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sábado, 16 de novembro de 2019

A OBSERVAÇÃO RELACIONAL COMO TÉCNICA DE PESQUISA SOCIAL


A OBSERVAÇÃO RELACIONAL COMO TÉCNICA DE PESQUISA SOCIAL

Nildo Viana

A investigação nas ciências humanas se depara, constantemente, com o problema dos métodos e das técnicas de pesquisa. No último caso, há uma grande extensão de técnicas de pesquisa e uma variedade grande de formas assumidas por algumas delas, como a entrevista, por exemplo. Nesse sentido, é importante a produção de reflexões sobre as mais variadas técnicas de pesquisa e suas variações. O nosso objetivo aqui é apresentar uma reflexão sobre a observação relacional, que pode ser considerada uma variação da técnica de pesquisa chamada “observação”. Neste contexto, pretendemos colocar que a observação relacional é distinta de outras formas de observação e sua forma específica, bem como explicitar como ela pode contribuir com a investigação no âmbito das ciências humanas.
Os Pressupostos da Observação Relacional
A observação relacional é uma técnica de pesquisa pouco discutida, por ser bastante recente (VIANA, 2015). A razão de ser da observação relacional se origina nas debilidades e limites das demais formas de observação. Isso se deve ao fato de que a observação relacional ser intimamente vinculada ao método dialético e ao materialismo histórico, o que torna as demais formas de observação inapropriadas sem alterações e adaptações. Contudo, a observação relacional não é apenas uma alteração e adaptação das demais formas de observação, pois sua base teórico-metodológica é distinta e é o que gera as demais diferenças. Nesse sentido, antes de definir o que é observação relacional é útil explicitar o seu vínculo com o método dialético e materialismo histórico.
A observação relacional se difere, inicialmente, por seus pressupostos, que são antagônicos ao objetivismo e ao subjetivismo, bem como sua teoria da realidade e teoria da consciência, além do seu vínculo analítico com a radicalidade, historicidade e totalidade. O objetivismo, em sua definição mais simples, é a concepção segundo a qual existe uma realidade objetiva, independentemente do observador, e que, se este for “objetivo”, poderá captá-la exatamente como ela é. Para o método dialético, existe uma realidade que é independente da vontade e consciência do observador, mas que o acesso a ela é mediado pelas relações sociais e pela cultura, bem como é dependente do indivíduo e sua posição na sociedade. Ou seja, a solução objetivista é a neutralidade e uso de métodos e técnicas que retire o aspecto subjetivo da pesquisa. A solução dialética aponta para a impossibilidade da neutralidade e da existência de métodos e técnicas “objetivas”.
Isso pressupõe uma crítica da ideologia da neutralidade. Marx já havia colocado que as ideias, as representações, a moral, a religião, etc., são produtos históricos e sociais e, mais do que isso, são perpassados por interesses, valores, que também são históricos e sociais, bem como vinculados a classes sociais (MARX; ENGELS, 1982). Não pode existir uma interpretação da realidade (nem mesmo no âmbito das ciências naturais) desvinculada de interesses e valores. Assim, embora a realidade exista e seja independente do observador, ela não é meramente “observada”. O observador não é um indivíduo sem interesses e valores, sem ideias e concepções geradas histórica e socialmente.
De qualquer forma, esse é um falso problema. A questão não é a existência de interesses e valores, ou então de uma cultura anterior que realiza uma mediação entre o observador e a realidade e sim quais são os interesses e valores, bem como cultura, que serve de base para o observador realizar a observação (VIANA, 2007a). Isso significa que a concepção dialética nada tem de relativista. Os interesses e valores podem apontar para o compromisso com a verdade ou compromisso com a inverdade. E isso remete novamente ao social. As classes dominantes na história não possuem o interesse na verdade, nem as classes auxiliares e aqueles que reproduzem os interesses e valores de tais classes. Assim, interesses e valores, se expressando o compromisso com a verdade, com a transformação radical e total do conjunto das relações sociais (pois aqueles que estão integrados e atrelados à sociedade atual não possuem a capacidade crítica e a radicalidade necessária para enxergar sua historicidade e características desumanizadoras), o que significa se vincular ao proletariado, compreendido como classe revolucionária de nossa época[1].
O subjetivismo, em sua definição mais simples, é a concepção segundo a qual o “sujeito” (que aparece como um ente abstratificado[2], que pode ser o indivíduo, o grupo, a sociedade como um todo) é a fonte do saber e não a realidade. Segundo Hessen, “o subjetivismo, como seu nome já indica, restringe a validade da verdade ao sujeito que conhece e que julga. Este pode ser tanto o sujeito individual ou indivíduo humano quanto o sujeito genérico ou o gênero humano” (2000, p. 28). Para uma concepção dialética, o subjetivismo é uma concepção reducionista e limitada, pois reduz o saber ao sujeito, mas este é algo abstratificado. No subjetivismo contemporâneo, ele é materializado em grupos sociais, indivíduos, que são, novamente, abstratificados. Isso, obviamente, gera uma primazia do “sujeito” e desconsideração da realidade concreta (muitas vezes acompanhada por uma recusa da sua força em relação ao saber ou mesmo sua inexistência, ou, ainda, a impossibilidade de ter uma consciência correta dela).
Assim, a observação relacional parte do princípio dialético que tanto o observador quanto o que é observado são relacionais. Eles só existem como observadores e observados na relação entre ambos. O observador não pode observar o que não existe, bem como um fenômeno não pode ser observado a não ser por um observador. O saber constituído é como a observação, ou seja, o ato do observador em relação ao observado. Logo, na concepção dialética, não há como cair no subjetivismo nem no objetivismo, que não passam de antinomias do pensamento burguês (VIANA, 2018).
Isso remete a outros dois aspectos que são pressupostos da observação relacional, que é a teoria da realidade e a teoria da consciência. Contudo, essa é uma questão extensa e que só poderemos sintetizar brevemente. A realidade, na concepção dialética, é concreta. O concreto, como categoria do pensamento, remete para as categorias de determinação, historicidade e totalidade (MARX, 1983). O real é histórico, não pode ser retirado da história. Ele também é uma totalidade, mesmo que seja um fenômeno particular, pois ele é composto por partes, e, além disso, está inserido numa totalidade mais amplas, rica em relações e determinações. Por fim, o real é determinado, ou seja, e, sendo a realidade social, é um produto histórico e social (VIANA, 2007a).
A consciência, por sua vez, é o indivíduo, ser humano singular, histórico-concreto, consciente. A consciência, como é algo real, é histórica, determinada, bem como é uma totalidade (inserida em uma totalidade mais ampla). Os indivíduos que desenvolvem sua consciência, são seres sociais, históricos, determinados. Logo, a consciência individual é uma produção social, bem como a consciência social. Não é possível compreender a consciência humana fora da sociedade. E a sociedade como fenômeno concreta é histórica, assumiu várias formas e se desenvolveu, bem como, em certas sociedades, é perpassada pela divisão de classes, o que gera distintos interesses e valores, e gera formas distintas de consciência. Inclusive, a consciência é parte da realidade social e logo, atua sobre ela, sendo uma de suas determinações (KORSCH, 1977).
Uma coisa, no entanto, é a consciência em geral, que assume inúmeras formas e conteúdos, mas outra coisa é a consciência correta da realidade, ou seja, o momento em que a consciência coincide com a realidade. Isto foi denominado por alguns como verdade. A consciência pode ser ilusória ou verdadeira. A consciência verdadeira pode ser parcialmente verdadeira ou globalmente verdadeira. No primeiro caso, temo as representações cotidianas verdadeiras[3] e, no segundo caso, a teoria. A teoria é um saber complexo e totalizante, o que significa que abarca uma percepção de conjunto, com fundamentação e embasamento em método e reflexão mais desenvolvida, que expressa (e explica) a realidade através de um conjunto de conceitos.
Essa breve discussão sobre realidade e consciência é importante para o passo seguinte, que é retomar a observação relacional. A observação relacional é realizada tendo essa teoria da realidade como pressuposto, bem como essa teoria da consciência. Por conseguinte, o observador relacional focaliza um determinado fenômeno (tal como apontaremos a seguir) sem realizar o seu isolamento, pois aborda as suas relações, o que remete para determinações, história, sociedade. Esse é um pressuposto que existe antes, durante e depois da observação. O observador já sabe, antes de realizar a observação, que o fenômeno observado tem história, é uma totalidade inserida em outra totalidade, é determinado. O que ele deve descobrir é qual é sua relação com a história em geral, sua história em particular, seus elementos constitutivos, suas determinações, a sua inserção num contexto mais amplo, etc.
Da mesma forma, o observador sabe que sua observação é realizada a partir de uma determinada forma de conceber o real e a consciência (própria e alheia) e que por isso ele não pode confundir sua consciência com as dos indivíduos que podem estar envolvidos em sua observação ou fenômeno observado. É preciso, no processo de observação, entender o contexto, as relações, as funções, mas também saber que as interpretações, interesses, valores, etc., dos indivíduos variam e não podem ser tomadas como homogêneas. Os indivíduos possuem sua personalidade (singularidade psíquica), seu processo histórico de vida que gera distintos valores, concepções, sentimentos, etc., e por isso é necessário evitar os riscos da simplificação e do reducionismo. A compreensão do contexto, a totalidade, é fundamental, mas é preciso também compreender a historicidade, as particularidades e especificidades, bem como os indivíduos envolvidos nesse processo.
Além disso, há a teoria, ou seja, o observador deve conhecer a realidade mais ampla que observa e que é uma totalidade maior. Um mendigo não consegue observar a totalidade das relações sociais e por isso sua relação com a realidade é limitada, sua consciência é limitada. Um pesquisador, por sua vez, não possui a experiência pessoal do mendigo, mas possui um conjunto de informações, interpretações, sobre sua situação, bem como não possui uma compreensão mais ampla da sociedade em que vive, de sua formação histórica, de suas contradições, entre milhares de outros elementos. Ele tem um saber amplo sobre si mesmo, sua história, etc., mas geralmente não tem grande reflexão sobre isso e nem os recursos intelectuais para uma análise mais ampla (como teria, por exemplo, um psicólogo, um psicanalista, etc.) de sua mente ou mesmo de sua vida em geral. Logo, a percepção da realidade do mendigo é limitada, o que é derivado de suas relações sociais limitadas[4]. Isso significa que o observador relacional faz a observação a partir de sua formação teórica e a teoria lhe permite realizar a seleção do que é mais importante observar, entender relações estabelecidas, entre outros processos.
Assim, podemos colocar que a observação relacional se difere de outras formas de observação por causa de seus pressupostos, que geram outras diferenças (que são suas características e serão abordadas adiante). A observação relacional tem como pressuposto a recusa do objetivismo e subjetivismo, derivados de produções ideológicas, uma teoria da realidade, uma teoria da consciência, e a necessidade de que o observador tenha uma teoria sobre o contexto que vai analisar. Assim, o observador relacional não se ilude com uma suposta “realidade objetiva” que caberia apenas “captar”, nem com uma ideia subjetivista ao seu respeito ou ao respeito dos demais indivíduos, entende a realidade como algo histórico, social, determinado, além de ter pesquisado e refletido sobre o contexto que pesquisará[5]
O que é observação relacional?
A observação relacional difere das demais formas de observação por causa de seus pressupostos, como afirmamos acima, mas também por suas características próprias. Não poderemos aqui discutir as diversas formas de observação, mas tão-somente apontar sua existência. Existem autores que abordam as várias formas de observação (PERETZ, 2000), bem como obras que discutem ou explicam formas específicas (MALINOWSKI, 1978). Também existem manuais que tratam da questão da observação (QUIVY; CAMPENHOUDT, 1998; MARCONI; LAKATOS, 1982). Os manuais, no entanto, são geralmente (o que não significa que não existam exceções), problemáticos. A confusão entre observação e outras técnicas de pesquisa é o mais comum, o que, em muitos casos, é derivado de uma conceituação muito ampla do termo “observação”. Por isso é fundamental definir observação para, posteriormente, abordarmos sua forma relacional.
Não é difícil encontrar a definição segundo a qual a observação é o “ato de observar”. Mas não existe muita clareza, nem nos dicionários, nem nas representações cotidianas, sobre o que significa exatamente “observar”. A palavra observar pode significar “espionar” (ou, “espiar”, quer dizer, olhar, geralmente num sentido indiscreto), seguir regras (“observar as leis de trânsito”), olhar atentamente, constatar, etc. Desses sentidos comuns da palavra, o mais próximo do que é usado na pesquisa social é “olhar atentamente”. Partindo destes elementos, podemos chegar a uma definição mais adequada. Observar pode ser entendido mais adequadamente como olhar atentamente algo. A observação, por conseguinte, significa o ato de olhar atentamente algo. Nesse sentido, todo mundo observa o tempo todo. Nesse caso, trata-se de observação ordinária.
A pesquisa social não trabalha com observação ordinária. O motivo disso é que ela é esporádica, sem reflexão, sem objetivos definidos, sem rigor, etc. A observação ordinária pode até servir como fonte de informações específicas, mas não como técnica de pesquisa. Assim, podemos dizer que a observação ordinária pode ser integrada na observação relacional, como fonte de informações específicas. Por exemplo, um pesquisador que realiza uma pesquisa no partido político X através da observação relacional, pode observar, ordinariamente, um elemento que não tinha relação com seus objetivos. Numa pesquisa posterior, ele pode recordar tal observação e o que foi recordado pode ser informação para os objetivos da nova investigação. Esse é mesmo caso que um transeunte vê um assalto e observa a placa do carro dos assaltantes e depois informa a polícia o seu número. É uma informação, verdadeira e útil. Porém, também pode ser limitada, se o número estiver errado ou se não recordar todos.
A observação relacional é o ato de olhar atentamente um fenômeno (indivíduo, acontecimento, grupo social, organização, relações interindividuais, relações sociais, etc.) com o objetivo de o expressar fidedignamente através da percepção de suas relações. Portanto, se um pesquisador vai a uma manifestação estudantil (o fenômeno que se busca olhar atentamente) e seu objetivo é expressar fidedignamente as divergências internas (objetivo da pesquisa), ele não irá isolar uma contenda, os cartazes, etc. Se ele observa apenas os cartazes, por exemplo, poderá concluir, se todos eles apontam para uma recusa de uma política governamental específica, que não existe divergência. É aí que o domínio teórico-metodológico e a compreensão das relações permitem ir além da aparência do fenômeno. Todos os cartazes são contra a referida política governamental, mas alguns apontam elementos complementares, como, por exemplo, “nova constituição”, outro pode colocar “novas eleições”, e, alguns, ainda, “revolução”. Embora a manifestação e os cartazes em geral apontem para uma recusa de uma determinada política governamental, o que daria a impressão de não-divergência, os complementos mostram que a forma como fazem isso é diferente e isso revela divergência, que pode até parecer secundária, mas é apenas naquele contexto. Ou mesmo se todos os cartazes manifestarem apenas o repúdio à determinada política governamental, mas as formas de participar, os subgrupos existentes, etc., mostram as divergências. Muitos observadores não perceberiam isso. Porém, quem trabalha com a observação relacional (e mesmo outras formas de observação), percebe as divergências[6].
A observação relacional pode ser espontânea ou planejada. A observação relacional espontânea é aquela na qual o fenômeno é observado atentamente com a finalidade de expressá-lo fidedignamente a partir de suas relações. Assim, temos aqui a base teórico-metodológica, o problema de pesquisa, o objetivo, entre outros elementos, que difere a observação relacional espontânea da observação ordinária. Porém, o mais adequado é o uso da observação relacional planejada. Esta tem a vantagem do planejamento da própria observação e assim garantir uma maior quantidade de informações, bem como menor possibilidade de perda das informações. Isso ocorre através do plano de observação, realização da observação, caderno de notas e síntese observacional. A observação relacional espontânea tem como ponto de partida a base teórico-metodológica, problema e objetivo, como antecedente da observação. A observação, em si, é realizada de forma mais flexível e menos formal. O observador pode também fazer anotações e síntese observacional, o que depende de sua decisão. A observação relacional espontânea pode ocorrer sem a existência de um problema e objetivo, pois ela pode anteceder esse estágio da pesquisa, mas só existe se o pesquisador tiver a base teórico-metodológica necessária. Caso não tenha estes elementos (base teórico-metodológica, problema, objetivo), então trata-se de observação ordinária, que pode até ser fonte de informações, mas para coisas bem específicas. Vamos focalizar, a partir de agora, a observação relacional planejada, pois é esta que traz mais elementos para reflexão. 
A observação relacional planejada tem alguns elementos constitutivos e é efetivada em momentos distintos. O primeiro passo é a definição do fenômeno a ser pesquisado e elementos derivados (problema de pesquisa, referencial teórico, etc.), além da base teórico-metodológica mais ampla, que constituem seus pressupostos. Após isso se inicia o processo de observação relacional. O primeiro momento é a preparação, que gera um plano de observação. O plano de observação são algumas anotações nos quais o pesquisador desenvolve um planejamento (dias, horários, locais, situações, etc.) relativo ao processo observacional. Se o pesquisador vai analisar uma aula de um professor, a partir dos objetivos e problematização levantados, então precisa elaborar o plano e neste estabelecer se irá assistir todas as aulas ou apenas algumas (e quais, nesse caso, o que pode ser definido por importância dos temas das aulas, por disponibilidade do observador, etc.), se focalizará a questão didática ou o conteúdo, ou, ainda relação com os alunos, etc. O plano de observação, que não é rígido, pois a observação concreta pode alterar o plano e em certos casos isso ocorre de forma ampla, aponta para a definição da dimensão temporal e espacial, bem como a delimitação do foco, além de outros detalhes, sendo que alguns podem variar dependendo da pesquisa, fenômeno, objetivos, etc.
O segundo momento é a observação em si mesma. Este é o momento que o observador se encontra com o fenômeno observado. Se é uma comunidade, uma escola, um sindicato, entre outras possibilidades, ele irá até o local realizar a observação. Nesse momento, a atenção se torna fundamental e o foco no objetivo e outros elementos da pesquisa. O observador deve se atentar para não haver distração. A observação, no entanto, difere da concepção objetivista, pois não busca “neutralidade” e “objetividade”[7]. Assim, “a observação relacional, no entanto, não pensa, ingenuamente, que o observador não interfere no comportamento dos outros. Sem dúvida, a interferência intencional deve ser evitada, mas a inintencional é inevitável, pois basta a sua presença para já ser uma interferência” (VIANA, 2015, p. 125). Sem dúvida, a interferência pode, em determinadas casos, ser estabelecida sem problemas. Este é o caso quando o pesquisador é parte do fenômeno observado, ou seja, é integrante da comunidade, grupo, organização, etc. ou possui adesão a alguma posição no seu interior. Isso não é problemático por fazer parte do fenômeno pesquisado, não alterando sua existência ou dinâmica.
A interferência é um problema quando pode desvirtuar as relações sociais estabelecidas, criando um diferencial que não existiria com a observação. E isso pode ocorrer em vários casos. Por exemplo, um pesquisador que investiga uma escola e sua observação inibe os estudantes e alguns irão mudar seu comportamento por não querer que suas práticas sejam identificadas ou então em uma empresa, na qual os burocratas vão buscar direcionar os funcionários para as respostas que a empresa, bem como esconder informações. Essa é uma interferência inintencional e é problemática, pois o comportamento alterado gera informações alteradas, mas o observador deve perceber isso para que no momento da análise saiba como proceder, bem como, antes disso, conseguir outras fontes de informações. O que o observador deve evitar é, caso não seja parte do fenômeno pesquisado, não provocar (via conversa, comportamento, etc.) uma alteração nas ações e discursos dos observados.
O terceiro momento, vai além da observação em si, pois após sua efetivação, é necessário o seu registro. Isso pode ocorrer diariamente ou em qualquer outro período de tempo, dependendo das frequências das observações[8]. O pesquisador deve anotar os acontecimentos mais significativos (VIANA, 2015), o que é importante para evitar esquecimento e contribuir com uma percepção mais totalizante. O registro deve ocorrer num caderno de notas. O caderno de notas serve para registrar os acontecimentos mais significativos e possibilita a consolidação de um novo material informativo a respeito do fenômeno pesquisado.
O quarto e último momento é a síntese observacional. No fundo, as anotações no caderno de notas fornecem todo o material informativo necessário e a síntese apenas aponta elementos mais gerais e totalizantes que, posteriormente, facilitam a análise, tendo aspectos que podem ser incorporados e outros descartados. Esse quarto momento pode ou não ser efetivado, dependendo da decisão do observador.
Porém, esses momentos podem assumir diferenças em casos específicos, bem como em distintas formas de observação relacional. Nesse sentido, é útil realizar algumas distinções. Já fizemos a distinção anterior entre observação relacional espontânea e a planejada, mas existem outras distinções que devem ser apresentadas. A observação relacional pode ser intensiva ou extensiva. Ela é intensiva quando reduz o seu alcance, ou seja, quando o seu fenômeno é restrito, como uma associação de bairros. Ela é extensiva quando o fenômeno é mais amplo, como um bairro inteiro (o que inclui a referida associação). Ou então pode ser considerada intensiva quando se limita a um partido político específico, e extensiva quando se trata de um conjunto de partidos políticos ou sua totalidade em determinado país ou no mundo.
Ela também pode ser internalista ou externalista. Ela é internalista quando o observador está envolvido com o fenômeno pesquisado e é externalista quando ele é externo ao mesmo. O morador de um bairro específico realiza observação internalista, pois ele tem um conjunto de informações preliminares, determinado saber, bem como valores e relações estabelecidas com moradores, que geram uma pesquisa marcada pelo engajamento (ou não, em alguns casos, dependendo da posição do indivíduo no seu local de moradia) em ações e reivindicações, quando estas estão relacionadas com a investigação. Ela é externalista, se o pesquisador não for morador do referido bairro. Mas isso pode ocorrer de forma distinta, pois um observador que quer analisar a doutrina liberal em determinado lugar (partido, comunidade, instituição, etc.) e é liberal, então a observação seria internalista (apesar de ser difícil um liberal usar tal técnica de pesquisa) e se for marxista, então seria externalista. E o mesmo ocorre em casos contrários. Nesse caso específico, a observação relacional internalista é geralmente precedida por sua forma espontânea para depois assumir a forma planejada e, em alguns casos, é apenas espontânea, pois o vínculo do pesquisador com o fenômeno pesquisado permite isso.
Porém, a distinção mais importante se a observação relacional ocorre no contexto de uma pesquisa experimental ou numa pesquisa teórica. Até aqui priorizamos o uso da observação relacional na pesquisa experimental, também denominada “pesquisa empírica” (ou, ainda, “pesquisa de campo”). O que distingue a pesquisa experimental e a pesquisa teórica é a forma de problematização que cada uma efetiva. A primeira trabalha com uma problematização experimental e a segunda trabalha com a problematização teórica. A problematização experimental visa descobrir algo que é acessível via experiência (ou experimentação, que é uma de suas formas) e por isso é algo mais delimitado, tanto no sentido espacial, temporal e até conceitual. Assim, se busca descobrir quais representações cotidianas os estudantes de medicina têm sobre o SUS (Sistema Único de Saúde), é uma pesquisa experimental. Se eu problematizo o que é a doença, então trata-se de uma pesquisa teórica. Se eu busco entender os reais objetivos do Partido Verde realizo uma problematização experimental, mas se eu busco entender o que são os partidos políticos, realizo uma problematização teórica. Em síntese, na problematização experimental se busca descobrir aspectos mais restritos da realidade e que geram explicações de alto grau de concreticidade, como, por exemplo, as representações cotidianas dos estudantes de medicina sobre o SUS, enquanto que na problematização teórica se busca descobrir aspectos mais amplos da realidade e que geram explicações de alto grau de abstração, como, por exemplo, o que são os partidos políticos.
Dito isto, fica claro que a observação relacional possui um vínculo mais forte com a pesquisa experimental. No entanto, a observação relacional tem uma utilidade também na pesquisa teórica. Se eu quero analisar os objetivos do Partido Verde, então posso usar a observação relacional para realizar tal pesquisa. Isso seria feito frequentando a sede do partido, suas reuniões (abertas), suas ações (no parlamento, por exemplo), entre outras possibilidades. Claro que tal pesquisa teria que também usar a investigação documental e talvez outras técnicas (entrevistas, por exemplo). Porém, se eu quero é descobrir o que são os partidos políticos, o procedimento é bem distinto. Não posso descobrir o que são os partidos políticos a partir do acesso à apenas um partido político. Os partidos são diferentes e, assim, o pesquisador teria uma percepção equivocada, realizando uma generalização indevida. E isso é ainda mais provável se for um partido com muitas especificidades que o distingue dos outros. Sem dúvida, em alguns casos, dependendo do pesquisador, é possível extrair de um partido (de um único caso) apenas o que é essencial[9] e, assim, compreender os partidos em geral. Porém, a concepção dialética não é empiricista e nem “indutiva”. Isso seria um caso raro.
Então qual é a relação entre observação relacional e pesquisa teórica? Na pesquisa teórica, assim como na pesquisa experimental, se utiliza informações. As informações que são demandadas pela pesquisa teórica são mais amplas e gerais. Se quero descobrir o que são os partidos políticos, então devo ter acesso a informações sobre eles. No entanto, trata-se de informações de fonte secundária, na maioria dos casos. E aqui temos mais uma diferença entre pesquisa experimental e pesquisa teórica, pois a primeira trabalha, prioritariamente, com fontes primárias e a segunda com fontes secundárias. Para analisar o que são os partidos políticos, o pesquisador deve ler as obras existentes que já apresentam o que eles são. Porém, cabe ao pesquisador, nesse caso, mostrar as deficiências destas concepções para justificar uma nova. Nesse processo, ele estará utilizando as informações trabalhadas pelos outros pesquisadores para compor sua própria concepção, além das interpretações que eles apresentam. A pesquisa teórica pressupõe tratamento crítico, tanto das informações, quanto das interpretações. As informações são confiáveis? São verdadeiras? São incompletas ou completas? Entre outras questões que devem ser realizadas no processo de pesquisa em relação a cada obra e autor consultado. No que se refere às interpretações, é preciso um trabalho no sentido de saber sua base teórico-metodológica, entre outros aspectos, bem como sua relação com as informações em si. Assim, se um pesquisador lê Robert Michels e sua obra Sociologia dos Partidos Políticos, verá inúmeras informações, que são fontes secundárias. Se lê Duverger (1982) e outros autores, então terá uma quantidade muito maior de informações de fontes secundárias. Um conjunto de informações sobre os partidos, seus líderes e discursos, entre diversas outras. Se ele quer elaborar uma teoria dos partidos políticos, essa é leitura fundamental e a análise crítica das informações e interpretações é elemento basilar.
Porém, a pesquisa teórica trabalha prioritariamente, mas não unicamente, com fontes secundárias. Em certos casos pode ser apenas fontes secundárias, enquanto que em outros pode lançar mão também de fontes primárias. E é aqui que a observação relacional assume importância na pesquisa teórica. Se eu quero realizar uma análise sobre escolas, por exemplo, eu tenho além de uma ampla gama de informações de fontes secundárias, a possibilidade de uso de fontes primárias. E quais são estas fontes primárias? Isso depende do pesquisador. Nada o impede, por exemplo, de fazer entrevistas, questionários, investigação documental, etc. Porém, isso é raro e desnecessário na maioria dos casos. O uso da observação relacional é mais comum e mais adequado.
Nesses casos, trata-se, geralmente, de observação relacional espontânea e extensiva, bem como pode ser também internalista. Ela geralmente é espontânea, pois, como se trata de pesquisa teórica, a planejada é mais rara. Se ela é internalista, então tende a ser espontânea. Por exemplo, um indivíduo passa por várias instituições de ensino em sua vida. Nesse contexto, ele realizou observação ordinária. A partir de certo momento ele adquire base teórico-metodológica e assim passa a realizar observação relacional espontânea. Essa é internalista e espontânea e permite ao pesquisador ter mais elementos para questionar as fontes secundárias e as interpretações. Ela também pode ser extensiva, pois como se trata de um fenômeno específico, no caso de nossa ilustração, os partidos políticos, assume um alcance maior. Nesse mesmo caso, o pesquisador pode utilizar observação relacional espontânea internalista no(s) partido(s) que passou e externalista nos que não fez parte, como, por exemplo, nos embates nos movimentos sociais, no processo eleitoral, nas alianças, manifestações, etc.
Em síntese, a observação relacional é um elemento auxiliar da pesquisa teórica. Na pesquisa experimental, se torna elemento fundamental. Numa pesquisa experimental sobre as práticas esportivas dos professores de educação física na Universidade X, a observação relacional é um elemento fundamental. Numa pesquisa teórica sobre educação física ou sobre as universidades, ela é um elemento auxiliar.
Um aspecto importante que não podemos deixar de fora é a relação entre a observação relacional e as demais técnicas de pesquisa. A observação relacional, em certas pesquisas, pode ser uma técnica auxiliar, tal como na pesquisa em representações cotidianas (VIANA, 2015), pois nesse caso o objetivo é analisar o que as pessoas pensam e a observação não capta isso facilmente. Desta forma, em várias situações a observação relacional é uma técnica auxiliar. Porém, em muitos casos, ela é a única técnica. Isso depende de vários aspectos: fenômeno a ser pesquisado, problema, objetivos, etc. Desta forma, a observação relacional pode ser técnica única, técnica principal ou técnica auxiliar, como todas as demais técnicas de pesquisa. Esse esclarecimento é útil para pensarmos o uso de técnicas auxiliares no caso da observação relacional ser a técnica principal. Sem dúvida, o uso de técnicas auxiliares pressupõe afinidade teórico-metodológica e, por isso, a entrevista interpretativa, por exemplo, pode ser uma técnica auxiliar da observação relacional, bem como a investigação documental (VIANA, 2015).
Considerações Finais
Em síntese, o nosso objetivo foi o de apresentar uma reflexão sobre a observação relacional e destacar alguns de seus elementos e relações com a pesquisa e outros processos investigativos. Consideramos que atingimos tal objetivo e que a presente reflexão abre espaço para novas reflexões e análise sobre a observação relacional e outras formas de observação e técnica de pesquisa.

Referências


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Publicado originalmente em:
PURIFICAÇÃO, Marcelo Máximo (org.). Investigação científica nas ciências humanas. Vol. 03. Ponta Grossa: Atena, 2019.
ISBN 978-85-7247-718-5
DOI 10.22533/at.ed.185191710


[1] Há uma longa discussão a este respeito e Marx foi o autor que iniciou a percepção desse processo (MARX, 1968) e depois dele, Korsch (1977), o jovem Lukács (1989), entre outros desenvolveram numa análise dialética do processo de formação social da consciência.
[2] Abstratificar significa tornar algo um “abstractum”, entendido aqui como uma constituição mental deslocada da realidade, ou seja, transformar um ser em algo metafísico. Assim, abstratificação é diferente de abstração, pois a primeira é um processo que retira o ser (indivíduo, fenômeno, etc.) da realidade (retira o ser social da história e relações sociais, por exemplo), enquanto que a segunda, no sentido dialético, apenas focaliza uma parte da realidade, sem desligá-la da totalidade na qual está inserida. Essa distinção pode ser vista em Marx (1983), quando usa abstração num sentido negativo (abstração metafísica) e num sentido positivo (abstração dialética), o que nem sempre é percebido (VIANA, 2007b). Nesse caso, a abstratificação seria uma abstração metafísica.
[3] Sobre as representações cotidianas e suas formas, características, entre outros elementos, veja: Viana (2008); Viana (2015); Marques (2018). As representações cotidianas são o que geralmente se denomina “senso comum”, “conhecimento cotidiano”, “saber popular”, etc.
[4] Marx explica as representações cotidianas ilusórias pela limitação das relações sociais (MARX; ENGELS, 1982).
[5] Um exemplo poderá esclarecer esse aspecto, que será mais desenvolvido adiante, que é o uso da teoria no processo de observação relacional. Se o fenômeno a ser observado é, por exemplo, um partido político, então o observador deve ter pesquisado sobre partidos políticos. E se for uma pesquisa sobre dissidência nos partidos políticos, então o acesso a teoria dos partidos políticos é necessário. Nesse caso, observará indivíduos, falas, ações, no interior de uma instituição que já sabe vários aspectos, como objetivos, funcionamento, história, etc.
[6] Claro que isso depende também de quem é o observador, pois mesmo que queira trabalhar com a observação relacional, pode ter dificuldades, derivadas de sua idiossincrasia, em efetivar isso. Isso depende, no caso da observação relacional, do seu domínio teórico-metodológico. Se ele tem pelo menos noção do que significa anarquismo, maoísmo, autonomismo, etc., poderá compreender as divergências. Mas se é apenas uma noção e não tiver um saber um pouco mais desenvolvido, poderá não perceber certas sutilezas. Por exemplo, num mesmo grupo, ainda seguindo o mesmo exemplo, que reúne anarquistas, pode ter divergências, pois se uniram nesse contexto, mas são de tendências diferentes. Para quem não conhece as diferentes correntes anarquistas e suas diferenças, incluindo as contemporâneas, é mais difícil compreender as divergências do que quem tem maior formação e saber sobre isso.
[7] Esse é o caso, por exemplo, da chamada “observação naturalista”: “a característica marcante da compilação de dados por observação naturalista consiste em que o investigador deve unicamente observar e não interferir no comportamento em curso” (EDWARDS, 1983, p. 18). Veja também: Grisez, 1978.
[8] Aqui é preciso entender que a observação relacional pode ocorrer em apenas um dia e momento, mas também pode ocorrer durante um longo tempo (muitos dias, num espaço de um ano, por exemplo, dependendo da pesquisa, objetivos, observador, etc.), e sua periodicidade pode ser diária, semanal, mensal, etc. A observação relacional é o conjunto das observações parcelares que são realizadas durante a pesquisa.
[9] Isso é mais provável no caso de alguns pesquisadores, que são aqueles que possuem uma ampla e sólida formação teórica e metodológica para conseguir distinguir o essencial do inessencial. Isso, no entanto, não anula os riscos de equívocos. Não custa recordar, para entender o real significado dessa discussão, que, numa concepção dialética, o essencial é, simultaneamente, universal (VIANA, 2007a). 

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