos últimos tempos, é um índice crescente de assédio eleitoral.
A existência do assédio eleitoral em alta escala, por sua vez, corrói a
legitimidade da democracia representativa. Ora, se os indivíduos não podem
escolher livremente seus candidatos, pois estão submetidos a diversos
constrangimentos públicos, tal como em redes sociais virtuais, lugares públicos
em geral, então não há “democracia representativa” nem no plano formal. O poder
do dinheiro e da publicidade, do discurso eleitoral e suas promessas
irrealizáveis, entre outros elementos, já limitam demasiadamente tal
legitimidade. O advento do assédio eleitoral via meios oligopolistas de comunicação
e internet significa uma total deslegitimação da democracia representativa.
O exemplo mais recente disso é a prática de alguns governos
(estaduais e municipais), partidos e candidatos, de pressionar e constranger os
indivíduos a votar em seu partido ou candidato. As ameaças de uso da força
física são outro elemento que vem se ampliando, bem como o assassinato por
motivos eleitorais. Alguns casos recentes na sociedade brasileira mostram isso.
Esse processo gera medo e restringe ainda mais a liberdade de escolha e
posicionamento, por um lado, e a liberdade de expressar sua escolha e
posicionamento, por outro. Hoje em dia, se alguém aparece publicamente para
defender voto nulo, o que é um direito de qualquer um, pode ouvir ameaças de
agressão física. Se defende candidato X, também. Alguns, simplesmente por não
defenderem candidato Y, sofrem riscos de agressão verbal e/ou física.
E isso fica ainda mais grave quando o assédio eleitoral se
torna “institucionalizado” e atingindo até candidatos. O caso exemplar é o que
vem ocorrendo com o candidato à presidência, Ciro Gomes. Ele vem sendo alvo de
assédio eleitoral de diversos defensores da candidatura Lula. Isso pode ser
visto através da imprensa, na qual se vê “Carta de lideranças” políticas, solicitação
de artistas, etc. pela sua “renúncia”, o que é um absurdo político. Solicitar a
um candidato que desista de sua candidatura para apoiar outro candidato é algo
que somente pessoas fora da realidade ou fanáticos fariam. E isso é pior ainda
tendo em vista que é no primeiro turno de uma eleição de dois turnos. Sem dúvida,
para algumas pessoas que pensam que se trata de uma “luta pela democracia” (o
PT seria o representante dessa suposta “democracia”) contra o “fascismo”
(identificado com Jair Bolsonaro, banalizando a palavra e retirando o seu significado
original e autêntico), esse assédio eleitoral parece ter algum sentido. Porém,
o raciocínio dessas pessoas parte de uma concepção segundo a qual o outro deve
pensar como eu penso. Isso é extremamente antidemocrático, tanto no pensamento (“o
outro deve pensar como eu penso e por isso deve abrir mão do que pensa – e,
nesse caso, de sua candidatura – para defender o que eu defendo e votar em que
eu voto”), quanto na ação (expressar isso e pressionar o outro para acatar tal pensamento).
Isso revela que não se trata de uma “luta pela democracia contra o fascismo” e
sim de uma luta antidemocrática realizada por falsos democratas para seu
partido chegar ao poder. Ao realizar uma luta antidemocrática, mesmo que em
nome da democracia, enfraquece essa e fortalece o que considera oposto. Porém,
é claro, o que está em jogo não é um princípio abstrato de democracia e sim
interesses e luta pelo poder.
Num debate presidencial recente, o assédio eleitoral se
manifestou novamente quando uma jornalista perguntou ao candidato Ciro Gomes qual
seria a posição do seu partido no Segundo Turno e, caso o partido apoiasse o
candidato Lula, se ele sairia do partido[1].
Ciro Gomes não respondeu, obviamente, e falou da “morte do jornalismo”. No
fundo, é apenas a miséria do jornalismo, que, assim como grande parte da
intelectualidade, abandonou não só o discurso da “neutralidade” ou “imparcialidade”,
como também o bom senso. O tema do voto útil não apareceu por acaso e visava
constranger Ciro Gomes a se posicionar diante de um suposto segundo turno, o
que teria efeitos eleitorais.
Todos esses constrangimentos visam anular determinadas candidaturas
em benefício de outra. Se os candidatos no primeiro turno devem renunciar para
ajudar a decidir quem vai ganhar nesse momento, então não tem mais sentido a
sua existência. O que esses intelectuais partidários deveriam fazer é
questionar eleições em dois turnos ao invés de constranger um candidato para
que desista em favor do candidato deles. Esses acontecimentos são sinais de que
a democracia representativa está perdendo as suas principais fontes de
legitimação, a legal e a formal.
A democracia representativa já está bastante desgastada e
deslegitimizada e isso vem gerando várias formas de recusa, desde aqueles que
reivindicam ditadura, passando pelos críticos que querem seu “aperfeiçoamento”
ou que são pessimistas e a consideram falida, até chegar aos que querem uma revolução
e sua substituição pela autogestão. Se a democracia representativa não quer
morrer em breve, deve reagir. Ela, para tentar sobreviver, deveria combater
todas as formas de assédio eleitoral. Para garantir a sua legitimidade formal e
legal, a democracia representativa precisa não só permitir que as pessoas
possam escolher livremente em quem vão votar (inclusive votando nulo ou em
branco), e também abolir a lei antidemocrática que gera o “voto obrigatório” e dificulta
a abstenção, bem como impedir o assédio eleitoral.
Obviamente que essa é uma concepção relativamente ingênua da
democracia representativa. Embora algumas mudanças, como abolição do voto
obrigatório e impedimento de algumas manifestações de assédio eleitoral, sejam
possíveis, a democracia representativa não possui vida própria. Ela é
controlada pelo aparato estatal, que, por sua vez, é controlado pelo capital,
ou seja, pela classe capitalista. Portanto, as mudanças que podem ocorrer são limitadas.
Além disso, em suas disputas estão envolvidos políticos profissionais e
partidos ávidos pelo poder e que não hesitam em assediar eleitoralmente quem
quer que seja, bem como conseguem criar correntes de opinião em favor do
constrangimento eleitoral a favor dos seus candidatos e partidos. Na luta pelo
poder, eles pouco se preocupam em saber como isso atinge a democracia ou quais as suas consequências
sociais e econômicas.
O caso brasileiro atual é mais grave por causa da polarização
criada entre Lula e Bolsonaro, entre petistas e bolsonaristas, que são muito
parecidos, diga-se de passagem, que gerou um círculo vicioso, no qual há uma
retroalimentação. O fanatismo de um lado, reforça o do outro. Mas, pior que
isso, o crescimento eleitoral de um reforça o de outro, pois além dos fanáticos
dos dois lados, ainda há a rejeição enorme que os dois conseguem no resto da população.
Assim, o petismo reforça o bolsonarismo e vice-versa, assim como o antipetismo
reforça o antibolsonarismo[2]
e vice-versa.
Por fim, podemos dizer que o assédio eleitoral é uma
realidade e se torna cada vez mais forte, presente e até mesmo ousado. Mas,
para o país do coronelismo, a única coisa que mudou da época do “voto de
cabresto” para hoje é que agora não temos mais apenas um coronel e sim dois num
mesmo território assediando os eleitores, o que gera violência e extrapolação
por parte dos seus adeptos. Isso apenas mostra a aproximação do dobre de
finados da democracia representativa. O que interessa mesmo é o que virá depois
dela e a luta deve ser pela autogestão social, no qual o autogoverno da população
dispensa políticos profissionais, partidos e burocratas.
[2] O
antipetismo é muito mais forte e numeroso que o bolsonarismo, pois inclui
outros setores da população, partidos, interesses, etc.; bem como o
antibolsonarismo é muito mais forte que o petismo, por aglutinar, igualmente,
um setor mais vasto da população. Nem todo mundo que é contra Bolsonaro é
petista e nem todo mundo que é contra Lula é bolsonarista.
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