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sexta-feira, 15 de novembro de 2019

A Aurora do Anarquismo no Brasil



A Aurora do Anarquismo no Brasil

Nildo Viana*

O anarquismo brasileiro tem uma longa história que vem sendo reconstituída pela historiografia brasileira, embora, muitas vezes, de forma preconceituosa. O nosso objetivo, no presente trabalho, é reconstituir as origens do anarquismo no Brasil a partir de perspectiva histórica e explicativa visando abordar as suas condições de possibilidade e sua hegemonia no movimento operário no início do século 20. O anarquismo brasileiro, em sua origem, não só era força hegemônica no movimento operário como era uma força política poderosa e que estava presente nas lutas operárias de forma intensiva.
Iremos dividir o presente trabalho em três partes. A primeira aborda a formação da classe operária, condição de possibilidade do anarquismo brasileiro, que é nossa tese central. É com o surgimento da classe operária que se constitui a possibilidade histórica do surgimento do anarquismo brasileiro, sendo sua determinação fundamental. É com a constituição do proletariado que se cria a base social necessária para a produção, desenvolvimento e divulgação das idéias anarquistas.
A segunda parte aborda a imigração italiana para o Brasil e o seu papel essencial na divulgação das idéias anarquistas em nosso país. A existência da classe operária, bem como de sua exploração e dominação, principalmente na época de sua formação, que é acompanhada por péssimas condições de trabalho e habitação, elevadas jornadas de trabalho, baixos salários, ao lado de um intenso despotismo fabril, produz a luta operária, a resistência dos trabalhadores, suas primeiras formas de associação e organização, bem como traz a necessidade de compreensão da realidade social à qual ela está inserida, produz a formação de uma cultura operária, formas de manifestações culturais. As representações cotidianas da classe operária são reforçadas pelas concepções oriundas de outros setores da sociedade, incluindo os intelectuais. Durante a formação da classe operária na Europa, as idéias socialistas foram sendo produzidas no interior da classe operária (Wetling, Proudhon, etc.) e também por intelectuais ou indivíduos de outras classes sociais. No caso brasileiro, a formação do proletariado local esteve intimamente ligado à imigração européia, mais especificamente italiana, no qual, devido ao processo anterior de formação de sua classe operária, já trazia de lá uma forte cultura operária e a influência das idéias socialistas, principalmente, no caso dos italianos, das idéias anarquistas. A hegemonia do anarquismo no movimento operário brasileiro teve como determinação fundamental a imigração italiana. Assim, podemos dizer que a condição de possibilidade do anarquismo brasileiro foi a formação da classe operária e da imigração italiana, e a hegemonia anarquista no movimento operário brasileiro foi possibilitada por esta última.
A terceira e última parte é dedicada a analisar a relação entre movimento operário e anarquismo no Brasil. O movimento operário brasileiro mostrou sua força através de suas lutas esboçadas no final do século 19 e início do século 20 e os operários e intelectuais anarquistas tiveram um papel fundamental neste processo e por isso iremos realizar uma breve reconstituição histórica deste período heróico da luta operária no Brasil.
A Formação do Proletariado Brasileiro
A classe operária brasileira é formada através de um longo processo histórico. A passagem do escravismo colonial para o capitalismo subordinado no Brasil foi marcada pela abolição da escravidão, que foi o resultado de intensas lutas sociais (dos escravos, abolicionistas, senhores de escravos, burguesia nacional interessada em trabalhadores livres, potências estrangeiras, no caso a interferência inglesa, etc.). A formação da classe operária brasileira, portanto, ocorreu de forma diferenciada em relação ao caso clássico europeu. Na Europa, houve a transição do feudalismo para o capitalismo, onde o trabalho servil foi paulatinamente substituído por outras formas de trabalho, especialmente o trabalho fabril. No Brasil, a transição foi do escravismo colonial para o trabalho semilivre e “livre”. A abolição do trabalho escravo significou uma ampla mudança na sociedade brasileira, instaurando novas relações de produção. O trabalho “livre” é o trabalho assalariado, ampliado com o fim da escravidão, e o trabalho semilivre é o ligado a relações de produção não-capitalistas. A transição do escravismo colonial para o capitalismo foi marcada pela ampliação das relações de produção capitalistas, no campo e na cidade, e também pela instauração de relações de produção não-capitalistas, expressas no chamado “coronelismo”, o que constitui uma complexa aliança entre a classe capitalista e os latifundiários exploradores de trabalhadores do campo. O trabalho assalariado vai se desenvolvendo paulatinamente mas somente ganha impulso real com a imigração. O proletariado brasileiro é formado não por uma população camponesa e artesã, tal como na Europa, mas principalmente pela vinda de estrangeiros para o Brasil (Kowarick, 1987), sendo que a referida população camponesa e artesã contribuiriam modestamente, do ponto de vista quantitativo.
Antes do processo de expansão da industrialização brasileira, a classe operária brasileira era numericamente insignificante, sendo mais numeroso o operariado da construção civil e ferroviária. A industrialização brasileira começa timidamente a partir de 1840, quando começa a se estabelecer as fábricas modernas e o emprego de operários (Foot Hardman & Leonardi, 1991). A industrialização brasileira foi, num primeiro momento, uma “industrialização descentralizada”, o que impediu uma maior articulação do movimento operário. Tal industrialização foi se concentrando cada vez mais na Região Centro-Sul:
“O deslocamento no espaço da indústria de tecidos de algodão indica a importância gradativa que o centro-sul vai assumindo, em confronto com outras áreas. O Estado da Bahia – Especialmente Salvador e arredores – foi o primeiro núcleo das atividades do ramo, de 1844 até fins da década dos sessenta, reunindo cinco das nove fábricas existentes no país em 1866. Em 1885, antes mesmo que na província de São Paulo a produção industrial tivesse algum significado, observava-se a existência de maior número de empresas no centro-sul. Dentre 48 fábricas arroladas em todo o país, 33 se localizavam nesta região. Minas Gerais aparecia como a primeira província (13 unidades) tendo a Bahia 12, a província do Rio de Janeiro 11 e a de São Paulo 9 unidades” (Fausto, 1976, p. 14).
Neste período histórico, observa-se um crescimento do trabalho assalariado nas cidades e do trabalho semilivre (sob as mais variadas formas) no campo. A industrialização brasileira ganha impulso após este período, o que promove um crescimento quantitativo da classe operária (Iglesias, 1987; Gorender, 1988; Foot Hardman & Leonardi, 1991). Depois de 1880, há um aceleramento do desenvolvimento industrial e este provoca uma demanda por força de trabalho. A criação de novas indústrias ocorre de forma intensa: 150 entre 1880-1884; 248 entre 1885-1889, aumentado o seu número rapidamente, passando de 636 indústrias e 54.169 operários em 1889 para 3.410 indústrias e 156.250 operários em 1907 e chegando, em 1920, a 13.336 indústrias e 275.512 operários (Segatto, 1987). É a partir do final do século 19 e início do século 20 que o processo de imigração ganha impulso.
A origem social do proletariado brasileiro, no período anterior à abolição, advinha da camada mais pobre da população urbana, no qual se destacava a forte presença de força de trabalho feminina e precoce (crianças e jovens).
“Além dos menores, empregados principalmente na indústria têxtil, os proletários eram também originários do campesinato pobre, especialmente em cidades isoladas do interior. Também ocorreu proletarização entre certos artesãos, arruinados pela concorrência e pelos baixos preços dos produtos similares industrializados. Nas primeiras décadas do longo período 1840-1890, os operários especializados eram, em geral, recrutados na Inglaterra. Mecânicos, mestres de fiação e de tecelagem, maquinistas, moleiros e outros operários ingleses eram contratados por períodos de três a cinco anos, com passagem de ida e volta. As doenças tropicais, principalmente a febre amarela, atacavam-nos imediatamente após a chegada. Além da dificuldade de adaptação destes trabalhadores, seus salários eram um pouco mais altos, o que obrigou os industriais a procurar formar rapidamente os próprios operários nacionais. Nos anos 90, o papel dos operários ingleses já era bem reduzido, encontrando-se no Brasil profissionais em condições de substituí-los. Já em 1866, na Bahia, a indústria têxtil empregava quase exclusivamente operários brasileiros que garantiam um padrão técnico de bom nível, assegurando a qualidade de certos produtos. Em São Paulo e Rio, nos anos 90, os trabalhos especializados eram executados por brasileiros ou por imigrantes não-britânicos, em geral italianos, alemães, espanhóis e portugueses” (Foot Hardman & Leonardi, 1991, p. 99).
A partir dos anos 90, nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, passou a predominar a força de trabalho estrangeira, especialmente italiana. As migrações inter-regionais e internacionais formaram a base social da classe operária brasileira deste período. O imigrante italiano provinha de várias regiões, tal como Nápoles, Vêneto, Sicília, Calábria, entre outras (Dias, 1977). A imigração vai atingindo índices cada vez maiores:
“Continuando o fluxo anterior, o decênio de 1894-1903 assinala a entrada de 162 110 imigrantes, seguidos por 1 006 617 em 1904-1913, com uma queda para 503 981, de 1914 a 1923, resultante da guerra; o decênio seguinte atinge o número de 737 233” (Carone, 1989, p. 8).
Em São Paulo, que vai se constituindo como centro industrial do país, a imigração é intensa, tendo 149 018 operários, sendo a maioria absoluta composta por estrangeiros; em 1912, 80% dos operários da indústria têxtil eram estrangeiros (Rezende, 1990). Os italianos são a maioria dos imigrantes estrangeiros em São Paulo. Após a abolição da escravidão, chegaram ao Brasil cerca de 180 000 italianos e a partir de 1890 há um forte crescimento da imigração italiana, sendo que entre 1888 e 1898 chegaram cerca de 820 000 italianos em São Paulo (61% do total da imigração) e em 1912, 60% dos operários têxteis eram italianos (Foot Hardman & Leonardi, 1991).
Assim, o processo de industrialização constitui uma classe operária cada vez mais numerosa e fortalece cada vez mais as relações de produção capitalistas, instituindo a produção de mais-valor, através da exploração dos trabalhadores fabris. A base da sociedade capitalista, o processo de exploração do proletariado, sustentava a formação do capitalismo brasileiro. E, tal como na Europa, o proletariado nascente é vítima de uma exploração intensiva, por condições de vida e trabalho precárias, por jornadas de trabalho extensas e pelo uso de força de trabalho feminina e precoce com salários mais baixos. A luta de classes na esfera da produção marca o grau de exploração do operário e isto interfere não somente nos salários, mas também nos custos da força de trabalho, na produtividade, etc. A classe capitalista, deixada ao seu bel-prazer, aumenta a taxa de exploração aos limites suportáveis pela força de trabalho, e, às vezes, ultrapassa este nível, apostando na reserva de força de trabalho existente e na possibilidade assim produzida de destruição de indivíduos proletários. O despotismo fabril, no Brasil, não era diferente do existente na Europa:
“Na grande indústria têxtil, violências sexuais contra meninas e mulheres por parte de mestres e contramestres eram denunciadas rotineiramente na imprensa operária. As prepotências e agressões físicas dos chefes e mestres contra menores eram a norma também no caso da indústria de vidros, de pequeno e médio porte. Um retrato em detalhe das miseráveis condições de trabalho no setor de vidreiros foi feito por um antigo operário do ramo, o memorialista Jacob Penteado. Além da violência física contra os menores, eram comuns as punições, o alcoolismo e doenças como tuberculose e a sífilis. Inexistia qualquer higiene nos locais de trabalho. As águas eram insalubres e a temperatura da fornalha chegava a um grau insuportável, dentro de um barracão de zinco sem janelas nem ventilação. O ar era totalmente poluído pela poeira de vidro, além dos cacos espalhados no chão. O autor comparou o interior de uma fábrica de vidro a um dos ‘círculos do inferno’” (Foot Hardman & Leonardi, 1991, p. 136).
A vida fora da fábrica não era muito diferente. As condições de habitação eram precárias, em São Paulo, os cortiços assumiam a forma mais comum de residência operária. Não havia nenhuma participação do proletariado na política institucional e ela era vigiada e controlada pelo Estado. Neste contexto, a classe operária buscava resistir e lutar, criar sua própria cultura. É neste contexto que irá surgir as idéias sindicalistas, socialistas e principalmente anarquistas no interior do movimento operário nascente no Brasil. As concepções anarquistas só puderam se desenvolver em solo brasileiro devido à formação da classe operária e sua luta, sendo sua condição de possibilidade.
Imigração Italiana e Anarquismo
Já apontamos a importância da imigração italiana para a formação do proletariado brasileiro. No entanto, é necessário também destacar o seu papel no processo de desenvolvimento do movimento operário no Brasil e na hegemonia anarquista existente nesse período.
O primeiro ponto a destacar é a razão de ser da imigração italiana. Segundo alguns, isto se deve ao desemprego na Itália, o que provocava a imigração visando fugir desta situação (Foot Hardman & Leonardi, 1991), ou a expansão demográfica italiana (Azevedo, 1982). Sem dúvida, houve um conjunto de determinações para o processo migratório. A situação de pobreza e miséria do Norte da Itália, as doenças em expansão (malária, cólera, etc.), a concentração fundiária, a política estatal, etc. No entanto, podemos resumir este conjunto de determinações no processo social italiano, marcado por relações de produção fundadas num alto grau de exploração dos trabalhadores agrícolas. A permanência de relações de produção feudais ao lado de novas relações de produção comandavam as ações estatais. A reação dos trabalhadores rurais se dava através de “greves agrárias”, que foram aumentando a partir do final do século 19 e início do século 20 (Azevedo, 1982). O desemprego e a pobreza geral era visível. A alimentação era pobre em alimentos mais nutritivos e quase não se consumia carne, ovos, leite e verduras frescas, sendo a polenta o alimento básico para milhares de pessoas. Esta precária situação alimentar e a desnutrição que lhe é derivada, aliada a algumas catástrofes naturais, tal como enchentes e inundações, abria caminho para o desenvolvimento de diversas doenças, a pelagra, a malária e a cólera, por exemplo (Azevedo, 1982).
A concentração fundiária e a pobreza dos trabalhadores rurais eram reforçadas pela ação estatal, visando aumentar cada vez mais os impostos. O processo de unificação italiana originou um Estado unitário que precisava de recursos para consolidar o Estado-Nação italiano. Este quadro, incompleto, da situação do Norte da Itália, mostra a tendência para a migração de milhares de trabalhadores italianos, o que, em alguns casos, será reforçado pelo messianismo religioso ainda forte em alguns segmentos rurais do norte da Itália (Azevedo, 1982).
No entanto, esta tendência só se concretizou devido à política imigratória do governo brasileiro e ao conjunto de interesses ligados a ela. Esta política imigratória tinha dois objetivos diferentes: por um lado, pretendia realizar uma colonização das províncias meridionais, implantando colônias no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Paraná; por outro, o processo de industrialização paulista, que promovia programas de imigração e colonização, sob as formas de assalariamento, parceria, empreitada, entre outras. A imigração paulista era promovida, principalmente por grandes fazendeiros e empresários urbanos, com apoio do governo provincial. As promessas de uma nova vida, e a propaganda do governo brasileiro era um estímulo poderoso para aqueles que viviam em uma situação subumana na Itália. Mas além do governo brasileiro e seu incentivo à imigração italiana, também se constituiu  um conjunto de interesses que reforçaram este processo. As companhias de navegação, os bancos e as empresas de colonização estavam interessadas na imigração italiana que lhe proporcionava enormes lucros. Este conjunto de interesses e seu caráter lucrativo promoveram um amplo incentivo ao processo migratório, muitas vezes acompanhado, tal como denunciado pelo governo italiano, de “promessas falazes” (Azevedo, 1982).
Assim, a ânsia em buscar a superação de uma condição miserável e o desejo de uma vida nova provocada pela situação do Norte da Itália, ao lado dos incentivos provenientes do Governo Brasileiro e instituições privadas que lucravam com isto, foram os elementos determinantes da grande imigração italiana para o Brasil.
A imigração italiana também explica a hegemonia anarquista no movimento operário brasileiro. O movimento operário italiano era fortemente influenciado pelo anarquismo. Proudhon exerceu uma certa influência nos meios operários na Itália, sendo que o primeiro jornal socialista deste país, Il Proletario, era de tendência proudhoniana, embora numa versão moderada (Woodcock, 1984). Com a chegada de Bakunin, em 1864, as idéias anarquistas se tornam mais influentes e assumem um caráter revolucionário. A influência de Bakunin atingia um círculo de militantes italianos (Giuseppe Fanelli, Saverio Friscia, Carlo Gambuzzi, Alberto Tucci) e o movimento anarquista formou-se na Itália e foi se tornando cada vez mais forte.
“A relação de Bakunin com seus discípulos italianos era muito próxima. Fanelli, Friscia e Tucci acompanharam-no quando ingressou na Liga pela Paz e Liberdade, renunciando com ele mais tarde para tornarem-se membros fundadores da Aliança Internacional da Social Democracia. Fanelli, Gambuzzi, Tucci e Friscia, com Rafaelle Mileri, da Calábria, e Giuseppe Manzoni, de Florença, formaram o núcleo do Comitê Nacional de Aliança. Mais uma vez, é difícil determinar o poder que a Aliança obteve na Itália, já que no início de 1869 a organização foi dissolvida e suas seções passaram automaticamente a integrar a Associação Internacional dos Trabalhadores. Os militantes italianos haviam se oposto a essa mudança, mas foi a partir dessa época – os primeiros meses de 1869 – que começou a surgir na Itália um influente movimento anarquista” (Woodcock, 1984, p. 116).
Este núcleo inicial de militantes anarquistas seria substituído por um novo grupo, de onde sairiam destacados pensadores anarquistas, sendo Errico Malatesta o nome mais proeminente. O grupo que contava com nomes como os de Carlo Cafiero, Errico Malatesta, Carmelo Palladino, oriundos da região camponesa mais pobre da Itália, nas quais resquícios de relações de produção feudais e outras relações não-capitalistas conviviam com a ascensão capitalista industrial em outras regiões italianas, foram importantes para a divulgação das idéias anarquistas e fortalecimento do movimento anarquista italiano. O anarquismo se desenvolveu através de diversas ações e atividades, tais como publicações, congressos, e até mesmo insurreições, tal como o de Bolonha, entre outras cidades italianas. A partir de 1880 a força do anarquismo italiano é diminuída, apesar de publicações e outras ações (Woodcock, 1984). Os anarquistas italianos com sua imigração assumiam um importante papel na divulgação dos ideais libertários:
“O que distinguia os anarquistas italianos dos anarquistas de outros países era o fato de que, ao emigrar, eles se transformavam em missionários de suas idéias. Homens e mulheres como Malatesta, Merlino, Pietro Gori, Camillo Berneri e sua filha Marie Louise Berneri, exerceram uma influência constante sobre o pensamento e a atividade anarquista internacional até a metade do nosso século. Em todo o Levante, os primeiros grupos anarquistas foram italianos, enquanto que na América Latina e nos Estados Unidos os imigrantes italianos desempenharam um importante papel na difusão de idéias anarquistas durante a década de 1890, tendo publicado mais ‘jornais expatriados’ do que todos os outros grupos nacionais colocados na mesma situação” (Woodcock, 1984, p. 128).
O anarquismo era a força política hegemônica no movimento operário italiano. A influência de outras correntes políticas de esquerda no movimento operário italiano, neste período de final de século 19 e início do século 20, era pequena. O grande concorrente do anarquismo no movimento operário, o marxismo, não era forte na Itália. A influência de Marx era maior na Alemanha e com o passar do tempo atingiu outros países europeus, mas na Itália somente na década de 20 do século 20 com Bordiga e Gramsci, entre outros, é que as idéias de Marx passam a ser influentes no movimento operário italiano. Também na Espanha, que também proporcionou uma massa de imigrantes influenciados pelo anarquismo, a força hegemônica no movimento operário era o anarquismo.
A imigração italiana para o Brasil explica, portanto, a hegemonia do anarquismo no movimento operário brasileiro, principalmente em São Paulo, onde predominou a imigração italiana. Os italianos também foram para os outros estados, assim como os espanhóis, sendo que, no Rio de Janeiro, eles eram a maioria ao lado dos portugueses. Mas apesar da imigração espanhola ter contribuído com a hegemonia anarquista no movimento operário, coube aos italianos o mérito de ter sido a grande força de influência no caráter anarquista do movimento operário brasileiro do início do século 20, principalmente tendo-se em conta que São Paulo foi se constituindo no grande centro de concentração industrial e operária do país.
Movimento Operário e Anarquismo no Brasil
A classe operária brasileira, tal como já colocamos, vivia sob condições de vida e de trabalho desfavoráveis. Mas, no entanto, ela não era passiva e sim ativa. As lutas operárias do início do século 20 no Brasil foram intensas. A luta operária no Brasil neste período ganhou força por três motivos principais. O primeiro era a situação da classe trabalhadora no Brasil em sua época de “Revolução Industrial”, que já aludimos anteriormente, e isto provocava a reação operária. Outro elemento que exerceu influência na ascensão das lutas operárias no Brasil era a conjuntura internacional marcada por uma radicalização do movimento operário e por lutas intensas a partir do final do século 19 e principalmente no início do século 20 (basta lembrarmos a Revolução Russa de 1905 e a nova tentativa de 1917, derrotada pela vitória bolchevique, uma contra-revolução burocrática; as tentativas de revolução socialista na Alemanha, Hungria, Itália, etc.). Um terceiro elemento que contribuiu com a ascensão da luta operária no Brasil foi a influência das idéias socialistas vindas da Europa, principalmente o anarquismo que acompanhava os imigrantes italianos. Uma das primeiras manifestações de radicalidade do movimento operário brasileiro foram as greves:
“As Greves, esparsas a partir de meados do século 19, vão aumentando paulatinamente até 1900. Desta data em diante, os movimentos grevistas que tinham caráter praticamente econômico e não obedeciam a orientação de associações de classe, vão ganhando nova dimensão com a fundação de entidades de classe, a princípio sob os títulos de ‘Associação’, ‘União’ e, por fim, Sindicato.
Pulando de estado para estado, vamos ver que as greves tinham sempre uma feição econômica, neste final do século 19. Em São Paulo, operários públicos declararam-se em greve por aumento de salário; o mesmo tendo feito os chapeleiros que pretendiam melhorar seus vencimentos. Na Bahia, os trabalhadores das docas vão à greve no ano de 1897, enquanto Santos era palco duma parede que durou 15 dias, terminando com as investidas policiais e ameaça de intervenção da Marinha e do Exército.
Na Estrada de Ferro Central do Brasil, em São Félix, Bahia, os trabalhadores pleiteiam melhorias salariais e o pagamento em dia, tendo o Governo prometido resolver a questão. Medidas semelhantes são reclamadas no ano de 1898 aos donos da fábrica de fósforos Vila Mariana e da indústria de tecidos “São Caetano”, ambas do Estado de São Paulo. O não atendimento das reivindicações levou os trabalhadores a se declararem em greve. Neste final do século 19 e começo do século 20, processam-se modificações substanciais no setor trabalhista. O aumento de indústrias abrindo novos mercados de trabalho fazem chegar, da Europa principalmente, operários especializados, trazendo idéias novas e novos entendimentos dos direitos humanos” (Rodrigues, 1977, p. 54)
A formação de associações ou “sindicatos” foi constante e esta foi a forma organizativa principal neste período do movimento operário brasileiro. Estes “sindicatos”, entretanto, não eram idênticos aos sindicatos burocratizados do período histórico posterior no Brasil ou aos já existentes na Europa. Tratava-se mais de associações de luta e reivindicações, cuja forma organizativa e objetivos eram bem diferentes dos atuais sindicatos. Tais associações possuíam dois objetivos principais: os imediatos, tais como o “melhoramento das condições presentes, a propaganda associativa e a educação” e o objetivo final, “a emancipação integral do trabalhador” (Rodrigues, 1977, p. 65). Eles não participavam nas lutas partidárias, não aceitavam em suas fileiras patrões, mestres e encarregados, bem como não admitiam funcionários pagos. A administração era composta por cinco pessoas: 1 secretário, 1 tesoureiro, 1 revisor de contas e 2 vogais.
A luta operária a nível internacional foi outro incentivo para as greves, associações e movimentos no Brasil. O anarquismo cumpriu um papel importante, não só na divulgação de suas idéias como também no contato com as lutas do passado e do presente na Europa. Antes da grande imigração italiana para o Brasil, já haviam anarquistas italianos em nosso país. Um dos primeiros foi o médico Libero Badaró, que chegou ao Rio de Janeiro em 1826 e em São Paulo fundou o Jornal Observador Constitucional, o segundo da cidade. Em 1830 ele é assassinado e a Rua Ouvidor passa a ter seu nome. Na Rua Libero Badaró se aglutinavam os anarquistas, que em 1894 planejavam a primeira manifestação no dia Primeiro de Maio no Brasil (Rodrigues, 1984). A Revolução Praieira teve como influência as idéias de Proudhon e no Estado de São Paulo foram fundadas Comunidades de Oleiros, que proporcionaram um trabalho educativo com salas de aula para crianças visando a alfabetização, e artísticos, com peças teatrais anticlericais e revolucionárias (Rodrigues, 1984).
Em 1888 chegou em São Paulo Artur Campagnoli, joalheiro, que comprou uma fazenda e fundou uma comunidade, a Comunidade de Guararema, e chamou para viva na fazenda coletiva diversas pessoas de várias origens nacionais, mas prevalecendo italianos e entre suas atividades, além das produtivas, haviam conferências, palestras, recitais de poesias libertárias, teatro social, alfabetização (Rodrigues, 1984). No entanto, com a deposição de Dom Pedro II, os republicanos decretaram a prisão de Campagnoli, que fugiu e depois retornou, continuando seu trabalho de colaboração com a comunidade vizinha.
Outra experiência comunal foi a da Colônia Cecília. Dom Pedro II, devido ao tratamento de saúde que fez na Itália, passou a ter contato com o anarquista Giovani Rossi, que lhe presenteou com o livro Il Commune in Riva al Mare (A Comuna à Beira Mar). Dom Pedro II ofereceu 300 alqueires no Paraná para que ele fundasse sua colônia. Os jornais anarquistas na Itália anunciaram o acontecimento e muitos voluntários apareceram, entre eles Gigi Damiani e Francisco Gattai, que terão forte influência no movimento anarquista em São Paulo. Em 1890 eles chegavam nos navios italianos (Rodrigues, 1984).
“Reunidos, concordaram em construir casas coletivas para os solteiros e casas pequenas, com um mínimo de conforto, para os casados que as quisessem ocupar, em vez das residências coletivas.
Escolhido e decidido com total liberdade de todos e dentro de uma ordem irrepreensível, sem desconfiança, foi dado início à coleta de ferramentas, e em pouco tempo todos trabalhavam, cada um fazendo o que podia e sabia. Dentro em pouco estavam todos acomodados.
Isto feito, nasceu o grande Barracão, lembrando a Casa do Povo de Milão, onde passariam a reunir-se, debater e decidir coletivamente os trabalhos da colônia.
Tudo se resolvia em assembléias abertas, gerais, com a participação dos habitantes da comunidade.
Para cada nova iniciativa, procedia-se a debates, quer se tratasse de construções de mais casas, do moinho de fubá, da montagem da oficina de sapataria ou de carpintaria, bem como para planejar novas plantações, colheitas, trocas, vendas e compras fora da colônia.
Não havia donos, superioridades culturais e profissionais nem figuras inferiores dentro da colônia, além daquela hierarquia que cada componente carregava consigo, subjetivamente. Cada membro da comunidade, adaptado à nova forma de trabalho, lutava lado a lado com seus companheiros, durante o dia de enxada na mão, e, à noite, trocava idéias, debatia interesses coletivos, sem esquecer o anarquismo, desafiado a viver na prática. Um homem ali, valia um homem!
E no topo da mais alta palmeira da Colônia, tremulava ao vento a bandeira vermelha e preta simbolizando o ideal e os anseios que uniam os fundadores da Cecília” (Rodrigues, 1984, p. 24-25).
As dificuldades encontradas, desde os limites individuais expressos nos valores e idéias da sociedade burguesa que os indivíduos carregavam consigo até os naturais que dificultavam o processo produtivo, não foram suficientes para acabar com a experiência da Colônia Cecília. Mas em 1890 Pedro II foi deposto. Os republicanos começaram a atacar a Colônia Anarquista e a primeira forma como fizeram isso foi cobrar altos impostos, o que fez com que os colonos aumentassem sua carga de trabalho e passassem a trabalhar nas fazendas vizinhas (e muitas vezes trapaceados, pois não recebiam o salário combinado) e até o caso de um roubo de dinheiro, arrecadado para pagar os impostos, feito por um integrante da Colônia. A experiência da Colônia Cecília foi destruída pela ação dos soldados republicanos que, sob o pretexto de procurar um criminoso refugiado, destruiu as obras existentes.
Estas primeiras experiências anarquistas no Brasil – que podem ser consideradas utopistas, isto é, constituídas por utopias abstratas e não por utopias concretas, pois para ser uma utopia concreta, que é aquela que vê no presente os germens do futuro, sua possibilidade concreta, os meios de sua realização, segundo Bloch (Furter, 1974), seria necessário não criar comunidades isoladas mas sim participar do movimento vivo e coletivo de transformação social – abriram caminho para o florescimento de uma cultura libertária e anarquista, que se tornaria muito mais próxima ao movimento operário, tal como ocorreu nos anos seguintes.
Já no final do século 19, cresce o número de militantes e agrupamentos anarquistas. Os imigrantes italianos anarquistas formavam centros de cultura social, grupos por afinidades, escolas para alfabetização de operários. Eles incentivaram a formação de associações, e logo surgiram a dos sapateiros, vidreiros, tecelões, operários da construção civil, etc. As profissões com maior número de estrangeiros eram as primeiras  a organizarem suas associações e o anarquismo passou a ser o símbolo da “idéia mestra da luta de classes”, na ótica do governo (Rodrigues, 1984). Os anarquistas conseguiram realizar a sua primeira grande mobilização no dia primeiro de maio de 1898:
“Os anarquistas resolveram comemorar o dia 1º de maio de 1898, aproveitando a chegada de alguns militantes de valor intelectual, remanescentes da Colônia Cecília, de Guararema e da Europa, como Gigi Damiani, Galileu Botti, Artur Campagnoli, Felix Versand, Vitaliano Rotellini (mais tarde diretor de Fanfulha), Ambrósio Chiodi, Artur Breves, Bernardino Ferraz, Valentim Diego, Alfredo Mari  (diretor de Revesglio), eng. Alcebíades Bertolotti, Estevão Estrella e outros anarquistas e socialistas. Foi uma manifestação estrondosa para a época, principalmente em Santos, São Paulo, Jundiaí, Campinas e Ribeirão Preto, com diversos oradores a falar simultaneamente junto às fábricas, nas praças e em recintos fechados” (Rodrigues, 1984, p. 60).
É neste período que há a expansão das publicações e coletivos anarquistas. O anarquista português Neno Vasco passa a dirigir o Semanário O Amigo do Povo, que passa a ser publicado a partir de 1902 e em 1903 surge A Greve, Jornal Anarquista dirigido por Elysio de Carvalho. Alguns grupos de propaganda surgiram e se destacaram, tais como Germinal, Filhos da Era Anarquista e Pensiero e Azione.
O anarcossindicalismo vai se desenvolvendo e surgem os Congressos Operários. Em 1906 foi realizado o primeiro Congresso Operário Brasileiro. 31 associações compareceram neste congresso, cuja “presença majoritária” pertencia aos anarquistas (Segatto, 1987). Deste Congresso surgiria a COB (Confederação Operária Brasileira). A COB colocava como seus objetivos, a defesa dos interesses dos trabalhadores, sua união e solidariedade, o estudo e divulgação dos meios de emancipação do proletariado, a produção de um jornal, intitulado A Voz do Trabalhador, bem como reunir e publicar informações sobre o movimento operário e as condições de trabalho em todo o país (Pinheiro & Hall, 1979).
As lutas operárias começam a buscar o atendimento de diversas reivindicações, sendo uma delas a luta pela redução da jornada de trabalho. O Congresso Operário de 1906 aconselha a luta pela redução da jornada de trabalho e as primeiras reivindicações neste sentido são realizadas. O não atendimento por parte dos patrões provoca as primeiras mobilizações e greves visando sua concretização. Em maio de 1906, uma greve reivindica a jornada de 8 horas na Companhia Paulista de Estrada de Ferro e Mogyana, e a resistência patronal é violenta, mas acaba cedendo e instituindo a nova jornada de trabalho. Os marmoristas declaram greve no Rio Grande do Sul e os Construtores de Veículos decretam uma greve que terá duração de 30 dias, apesar da pressão policial e patronal.
“Mas o grosso do movimento irrompeu no dia 1º de maio de 1907. A Federação Operária de São Paulo, cumprindo a decisão do Congresso do Rio de Janeiro, prepara uma manifestação pública. A polícia resolve proibi-la e os trabalhadores reunem-se na sede daquele órgão máximo do Proletariado. Na saída da magna assembléia, são presos alguns trabalhadores. A greve explode! Em poucos instantes ganha forma de greve geral. Atinge Santos, Rio Claro, Salto de Itú, Campinas, Ribeirão Preto, São José do Rio Pardo, São Roque, Ipiranguinha, Pilar, Bauru, alargando-se rapidamente até o Rio de Janeiro e outros estados do Brasil” (Rodrigues, 1977, p. 119).
O período de 1906-1908 é marcado por uma espiral ascendente do movimento grevista. Em 1906 houve ainda a greve dos 21 dias em Porto Alegre; em 1908 houve a greve das docas de Santos. De 1909 até 1912 houve uma redução do movimento grevista, sendo que a partir de 1912 já se esboça um novo período de ascensão da luta operária. Em São Paulo, em 1912, houve uma greve envolvendo 100 000 operários. A partir deste período há uma retomada parcial do movimento grevista e seu ápice ocorre com a greve de 1917 em São Paulo. Neste ano, a carestia de vida e a crise das condições de trabalho era o principal assunto da imprensa paulista (Lopreato, 1997). Ao lado disso, a adulteração e falsificação de alimentos pelas indústrias alimentícias produziram vários escândalos neste ano. A greve teve início em junho de 1917 e foi um movimento longo, marcado por paralisações, conflitos, confrontos com policiais, mortes e envolvendo milhares de operários. Foi fundado o Comitê de Defesa Proletária, principal órgão aglutinador e organizador do movimento grevista. Tinha como um de seus participantes Edgar Leuronth, que afirmou que “a greve geral de 1917 foi um movimento espontâneo do proletariado” e que não houve a interferência “de quem quer que seja” (apud. Pinheiro & Hall, 1979, p. 227). Leuronth foi um dos nomes mais expressivos do anarquismo brasileiro deste período, participando da União dos Trabalhadores Gráficos e da imprensa operária, nos jornais Terra Livre, Folha do Povo, A Lanterna e fundou um dos mais expressivos jornais da época, A Plebe.
A difusão das greves ocorreu por todo o país. No Rio de Janeiro, cerca de 50 mil operários entraram em greve e confronto com tropas policiais, que também atacou a sede da Federação Operária do Rio de Janeiro, tida pelas autoridades policiais como “centro dos anarquistas” nesta cidade. Também se desencadeou greves no Pernambuco e Rio Grande do Sul (Bodea, 1980). Em 1919, novas greves seriam desencadeadas em São Paulo. O movimento grevista também foi desencadeado no Rio de Janeiro e Porto Alegre. No Rio de Janeiro houve uma tentativa de insurreição armada incentivada por anarquistas, mas a repressão policial impediu o seu desencadeamento (Rodrigues, 1988; Rezende, 1990). A Greve de Maio em São Paulo contou com cerca de 50 mil trabalhadores (Rezende, 1990) e foi acompanhada por greves em Salvador, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Recife.
Os militantes anarquistas exerceram forte influência em todo o movimento operário deste período e duas correntes do pensamento anarquista se destacavam: o anarcossindicalismo e o anarco-comunismo. A corrente anarcossindicalista propunha a ação revolucionária via sindicatos. Seu principal órgão de divulgação foi o jornal O Amigo do Povo e tinha como militantes figuras conhecidas como Edgard Leuronth, Neno Vasco, José Sarmento Marques e Giulio Sorelli (Lopreato, 1997). Em 1905 fundaram a Federação Operária de São Paulo e o anarcossindicalismo era a corrente hegemônica no movimento operário paulista.
A tendência anarco-comunista tinha como principais órgãos de divulgação os jornais Il Risveglio (1889) e La Battaglia (1904). Os militantes mais conhecidos desta tendência foram Gigi Damiani, Oreste Ristori, Alessandro Cerchiai, Angelo Bandoni e Florentino de Carvalho. Eles criticam os anarcossindicalistas e viam com cautela a participação em sindicatos, que poderia, segundo eles, desencadear no reformismo e nas lutas por questões imediatas, o que poderia significar o abandono do objetivo final, a abolição do capitalismo e instauração da anarquia.
Apesar disso, as duas tendências colocavam ênfase na ação direta enquanto estratégia de luta:
“A ação direta contrapõe-se ao parlamentarismo e a qualquer outra forma de representação política. Ela expressa a crença de que o proletariado só se libertará quando confiar na influência da sua própria ação, direta e autônoma, prescindindo de intermediários no conflito capital/trabalho. Isso significa que a classe trabalhadora nada deve esperar das forças externas a ela mesma. É ela que deve criar suas próprias condições de luta e os seus meios de ação. As estratégias de ação direta são o boicote, a sabotagem e a greve. No entanto, a greve é considerada a mais rica em ensinamentos porque explicita os interesses contraditórios entre o patrão e o empregado, rompe a ‘harmonia’ existente entre eles e faz aparecer a luta de classes. Para fazer greve, o trabalhador tem de vencer a si mesmo sobrepondo-se à alienação, ao seu costume de submissão e passividade diante do patrão que se quer inatingível. Como ação coletiva, desenvolve o sentimento de apoio mútuo, estreita os laços de solidariedade e ensina aos trabalhadores que para melhorar a sua sorte e transformar a sociedade é preciso a união dos esforços de todos” (Lopreato, 1997, p. 13).
No entanto, a compreensão da radicalidade e força do anarquismo brasileiro deste período nos remetem ao contexto sócio-histórico em que emergiu. A radicalidade e proeminência do anarcossindicalismo não podem ser dissociadas do período em que isto aconteceu. Os sindicatos eram instituições em formação, nascidos na/da luta contra o capital, e oriundas das associações operárias anteriores. O processo de burocratização dos sindicatos, que ocorre no período posterior a 1919, teve duas raízes importantes. Aqui se repete o ocorrido na Europa alguns anos antes, dependendo do país. Os sindicatos nascem na luta contra o capital e tendo a oposição deste, mas, posteriormente, através do Estado capitalista, sua legislação e regularização, exerce-se uma ação burocratizante sobre estas instituições e isto é reforçado pela ação dos partidos políticos, especialmente, mas não unicamente, os que se dizem de “esquerda”, a começar pelos partidos comunistas e socialistas. Após 1919, tanto o Estado capitalista, quando os partidos políticos irão exercer este papel burocratizante. O PCB irá ter um papel fundamental neste sentido, pois o seu crescimento ocorreu justamente com o refluxo do movimento operário e a desilusão que levou muitos anarquistas a trocarem o anarquismo pelo bolchevismo (o que foi facilitado, sem dúvida, pela vitória bolchevista em 1917 na Rússia).
O anarco-comunismo realiza a crítica ao anarcossindicalismo tal como ele existia naquela época e, naquele contexto, a grande questão era a luta se situar apenas nas reivindicações imediatas, abandonando o objetivo final, a transformação social. Neste sentido, o anarco-comunismo também cumpriu um papel importante nas lutas operárias do início do século 20, ao lado do anarcossindicalismo mas buscando manter vivo a essência da luta libertária.
O processo de desenvolvimento capitalista no Brasil, com o aprofundamento de suas instituições (Estado, legislação, etc.) e o amplo processo de burocratização e mercantilização das relações sociais, abre um novo período de lutas sociais e de fortalecimento das forças conservadoras em nosso país. Os sindicatos e os partidos são apenas os exemplos mais visíveis de todo este processo que abrange, cada vez mais, o cotidiano dos trabalhadores, tal como o lazer, o futebol, o tempo livre, que passam cada vez mais a ser apropriado pela burguesia e suas instituições, no qual o último reduto de autonomia e liberdade proletária se vê controlado, mercantilizado e burocratizado. Ao invés de jogar futebol de várzea com os demais trabalhadores, o operário passou a ir aos grandes estádios de futebol ver o espetáculo futebolístico, isto é, de agente ativo passa a agente passivo, de participante a espectador. As outras formas de lazer, antes predominante, foram sendo paulatinamente destruídas, restringidas. O piquenique e seu caráter coletivo acaba se tornando cada vez mais uma raridade. A imprensa operária não consegue competir com os grandes jornais burgueses que com toda a sua estrutura proporciona uma homogeneização da informação, de acordo com os interesses dominantes. O operário e o militante deixam de ser produtores de notícias para serem leitores. Estes poucos exemplos mostram a mudança social e o contexto desfavorável ao anarquismo e ao socialismo libertário no período pós-1919, o que fica ainda mais forte a partir de 1930, como o chamado “Estado Novo”, a revolução burguesa tardia no Brasil.
No entanto, a riqueza das lutas operárias e a contribuição anarquista não só trazem lições, memórias, escritos, laços afetivos de velhas lutas, mas também a visão da possibilidade de se re-conquistar a autogestão de suas próprias lutas no sentido de concretizar a autogestão social, mesmo nas condições mais adversas. A luta de classes é esse revezamento constante entre apropriação, expropriação e reapropriação da luta operária. O movimento operário foi expropriado de sua autogestão das lutas, mas sempre acaba reconquistando-a, e nessa luta permanente, almeja abolir esta situação com a concretização da transformação radical e instauração de uma nova sociedade, fundada na autogestão social.



Referências Bibliográficas
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* Professor da UEG – Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB.

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