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sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

A Questão da Organização Revolucionária - Novo Livro Disponibilizado


Novo Livro Disponibilizado: A Questão da Organização Revolucionária.

VIANA, Nildo. A Questão da Organização Revolucionária. Rio de Janeiro: Rizoma, 2014.

Clique aqui para acessar.

Apresentação:


O problema da organização sempre acompanhou o movimento revolucionário do proletariado e suas expressões teórico-políticas. Como os trabalhadores devem ser organizar? Como os militantes revolucionários se organizam? Duas questões, complementares e que são fundamentais para se pensar a práxis revolucionária. Assim, o propósito que nos colocamos aqui é discutir e colocar algumas questões e posicionamentos que abre espaço para se pensar a organização revolucionária, ou seja, a organização dos militantes revolucionários. Organizamos o texto da seguinte forma. Inicialmente fazemos uma breve discussão sobre algumas das principais teorias da organização revolucionária. Neste contexto, resgatamos alguns elementos do pensamento de Marx, Rosa Luxemburgo, Gorter, Rühle, Pannekoek, sem o objetivo de retomar a totalidade de suas ideias sobre organização, mas selecionando apenas os aspectos que nos interessam com mais intensidade para nossa discussão posterior. Posteriormente, apresentamos uma breve discussão sobre as organizações burocráticas e sua recusa, entrando tanto no processo de constituição das ideologias que nascem a partir delas quanto de suas práticas e consequências sociais. A partir daí passamos a analisar as organizações proletárias, elemento importante por ser referência para pensarmos a organização revolucionária e também para discutirmos a necessidade de dupla organização ou organização unitária. O passo seguinte é analisar a organização revolucionária e destacar um determinado modo de concebê-la, como expressão política do proletariado e, portanto, em seu processo social e histórico e ligação indissolúvel com o movimento revolucionário do proletariado, o que significa descartar sua autonomização e separação do movimento revolucionário do proletariado. Isto permite passar para a discussão seguinte, que é a questão da organização interna, o que remete para a questão da decisão coletiva e autodisciplina, entrando em questões como a da liberdade individual e compromisso coletivo. Uma vez estabelecido estas reflexões, falta discutir a relação da organização revolucionária com o proletariado e a sociedade civil (movimentos sociais, etc.). Aqui reside uma questão importante, que remete ao momento da ação da organização revolucionária sobre as lutas sociais existentes.



quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Capital Comunicacional e Religião - Novo livro disponibilizado



VIANA, Nildo (org.). Religião e Capital Comunicacional. Rio de Janeiro: Ar Editora, 2015.


O livro organizado por Nildo Viana e que conta com artigos de André de Melo Santos, Erisvaldo Pereira de Souza, Maria Angélica Peixoto e Veralúcia Pinheiro, com prefácio de Flávio Sofiatti, aborda a relação entre religião e capital comunicacional. Abaixo o texto da contracapa dessa obra e o sumário da obra.

A igreja e a religião foram, no passado, tal como na sociedade feudal, as grandes influências das representações e formas de consciência da população. Na sociedade moderna, ela perde parte de sua influência e novas formas de pensamento e reprodução do mesmo ganham espaço, tais como a ciência, a escola e o capital comunicacional. O capital comunicacional (“indústria cultural”), por sua vez, emerge na sociedade capitalista e passa a ser uma das maiores forças de formação de opinião e consciência. Ao lado disso, as relações sociais na sociedade moderna são marcadas pela mercantilização, na qual tudo vai se transformando em mercadoria ou assumindo a forma de mercadoria. O próprio capital comunicacional é expressão da mercantilização da comunicação e dos meios tecnológicos de comunicação. A religião não fica imune a esse processo.

Nesse contexto, a mutação da religião e de algumas igrejas se torna visível. O seu vínculo com a mercantilização se torna cada vez mais explícito e o uso do capital comunicacional é uma das formas de aliar a antiga influência com sua forma mais contemporânea. O vínculo da religião e o capital comunicacional se torna um dos fenômenos sociais mais importantes na sociedade moderna, especialmente na sociedade brasileira. O presente livro ganha importância nesse contexto, ao abordar essas “ligações perigosas”, pois revela um processo de mercantilização da religião. A relação entre capital comunicacional e religião é analisada sob vários aspectos, abordando a questão da mercantilização, do capital comunicacional, da mutação religiosa, bem como de casos específicos, tal como o uso de determinadas igrejas pelo capital comunicacional. Logo, a temática desse livro se torna fundamental para compreender a dinâmica religiosa contemporânea e sua relação com o capital comunicacional.


Para acessar:
https://www.academia.edu/41705238/Capital_Comunicacional_e_Religi%C3%A3o

domingo, 19 de janeiro de 2020

Sobre a História e Significado do Comunismo de Conselhos





VIANA, Nildo.  Sobre a História e Significado do Comunismo de Conselhos. Rio de Janeiro: Edições Pirata, 2020.


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SINOPSE:

O Comunismo de Conselhos foi uma corrente política forte no bojo da Revolução Alemã e depois de um trajeto histórico longo foi marginalizada e os escritos dos seus representantes foram retomados, a nível mundial, com as lutas sociais do final dos anos 1990 e início dos anos 2000, apesar de, no Brasil, já terem sido retomados pelos representantes do Marxismo Autogestionário. A obra de Nildo Viana visa combater as deformações que muitos efetivaram a partir disso, bem como o dogmatismo e ecletismo. Para tanto, o autor retoma a história do comunismo de conselhos, apresentando sua formação e suas três fases, bem como o seu significado e teses fundamentais.

sábado, 18 de janeiro de 2020

QUANTO VALE A SUA VIDA?

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QUANTO VALE A SUA VIDA?
Nildo Viana

Se alguém perguntar aos leitores deste artigo, “quanto quer (em dinheiro) por sua vida” ou “quanto vale a sua vida”, a maioria deles ficaria surpresa, sem entender ou indignada. A vida é considerada por muitos como um valor fundamental e o direito à vida, bem como o respeito, é algo quase consensual em nossa sociedade. Assim, perguntar sobre o valor monetário da vida é uma ofensa, um disparate ou então uma brincadeira de mau gosto.
No entanto, tudo o que precisamos para viver precisa ser comprado com dinheiro. O ser humano, para sobreviver, precisa de habitação, alimentação e inúmeros outros bens materiais e todos eles, na nossa sociedade, são mercadorias, ou seja, bens materiais portadores de valores de uso e valores de troca, produzidas em determinadas empresas por trabalhadores assalariados e vendidas no mercado. A natureza foi mercantilizada. Então, para satisfazer as necessidades básicas, precisamos adquirir mercadorias. Mas o ser humano não possui apenas as necessidades que compartilha com os animais, pois ele tem necessidades especificamente humanas, como a práxis (trabalho teleológico consciente através do qual desenvolvemos nossas potencialidades, tal como a criatividade) e a socialidade (relações sociais harmônicas com os demais seres humanos). E para concretizar isso, mesmo que parcialmente, na sociedade moderna, precisamos de consumir mercancias[1], ou seja, bens coletivos, culturais ou até mesmo materiais, que possuem valor de uso e valor de troca, mas não são mercadorias, pois são produzidas fora do âmbito das empresas e relações de produção capitalistas.
Disto isto tudo, então a conclusão óbvia é a de que para viver, na sociedade capitalista, precisamos de dinheiro. O quanto de dinheiro precisamos para viver nesta sociedade? Para saber isso, teríamos que fazer o cálculo mercantil de quanto gastaríamos durante toda a nossa existência e assim teremos o montante necessário (abstraindo a inflação e outros processos que complexificam o cálculo). Se a pergunta fosse nesse sentido, não seria tão absurda.
Porém, a pergunta não é essa. O que se quer saber é quanto, em dinheiro, vale a sua vida. Ora, quem estipularia um valor monetário para algo que possui um valor cultural tão alto? Se tudo é mercantilizado na sociedade capitalista, adquirindo valor de troca, então por qual motivo a vida ficaria de fora? Justamente por entrar em conflito com os valores culturais, com as necessidades humanas (a socialidade), a moral, os sentimentos simpáticos dos seres humanos. Então observamos o choque de duas forças: a da mercantilização, que se expande para cada vez mais coisas, e a da humanização, que limita e busca abolir a transformação dos seres humanos em valores de troca.
A força da mercantilização já prevaleceu como no caso da escravidão negra, pois os escravos (sua vida) eram vendidos em troca de dinheiro. O processo civilizatório parcialmente coibiu esse processo tornando-o ilegal e imoral, mas ainda permanece o trabalho forçado em lugares que a fiscalização não atua e de forma parcial na prostituição, na venda de órgãos humanos e no tráfico internacional de seres humanos.
Porém, a moral e a lei sempre se relativizam quando a necessidade dos poderosos e a reprodução da sociedade exigem. Hoje se faz muitos sacrifícios em um país pelo “crescimento econômico”, assim como muitos indivíduos se sacrificam para aumentar seu poder aquisitivo e seu consumo. A sociedade moderna existe sob o signo da mercantilização e esta é uma necessidade imperiosa que tende a arrastar e colocar um preço em tudo.  É por isso que podemos dizer que o futuro da humanidade será decidido no confronto entre mercantilização e humanização, e quanto mais um avança, mais o outro recua.
A mercantilização das relações sociais invade e mercantiliza tudo. Mas as necessidades especificamente humanas continuam existindo e resistindo, mesmo que marginalmente. A insatisfação aumenta mesmo quando a posse de riquezas permite consumir o que se desejar, pois o consumo é distinto da autorrealização e de relações sociais autênticas e harmônicas. Por fim, podemos dizer que a humanidade se encontra diante da decisão entre continuar o processo de mercantilização e desumanização, que aponta para sua autodestruição, ou realizar uma transformação radical e total, que é possível e depende apenas dos seres humanos resolveram tomar o seu destino em suas mãos. A vida da competição, exploração, solidão, sofrimento psíquico, violência, destruição ambiental, ao lado da miséria dos bilhões com pouco ou nenhum dinheiro, deve ser superada e para isso é preciso começar a pensar e agir no sentido dessa transformação. A consciência desse processo é o primeiro passo para tomar a decisão acertada e salvar a humanidade dela mesma.


[1] O conjunto de conceitos aqui utilizados foram desenvolvidos ou explicitados no livro A Mercantilização das Relações Sociais (Curitiba: Appris, 2018).


sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Sindicalismo: Da Expectativa Revolucionária à Conformação Burocrática - livro de José Santana da Silva








SILVA, José Santana da. Sindicalismo: Da Expectativa Revolucionária à Conformação Burocrática. Rio de Janeiro: Edições Pirata, 2020.

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SINOPSE:

O sindicalismo surgiu como produto da luta dos trabalhadores e foi considerado uma promessa de contribuição para o processo de autoemancipação dos trabalhadores. A expectativa revolucionária em torno dos sindicatos foi se perdendo com o passar do tempo e com a burocratização dessas organizações. Posteriormente, os sindicatos passaram a ser criticados por sua burocratização e conservadorismo crescentes. José Santana da Silva aborda justamente o processo de análise dos sindicatos por autores que se tornaram célebres na discussão sobre as organizações sindicais e o sindicalismo, desde Karl Marx, passando por Lênin e Trotsky, até chegar a Anton Pannekoek. A presente obra é leitura fundamental para quem quer compreender as principais análises marxistas e pseudomarxistas dos sindicatos, bem como o seu significado nas lutas de classes contemporâneas.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Carta de Marx sobre Direito e Filosofia



MARX, Karl. Carta Sobre Direito e Filosofia. Rio de Janeiro: Edições Pirata, 2020.

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SINOPSE:

Karl Marx envia uma carta ao seu pai durante sua juventude e coloca os dilemas no estudo do direito e seus limites, bem como aponta para a questão da filosofia. O direito aparece, ao jovem Marx, como algo morto e distante da vida. Daí sua aproximação com a poesia e as artes, e sua decisão de retomar o mundo real. A angústia do jovem Marx mostra o dilema de inúmeros jovens diante da decisão da escolha profissional, a questão da vocação, e a necessidade - imposta pela sociedade capitalista - de adesão ao trabalho alienado. Os comentários de Armando Godoy, focalizando a questão do direito, e Julius Blanchot, focalizando a questão da vocação, ajudam a compreender a carta e trazem outras contribuições para se pensar o breve escrito do autor de O Capital.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

AS EXPERIÊNCIAS AUTOGESTIONÁRIAS



AS EXPERIÊNCIAS AUTOGESTIONÁRIAS

Nildo Viana*

As experiências autogestionárias foram inúmeras na sociedade moderna. Desde pequenas iniciativas com pouco resultado até tentativas de revoluções autogestionárias, uma ampla gama de processos sociais autogestionários foram se constituindo historicamente. O nosso objetivo aqui é fazer uma exposição de algumas experiências autogestionárias sob forma analítica, muito mais que descritiva, pois o espaço não permite grandes descrições, visando explicitar o significado de tais experiências, mostrando suas formas, limites e potencialidades.
O que são experiências autogestionárias?
Antes de iniciar nossa análise das experiências autogestionárias é necessário o esclarecimento conceitual. A primeira questão é definir o que é autogestão. A discussão em torno do conceito de autogestão já foi realizada por vários autores, sob perspectivas diferentes (GUILLERM e BOURDET, 1976; VIANA, 2013; ARVON, 1982), bem como sobre sua origem (ARVON, 1982; VIANA, 2013; VIANA, 2014a). A palavra surge na antiga Iugoslávia, samoupravlje, e depois chega até a França, sendo reproduzida por alguns intelectuais num sentido de alternativa ao “socialismo real” até ganhar o significado mais amplo e radical com a rebelião estudantil de maio de 1968. É nesse momento que o conceito de autogestão ganha o seu significado revolucionário.
No entanto, no âmbito da luta cultural há uma luta lexical. Esse significado revolucionário vai ser deformado, tanto pelos opositores quanto por supostos “defensores”. Aqui podemos observar três posições a respeito do termo autogestão nos meios intelectuais e militantes: a abordagem bolchevista e de recusa da autogestão; a abordagem social-democrata assimiladora da autogestão e a abordagem marxista autogestionária, que preserva e aprofunda o significado revolucionário do termo.
O divisor de águas é a rebelião estudantil de maio de 1968. Essa rebelião se inicia com manifestações estudantis contra a reforma do Plano Fouchet e suas consequências, a tecnificação e precarização das universidades francesas. Uma tendência minoritária no movimento estudantil francês, no entanto, apontava para algo mais. Esse “algo mais” era uma proposta de revolução e autogestão. A partir da cultura contestadora existente naquela época (representada pela Escola de Frankfurt, Henri Lefebvre, Daniel Guérin, André Gorz, Jean-Paul Sartre, Debord e a Internacional Situacionista, etc.) e pela retomada de pensadores revolucionários, como Marx, Bakunin, comunistas de conselhos (Pannekoek, Korsch, Mattick, etc.), bem como pelo impacto ilusório da Revolução Cultural Chinesa[1], surgem indivíduos e grupos no movimento estudantil francês que se radicalizam e uma parte considerável passa a defender a autogestão social. A revolução total, a ideia de “mudar a vida”, ou seja, um projeto de transformação radical e total do conjunto das relações sociais, o que foi denominado autogestão, aparece nesse momento.
A reação das centrais sindicais e do Partido Comunista Francês, contrários ao movimento, é sintomático do caráter burocrático dessas instituições. Logo, não é sem razão que após a derrota do Maio de 1968, os ideólogos ligados ao PCF tenham elaborados diversas “críticas” à autogestão e ao “esquerdismo” estudantil. Por outro lado, o Partido Socialista e a sua central sindical, a CFDT (Confederação Francesa Democrática do Trabalho), optaram por “assimilar” a palavra autogestão, deformando seu significado. A luta lexical significou, nesse contexto, a recusa da palavra e seu significado pelo PCF e a busca de sua assimilação e deformação pela CFDT (VIANA, 2014a). Ambos são contra a autogestão, uns recusa a palavra e seu significado, outros aceitam a palavra, mas alteram o seu significado.
O significado revolucionário e original derivado do Maio de 1968 vai ser retomado e ampliado pelo marxismo autogestionário. Aqui ocorre a emergência de uma nova atualização do marxismo, a partir da crise do regime de acumulação conjugado[2] e das lutas operárias e estudantis dessa época, na qual o maio de 1968 passa a expressar e simbolizar sua radicalidade. Yvon Bourdet é o principal representante do marxismo autogestionário emergente a partir dessa época. Uma retomada do pensamento de Marx e seu caráter revolucionário e autogestionário, bem como a recuperação de marxistas esquecidos, como Rosa Luxemburgo e comunistas de conselhos, e a “retomada da linha revolucionária”, bem como aprofundamento da discussão em torno da autogestão e questões correlatas.
É por isso que teremos, na obra de Guillerm e Bourdet (1976), uma primeira distinção entre o conceito de autogestão e termos paralelos, como cooperativa, cogestão, controle operário, participação. Não poderemos desenvolver aqui essa diferenciação e por isso nos contentamos a remeter para esta obra e outras que discutem as diferenças do conceito de autogestão para outros termos (FARIA, 2009; VIANA, 2008a; VIANA, 2014a) e, além disso, apontar para algumas obras que avançam na compreensão do que é a autogestão (TRAGTENBERG, 1989; GUILLERM e BOURDET, 1976; VIANA, 2014a, VIANA, 2013).
No entanto, a questão lexical é de suma importância e por isso vamos realizar algumas definições e distinções que no contexto do presente trabalho ganham maior relevância. O conceito de autogestão é fundamental e por isso o definimos como uma nova sociedade, radicalmente diferente, fundada na autogestão generalizada, o que significa que se estabelece no conjunto das relações sociais. Nesse sentido, autogestão seria um conceito idêntico ao de comunismo, tal como expresso por Marx e não pelas experiências do “socialismo real”, na verdade um capitalismo estatal. A autogestão é, portanto, uma sociedade autogerida, na qual o modo de produção é autogerido, pelos livres produtores associados, bem como as formas sociais de reprodução da vida cotidiana. Na sociedade autogerida, as relações de produção deixam de ser fundadas em relações de classes e passam a ser uma associação de produtores livres e iguais que são a quase totalidade da população (retirando os incapacitados ao trabalho) que através da decisão coletiva e auto-organização realizam a produção e distribuição. Os aparatos burocráticos, a começar pelo estatal, deixam de existir e em seu lugar se realiza a autogestão de todas as instâncias da vida social.
A autogestão é um conceito que expressa em nível coletivo o que a palavra práxis expressa em nível individual. A práxis, segundo Marx[3], é uma atividade teleológica consciente, ou seja, na qual o indivíduo desenvolve uma finalidade (objetivo, plano) antes de executá-lo concretamente, o que pressupõe domínio de sua própria atividade, consciente e finalidade. Assim, a práxis é o oposto da alienação e pressupõe consciência e finalidade. A autogestão significa a generalização da práxis individual em toda a sociedade, tornando-se práxis coletiva e decidida coletivamente. Nesse sentido, a autogestão pressupõe totalidade. Não há como existir autogestão no capitalismo, bem como não existe a possibilidade de “autogestão parcial”. A autogestão na qual os indivíduos associados não decidem o que produzir, para quê e para quem, não é exatamente autogestão. Quando os indivíduos decidem apenas o como produzir, o como gerir, mas definem conscientemente e livremente a finalidade do processo, não é autogestão.
Desta forma, deixamos claro que autogestão e capitalismo são antagônicos. A autogestão é a negação do capitalismo e nasce e se forma na luta contra ele. Por isso é preciso, mesmo que brevemente, distinguir autogestão de outros termos. A diferença fundamental entre autogestão e todos os outros termos confundidos com ela é resolvida com a ideia de totalidade. Nesse sentido, democracia direta não é autogestão, mesmo porque ela já parte de uma divisão e separação, na qual haveria uma instância especializada que seria a política, na qual ela existiria. A autogestão é generalizada e abole as instâncias especializadas e sua necessidade. Da mesma forma, “gestão operária” é outro termo equívoco, pois se a gestão é operária, isso significa que essa classe social continua existindo, e ela só existe em relação com o capital, ou seja, com a classe capitalista[4].
Uma outra expressão deve ser destacada aqui. É a chamada “gestão social”. Embora a ideologia da gestão social seja relativamente recente e bastante limitada, existem alguns elementos que podem levar a uma confusão com o termo autogestão ou “autogestão social”[5]. A proximidade das palavras é complementada por alguns outros termos de uso comum e certas semelhanças formais. Para Tenório, o mais insistente ideólogo da gestão social, “a gestão social contrapõe-se à gestão estratégica na medida em que tenta substituir a gestão tecnoburocrática, monológica, por um gerenciamento mais participativo, dialógico, no qual o processo decisório é exercido por meio de diferentes sujeitos sociais” (TENÓRIO, 1998, p. 16)[6]. A gestão social, na concepção de Tenório, estaria ligada à “democracia deliberativa” e “cidadania deliberativa”, ou seja, ocorreria no âmbito da chamada “esfera pública” e teria na “ação comunicativa” a sua base ideológica e meio de realização.
Não é preciso colocar que a fonte de inspiração é o filósofo Jürgen Habermas e nem realizar a crítica deste ideólogo[7]. A simples definição acima serve para quem compreende o conceito de autogestão ver o antagonismo radical entre os dois projetos. A ideologia da gestão social apenas une o participacionismo, já criticado por Tragtenberg (1989) com ideologia e linguagem habermasianas, que nada trazem de novo além da terminologia. De qualquer forma, é visível que essa proposta se coloca no interior do capitalismo (mais especificamente, na “esfera pública”, fora da esfera do mercado e do Estado), o que significa que não tem um caráter totalizante. É um projeto dentro do capitalismo e que atua em parte dele, na “esfera pública”, e que não ultrapassa o nível de “participação”. Trata-se de apenas mais uma ideologia burguesa participacionista que busca a integração dos indivíduos na sociedade capitalista. Além de ser uma proposta mal construída e sem maior compreensão da totalidade da sociedade moderna, falta-lhe concreticidade e mecanismos operatórios reais. A explicação para sua reprodução discursiva só pode ser a seguinte: numa sociedade onde qualquer mercadoria é vendida, qualquer ideologia é comprada.
Um outro esclarecimento preliminar precisar ser realizado. A distinção entre organização burocrática, auto-organização e autogestão. As organizações burocráticas (estado, partidos, igrejas, universidades, etc.) são marcadas pela existência de uma relação entre dirigentes (burocratas ou burocracia) e dirigidos. Nessa relação, os dirigentes possuem os meios de administração e poder de decisão e isso é legitimado por normas escritas (regimentos, leis, etc.), sendo que a burocracia controle os meios formais de admissão e possui uma divisão hierárquica. O quadro dirigente é o que se chama de burocracia, sendo composto por assalariados que possuem o poder de decisão, inclusive em organizações “ditas” democráticas (incluindo participacionismo, cogestão, etc.). A burocracia existe para garantir o controle social, tanto nas instituições quanto na sociedade em geral, sendo que no primeiro caso temos as burocracias civis e no último a burocracia estatal.
Na sociedade capitalista, as organizações burocráticas convivem com outra forma organizacional, não-burocrática, chamada geralmente de auto-organização ou “organizações autárquicas” (VIANA, 2016). As organizações autárquicas vegetam na sociedade capitalista e sobrevivem marginalmente, ganhando força e espaço com o avanço do movimento operário e das lutas de classes[8]. As organizações autárquicas não carregam no seu interior a divisão entre dirigentes e dirigidos e nem a hierarquia interna.  A decisão coletiva é o seu princípio, explícito ou implícito. Os poucos aspectos coincidentes com as organizações burocráticas (normas escritas, por exemplo) são distintas em seu conteúdo. Assim, as normas escritas existem nas organizações burocráticas e podem existir nas organizações autárquicas, mas seu objetivo é antagônico: num caso elas existem para garantir a existência de dirigentes, hierarquia, controle, e, no outro, para garantir a decisão coletiva, a inexistência de hierarquia, dirigentes, controle burocrático.
A diferenciação entre organização autárquica e organização burocrática é fundamental, mas é preciso destacar que ambas se distinguem da autogestão. A auto-organização é o primeiro passo para a autogestão. A auto-organização dos trabalhadores é fundamental como momento de autoformação e de autonomização, ao se livrar das burocracias (partidárias e sindicais). A autogestão significa a decisão coletiva em todos os processos, meios e fins, forma e conteúdo. A autogestão em uma fábrica significa que o proletariado aboliu a burocracia (empresarial) e o capital no seu interior e que, através da decisão coletiva, decide o que, como e para quem produzir. Por isso, um comitê de greve (quando autônomo em relação à burocracia sindical) é uma organização autárquica, ou auto-organização, pois sua existência é temporária, sua finalidade preestabelecida (a greve), não realiza o processo de produção e sim a atividade grevista. A formação de um conselho de fábrica (também chamada “comissão de fábrica”, “conselho de trabalhadores”, “comissão de trabalhadores”) é um passo mais adiante e profundo rumo à autogestão, mas não é, ainda, a sua concretização. Se o conselho de fábrica nasce num contexto de radicalização e que se propõe e efetiva a gestão da fábrica, então se aproxima da autogestão, mas por não haver uma total autodeterminação (incluindo decisão sobre meios e fins), por estar envolvido na divisão social do trabalho, subordinado ao mercado (relações de distribuição capitalistas) e aparato estatal, e seguindo seus parâmetros, então temos um processo de cogestão. A passagem para a autogestão pressupõe que esse conselho de fábrica ultrapasse os limites impostos por esta unidade de produção isolada. E é justamente essa passagem que é um dos principais obstáculos para a revolução proletária, tal como colocaremos adiante.
Por fim, antes de abordarmos algumas experiências autogestionárias, seria interessante analisar o significado dessa expressão. Se autogestão é uma nova sociedade que ainda não existe, sendo uma utopia concreta (Bloch), então como é possível abordar “experiências autogestionárias”? A compreensão disso fica facilitada pela distinção entre os termos “autogestionário” e “autogerido”. Autogestionário é um adjetivo e um substantivo masculino e autogerido é um verbo e por isso possuem significados distintos. Dizer que Marx é autogestionário significa dizer que ele defende ou tem como objetivo a autogestão, ou que realizou a autogestão. É o mesmo que dizer que ele é um revolucionário, o que significa que ele defende ou objetiva a revolução, ou a realizou. Claro que, no primeiro caso, Marx teria como objetivo a revolução e, no segundo caso, significaria que ele revolucionou algo, por exemplo, o pensamento social. Marx é um revolucionário por defender a revolução proletária e é também revolucionário por ter realizado uma revolução no pensamento. Aqui, no entanto, temos a palavra "revolucionário" em dois sentidos, num caso trata-se de um sentido socialmente amplo, uma “revolução social” e noutro, um sentido socialmente restrito, alguma inovação e ruptura radical em alguma instância da vida social.  Por isso, a distinção entre autogestionário e autogerido é importante e para evitar confusões é importante reservar autogestionário apenas ao projeto (e autogestionário só pode existir em sentido amplo, já que pressupõe totalidade) e autogerido ao projeto já concretizado. Logo, um grupo autogestionário tem como objetivo a autogestão e um grupo autogerido realiza a autogestão no seu interior e num contexto de autogestão generalizada[9].
O conceito de experiência já recebeu inúmeras formulações filosóficas e não temos como retomar as diversas discussões ao seu respeito no presente artigo. No sentido comum do termo, experiência pode ser saber adquirido pragmaticamente, experimentação ou tentativa. Assim, vamos apenas definir experiência como tentativa, um ensaio prático de um projeto ou sua concretização inintencional e/ou parcial. As experiências autogestionárias são acontecimentos históricos que manifestaram ensaios práticos de autogestão ou que tiveram o objetivo de concretizá-la. A Comuna de Paris (1871) seria um exemplo do primeiro caso e as repúblicas de conselhos operários na Alemanha durante o período da revolução alemã (1918-1921), um exemplo do segundo caso.
As Experiências autogestionárias durante as revoluções proletárias inacabadas
A partir do esclarecimento conceitual anterior, podemos avançar no sentido de explicitar algumas experiências autogestionárias. No entanto, a primeira dificuldade é a existência de inúmeras experiências autogestionárias, umas mais amplas, profundas e radicais, outras menos. Uma lista destas experiências, mesmo que sumária, elencaria uma grande quantidade: Comuna de Paris (1871); Revolução Russa de 1905, Revolução Russa de 1917, a Revolução Alemã (1918-1921), a Revolução Húngara (1918), a Revolução Italiana (1919-1920), a Revolução Espanhola (1936-1939), a Revolução Portuguesa (1974), a Revolução Polonesa (1980), entre diversas outras e sem contar as experiências menores que não chegaram a ser consideradas “revoluções” (como o maio de 1968 em Paris, as lutas radicalizadas na Argentina no final da década de 1990 e início da década seguinte, etc.). Essas experiências foram revoluções proletárias inacabadas que precisam ser explicadas em seu inacabamento, pois essa é uma questão fundamental para a emancipação humana.
Nesse sentido, selecionamos quatro experiências para analisar, usando como critério distintos graus de radicalidade e diferentes formas de concretização, pois isso no permitiria reflexões mais profundas sobre os limites e obstáculos encontrados em diferentes situações e processos de avanço do proletariado. Assim, escolhemos as experiências portuguesa, comunarda, russa e alemã. A ordem da exposição não será cronológica e sim utilizando vários critérios, como radicalidade, especificidade, etc.
a)      A Revolução dos Cravos
Em 1974, seis anos após a rebelião estudantil de 1968 na França, Portugal vive uma experiência de superação de um regime ditatorial e um esboço de revolução proletária. Existe um amplo debate sobre esse acontecimento histórico, com interpretações distintas e até opostas e nos extremos veremos alguns colocando apenas como um golpe militar e outros como uma revolução proletária. As interpretações não são neutras e gratuitas, é possível perceber, por detrás de cada uma delas (e isso vale para todas as demais experiências que abordaremos), distintas perspectivas de classe[10]. Não temos tempo e espaço para analisar as interpretações e elas aparecerão apenas quando for algo necessário.
A chamada Revolução dos Cravos inicia-se com uma sublevação militar que a possibilidade para uma tentativa de revolução proletária. A tomada do poder estatal pelo MFA (Movimento das Forças Armadas), que tinha um ideário socialista em alguns dos seus representantes mais expressivos no processo, gerou uma situação social de abandono de empresas por capitalistas, crise social, efervescência política e revolucionária, lutas operárias espontâneas e autônomas, entre outros processos. No bojo desses acontecimentos, emergem as chamadas “comissões de trabalhadores” (nome que foi mais utilizado em Portugal, mas são equivalentes aos conselhos de fábrica).
O complexo processo social da revolução em Portugal não será abordado, pois o nosso foco será o elemento mais importante para se compreender o potencial autogestionário dessa experiência, mais especificamente as lutas operárias e as comissões de trabalhadores. O processo histórico das lutas operárias não foi homogêneo. As lutas operárias nunca são homogêneas, pois elas são marcadas por avanços e recuos, processos contraditórios e desenvolvimento diferenciado do proletariado. Alguns setores avançam mais rápido, outros setores são mais lentos. Alguns locais promovem uma maior radicalização, enquanto que em outros há uma maior passividade. A partir de 1975, ocorreram diversas greves, manifestações, entre outras ações. É por isso que desde a sublevação militar de 25 de abril de 1974, as lutas operárias foram variadas, geralmente espontâneas ou autônomas, em poucos casos autogestionárias[11].
As comissões de trabalhadores reproduziam essa diversidade, sendo que algumas propunham o controle operário da produção, enquanto que outras apontavam para esse processo como meio para a revolução socialista, apesar das ambiguidades nesse processo. Esse processo pode ser entendido através de um exemplo. Uma comissão de trabalhadores coloca, em um dado momento, em 1975, os seguintes objetivos:
Comissão de Trabalhadores para controle da produção e da gestão da Sorefame – CTCPGS

Objetivos:

Atuação desta comissão insere-se no processo revolucionário de transição para um regime socialista que no nosso país se está vivendo. Neste se abolirá a exploração do homem pelo homem e se criarão as condições necessárias para que cada um possa desenvolver as suas qualidades profissionais, culturais, etc., pondo-as a serviço da comunidade e dela recebendo a justa retribuição, isto é, realizará o princípio: “de cada um segundo as suas possibilidades, a cada um segundo o seu trabalho”.
Nesta fase revolucionária, a colaboração dos trabalhadores da Sorefame reveste-se de especial importância.
Na realidade, a Sorefame é uma empresa em que o Estado possui capital majoritário. A sua vocação tem sido a de produção de equipamentos para setores-chave da economia nacional. Daqui se conclui a sua importância para a tarefa prioritária de reconstrução da economia nacional.
Esta tarefa não poderá ser concretizada sem a participação generosa e consciente de todos os trabalhadores. Será função da comissão promover e coordenar essa participação.
Como consequência do atrás exposto, incumbe-lhe o seguinte:
1º Colaborar com o Governo Provisório no sentido de garantir a concordância da atuação da administração com as diretrizes por ele definidas.
2º Controlar a gestão da empresa, bem como todo o seu processo de produção, assumindo e coordenando uma atitude de vigilância que se quer contínua e generalizada a todos os trabalhadores, já porque a todos interessa e porque só assim todos serão agentes ativos, e não objeto dum controle que só será eficiente se for total.
3º Atuar, após perfeito conhecimento de causa, com isenção, usando sempre dureza revolucionária perante atuações que, premeditadas ou não, sejam lesivas dos verdadeiros interesses dos trabalhadores e, consequentemente, tomadas contra a economia nacional.
4º Promover a colaboração de todos os trabalhadores na reorganização da empresa, interessando-os diretamente no aumento da produtividade e na forma de atingir rapidamente um processo de produção socialista.
5º Não são funções da comissão interferir em assuntos de caráter sindical, como, por exemplo, salários, classificação de pessoal, condições de trabalho, etc.
6º não se pretende que esta comissão substitua as chefias, antes, pelo contrário, é sua função responsabilizar quem não desempenhe com eficiência o cargo para que foi designado.

A comissão de trabalhadores da Sorefame, como se pode observar acima, aponta para a constituição de uma “produção socialista” (ou seja, autogestão social). No entanto, ela se autolimita ao trabalho de “controle” e “vigilância”, aceitando a existência de “chefias” (burocracia empresarial, ou seja, o quadro dirigente), a divisão social do trabalho, a burocracia sindical, a burocracia governamental (e tanto faz se ela se diz de “esquerda” ou qualquer outra coisa). Essa autolimitação ao controle operário[12] é um obstáculo para o avanço da luta operária e apesar da posição a favor do socialismo, não encaminha propostas que vinculem o projeto socialista com a ação da comissão de trabalhadores. A razão dessas limitações é explicada pelo vínculo dessa comissão e o Partido Comunista Português.
O movimento grevista ascendente e as manifestações a partir de maio de 1975 permitem observar uma grande variedade de comissões de trabalhadores, algumas sobre influência de partidos, sindicatos e grupos e outras mais autônomas e independentes. As comissões autônomas e independentes eram a grande esperança de ruptura com as alianças estabelecidas. No entanto, essas comissões não conseguiram se organizar sob forma e com força suficiente para atacar o modo de produção capitalista e o aparato estatal. A autolimitação do movimento operário aliado ao papel do PCF e aparato estatal acabam criando a situação favorável para a derrota de novembro de 1975.
Essa dificuldade das comissões de trabalhadores em efetivar uma ruptura com o capital e com o Estado recebeu diversas interpretações. No entanto, isso não deve fazer pensar que seu significado não tenha sido relevante. As comissões não só expressaram lutas autônomas como ainda enfrentaram a oposição do PCP, sindicatos, grupos políticos, aparato estatal. A presença dos grupos leninistas e seu fetichismo do Estado era um dos obstáculos que reforçava a manutenção de várias comissões de trabalhadores num estágio pré-revolucionário[13]. Assim, duas interpretações e concepções se destacam nesse processo. Uma, a posição autonomista, que se limita a defender a autonomia e seguir a dinâmica do movimento operário, caindo no reboquismo. A outra, que podemos chamar de “programática”, coloca a necessidade de um “programa comunista” e condena as formas de auto-organização por gerar a “autoexploração”[14].
Essas posições recordam, apesar de agora se manifestarem num âmbito esquerdista, o debate entre o revisionismo reformista de Bernstein (1997), para o qual “o movimento é tudo e o objetivo é nada”, e a posição revolucionária de Rosa Luxemburgo (1986), para a qual “o objetivo é tudo e o movimento é nada”. No fundo, ambas as posições, em todos os casos, são equivocadas. A posição autonomista, assim como todo obreirismo, possui uma concepção mística do proletariado e não ultrapassa, no âmbito do pensamento, o limite das lutas autônomas (JENSEN, 2016), reproduzindo-as e assim contribuindo com a autolimitação do movimento operário. O objetivo final é abandonado por se julgar que ele acontece automaticamente, e com isso os indivíduos e as ideias são desvaloradas em nome de uma suposta “prática” (BERNARDO, 1991). A posição programática tem a vantagem de colocar o objetivo final e deixar claro que é ele que dá sentido à luta. No entanto, ao ter uma concepção semelhante aos dos bordiguistas, ao supor um “programa comunista” abstrato, acabam deixando de lado a questão da gênese da consciência e da forma organizacional comunista[15].
Assim, uns ficam presos no presente e outros ficam presos no futuro, sem perceber que é no presente que se constitui o futuro. O programa comunista, o objetivo final, nasce através das lutas do presente e por isso o movimento operário deveria, ao contrário do que pensa a posição programática, constituir comissões de trabalhadores. Estas são necessárias, tanto para a luta quanto para o desenvolvimento da consciência e formas superiores de auto-organização, sendo esboços da futura sociedade autogerida. O problema se encontra nos seus limites. Os limites próprios do movimento operário são reforçados pela ação das organizações burocráticas (partidos, sindicatos, etc.), pelo aparato estatal, pelas ideologias e concepções hegemônicas e até mesmo pelas concepções marginais que ao invés de contribuir com a superação desses limites, acabam fazendo o seu elogio (autonomismo) ou sua recusa (programatismo). Tanto o movimento operário quanto o bloco revolucionário (que estas duas posições encarnavam ao lado de outras) mostraram seus limites e incompreensão das necessidades da luta revolucionária. Esta discussão será retomada adiante, quando realizarmos a análise geral das experiências autogestionárias, pois o mesmo caso se repete nas demais experiências, sob formas diferentes.
b)      A Revolução Russa
A Revolução Russa ocorreu antes e possuiu uma radicalidade muito maior. Ela foi antecedida pela Revolução Russa de 1905, que marcou a emergência dos conselhos operários, os sovietes (VIANA, etc.). As lutas operárias nos anos seguintes evoluíram até o momento da nova ruptura, em fevereiro de 1917, com a reemergência dos sovietes. A Revolução de Fevereiro foi espontânea, como reconhece o próprio Lênin, que estava no exílio e pode retornar à Rússia graças à luta operária. Segundo Anweiler, a formação dos sovietes após a Revolução de Fevereiro de 1917 é um fenômeno claramente popular. “O movimento tinha um caráter espontâneo, surgiram sovietes em todas as partes, independentes uns dos outros e sem nenhuma preparação teórica, nascidos das necessidades práticas do momento revolucionário” (ANWEILER, 1975, p. 118).
A base dos conselhos operários eram os conselhos de fábrica. Os conselhos de fábrica cuidavam especialmente das questões da produção e da organização no interior das fábricas e os conselhos operários cuidavam das questões políticas, embora as fronteiras nem sempre fossem mantidas de forma absoluta[16]. Os conselhos operários eram formados por conselhos de fábrica e realizavam a gestão não apenas da fábrica, mas também de um determinado território. Com o desenvolvimento do processo revolucionário, os sovietes passaram a governar parte da sociedade russa, gerindo tropas militares (através dos sovietes de soldados), meios de comunicação, etc. ao lado dos conselhos de fábrica, que geriam as unidades de produção. Esse processo era complexo e tinha variações dependendo da cidade e região, e tinha como concorrentes os sindicatos que começaram a nascer (eram praticamente inexistentes na Rússia) e sofriam influência dos partidos políticos (especialmente mencheviques e socialistas revolucionários, depois os bolcheviques ganham mais importância). É nesse contexto que, após fevereiro, emerge o governo provisório e este governa apenas parte da sociedade, instituindo o duplo governo: um aparato estatal debilitado que governa parte da sociedade ao lado dos sovietes, fortalecidos e que governam outra parte da sociedade.
Esse esboço de autogestão encontra limites em alguns casos. No caso dos conselhos de fábrica, ainda se mantém as relações de produção capitalistas e embora haja conquistas em relação a salários e jornadas de trabalho, ainda fica nos limites do modo de produção capitalista. No caso dos conselhos operários, a autogestão do território e de tudo que isso envolve (segurança, transporte, comunicação) convive ainda com a existência de um governo central. A influência dos partidos políticos e, em menor grau, dos sindicatos, é um obstáculo no interior do movimento operário. Os bolcheviques, visando superar a influência menchevique e socialista revolucionária, lança a palavra de ordem “todo o poder aos sovietes”, apenas um slogan para conquistar e dominar estas instituições e conquistar base de apoio para a conquista do poder estatal. No entanto, nesse momento havia um processo de radicalização e em certos lugares a ruptura com o modo de produção capitalista e com o governo central provisório se tornava mais radical, ampliando a autogestão. A tomada do poder estatal promoveu o início do processo de esvaziamento dos sovietes e a instituição da ditadura bolchevique[17]. No entanto, não foi um processo sem luta. Em certas regiões, cidades, empresas, havia uma verdadeira luta contra o bolchevismo, tanto numa perspectiva burocrática, iniciando uma luta interburocrática entre burocracias partidárias (a oposição era principalmente dos mencheviques e socialistas revolucionários, que tinham influência em determinados lugares), quanto proletária, através dos conselhos e outras formas de luta do proletariado e campesinato. Uma ampla luta ocorreu desde a tomada do poder estatal pelo Partido Bolchevique até a Revolta de Kronstadt, a última grande batalha proletária contra a ditadura bolchevista. Os conselhos de Kronstadt entraram em confronto direto com o bolchevismo ao exigir autonomia, liberdade, poder efetivo para os conselhos. Essa derrota não significou o fim da luta operária, que foi relativamente for até 1923, com diversas greves, mas foi enfraquecida e a repressão estatal se tornava cada vez mais forte e os campos de concentração da Sibéria cada vez mais lotados, inclusive com uma forte presença de ex-bolchevistas[18].
O momento chave do processo revolucionário russo foi exatamente em outubro de 1917. Nesse ano, o duplo governo era a grande questão a ser resolvida e a solução deste problema era fundamental para o futuro da revolução russa. Entre as possibilidades existentes, seria possível manter o duplo governo por mais um tempo, retornar ao governo czarista, adotar um governo “socialista” (como foi o bolchevista, apesar das outras opções), ou concretizar a revolução proletária com a abolição do governo central e instituição da autogestão, o que significaria a abolição dos partidos (incluindo o bolchevique), do capital e do Estado. Essas possibilidades existiam concretamente como tendências e cada uma dessas tendências tinham forças que lhe apoiavam. Os bolcheviques, que em abril selou a aliança entre o grande propagandista e polemista Lênin e o grande agitador e ativista Trotsky, acabaram se fortalecendo, aumentando sua influência, até conseguirem apoio de diversos sovietes e aglutinar militantes e fazer o partido crescer. A questão do duplo governo se resolveu, em outubro, pela superação do governo czarista e adoção de um governo “socialista”.
Sem dúvida, isso não foi unânime, pois apesar do apoio de diversos sovietes, muitos outros (tanto os influenciados pelos demais partidos quanto os autônomos), foram contra, além de camponeses, grupos políticos (Makhaïsky e seu coletivo, os anarquistas, etc.). O II Congresso dos sovietes foi boicotado por diversos conselhos, o que facilitou a vitória bolchevique, já que a oposição ficou enfraquecida. A tomada do poder estatal pelos bolcheviques, um golpe de estado, segundo Makhaïsky (1981), promoveu um progressivo esvaziamento dos sovietes (BRINTON, 1975). A resistência posterior ocorrerá em diversos lugares e sob diversas formas, sendo que o caso da resistência camponesa na Ucrânia (MACHNÓ, 1988; ARCHINOV, 1976) e dos marinheiros em Kronstadt (ARVON, 1984; METT, 2006; CILIGA, 2015) são os mais expressivos. O caso de Kronstadt é mais significativo devido ao embate direto com o bolchevismo e sua crítica da burocracia, do partido e da ditadura, o que pode ser sintetizado com a palavra “burocracia”, bem como sua proposta de “terceira revolução”, que seria uma nova revolução instituindo o governo dos sovietes, ou seja, a autogestão. Segundo o Izvéstia de Kronstadt de março de 1921:
É aqui, em Kronstadt, que foi lançada a pedra fundamental da Terceira Revolução, que quebrará as últimas amarras do trabalhador e lhe abrirá a nova e larga estrada da edificação socialista. Essa nova revolução despertará as massas trabalhadoras do Oriente e do Ocidente. Pois ela mostrará o exemplo de uma nova construção socialista em oposição à “construção” comunista, mecânica e governamental. As massas trabalhadoras além de nossas fronteiras serão convencidas pelos fatos de que tudo que foi fabricado entre nós até o presente, em nome dos operários e dos camponeses, não era o socialismo (apud. ARVON, 1984, p. 111).
O massacre dos marinheiros de Kronstadt foi o golpe mais forte contra a revolução proletária, pois era o lugar no qual o nível de organização e consciência estava mais avançado e no qual estava mais claro e cristalino o caráter não-socialista do governo e concepção bolcheviques e da necessidade da auto-organização.
Essa experiência autogestionária foi uma das mais importantes na história. A sua importância reside não só na constituição dos sovietes, que serviu de exemplo e modelo para diversas outras experiências (especialmente a dos anos seguintes na Itália, Hungria e Alemanha), a demonstração da capacidade proletária (e camponesa) em auto-organização e autogestão (mesmo que parcial) e abolição (também parcial) das relações de produção capitalistas, mas também por colocar problemas e obstáculos para a generalização da autogestão. Essa foi a primeira experiência autogestionária que colocará o problema da abolição do estado e da burocracia, que se repetirá, sob outras formas, nas demais experiências. É por isso que esta revolução proletária inacabada traz ensinamentos que precisam ser tema de reflexão para que uma percepção da derrota ajude a prevenir sua repetição em experiências futuras. Isso, no entanto, será abordado nas nossas reflexões sobre os dilemas das revoluções proletárias inacabadas.
c)      A Revolução Parisiense
Antes da Revolução Portuguesa e da Revolução Russa ocorreu uma outra experiência, a Comuna de Paris. Essa experiência autogestionária é considerada por muitos como a mais significativa e, para outros, a mais autêntica. A Revolução Russa nasceu da auto-organização proletária nas unidades de produção, através dos conselhos de fábrica, e dos conselhos operários, lançando o esboço geral da autogestão generalizada, abolindo as relações de produção capitalistas. A Comuna de Paris surgiu através de outra dinâmica. A revolução comunarda não se inicia nas fábricas e nem em formas de auto-organização do proletariado. Ela nasce de um processo coletivo e político mais amplo, determinado por uma situação histórica peculiar na cidade de Paris.
A Comuna de Paris surgiu a partir de dois processos simultâneos. O desenvolvimento industrial acelerado que se iniciar na época, gerando um proletariado em formação, ao lado da existência de vários outros setores de trabalhadores (camponeses, artesãos, etc.) em situação precária e submetido ao Estado bonapartista, uma imensa máquina burocrática. Uma forte insatisfação e a proliferação de ideias contestadoras e socialistas apontavam para um processo de radicalização das lutas de classes. Esse processo foi acelerado com a guerra franco-alemã, uma disputa de dois impérios que acabou chegando a Paris, com o exército alemão cercando a cidade. Nesse contexto, a derrota francesa era previsível, mas a população parisiense decide pela resistência (especialmente através da guarda nacional e outros setores que receberam armas para enfrentar o exército alemão), gerando o que Marx denominou “povo em armas”.
É nesse que contexto que os operários parisienses, ao lado de outros trabalhadores e indivíduos de outras classes, realizam a resistência e a reorganização da sociedade, pois o aparato estatal é superado e deixa de existir. A abolição do Estado se torna realidade e a população passa a se autogovernar. A Comuna de Paris emerge no dia 18 de março de 1871, durante apenas dois meses, e mesmo assim, conseguiu esboçar a autogestão social. A abolição da máquina estatal, do exército permanente, desapropriação das casas vazias, entre diversas outras ações e medidas, mostram o início de uma revolução proletária. Esse processo negativo, no entanto, foi acompanhado de medidas positivas. A grande medida da Comuna, como disse Marx, foi sua própria existência. A Comuna teve como grande mérito a autogestão territorial de uma cidade com um milhão de habitantes[19], que não foi apenas das milícias populares, mas da gestão da cidade como um todo. A autogestão territorial comunarda se constituiu através de assembleias que tomavam as decisões coletivas e da existência de delegados comunais[20]. Esses delegados eram substituíveis, removíveis, eleitos e responsáveis (MARX, 2011; VIANA, 2011b; VIANA, 2011c). A eleição, substituição e remoção a qualquer momento retirava a possibilidade de autonomização dos delegados, mas o princípio da responsabilidade era o mais importante, afinal, “o delegado escolhido não tem autonomia e nem pode criar interesses próprios, tal como na democracia burguesa, e é o que garante a decisão coletiva das assembleias em substituição à autonomização dos eleitos” (VIANA, 2011c).
A Comuna de Paris foi a primeira experiência autogestionária e a primeira revolução proletária inacabada. Ela foi uma das experiências que mais se materializou como fonte de inspiração para lutas posteriores. O seu grande mérito foi a abolição do aparato estatal e a autogestão territorial. No entanto, sua curta duração (dois meses), o contexto marcado pelo cerco alemão e oposição do governo francês (instalado em Versalhes, ou seja, o estado nacional, já que localmente ele não existia mais), não permitiu o seu avanço no sentido de destruir as relações de produção capitalistas. Essas permaneceram em alguns lugares, foi coibida e controlada em outras, foi abolida em alguns lugares (algumas fábricas). A repressão violenta que se abateu sobre os comunardos, com mais de vinte mil assassinados, acabou gerando a derrota dessa extraordinária experiência autogestionária. A Comuna de Paris, portanto, devido ao seu inacabamento, trouxe alguns elementos para a reflexão sobre os obstáculos para a autogestão que diferem dos dois casos anteriores.
d)      A revolução alemã
A Revolução Alemã constitui um caso distinto de todos os demais. A sua eclosão ocorre após a Comuna de Paris e depois das revoluções na Rússia. Isso, por si só, já traz certas diferenças. A Revolução Russa e os sovietes provocam um forte impacto no caso alemão. Outra diferença importante é que a Alemanha é uma sociedade muito mais moderna do que Paris em 1871 ou a Rússia, uma sociedade predominantemente rural. Outra diferença é que o regime político existente era a democracia burguesa representativa, com diversos partidos e com um partido que dizia representar os trabalhadores e que tinha grande respaldo junto ao conjunto de trabalhadores do país. O SPD (sigla em alemão para Partido Social-Democrata Alemão) era uma imensa máquina burocrática (tinha mais de um milhão de filiados, imprensa e gráfica própria, escola do partido, publicações, direções nacional e regionais, representantes no parlamento, etc.). As ideias socialistas eram divulgadas nos meios operários via SPD (sob forma cada vez mais moderada) e outras organizações. Outra diferença da Alemanha em relação aos demais casos é histórica, pois sua unificação foi tardia em relação aos demais países europeus e sua unidade nacional marcada por um conjunto de diferenças regionais que tiveram impacto no processo revolucionário.
Por todos os lados os conselhos de operários e soldados ganharam vida e prenderam os oficiais e funcionários do velho regime, exceto aqueles que declararam sua disposição em servir à revolução. Por todas as partes foi proclamada a nova República, os reis e príncipes abdicaram e desapareceram, e, finalmente, em 09 de novembro, abdicou o Imperador Wilhelm. Berlim, que permaneceu em calma até o final, passou por cima da revolução; os conselhos de soldados e operários tomou o controle sem derramamento de sangue, e a polícia do velho regime desapareceu das ruas. O movimento se estendeu até a frente ocidental, e Wilhelm foi obrigado a fugir do quartel general do Estado Maior em Spa indo para os Países Baixos (PANNEKOEK, 2014).
A rebelião dos marinheiros de Kiel foi fundamental para a eclosão revolucionária. Os conselhos operários emergem e os conselhos de fábrica se espalham por Berlim e outras cidades. A deposição do governo coloca a possibilidade dos conselhos operários realizarem a abolição do poder estatal e do capital, mas, no entanto, apesar de sua força, a influência do SPD, e do USPD[21], nos conselhos e a falta de radicalidade do proletariado, gerou a abdicação do poder e a constituição da República de Weimar, com um governo reunindo os dois partidos social-democratas e um partido declaradamente conservador. No entanto, muitos conselhos e forças políticas queriam mais e isso se expressou em embates políticos, dissidências, lutas armadas, culminando, inclusive, com o assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht.
A República de Weimar nasce sob o signo da luta de classes e a existência dos conselhos de fábrica e conselhos operários é um elemento diferencial, sendo que em algumas regiões se constituíram “repúblicas de conselhos operários”. Um dos problemas foi que a constituição de uma “república conselhista” numa região era reprimida e aí surgia em outra região. A falta de sincronicidade, devido diferenças regionais e processos diversos ao lado da luta de classes em cada caso concreto, acabou permitindo o poder central reprimir tais experiências. Um dos elementos fundamentais nesse processo foi a constituição das Uniões Operárias. A formação das uniões operárias tem a ver com dois processos simultâneos: por um lado, a existência de conselhos de fábricas e conselhos operários em toda a Alemanha (variando em força, radicalidade, quantidade, etc.) e um setor mais radical e combativo, por outro lado, a guinada direitista do KPD (Partido Comunista Alemão) após a morte de Rosa Luxemburgo e expulsão da maioria, que fundou o KAPD (Partido Comunista Operário da Alemanha)[22]. O KAPD, de linha revolucionária e conselhista, e os conselhos operários mais radicais geram a formação da AAUDUnião Geral dos Trabalhadores da Alemanha. Aqui temos uma tentativa concreta de superação dos obstáculos da revolução proletária. A AAUD reunia os conselhos operários, que eram expressão dos conselhos de fábrica, e nesse contexto permitiam a autogestão generalizada e realizam o que Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht apontaram e que foi teorizado de forma mais radical por Otto Rühle e Anton Pannekoek: o sistema de conselhos.
Os conselhos de fábrica, na maior parte dos casos (de 1918 a 1921, embora sua existência ainda duraria até 1923, em número cada vez menor), eram formas de auto-organização que enfrentavam vários obstáculos, entre os quais os sindicatos, um inimigo declarado e permanente[23], os partidos políticos, o governo, etc. Alguns conselhos ficavam sob influência dos partidos e seguiam linha mais moderada, exigindo controle operário, assembleia constituinte e coisas do gênero. Os conselhos mais autônomos, por sua vez, exigiam medidas mais radicais, como o sistema de conselhos. Nos momentos de radicalização e formação das “repúblicas de conselhos”, eles passavam de formas de auto-organização para órgãos de autogestão das fábricas e os conselhos operários exerciam autogestão territorial. Nesse contexto, a revolução proletária avançava, as relações de produção capitalistas eram corroídas, mesmo que regionalmente e/ou momentaneamente, e o aparato estatal deixava de exercer o poder. No conjunto da sociedade alemã, era possível observar um duplo governo e, em alguns casos, a sua superação pela força dos conselhos ou pela força do governo central.
A União Operária era a solução para os problemas e limites dos conselhos de fábrica e conselhos operários, pois era uma forma organizacional não-burocrática que unia todos os conselhos operários que aderiam ao projeto revolucionário. A sua força foi crescente no ano de 1920, pois ela aglutinava no início desse ano 80 mil trabalhadores e passa a ter 300 mil no final do ano (no ano seguinte, cai para 200 mil).
É nesse contexto que surge o chamado “Comunismo de conselhos”, uma tendência que tem sua origem no esquerdismo e socialismo radical e acaba realizando um esclarecimento teórico, assumindo caráter antipartidário e antibolchevista, bem como crítico da experiência russa, o que vai se fortalecendo cada vez mais com os contatos e notícias da Rússia. Nessa época, Herman Gorter e Otto Rühle eram os principais representantes do nascente comunismo de conselhos. É devido ao “problema russo” que ocorre uma cisão no seu interior e uma nova questão gera divergências, a respeito da organização. As duas tendências se posicionavam contra a Rússia, mas Rühle foi enviado para um congresso nesse país para fazer oposição e a articular a nível internacional e, desiludido após conversa com Lênin, retorna sem participar, o que gera sua expulsão do KAPD. Ao lado disso, emerge a divergência sobre a questão da organização, que opunha Gorter e a tese da “dupla organização” (a existência de uma organização revolucionária, o KAPD, e a organização operária, AAUD) e Rühle e a tese da “organização unitária” (o KAPD deveria deixar de existir se diluindo na AAUD). Dessa divergência surge a União Geral dos Trabalhadores da Alemanha – Organização Unitária (AAUD-E), como organização unitária, sendo que, na concretamente, atuava ao lado da AAUD. Com o recuo do movimento operário nos anos seguintes, haveria a reunificação de todos na KAUD (União Operária Comunista da Alemanha), mas sem a mesma força política e quantidade de integrantes, sendo que sua base era mais os componentes do antigo KAPD.
Assim, a experiência autogestionária alemã foi diferente das demais e rica em diversidade de situações e possibilidades. A sua dinâmica foi marcada por avanços e recuos temporais e regionais. As “repúblicas de conselhos” (Baviera, Bremen, Baviera novamente, Vale do Ruhr) e as uniões operárias foram as novidades trazidas pela Revolução Alemã e o que trazia uma possibilidade da superação do inacabamento das revoluções proletárias. No entanto, apesar disso, a experiência foi derrotada e a solução não ficou clara e sua não materialização definitiva impediu uma percepção mais ampla do significado da revolução alemã.
Interlúdio: Autogestão na Iugoslávia?
Antes de analisar as razões do inacabamento dessas experiências autogestionárias, é necessária uma breve referência ao que ficou ausente. Além dessas experiências autogestionárias existiram muitas outras, inclusive com grande possibilidade de sucesso, como o caso da Revolução Espanhola, a Revolução Polonesa, entre diversas outras. No entanto,
Da mesma forma, é possível analisar os processos que não chegaram a gerar revoluções, mas que instituíram conselhos em momentos de radicalização da luta proletária, como no caso inglês, francês, brasileiro, entre inúmeros outros casos. Por outro lado, algumas experiências que se dizem autogestionárias poderiam ser expostas e criticadas, mas o tempo e o espaço não permitiram. De qualquer forma, as críticas ao participacionismo, cogestão, entre outras, mesmo que meramente conceitual, já esclarece que não se tratam de experiências autogestionárias, e mais ainda as iniciativas patronais[24].
Um caso, no entanto, merece menção especial. É o caso da antiga Iugoslávia. O mero fato do desmoronamento deste Estado-Nação e sua experiência, sem intervenção militar externa, já seria suficiente para compreender o seu caráter não-autogerido e nem mesmo autogestionário. Contudo, como a origem da palavra autogestão nasce nesse país e muitos tomam o mesmo como modelo para aqueles que defendem a autogestão, então é necessário um breve esclarecimento sobre tal experiência.
De acordo com a concepção de autogestão apresentada anteriormente, o caso iugoslavo está muito distante de uma sociedade autogerida. A existência de um aparato estatal, da produção de mais-valor (e, por conseguinte, mercadorias e capital), a Liga dos Comunistas (uma organização burocrática que apenas troca o nome “partido comunista” para se diferenciar dos demais existentes na Rússia e Leste Europeu) e sua atuação nas fábricas e na sociedade (QUEIROZ, 1982; GUILLERM e BOURDET, 1976; TRAGTENBERG, 1989). Não existia autogestão nas fábricas iugoslavas pelo mesmo motivo que não existe, por exemplo, nas fábricas recuperadas no Brasil ou Argentina. A decisão sobre o que e param quem produzir não está nas mãos do proletariado e no único aspecto que tem influência, no como produzir, é limitado por outras instâncias de decisão e determinada pelos outros dois elementos anteriormente citados.
O titoísmo não passa de uma ideologia participacionista que usou a palavra autogestão para apresentar uma diferença entre o seu regime político e os demais do “socialismo real”, especialmente o russo e o chinês. No fundo, a diferença é muito pequena e a implosão da Iugoslávia apenas mostra que a população não se autogovernava, pois quando se livra do governo anterior, a guerra e a competição se instauram.
As Razões do Inacabamento das Revoluções Proletárias
As revoluções proletárias inacabadas que analisamos apontaram para a autogestão, mas não a concretizaram. A contrarrevolução venceu a revolução. Na Rússia, a contrarrevolução burocrática comandada pelo bolchevismo; na Alemanha, a contrarrevolução burguesa apoiada na social-democracia (e que mais tarde permitiria a ascensão do nazismo); na Comuna de Paris, a contrarrevolução sob a forma de repressão violenta; em Portugal, a contrarrevolução burguesa através da união das forças progressistas contra o proletariado. Alguns analistas apontam apenas o lado positivo da história, as lutas operárias, a sua capacidade de auto-organização, de gerir as fábricas e em alguns casos a sociedade como um todo. O lado negativo, a derrota, o inacabamento, é esquecido. A apologia da autogestão é um desserviço e não uma contribuição. É necessário demonstrar a capacidade autogestionária do proletariado, mas é preciso mostrar as razões de sua não concretização. Aprender com a derrota é uma das formas de não repeti-la. Por isso se torna fundamental repensar essas experiências autogestionárias e entender as razões do seu inacabamento.
Sem dúvida, em todas essas experiências existiram não só questões específicas em cada caso, como também situações de crise, dificuldades financeiras, pressões externas (de outros países), etc., que dificultaram o processo. No entanto, isso não explica o fracasso e nem o que substituiu a experiência fracassada[25]. A autogestão estava a um passo e esse passo não foi dado e é isto que precisa ser explicado, pois as inúmeras dificuldades não são do mesmo peso e é preciso saber o que pesou mais e gerou a tendência vencedora que superou a tendência autogestionária.
Uma análise mostra que são experiências diferentes. No caso português, temos a formação de conselhos, a auto-organização, criticada por alguns esquerdistas, pois não levaria a uma revolução efetiva. As comissões de trabalhadores não conseguiram apontar para a superação do capital e do Estado. Elas se autolimitaram. No caso da revolução parisiense, a abolição do aparato estatal foi um salto excepcional, mas a não abolição das relações de produção capitalistas, a não ser num nível muito restrito, era um obstáculo a ser superado. Houve uma autolimitação no que se refere à abolição das relações de produção capitalistas, mas sua curta duração explica isso parcialmente. A Revolução Russa caminhou no sentido contrário, pois os conselhos de fábrica e conselhos operários criaram as condições e iniciaram o processo de abolição das relações de produção capitalistas, mas se autolimitaram no momento de dar o passo seguinte, a abolição do poder estatal. No caso alemão, a formação dos conselhos operários e do seu Congresso abriram a possibilidade de abolição do poder estatal, mas houve, novamente, uma autolimitação. No decorrer do processo revolucionário, repúblicas de conselhos (que aboliram capital e estado) e uniões operárias foram forjadas para superar essa autolimitação, que, no entanto, não reuniu força suficiente para dar o passo seguinte.
O fundamental é, portanto, explicar a autolimitação. Isso remete a duas questões, que, por sua vez, estão ligadas a diversas outras. A primeira questão remete ao problema da consciência e o segundo ao problema da burocracia. Quando os conselhos operários, na Rússia e Alemanha, podiam abolir o poder estatal e resolveram confiar na burocracia partidária (bolchevique e social-democrata, respectivamente), se autolimitaram e não efetivaram o ato fundador da instauração da autogestão social. A capacidade e força para realizar a abolição do poder estatal estavam lá, só faltava decidir isso, o que seria uma autodecisão e início da autogestão. Ao invés disso, decidirem delegar a outro o poder de decisão e a gestão da sociedade.
A explicação para isso já foi fornecida por Karl Marx, desde o século 19. A luta de classes explica esses dois acontecimentos históricos fundamentais para a história do capitalismo. Por um lado, um proletariado que consegue, numa situação extraordinária, a capacidade e força para abolir o aparato estatal e o capital, mas não o faz. O proletariado não quer a autogestão? Não quer sua autoemancipação? Não quer a libertação humana? A questão não é o querer e sim o saber. A decisão é tomada a partir das condições reais, concretas, e da consciência sobre tais condições. Sem dúvida, o proletariado teria optado por destruir o aparato estatal e o capital definitivamente desde que não confiasse no bolchevismo e na social-democracia, tivesse consciência do significado da burocracia, entre diversos outros elementos de consciência. O proletariado forjou um desenvolvimento extraordinário da consciência e apontou para o avanço, com diferenças internas, maior ou menor radicalidade, mas o fez. Mas faltou algo. Seria possível o proletariado ter dado um salto ainda mais extraordinário e rompido com os partidos que diziam lhe representar, os indivíduos e militantes que diziam defender seus interesses, pessoas que foram para as prisões, os heróis, os mártires? Trotsky foi eleito presidente do soviete de Petrogrado. Oras, como isso é possível? Um exilado, não-operário, retorna e em pouco tempo é eleito “presidente do soviete de Petrogrado”? Lênin não se uniu com Trotsky gratuitamente. Assim como os proletários confiaram e deram o cargo para Trotsky, depois deram o poder estatal para os bolcheviques.
Como foi construída a confiança do proletariado no bolchevismo? E não foi só o proletariado que confiou no bolchevismo, mas também o campesinato e outras classes, bem como anarquistas. Makhaïsky foi uma das poucas vozes destoantes nesse processo, pelo menos até a tomada do poder estatal pelo bolchevismo. As razões para esse processo podem ser encontradas na competência do Partido Bolchevique, na cultura dominante e nas lutas concretas que ocorreram na Rússia. O Partido Bolchevique, uma organização burocrática, centralizada e disciplinada, foi extremamente competente em suas ações. Lênin era um nome popular, mas seu forte era as artimanhas burocráticas e intrigas de partido, bem como o comando partidário e a reunião de militantes. Além disso, era um grande estrategista e propagandista. Ele foi um termômetro que conseguiu entender e mensurar o clima político russo. A sua aliança com Trotsky, muito mais popular e com grande capacidade de agitação e uso da força, foi um passo estratégico fundamental para a vitória bolchevique. Assim, o bloco progressista, na Rússia, dividido em diversos partidos e grupos, conseguiu um partido que reunia as condições para uma unificação do proletariado ao seu redor. A indecisão e falta de solução de outros, a fraqueza estratégica e organizativa, entre outras determinações, deixaram as demais forças políticas progressistas sem a iniciativa necessária numa situação social de crise e poucas alternativas.
Aqui temos as determinações da autolimitação do proletariado. Uma é um limite na consciência de classe do proletariado russo, cuja autodeterminação avançava, mas faltou não só a percepção de que o bolchevismo não era um aliado, como também que era necessário destruir o aparato estatal, o que já estava expresso por Marx muito tempo antes[26]. A autogestão precisava de sua generalização e isso significava, nesse contexto, a destruição de todas as organizações burocráticas, como partidos e aparato estatal. O bloco revolucionário era frágil e apesar de certa quantidade, lhe faltava maior capacidade teórica e estratégica, sendo que sua grande expressão até o golpe de outubro foi Makhaïsky e seu grupo, sem maior força de intervenção. A debilidade do bloco revolucionário, incluindo sua ala semiproletária representada pelo anarquismo, foi outra determinação nesse processo, bem como sua luta cultural anterior ao desencadeamento do processo revolucionário, pois uma maior presença cultural ajudaria ao proletariado reunir os elementos de consciência necessária para evitar os perigos da burocracia. A outra determinação é a força da classe burocrática, representada pelo bolchevismo, como já descrito anteriormente.
No caso alemão, havia algumas diferenças. Por um lado, a social-democracia com seus partidos tinha uma respeitabilidade e influência muito grande, apesar de suas cisões, decisões e ações contra o proletariado. Mas os trabalhadores descontentes com o SPD tinham o USPD ou mesmo o KPD para se consolar e iludir. Porém, havia um bloco revolucionário mais forte, oriundo da dissidência expressa no socialismo radical (Liga Spartacus, Esquerda de Bremen, Comunistas Internacionalistas), e este, em sua ala mais ambígua (Liga Spartacus) acabou sucumbindo ao tentar o enfrentamento armado. A existência de um bloco revolucionário mais forte é que possibilitou a formação das Uniões Operárias e a formação das Repúblicas de Conselhos. Sem dúvida, o desenvolvimento cultural alemão, as lutas operárias anteriores, e outros processos, permitiram esse processo. Contudo, no primeiro momento, quando o proletariado tinha tudo nas mãos, cedeu aos partidos social-democratas.  A situação alemã era diferente por não ter nomes como Lênin e Trotsky, nem sua radicalidade, o que permitiu um espaço mais destacado para a social-democracia e seu enraizamento no interior do proletariado.
No caso da Comuna de Paris, trata-se de um outro contexto histórico. Essa foi a única experiência revolucionária que significou a abolição completa do aparato estatal. Sem dúvida, foi em apenas uma cidade. Os limites da Comuna foram dois: a autolimitação e a derrota militar. A autolimitação se manifestou em dois episódios: a não expansão para outras cidades e não abolição completa das relações de produção capitalistas. A não abolição das relações de produção capitalistas pode ser considerada uma autolimitação e pode ser explicada pela curta duração da experiência. Sem dúvida, mais alguns passos a mais poderiam ter sido dados nesse sentido e não foram dados. Isso não compromete a experiência em si, a não ser que em sua duração ainda se mantivesse no mesmo nível. A autolimitação se expressou ao se circunscrever à cidade de Paris. Marx colocou a necessidade de generalização da experiência comunarda:
A Comuna de Paris havia obviamente de servir de modelo a todos os grandes centros industriais da França. Uma vez estabelecido o regime comunal em Paris e nos centros secundários, o antigo governo centralizado teria de dar lugar, inclusive nas províncias, ao autogoverno dos produtores. No breve esboço de organização nacional que a Comuna não teve tempo de desenvolver, estabeleceu-se claramente que a Comuna havia de ser a forma política mesmo dos menores povoados do campo, e que nos distritos rurais o exército permanente havia de ser substituído por uma milícia popular, com um tempo de serviço extremamente curto (MARX, 2011, p. 18).
Esse processo de não expansão e generalização foi determinado, em grande parte, pelas condições existentes nessa experiência e, em parte, pela autolimitação no sentido que não foi uma das prioridades, e deveria ser por ser condição de possibilidade para vitória da revolução comunarda. Aqui, também, a consciência limitada e a divisão do bloco revolucionário em diversas organizações (também limitadas em suas concepções políticas e limites teóricos e estratégicos), foi uma das determinações da autolimitação. A repressão estatal, facilitada pela não generalização da experiência comunarda, foi a determinação fundamental da contrarrevolução em Paris. Nesse caso, a classe burocrática não foi um obstáculo. A explicação disso remete para as condições históricas em que ocorreu a Revolução Parisiense. A burocracia estatal já era poderosa na França, tal como Marx (1986) descreve, mas a burocracia civil era muito frágil e em formação. É com a luta operária que se formará, posteriormente, uma forte burocracia partidária e sindical, bem como diversas outras frações da burocracia civil. A democracia representativa é uma das principais fontes desse processo de burocratização. Nesse contexto, a contrarrevolução só poderia ser efetivada pela burguesia e burocracia estatal com seu aparato repressivo, o que efetivamente ocorreu.
Na Rússia, apesar de ser um país predominantemente rural e com uma burocracia civil em formação e relativamente débil, a força burocrática do Partido Bolchevique se sobressaiu e com o desenvolvimento do processo, aumentou sua força e quantidade (inclusive com adesão de anarquistas e outros de outras posições e organizações) e sua fusão com a burocracia estatal foi a base para a constituição do capitalismo de Estado. No caso alemão, que possuía uma burocracia civil muito mais desenvolvida, gerando uma base de apoio maior para a social-democracia, ocorreu processo semelhante.
Por fim, o caso português foi marcado pelo mesmo processo. No entanto, após a Revolução Russa e a bolchevização dos partidos comunistas, gerando ações que entravam em choque direto com o proletariado, além de ter constituído grupos e indivíduos opostos ao bolchevismo, formando um frágil bloco revolucionário, que tende a se fortalecer nos períodos revolucionários, como o comunismo de conselhos, a esquerda extraparlamentar inglesa sucedida pelo grupo Solidarity, entre outros, possibilitaram algum aprendizado com as experiências russa e alemã, gerando uma tendência antiburocrática no interior do movimento operário e em suas expressões políticas organizadas (o bloco revolucionário). A Revolução Portuguesa foi muito mais moderada e encontrou os mesmos obstáculos. Apesar do PCP ser mais fraco e não ter a força organizativa e política do bolchevismo, novamente a questão da formação pesou contra o movimento operário, bem como a fragilidade do bloco revolucionário português, composto principalmente por anarquistas e autonomistas ainda presos numa concepção pré-dialética.
Desta forma, é possível entender a razão do inacabamento das revoluções proletárias (e as demais experiências, não discutidas aqui, apenas reforçariam a mesma conclusão). A razão do inacabamento da revolução proletária é a autolimitação do movimento operário. Essa autolimitação, por sua vez, é explicada por sua autoformação incipiente. A teoria da revolução em Marx apontava para que o proletariado, como classe determinada pelo capital (em-si) passaria para classe autodeterminada (para-si) na luta. É através da luta operária que surge a “associação” operária, a forma organizativa do proletariado fazer valer seus interesses de classe. Nesse processo de luta, na qual outras determinações ajudam (crises, por exemplo), um setor da sociedade vai se unindo ao proletariado (intelectuais e indivíduos de outras classes sociais, inclusive oriundos até da burguesia)[27] e levando “elementos de cultura” para a classe revolucionária e reforçando sua luta. Isso não é feito num espaço associal e sim no interior da luta de classes e isso significa que o bloco dominante e o bloco progressista estarão agindo em todos os planos visando corroer, no primeiro caso, ou substituir, no segundo, a luta proletária. O problema é que depois de Marx se produziu uma concepção imanentista do proletariado, no qual ele se autoemanciparia sem luta e num processo evolucionista interno unilinear e autossuficiente. A luta de classes foi reduzida à luta operária. Assim, o proletariado e as demais classes desprivilegiadas, por sua falta de tempo e condições de vida, por influência das ideias dominantes e pouco acesso ao saber teórico e informações, tem ao seu lado um setor que ao fazer apologia da classe não contribui como deveria para sua luta.
Aqui podemos identificar alguns dos obstáculos para a autogestão social (além da força da classe dominante, seus aparatos, sua hegemonia, etc.): a autoformação insuficiente do proletariado e a fragilidade do bloco revolucionário. Esses dois elementos, por sua vez, são fundamentais para explicar o inacabamento das revoluções proletárias. Eles são determinações importantes da autolimitação proletária. Essa autolimitação promove dificuldade em concretizar a superação do Estado e do capital e compreender como a nova sociedade pode emergir a partir da antiga. Em nível geral, Marx já havia colocado e os comunistas de conselhos aprofundaram a reflexão sobre essa necessidade de superação à luz das novas experiências históricas. A recusa da burocracia em geral é elemento fundamental e isso pressupõe saber histórico e teórico a respeito das experiências passadas. Porém, a consciência da necessidade da articulação e generalização é fundamental. Em Portugal, as comissões de trabalhadores poderiam até gerir uma fábrica, mas é necessário para autogerir, que as demais fábricas, fornecedores, etc., também fossem autogeridas. A articulação entre as comissões de trabalhadores é fundamental e inclusive para avançar a generalização, que, ao atingir um novo nível, já significando abolição das relações de produção capitalistas, seria a abolição do poder estatal. A generalização torna o Estado inútil e o passo seguinte é apenas fechar os prédios estatais para que nem os espantalhos sobrevivam. A generalização da autogestão pressupõe um elevado grau de organização (que tem na articulação dos conselhos um elemento fundamental) e consciência, inclusive para substituir as “funções legítimas” (MARX, 2011) que eram realizadas pelo aparato estatal.
Aqui um novo elemento emerge, que é a questão da transição. Marx não efetivou nenhuma “teoria da transição”, nem os comunistas conselhistas e marxistas autogestionários[28]. Não há sentido para uma tal teoria, porquanto transição significa, no fundo, revolução. A revolução proletária é um processo que se inicia no momento em que o proletariado passa de classe determinada para classe autodeterminada, ou seja, quando supera as lutas espontâneas e autônomas, já se colocando o objetivo de superação do capital ou da materialização do projeto autogestionário, ou, esboçando a autogestão concretamente. No caso português, esse processo foi muito rudimentar, pois a gestão de algumas fábricas, algumas comissões de trabalhadores, alguns grupos revolucionários, apontaram para esse processo, mas sem conseguir ir mais longe no processo revolucionário. O inacabamento ocorreu muito cedo e por isso os elementos da nova sociedade não ultrapassaram um nível rudimentar. As outras experiências foram muito mais longe e chegaram ao ponto de abolir o Estado, parte do capital, ou mesmo as duas coisas, além de criar os mecanismos apropriados para sua substituição. A revolução avança com a ampliação de indivíduos e setores que aderem ao movimento operário revolucionário, fazendo avançar as formas de auto-organização, a autoformação, a autogestão.
O momento de ruptura é fundamental. Porém, ele não se constitui, como na concepção insurrecionalista, num dia, no qual se toma o aparato estatal. Ela ocorre quando o processo iniciado se concretiza, o que se dá com a abolição do aparato estatal. Assim, as formas de auto-organização, a sua expansão, as ações complementares (manifestações, greves, combates de rua), a autoformação, vão se constituindo e o grande problema que se coloca para o bloco revolucionário (nesse momento em fusão com o movimento operário) é efetivar a destruição do capital e do Estado. A destruição do capital pressupõe a articulação dos conselhos de fábricas e formação de conselhos operários no sentido de atingir todas as empresas existentes, apoiadas por formas organizativas semelhantes (conselhos de bairros, conselhos estudantis, conselhos de autodefesa, etc.), o que significa sua generalização.
A sedimentação desse processo e sua ampliação até chegar ao ponto de uma generalização totalizante, marcam o momento da destruição do aparato estatal, já esvaziado de sua capacidade gerencial e que precisa ter seu aparato repressivo destruído e sua destituição formal. O momento de ruptura, no entanto, não significa o fim da revolução. Isso pelo motivo de que os resquícios culturais (valores, concepções, etc.) e sociais (as classes decadentes que já não possuem mais sua posição na divisão social do trabalho, mas ainda se apegam ao seu passado e condição social) continuam existindo por algum tempo, mas também porque é necessário garantir a reorganização social em sua totalidade. Essa reorganização global encontra inicialmente problemas e dificuldades, cuja antecipação teórica ajuda no processo real posterior, e na qual o conjunto da população deve autogerir o conjunto das relações sociais, encontrando soluções, superando dificuldades. Esse processo pode demorar algum tempo, difícil de prever, mas não é nada mais do que alguns meses ou um pouco mais, ou seja, nada tem a ver com a formação de uma “sociedade de transição”, com duração imprevisível.
Assim, a revolução proletária se inicia com a radicalização, já apresentando a radicalidade do processo de transformação em sua forma embrionária, se consolida com o avanço desse processo ao realizar a ruptura, e prossegue até o momento de que a instauração da autogestão se consolida e supera os problemas que encontra inicialmente pela frente, quando se torna totalidade.
Esse processo significa a formação da sociedade autogerida[29] e final do processo revolucionário marca sua instauração definitiva. Nesse momento, as novas relações de produção, as novas formas sociais (incluindo a nova cultura), um novo modo de vida, já concretizaram o sonho da emancipação humana. A autogestão é generalizada e em todos os setores da vida social e uma nova época surge. É quando o conjunto das potencialidades humanas podem se desenvolver, quando o saber não encontrará mais os obstáculos dos interesses antagônicos, do capital e do Estado, quando as relações sociais forem marcadas por igualdade e liberdade, ou seja, quando a autogestão generalizada emerge e se torna a base da nova dinâmica social.
Considerações Finais
A análise empreendida aqui das experiências autogestionárias pretendeu não apenas recordar as lutas operárias e processos históricos embrionários da autogestão, mas também apresentar reflexões sobre o inacabamento dessas experiências e suas determinações. Isso traz a exigência de explicação de não ter ultrapassado o estágio embrionário. A reflexão apontou para a necessidade de compreender a totalidade e o caráter totalizante da autogestão, elemento que lhe distingue de todas as demais formas de “gestão” e, mais ainda, de espaços limitados (empresa, cooperativa, etc.). O projeto autogestionário nunca ultrapassou o estágio embrionário pelo motivo de nunca ter se tornado totalizante, apesar de ter chegado próximo a isso em algumas experiências.
A explicação do motivo de não ter se tornado totalizante, constituindo uma nova sociedade, remete para um conjunto complexo de “múltiplas determinações”. Porém, algumas determinações e obstáculos podem ser vistos em ação nas experiências autogestionárias que são muito mais determinantes e o nosso objetivo foi realizar sua exposição e análise. O destaque foi para a autolimitação do proletariado nos processos revolucionários. Esse é um ponto fundamental para romper com todos os tipos de praticismo, obreirismo, irracionalismo, que insistem em sobreviver nos meios políticos atuais. Não basta a apologia da auto-organização ou da autogestão, é preciso criar as condições para sua materialização e uma das condições é a consciência. Dê liberdade para um cachorro doméstico e o liberte na rua e verá que ele retornará para seu dono. A concretização da autogestão só é possível através do mais amplo desenvolvimento da consciência e por isso é fundamental que isso inicie agora e isso reforça a importância do bloco revolucionário, no sentido de socializar o saber, ampliar a reflexão crítica, promover debates sobre os problemas da futura sociedade autogerida (evitando o utopismo e o medo exagerado do mesmo com seu imobilismo intelectual nessa área), ou como já dizia Marx, levar elementos de cultura para as classes desprivilegiadas.
A autolimitação ocorre quando os limites externos cessam, mas os internos não. Ela ocorre num momento histórico em que as condições sociais permitem a libertação, mas o desenvolvimento cultural daqueles que devem efetivar isso está em descompasso. Isso é normal, pois a classe revolucionária, o proletariado, bem como suas classes aliadas (as demais classes desprivilegiadas, como lumpemproletariado, campesinato, etc.), é a que tem menos acesso às informações, formação intelectual obstaculizada pela hegemonia burguesa, pelas instituições, capital comunicacional (“indústria cultural”), condições precárias de vida, etc.
Sem dúvida, em momentos de radicalização das lutas de classes, há um avanço devido à própria luta e experiências, mas isso ocorre num contexto de luta, avanços e recuos, pressões e ações da classe dominante e suas classes auxiliares, etc. O bloco dominante, expressão política e organizada da classe dominante, busca boicotar e impedir o processo de desenvolvimento da consciência revolucionária e o bloco progressista (liderado pela burocracia) busca controlar e direcionar tal desenvolvimento para os seus interesses. O bloco revolucionário seria a expressão política e organizada do proletariado, só que compartilha algumas limitações desse e tem setores ambíguos e problemáticos que obstaculizam o desenvolvimento de tal consciência com dogmas e formação intelectual débil. Isso reforça a necessidade de ampliação da formação, autoformação e luta cultural no presente, visando criar melhores condições de luta (e vitória) no futuro.
A compreensão da importância do saber no processo revolucionário e concretização do projeto autogestionário é fundamental. A autogestão pressupõe consciência, pois só é possível gerir possuindo saber e se em uma fábrica se encontra dificuldades, no conjunto de uma sociedade elas são multiplicadas. A experiência e a luta são fundamentais, mas sem uma reflexão profunda sobre elas e além delas, a autolimitação pode ocorrer. As experiências autogestionárias aqui receberam inúmeras obras que as saudaram, mas poucas que refletiram sobre elas e quiseram aprender algo com elas indo além delas, inclusive explicando a razão de serem tão extraordinárias e esboçarem a emancipação humana e terem parado no meio do caminho. O problema da autolimitação é o grande problema. É possível a sociedade brasileira se tornar autogerida hoje? Sim e isso já é uma realidade há muito tempo e não só aqui, como em quase todo o mundo. Mas a autolimitação não permite. Em momentos de crise, a autolimitação se enfraquece e permite a revolução proletária que se esboça e aprofunda. A questão é romper com a nova autolimitação que aparece nos momentos-chave, na hora de decretar o fim do capital e do aparato estatal. As experiências autogestionárias mostram o que fazer e o que não fazer, o que devemos fazer hoje para fortalecer a sua tendência de concretização. “A lição sabemos de cor, só nos resta aprender”, já dizia Beto Guedes.

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WILLIANS, Marc. Autogestão e Planificação. Revista Marxismo e Autogestão. Vol. 02, num. 04, jul./dez. de 2015. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/8willians4/323 Acessado em 28/12/2015.


* Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e Pós-Doutor pela Universidade de São Paulo; autor de diversos livros, entre os quais: O Capitalismo na Era da Acumulação Integral (São Paulo: Ideias e Letras, 2009); Os Movimentos Sociais (Curitiba: Prismas, 2016); A Pesquisa em Representações Cotidianas (Lisboa: Chiado, 2015); Estado, Democracia e Cidadania – A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo (Rio de Janeiro: Rizoma, 2015) e O Que São Partidos Políticos (Brasília: Kíron, 2013); As Esferas Sociais (Rio de Janeiro: Rizoma, 2015).

[1] A recepção ilusória da Revolução Cultural Chinesa permitiu o surgimento de um maoísmo mais radical (que os bolchevistas vão denominar “esquerdista”) e consistiu num dogmatismo voluntarista e igualitarista. A Revolução Cultural Chinesa oficial, desencadeada por Mao Tse-Tung, foi, no fundo, mais uma tentativa deste em manipular as classes desprivilegiadas para vencer as lutas interburocráticas (VIANA, 2014b) e quando essas ultrapassaram os ditames maoístas, foram reprimidas.
[2] A história do capitalismo pode ser entendida como uma sucessão de regimes de acumulação (VIANA, 2009). O regime de acumulação conjugado é o que existiu desde 1945 até aproximadamente 1980 no capitalismo imperialista (VIANA, 2003; VIANA, 2009).
[3] Marx usou tal termo em suas Teses Sobre Feuerbach (Marx, 1982) e sua origem remonta à sua teoria do trabalho alienado (1983), sendo o seu oposto, o trabalho como objetivação, e uma discussão a respeito reaparece em O Capital (1988)
[4] Com a revolução comunista, o proletariado é abolido (por ele mesmo, o que, em si, já mostra os equívocos do obreirismo) e é por isso que Marx, quando aborda o comunismo, não usa mais esse termo e sim “produtores”, pois, tal como em seu texto sobre a Comuna de Paris, todos passam a executar trabalho produtivo e as classes, como colocou em outras oportunidades, são abolidas.
[5] Autogestão social é o mesmo que simplesmente autogestão. O uso do “social” é apenas para ficar mais claro a distinção em relação aos usos deformados do conceito de autogestão.
[6] Outros textos de Tenório continuam em tal empreitada ideológica (2005), apesar de existirem outros autores que tentam usar essa terminologia (MAIA, 2005) e alguns críticos moderados (PINHO e SANTOS, 2015).
[7] Uma crítica a Habermas e sua ideologia do “esgotamento das energias utópicas” pode ser visto em Viana, 2009.
[8] As organizações autárquicas que vegetam dentro do capitalismo em seu período de estabilidade são geralmente grupos informais de estudantes e trabalhadores, grupos revolucionários e formas organizativas de combate, como os comitês de greve. Excepcionalmente, em determinadas empresas nas quais há uma radicalização localizada da luta operária, é possível a emergência de formas mais amplas de auto-organização mesmo em período de estabilidade capitalista.
[9] A questão da possibilidade de um grupo revolucionário autogerido é interessante no sentido de fazer avançar a reflexão sobre a autogestão social. Contudo, não há espaço aqui para desenvolvermos isso aqui e a discussão sobre organização revolucionária foi realizada em outro lugar (VIANA, 2014c).
[10] O caso da Comuna de Paris, como primeira experiência autogestionária, é exemplar e realizamos uma análise das distintas perspectivas de classe em sua interpretação (VIANA, 2011a). O mesmo pode ser feito com qualquer outra experiência histórica, tal como a Revolução Francesa ou a sociedade escravista grega, e qualquer produção cultural, tal como a obra de Marx, que serão interpretadas sob distintas perspectivas de classe. No interior de uma perspectiva de classe, no entanto, não há homogeneidade, pois existem múltiplas determinações nesse processo, incluindo a formação do intérprete, as ideologias vigentes na época de realização da interpretação (aliás, a historiografia sempre faz reinterpretações a partir do paradigma ou ideologia hegemônica em determinado momento, o que é bom para a academia, o capital editorial e para os intérpretes, que podem se julgar “inovadores” ou “descobridores” de coisas há muito descobertas).
[11] As lutas espontâneas são aquelas que não são dirigidas e controladas por partidos ou qualquer outra organização burocrática, tal como as lutas cotidianas e reivindicativas; as lutas autônomas são aquelas na qual já há a recusa das organizações burocráticas (partidos e sindicatos, por exemplo), assumindo uma forma mais coletiva, organizada e consciente; as lutas autogestionárias são aquelas que além desses elementos, apresentam um maior grau de organização e consciência, além de se colocar conscientemente o projeto autogestionário (JENSEN, 2016; VIANA, 2008b).
[12] A distinção entre “controle operário” e autogestão é evidente, pois nem se trata de gerir uma fábrica, apenas fiscalizar a mesma. Uma comparação entre os dois termos pode ser vista em Guillerm e Bourdet (1976) e Brinton (1975).
[13] “Os grupos leninistas em Portugal, dadas as suas opiniões, não fizeram qualquer propaganda sistemática contra o MFA como tal. Esqueceram-se de denunciar o conceito totalmente mistificador da “aliança” entre o MFA e “o povo”. Equiparavam o poder político ao poder militar o mais cruamente possível. Elementos da experiência portuguesa alimentaram esta identificação desastrosa. Depois do 25 de abril houve certamente uma sobreposição entre o aparelho militar e político” (BRINTON, 2014, p. 151).
[14] A primeira posição foi expressa, por exemplo, pelo Jornal O Combate e depois ganhou sistematização com a obra de João Bernardo e a segundo por autores como Phil Mailler (1978); Maurice Brinton (2014) e Charles Reeve (2014). Segundo Reeve: “devido aos financiamentos, e como havia feito com a Reforma Agrária, o Estado retoma o controle das experiências de “autogestão” na indústria. Com efeito, depois do verão de 1974, inúmeras fábricas abandonadas pelos patrões são ocupadas e uma rede de empresas em “autogestão” é criada, sobretudo, no têxtil. Estas empresas continuavam a funcionar segundo as leis do mercado, não obstante terem havido tentativas para instaurar uma maior igualdade de salários e rotatividade de tarefas e questionar a hierarquia. Finalmente, as trabalhadoras e os trabalhadores limitavam-se a vender diretamente ao público as mercadorias produzidas e não encontravam salvação senão graças a trabalho a mais e ao endividamento junto do Estado. Para além de uma experiência de autogoverno de empresa, não houve ali qualquer ruptura com a lógica capitalista e a “autogestão” que foi realizada transformou-se rapidamente em autoexploração” (REEVE, 2014, p. 177-178).
[15] “Uma revolução social não é apenas uma reação reflexa às iniquidades e opressões de uma ordem existente. Tais reações podem fazer uma sociedade desmoronar, mas não garantem a sua substituição por uma outra que seja qualitativamente diferente. Tal consequência exige uma concepção, partilhada por um número substancial de pessoas, de um modo de vida totalmente diferente” (BRINTON, 2014, p.).
[16] O conselho de fábrica é uma organização dos trabalhadores numa determinada empresa, enquanto que os conselhos operários são compostos por delegados constituídos a partir dessa base.
[17] A este respeito existe ampla bibliografia (BRINTON, 1975; TRAGTENBERG, 1989; ANWEILER, 1975).
[18] As dissidências no interior do bolchevismo, representada pelos grupos Oposição Operária, Centralismo Democrático e Comunistas de Esquerda, foram derrotadas e depois proibidas, sendo que as tendências mais radicais acabaram nos campos da Sibéria e isso foi narrado por alguns deles, como Anton Ciliga.
[19] Os sovietes russos também efetivaram autogestão territorial, mas num contexto de duplo governo, o que inexistia no caso parisiense.
[20] E o elemento extraordinário nesse processo é não só o tamanho da população como também o contexto da época, com meios de transporte e comunicação extremamente precários. Uma descrição mais detalhada da Comuna pode ser vista em Lissagaray (1995).
[21] Partido Social-Democrata Independente, partido formado por dissidentes do SPD, especialmente a Liga Spartacus, de Rosa Luxemburgo, mas contando também com Bernstein e Kautsky, que também abandonaram o partido por causa de questões táticas, como a questão diante da Primeira Guerra Mundial. Rosa Luxemburgo e a Liga Spartacus abandonaram tal partido e juntamente com outros grupos, especialmente o IKD – Grupo Comunista Internacionalista (externo ao SPD), de Otto Rühle, formando o KPD – Partido Comunista Alemão.
[22] A expulsão da maioria em um Congresso esvaziado do partido foi um dos acontecimentos históricos mais curiosos e que mostram a capacidade de uma minoria organizada em derrotar uma maioria que não se organiza e se prepara para os embates. O KPD era comandado pela Liga Spartacus, que oferecia mais atenção ao problema da organização, mas a maioria e quem tinha hegemonia era o IKD e este aceitava os espartaquistas na direção (isso não lhes interessava), mas quando Paul Levi substitui Rosa Luxemburgo e assume o controle do partido, a situação se tornou de confronto e a força organizativa centralizada conseguiu derrotar a maioria desorganizada. A maioria expulsão funda o KAPD, que realiza a crítica dos partidos políticos e se autodeclarava como não sendo “um partido propriamente dito”. Outros grupos se aliaram ao IKD na formação do KAPD, como a Esquerda de Bremen, que contava com Anton Pannekoek e Herman Gorter.
[23] Em quase todas as experiências autogestionárias houve um confronto entre conselhos de fábrica e/ou conselhos operários e sindicatos, inclusive no caso brasileiro das greves de maio de 1978. A razão disso é que os conselhos geralmente surgem em momento de radicalização ou luta revolucionária e por isso suas formas de ação, radicalidade e forma de organização é oposta aos sindicatos, organizações burocráticas e moderadas que não ultrapassam o nível das lutas reivindicativas (e até mesmo isso faz cada vez menos com o desenvolvimento do capitalismo e sua crescente burocratização e mercantilização). As burocracias sindicais combatem ferozmente os conselhos e para isso conta com ajuda de partidos, governos, etc. É uma oposição entre auto-organização e organização burocrática.
[24] Trata-se de uma variedade muito grande e que foi analisada por vários autores (LOJKINE, 1990; FARIA, 2009; TRAGTENBERG, 1989).
[25] Isso é mais comum para aqueles que tentam justificar e legitimar o golpe de estado bolchevique, apelando para o “desenvolvimento insuficiente das forças produtivas”. Sem dúvida, tal desenvolvimento trazia dificuldades, mas o que foi efetivamente realizado pelos sovietes demonstrou que não era o que impossibilitava a instauração completa da autogestão e sim o próprio bolchevismo.
[26] Desde o Dezoito do Brumário Marx já colocava a necessidade de destruição do aparato estatal. A concepção de Marx em relação ao Estado foi deformada pelo bolchevismo e permanece até hoje, apesar de inúmeros autores já terem desfeito esse “equívoco” e não seria possível ciar a extensa bibliografia e por isso recordamos apenas algumas contribuições nesse sentido (BERGER, 1977; VIANA, 2011b; VIANA, 2012; POGREBINSCHI, 2009; ADAM, 2015).
[27] Não é demais lembrar que se trata de indivíduos e não da classe, que em sua maioria e essência, continuam reacionárias, no caso das classes privilegiadas (burguesia, latifundiários, burocratas, etc.).
[28] A ideia de um “período de transição”, entre capitalismo e comunismo, chamado “socialismo”, é uma invenção leninista. A atribuição dessa ideia à Marx é algo tão comum que até alguns considerados grandes pensadores e que escreveram obras sobre ele (LEFEBVRE, 2016) acabam reproduzindo essa afirmação falsa e que não é encontrada em nenhum escrito do autor que supostamente a defenderia.
[29] Alguns elementos sobre a sociedade autogerida podem ser vistos em Marx (2016); Viana (2008b), Willians (2015), entre outros.

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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. As Experiências Autogestionárias. In: CUNHA; Elcemir Paço; FERRAZ, Deise (Orgs.). Crítica Marxista da Administração. Rio de Janeiro: Rizoma, 2018, v. , p. 85-103.