MEMÓRIA E MOVIMENTOS SOCIAIS
Nildo
Viana
Resumo:
Os movimentos sociais
ganham cada vez mais espaço nas pesquisas sociológicas. O desenvolvimento da
compreensão dos movimentos sociais requer avanços no sentido de desbravar novos
aspectos em sua análise. Esse é o caso da relação entre memória social e
movimentos sociais. A memória social é um tema sociológica também antigo,
embora venha recebendo um interesse renovado mais recentemente e que remete ao
problema dos grupos e classes sociais e seus discursos, produzidos socialmente,
sobre o passado. Os discursos sobre o passado, por sua vez, são perpassados por
lutas. Os movimentos sociais, com toda sua complexidade, divisões, mutações,
também precisam resgatar sua memória e há uma luta nesse processo de recordação
das suas ações. O nosso tema é, por conseguinte, a relação entre memória social
e movimentos sociais. O objetivo é analisar o significado da memória social
para os movimentos sociais e suas lutas. Para efetivar tal análise,
utilizaremos o método dialético visando reconstituir, a partir da categoria de
totalidade, essa relação. Utilizaremos, como ilustração, o caso da rebelião
estudantil de maio de 1968, para mostrar a luta em torno da memória. Os resultados
da análise apontam para a percepção da luta em torno da memória e do caráter
seletivo das recordações a partir de distintas perspectivas de classe. O caso
do maio de 1968 em Paris mostra como esse momento de radicalização do movimento
estudantil é recordado sob diversas formas, dependendo de que o interpreta.
O tema que abordaremos
é a relação entre memória social e movimentos sociais. O objetivo é analisar o
significado da memória social para os movimentos sociais e suas lutas. Os
movimentos sociais ganham cada vez mais espaço nas pesquisas sociológicas. O
desenvolvimento da compreensão dos movimentos sociais requer avanços no sentido
de desbravar novos aspectos em sua análise. Esse é o caso da relação entre
memória social e movimentos sociais. A memória social é um tema sociológico
também antigo, embora venha recebendo um interesse renovado mais recentemente e
que remete ao problema dos grupos e classes sociais e seus discursos,
produzidos socialmente, sobre o passado. Os discursos sobre o passado, por sua
vez, são perpassados por lutas.
Para efetivar tal
análise, utilizaremos o método dialético visando reconstituir, a partir da
categoria de totalidade, essa relação. O método dialético foi desenvolvido por
Marx (1983; 1988) e retomado por outros autores (KORSCH, 1977; LUKÁCS, 1989). O
método dialético é uma ferramenta intelectual para reconstituir o real no
pensamento (VIANA, 2007), buscando superar o ponto de partida natural (a
“intuição”, a consciência imediata dos fenômenos) através do processo de
abstração, visando descobrir as determinações dos fenômenos pesquisados, que
aparece no final da pesquisa como concreto-determinado (MARX, 1983). Nesse
sentido, é preciso destacar que o fenômeno é sempre uma totalidade, inserida
numa outra totalidade. As ideias, por exemplo, fazem parte da totalidade que é
a sociedade e, por isso, não são meros epifenômenos, são também determinações
do processo histórico (KORSCH, 1977). Assim, os fenômenos devem ser analisados
como totalidades e envolvidas em totalidades mais amplas. Isso significa que,
para o método dialético, os fenômenos não podem ser isolados, separados da
totalidade. O uso do método dialético para analisar a relação entre memória
social e movimentos sociais aponta para compreender estes dois fenômenos como
totalidades inseridas na totalidade da sociedade capitalista e, por
conseguinte, sendo afetados por ela.
Assim, é preciso
entender os conceitos de memória social e movimentos sociais para poder avançar
no processo analítico da relação entre esses dois elementos. A questão da
memória é discutida em diversas ciências, recebendo destaque especial na
psicologia e na filosofia, e acabou se inserindo nas análises sociológicas
através da ideia de uma “memória coletiva” ou “memória social”, bem como na
historiografia. Assim, os estudos pioneiros de Bergson (1999), Blondel (1960) e
outros, abriram espaço para as posteriores discussões sociológicas sobre
memória coletiva ou social (HALBWACHS, 1990; BOSI, 1995; SANTOS, 2003;
FENTRESS; WICKHAM, 1994; VIANA, 2006).
Para avançar nessa
discussão, julgamos necessário realizar a distinção entre memória individual,
memória social e memória coletiva (VIANA, 2019a). A memória individual, em
nossa concepção, é uma consciência latente, ou seja, uma possibilidade
suscetível de se realizar, uma potencialidade, que é ativada pela consciência,
que realiza uma evocação de lembranças. Em outras palavras, é o conjunto de
lembranças gravadas na mente humana e que são recordadas de acordo com as
necessidades e mecanismos de seleção gerado por ela. A memória social é o
conjunto de lembranças (relativas, obviamente, ao passado) existentes na
sociedade, e expressas na cultura, ou seja, no conjunto de produções
intelectuais de uma determinada época, bem como nos bens materiais (construções,
objetos, etc.), indivíduos (quando exteriorizam sua memória individual ou
quando estão vivos e são portadores de memória), meio ambiente em sua relação
com a sociedade, etc. A memória coletiva, por sua vez, já aponta para a memória
de classes e grupos sociais. Ela se refere ao conjunto de lembranças que são
dessas classes e grupos[1]. O nosso foco aqui será a
memória social, ou seja, ao processo mais amplo a nível global de uma
sociedade.
Outro conceito
importante para nossos objetivos é o de movimentos sociais. Eles são
compreendidos aqui como sendo “movimentos de grupos sociais” (JENSEN, 2014;
VIANA, 2016). Existem diversas outras definições de movimentos sociais (ALONSO,
2009; GOHN, 2002; VIANA, 2016), mas não poderemos apresentá-los por questão de
espaço. Essa concepção de movimentos sociais aponta, também, para a
diferenciação entre grupos sociais e movimentos sociais. Os grupos sociais
geram movimentos sociais, mas nem todos os indivíduos de um grupo social
participam do movimento social gerado por ele. O movimento negro é um movimento
social do grupo social composto pelos indivíduos negros, mas apenas os seus
ativistas da causa negra fazem parte do movimento. Outro elemento importante é
distinguir o movimento social de suas ramificações. O movimento negro gera um
conjunto de organizações, tendências, etc., tais como a Frente Negra, o
Movimento Negro Unificado, o Movimento Negro Socialista, entre diversas outras
organizações. Essas organizações não são, cada uma, um movimento negro e sim
ramificações dele.
Os movimentos sociais
são, portanto, complexos, marcados por divisões internas, subdivisões,
distintas tendências, concepções (ideologias, doutrinas, representações, etc.).
A questão da memória assume um significado importante para os movimentos sociais.
A memória faz parte do processo de resgate das lutas, conquistas, experiências,
por parte do movimento social, gerando um conjunto de elementos que reforçam a
luta. Assim, a figura de Zumbi dos Palmares, no caso do movimento negro, assume
importância, bem como os Quilombos (e surgiu, baseado na evocação de lembranças
dessa forma de resistência ao escravismo colonial, a proposta do
“quilombismo”).
A memória coletiva nos
movimentos sociais não só resgata a história de um grupo social e suas lutas,
mas é um elemento de aglutinação e reforço da luta deste grupo, entre outros
significados que adquirem no processo de lutas sociais. Porém, a complexidade
dos movimentos sociais se manifesta em suas divisões e tendências. O movimento
feminino, por exemplo, pode resgatar personagens do passado, mulheres que se
destacaram política ou intelectualmente, ações ou organizações, mas cada
resgate é uma opção e uma posição que reforça determinada tendência. Uma coisa
é resgatar Sylvia Pankhurst, outra coisa é resgatar o sufragismo. O resgate do
sufragismo por um setor do movimento feminino significa uma posição política de
crença na democracia representativa, tática de uso do processo eleitoral e um
conjunto de valores e concepções. O resgate de Sylvia Pankhurst (filha e irmã
de duas das mais destacadas representantes do sufragismo, com as quais rompeu
política e pessoalmente) já aponta para a inseparabilidade entre lutas
femininas e lutas proletárias e recusa do parlamentarismo. Isso quer dizer que
há, no interior dos movimentos sociais, uma luta em torno da memória e que cada
recordação ou cada esquecimento, é uma seleção que tem um significado político.
Esse significado político, por sua vez, se insere no conjunto da sociedade,
estando envolvido nas lutas de classes, concepções políticas e ideológicas,
entre outros processos que permitem sua explicação.
A memória social é, por
conseguinte, palco de lutas. Nesse contexto, podemos colocar a questão das
formas de acessar a memória social. A primeira forma é a institucionalizada,
que é realizada, na sociedade capitalista, pelo aparato estatal. Este, através
de instituições (como as voltadas para preservação do patrimônio histórico,
museus, etc.) e datas comemorativas, entre outras formas, realiza uma
rememoração do passado de acordo com seus interesses, tanto os gerais
(reprodução do capitalismo) quanto mais concretos (governos, etc.). O capital
comunicacional (grandes redes de TV, Rádio, grandes jornais, etc.) é outro
determinante na rememoração hegemônica na nossa sociedade. Por outro lado, os
intelectuais, com destaque para os historiadores, também são responsáveis pela
versão do passado que é interiorizada nas memórias individuais[2]. Desta forma, temos uma
versão da história que é, geralmente, a história dos vencedores (BENJAMIN, 1994).
A luta em torno da
memória ocorre via rememoração. Rememorar é o ato de lembrar o passado. A
rememoração é um processo seletivo, no qual se resgata/recupera da memória
social (o conjunto de lembranças existentes numa determinada sociedade e época)
aquilo que é de interesse de quem rememora. Isso ocorre através da
interiorização que os indivíduos fazem da memória social, ou seja, através de
sua consciência (determinada por sua personalidade) ele resgata/recupera
acontecimentos, ideias, etc., e o reforça sua reprodução social. Esse
indivíduo, estando em determinadas instituições, tende a fazê-lo de acordo com
os interesses desta, realizando a sua recuperação. A rememoração também ocorre
quando o indivíduo exterioriza sua memória individual, ou seja, torna público
suas recordações pessoais[3]. Nesse momento, tais
recordações tornam-se parte da memória social.
A rememoração gera
versões da história ou sua reconstituição. A reconstituição da história é uma
rememoração que se mantém, em sua essência e totalidade, fiel aos
acontecimentos. As versões da história, por sua vez, são invenções memoriais,
intencionais ou não. Assim, percebemos que a rememoração pode assumir várias
formas. Ele pode ser um resgate da história, quando extrai da memória social
aquilo que é verdadeiro, ou pode ser uma recuperação, ou seja, readquirir a
posse da memória, que foi perdida[4]. Uma outra forma é a
apropriação, na qual um acontecimento, indivíduo, etc. é apropriado por uma
concepção, ideologia, etc. A apropriação da memória é um processo que muitas
vezes é realizado sob forma inintencional, mas também pode ser intencional. Ela
é, independente da forma, uma deformação, uma falsificação da história, mais ou
menos intensa, dependendo de quem o faz, quais objetivos e base apropriadora.
Assim, a luta pela
memória se manifesta através da rememoração como resgate e como recuperação, ou
seja, a partir da perspectiva burguesa (ou burocrática) e da perspectiva
proletária, respectivamente. A perspectiva de classe determina se o que ocorre
é resgate ou recuperação, ou, ainda, apropriação. No entanto, é possível
desvios, seja pelo motivo de que a tentativa de resgate foi realizado por um revolucionário
ambíguo ou num contexto desfavorável (acesso a poucas informações, influência
de interpretações deformadoras, etc.), seja por que o agente da recuperação
tenha contradições e uma honestidade intelectual que faz retomar os
acontecimentos e outras lembranças de forma mais fidedigna.
Esse foi o caso da
Comuna de Paris, a primeira experiência histórica de revolução proletária.
Artistas como Zola e outros execraram esse acontecimento extraordinária, bem
como caluniaram os operários parisienses (VIANA, 2011; LIDSKY, 1971; VALLÉS,
1992), bem como historiadores (PINHEIRO CHAGAS, 1872). Essa não é uma
recuperação crítica, na qual se coloca o acontecimento revolucionário como
sanguinário e desumano. O domínio do acontecimento foi perdido concretamente,
mas idealmente ele é recuperado ao ser execrado. Aqui estamos no reino da
mentalidade burguesa manifesta de forma mais cristalina. A forma clássica de
recuperação foi realizada por Lênin (1987; VIANA, 2011), na perspectiva
burocrática. A Comuna de Paris é elogiada, mas, ao mesmo tempo, criticada. A
crítica aponta para a falta de liderança, de decisão, a falta da tomada do
poder estatal. Essa ladainha será repetida pelos trotskistas, com seu eterno
discurso da falta de “direção revolucionária” (LUQUET, 1968). Por outro lado, a
perspectiva proletária se manifestou através de Marx, que não fez apenas
apologia, mas mostrou o seu significado revolucionário (VIANA, 2011; MARX, 2011)[5], “a forma política
finalmente encontrada de emancipação proletária” (MARX, 2011).
A relação entre memória
e movimentos sociais é semelhante. Cada grupo social gera lembranças coletivas,
que se conservam ou se perdem com o passar do tempo. Porém, os movimentos
sociais são apenas o “grupo em fusão”, o setor ativista dos grupos sociais. Assim,
nos grupos sociais temos a exteriorização da memória individual que gera uma
memória social que pode ser posteriormente resgatada ou recuperada, bem como
outras formas de transmissão memorial, como obras, bens materiais, etc. Alguns
ativistas dos movimentos sociais realizam o mesmo processo. Porém, uma grande
parte realiza o processo inverso, de buscar interiorizar a memória social a
respeito do grupo e do movimento social. No entanto, ano apenas eles fazem
isso, pois o aparato estatal, os meios oligopolistas de comunicação, entre
outros, também realizam esse processo e geram uma memória social que,
posteriormente, pode ser interiorizada pelos grupos ou movimentos sociais.
Nesse sentido, a luta pela memória é constante nos movimentos sociais, bem como
nos grupos e classes sociais e na sociedade em geral.
A memória de grupos
sociais foi pouco pesquisada e pouco rememorada. Além dos estudos de Halbwachs,
pouco se tratou disso, tal como Fentress e Wickham, que abordam num item de um
capítulo do livro sobre Memória Social, a “memória das mulheres”. A memória dos
movimentos sociais já foi um pouco mais trabalhada, seja pelos ativistas, seja
pelos pesquisadores. Sader (1995), por exemplo, traz elementos de memória de
ativistas dos movimentos sociais, tal como o “Clube das Mães”, uma ramificação
do movimento feminino.
O primeiro elemento é
entender que memória coletiva de classe se distingue de memória coletiva de
grupo. As classes sociais existem a partir da sua posição na divisão social do
trabalho e os grupos existem a partir de uma unidade que emerge a partir de
diferentes processos, como os corporais, situacionais, culturais. Uma classe
social tem uma unidade de interesses diante de outra classe social (MARX;
ENGELS, 1982), enquanto que os grupos sociais possuem divisões de interesses,
inclusive pela maioria deles ser policlassista[6]. O foco aqui são os
movimentos sociais, e por isso vamos abordar mais este caso.
Os movimentos sociais
realizam o mesmo processo que o aparato estatal em relação à memória. Eu
recordo que, uma vez, conservando com uma amiga militante do movimento negro, a
quem solicitei um texto para um jornal de curso de graduação que eu coordenava,
sobre a questão da mulher e ela disse: “sim, posso fazer, posso começar com
Rosa Luxemburgo”. A lembrança de Rosa Luxemburgo era interessante, mas o motivo
de expor minha recordação é que o texto solicitado foi sobre a questão da
mulher ou o movimento feminino e não sobre indivíduos e logo emerge uma figura
feminina de destaque. Isso revela um procedimento comum que é a criação do
memorável.
Os ativistas dos
movimentos sociais tendem a querer criar o memorável: indivíduos,
acontecimentos, lutas, etc. A criação do memorável é, muitas vezes, acompanhada
pela comemoração. Assim como o movimento operário, os movimentos sociais querem
rememorar os grandes momentos de sua história, gerando datas comemorativas. O
movimento negro brasileiro, por exemplo, recorda Zumbi dos Palmares, produz o
“Dia da Consciência Negra” (que é dia 20 de novembro ao invés da data oficial,
13 de maio, “Dia da Abolição da Escravidão”).
A rememoração por parte
dos ativistas assume, muitas vezes, a forma de adaptação memorial[7]. Essa adaptação memorial é
muitas vezes apologética ou projetiva. A forma apologética se constitui a
partir da supervaloração de indivíduos, acontecimentos, ideias, etc. Isso, às
vezes, está mais ou menos de acordo com o significado político de determinado
indivíduo, mas na maioria das vezes é exagerado. O caso de Che Guevara,
santificado por uns e demonizado por outros (MOREIRA, 2019), é um exemplo desse
processo, no qual a realidade concreta e os seres humanos reais e históricos,
são substituídos por imagens apologéticas. A forma projetiva é aquela na qual
os ativistas de hoje, ou com suas concepções atuais, reinterpreta os
acontecimentos e ideias a partir da projeção de seus desejos, suas ideias ou
teses, etc. Essa adaptação memorial geralmente é, com exceção quando assume a
forma projetiva, uma recuperação, mesmo quando feita por ativistas
ex-ativistas.
A rememoração das lutas
de classes, dos movimentos sociais, entre outros processos, também é realizada
pelo aparato estatal, pelas instituições, pelos intelectuais, etc. O
intercâmbio entre memória coletiva e memória social é constante. A memória
oficial visa recuperar a memória coletiva e inseri-la em sua versão da história.
A memória coletiva, muitas vezes, se constitui a partir do resgate de elementos
da memória social, realizando sua interiorização ou reinterpretação. Em certos
casos, quando ultrapassa os mecanismos recuperadores e as versões deformadoras,
é resgate. Isso faz parte da luta pela memória. Vamos abordar os mecanismos
recuperadores da memória a seguir, tratando do caso concreto do Maio de 1968.
Após essa breve
reflexão sobre a memória coletiva e os movimentos sociais, passamos para a
análise de um caso concreto. Utilizaremos, como ilustração o caso da rebelião
estudantil de maio de 1968, para mostrar como ocorre concretamente a luta em
torno da memória. Quem recorda o maio de 1968 hoje? Por quais motivos e com
quais objetivos? E de que forma? Existem análises que focalizam a questão da
relação entre movimento estudantil e movimento operário, seja para afirmar que
se tratou de uma verdadeira revolução (WOODS, 2016), seja para dizer que a
autogestão nas fábricas não passa de um “mito” (PORHEL, 2000). Assim, esse
acontecimento histórico pode ser apresentado com uma luta juvenil cuja questão
básica era a sexualidade (HOBSBAWN, 1999), como coisa de “estudantes
esquerdistas” (NIETO, 1971), ou, ainda, como uma luta reivindicativa que se
torna revolucionária (BRINTON, 2018), entre diversas outras formas de rememoração.
Assim, as “vidas posteriores” do Maio de 1968 (ROSS, 2008) mostram uma
recuperação do movimento por seus adversários no sentido de lhe retirar sua
radicalidade e, por outro, aqueles que recordam essa luta para justamente
inspirar lutas radicalizadas no presente e para isso realizam o seu resgate.
Essa rememoração do
movimento de maio de 1968 via análises sociológicas (TOURAINE, 1970) ou
marxistas (VIANA, 2019b), ou através do trabalho historiográfico (HOBSBAWN,
1999), autobiográfico (THIOLLENT, 1998) ou narrativo (BRINTON, 2018) efetivam
processos seletivos e possuem impacto na memória social do movimento estudantil
atual e das lutas sociais em geral. A sua variedade se reproduz no interior
dele, bem como distintos usos. A memória social do Maio de 1968 dos
intelectuais expressam distintas perspectivas e por isso apresentam distintas
seleções, interpretações, etc. Isso ajuda a recompor a memória social dos
ativistas do movimento estudantil atual, pois estes possuem sua memória desse
evento histórico a partir das informações e leituras, pois eles não viveram
naquela época e não participaram dele. É uma memória fundamentada não na
experiência e sim na herança cultural deste acontecimento histórico. Isso
significa que os ativistas do movimento estudantil atual, bem como outros
(militantes de grupos políticos, ativistas de outros movimentos sociais, etc.),
vão selecionar qual dessas rememorações é legítima, verdadeira e isso não será
algo homogêneo, pois distintas perspectivas de classe estão na base dessas
escolhas.
Assim, observamos que
há uma luta em torno da memória do Maio de 1968 e esta é marcada pela
seletividade das rememorações a partir de distintas perspectivas de classe,
tanto na análise dos intelectuais quanto na recepção de ativistas do movimento
estudantil. O caso do maio de 1968 em Paris mostra como um momento de
radicalização do movimento estudantil é rememorado sob diversas formas,
dependendo de quem o interpreta. Isso ocorre também no caso de outros eventos
históricos que possuem importância para outros movimentos sociais. O caso do
Maio de 1968, no entanto, se destaca pela importância histórica que teve.
Tão logo se encerra o
Maio de 1968, que segundo setores da versão oficial se encerra, “oficialmente”,
no dia 30 de maio, e, para outros, somente em fins de junho, enquanto que
outros já apontam para uma duração muito mais longa, começa a se apresentar testemunhos
e depoimentos[8].
As análises se iniciam durante o próprio acontecimento, como ocorre quase
sempre. Elas, posteriormente, tornam-se alvos de análises e interpretações. O
encerramento do evento rememorado pode ser acompanhado pela amnésia social,
para utilizar linguagem de Jacoby (1977), ou por sua rememoração, que pode
assumir, como já colocamos, várias formas. No caso do Maio de 1968, houve um
processo ininterrupto de rememoração. Ele se tornou memorável e motivo de
comemoração. A cada dez anos, se comemora o maio de 1968. E o curioso é que ele
é comemorado por amigos e inimigos, pela memória oficial e por memórias
coletivas diversas. É isso que permitiu a denúncia das vidas posteriores do
Maio de 1968 (ROSS, 2008).
A limitação de “Maio”
ao mês de maio tem diversas repercussões. O recorte temporal reforça uma
redução geográfica da esfera da atividade a Paris, mais concretamente ao Bairro
Latino [Quartier Latin – NV], e, ao mesmo tempo, se baseia nesta limitação. De
novo, desaparecem da cena os operários em greve de fora de paris e o resto da
França e se evaporam os exitosos experimentos de solidariedade entre operários,
estudantes e camponeses das províncias. Segundo algumas versões, nas províncias
se produziram manifestações mais violentas e sólidas que em Paris em maio e
junho, porém isto não se apresenta na versão oficial. Se ignora desta forma o
que se viveu nas fábricas de Nantes, e longe de Paris, assim como toda uma
constelação de práticas e ideias sobre a igualdade que não podem ser
assimiladas pelo atual paradigma liberal/libertário que muitos atores de maio
adotaram (ROSS, 2008, p. 36).
A obra de Ross é um
marco para quem quer discutir a relação entre Maio de 1968 e suas “vidas
posteriores”, ou seja, as suas rememorações. A autora aponta para algo
importante, a luta pela memória, e mostra algumas das formas de rememoração
desse acontecimento histórico que foi um divisor de águas na sociedade moderna
(VIANA, 2009). Porém, ela ainda o faz, apesar de sua radicalidade e
criticidade, sem superar totalmente as ideias de sua época, e, por conseguinte,
a sua própria rememoração do Maio de 1968 acaba sendo uma adaptação memorial
projetiva, embora trazendo o resgate de elementos importantes desse
acontecimento[9].
Ross apresenta o
conjunto de rememorações do Maio de 1968, o peso da televisão e suas
comemorações a cada dez anos, bem como daqueles que ela chama de “ex-esquerdistas”,
ou seja, os militantes radicais da época ou intelectuais engajados que
abandonaram a adesão ao movimento contestador, as publicações posteriores (e
círculos intelectuais oriundos desse evento, tal como a revista Revoltas
Lógicas), os intelectuais conservadores e suas críticas e sua condenação. A
tentativa do sociólogo Raymond Aron de exorcizar o Maio de 1968, bem como
outros, é apresentado e mostra uma das formas de rememoração. Ross (2008) não
esquece as exceções e aqueles que tentavam resgatar o Maio de 1968 da
recuperação.
Como não é possível
analisar o conjunto das rememorações desse acontecimento histórico, então
teremos que apenas apontar e analisar algumas delas. Uma
das versões mais comuns do Maio de 1968 é atribuir este evento a um problema da
juventude, conflito de gerações, entre outros processos (ROSS, 2008). Outra
versão bem conhecida é a que a busca a reduzir a uma questão de mudança
cultural e nos costumes, especialmente a questão da sexualidade (ROSS, 2008).
Essas duas interpretações são formas de recuperação do Maio de 1968. Por esse
motivo vamos tomar essas duas rememorações como base para a nossa crítica dessa
recuperação, no sentido de que, ao criticar a deformação, contribuímos com o
resgate da memória social e da história real.
Jean-Franklin Narot
observou que a rememoração do Maio de 1968 pela memória oficial tem semelhança
com o modo de relatar da atividade de sonhar, apesar de considerar que faz isso
com prudência, pois desconfia do uso de conceitos para além da sua esfera de
atividade. Mas, a partir dos termos psicanalíticos para explicar os sonhos, ele
aponta a forma como se realiza a deformação do Maio de 1968. Segundo Narot, os
sonhos usam quatro mecanismos de deformação:
1) A condensação (um
nome, uma “personalidade”, contém, representa, reabsorve uma multidão de
atores, seus atos e seu pensamento); 2) o deslocamento (substituição das
questões levantadas no Maio de 1968 por problemáticas secundárias ou
heterogêneas; confecção de pseudorresponsabilidades dos movimento escolhidos
preferencialmente entre que combatiam, eram periféricos ao mesmo ou
simplesmente anódinos); 3) A figurabilidade (preponderância de imagens na
conceituação e análise, mas também recodificação de 68 através de toda uma
bateria de referências imaginárias contemporâneas recorrentes: o “retro”, o
“idealismo-generoso-porém-ingênuo”, a “violência”, a “moda”, o
“individualismo”, a “comunicação”, etc.; e, por último, 4) a elaboração secundária
(reescrita linear de “acontecimentos”, imputações causais realizadas com
demasiada naturalidade, redução a finalidade reivindicativas, uma clara
consciência postulada dos atos e das apostas de então, positivações múltiplas,
coerência fática, integração na ordem da política, inteligibilidade globalmente
dominada) (NAROT, 1988, p. 181).
Podemos observar que as
análises que rememoram o Maio de 1968 a partir do “conflito de gerações” ou
“problema juvenil”, bem como aqueles que o reduzem a uma questão cultural e de
sexualidade, utilizam todos alguns destes elementos apontados por Narot (1988).
Não que a juventude não tenha tido nenhuma relação com o processo. Sem dúvida,
os jovens e a condição juvenil, especialmente na sociedade capitalista francesa
após 1960, teve um significado político importante. Contudo, tanto a condição
juvenil quanto a estudantil estão relacionadas com o Maio de 1968, mas não
foram essa situação de grupo social que fez emergir o Maio de 1968 e, muito
menos, lhe deu sentido. A gênese do Maio de 1968 remete ao problema da
acumulação de capital e projeto de reforma da universidade, um elemento
derivado, que atingiu diretamente os estudante e promoveu manifestações, que,
depois se radicalizaram e se transformaram numa rebelião. A questão dos
costumes teve um peso muito mais restrito, bem como a sexualidade. Sem dúvida,
havia elementos, mas nem são como muitos depois quiseram fazer crer, nem ganhou
um destaque no conjunto das lutas e das mudanças.
As rememorações do Maio
de 1968 como questão juvenil ou de conflito de gerações, ou cultura e sexual,
só não efetiva o que Narot denominou “condensação”. Sem dúvida, grande parte
das rememorações realizam a condensação, ao destacar e tornar Daniel
Cohn-Bendit ou Alain Geismar os “líderes” do movimento, bem como outros que
apontam para o significado de De Gaulle, o que remete para a rememoração que
conta a história dos vencedores. Porém, nessas versões da história ocorre o deslocamento
da luta estudantil e operária e suas exigências radicais para questão meramente
juvenil, estudantil, cultural, sexual. A figurabilidade aparece com a
criação imaginária contemporânea que supervalorar a sexualidade e outros
processos. A elaboração secundária aparece com a transformação dessas questões
em questão fundamental, gerando uma imputação causal inexistente.
Em síntese, o que
ocorreu nesse caso foi uma adaptação memorial que realiza um conjunto de
processo que exorciza a radicalidade do movimento, as suas exigências mais
profundas de transformação, ou mesmo, em seus setores mais moderadas, as
reivindicações concretas, substituindo-as por coisas imaginárias, inexistentes
na época ou muito marginais, ou, ainda, que tiveram espaço antes da eclosão da rebelião.
Essa adaptação memorial serve ao propósito de promover uma enfatização
excessiva em certos elementos e assim desviar da determinação fundamental e
processos políticos mais amplos e importantes.
Desta forma, é possível
perceber que a luta pela memória em relação ao Maio de 1968 é apenas um
capítulo de uma obra histórica muito mais vasta que se tem como palco a
história da humanidade e, mais recentemente, a história da modernidade. A
rememoração fica entre o resgate e a recuperação e isso atinge todos os
movimentos sociais, bem como os movimentos políticos e de classe. Nesse
contexto geral, a luta pela memória faz parte da luta mais ampla pela
conservação ou pela transformação radical e total das relações sociais. Isso
revela, por sua vez, a importância da discussão sobre memória e movimentos
sociais, bem como o resgate das lutas sociais do passado. O “enquadramento da
memória” gera o amnésia social e essa pode não só permitir o retorno da
barbárie (ADORNO, 1995), como é mais um obstáculo para a superação da
selvageria atual.
Referências
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[1] A relação entre memória e
grupos sociais foi realizada, pioneiramente, na sociologia, por Halbwachs
(1990) e depois recebeu vários tratamentos. Fentress e Wickham (1994) usam o
termo “memória social” e aborda classes sociais (camponeses, proletários) e
grupos sociais (mulheres). Assim, alguns preferem utilizar “memória coletiva” e
outros “memória social”. A nossa opção foi utilizar os dois termos (como alguns
fazem, mas sem realizar distinção) sob forma distinta: a memória social é a do
conjunto da sociedade e a coletiva de classes, grupos, etc., no seu interior,
pois existem diferenças entre ambos na realidade concreta e por isso deve ser
expressa conceitualmente (VIANA, 2019a).
[2] “O indivíduo não pode “recordar” o que não viveu. O
que ele pode fazer é rememorar, ou seja, trazer elementos da memória social de
volta, através da interiorização” (VIANA, 2019a, p. 37).
[3] Isso pode ser feito
através de autobiografia, publicação (ou não, mas que pode se tornar público
após a morte) de diário, crônicas divulgadas em meios de comunicação,
depoimentos para entrevistadores, agentes policiais, jornalistas, etc.
[4] Sem dúvida, aqui tratamos
de recuperação memorial. A recuperação memorial é aquela na qual quem detinha o
seu domínio a perdeu e a retoma novamente. Nesse sentido, é a classe dominante
que possui a posse da memória social e se acontecimentos e exteriorizações
memoriais antagônicas surgem em determinado momento, após a derrota da
experiencia revolucionária ou lutas radicalizadas, ela a retoma, a recupera. No
sentido mais geral (indo além da memória), o termo “recuperação” ganhou sentido
semelhante através da chamada Internacional Situacionista (KHAYATI, 2019). No
sentido comum, a palavra resgate tem vários significados, tal como pagar
dívida, libertar do cativeiro, etc. Aqui assume o significado de libertar
lembranças que estavam esquecidas pelo domínio da memória social pelos
detentores do poder, sendo apenas resgate memorial. O resgate memorial tem um
sentido positivo, significar trazer de volta lembranças verdadeiras e a
recuperação memorial é algo negativo, significa o contrário, ou seja, sufocar
lembranças verdadeiras transformando-as em falsas.
[5] Um exemplo de desvio seria
o caso de Karl Korsch (2011a; 2011b), que, por desânimo com as derrotas
proletárias e aproximação temporária com o anarcossindicalismo, acabou
ambiguamente aceitando a interpretação leninista de Marx a respeito da Comuna
de Paris (VIANA, 2011).
[6] Os negros, as mulheres e
os estudantes, entre inúmeros outros grupos sociais, são policlassistas, pois
os indivíduos que os compõem pertencem a várias classes sociais. Os grupos
sociais monoclassistas são geralmente os conservadores, em alguns casos, e os
das classes inferiores, tal como os sem-teto tendem a ser todos do
lumpemproletariado, no significado mais amplo do termo (BRAGA, 2013; VIANA, 2018).
Sobre a diferença entre movimentos sociais e movimentos de classe, cf. Viana
(2016a; 2016B).
[7] “O termo adaptação significa, nas representações
cotidianas, um processo de modificação visando que algo se ajuste a uma nova
situação, contexto, padrão, etc. A adaptação memorial é o processo no qual a memória,
o conjunto de lembranças do indivíduo, se adapta a uma nova situação social,
condição mental, etc.” (VIANA, 2019a, p. 38).
[9] O apelo à subjetividade e
outros elementos mostra que sua análise mantinha certa influência do que Jacoby
(1977) denominou “política da subjetividade”.
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Apresentado em: 19º Congresso
Brasileiro de Sociologia -9 a 12 de julho de
2019 - UFSC -
Florianópolis, SC
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