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sexta-feira, 30 de novembro de 2018

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sexta-feira, 23 de novembro de 2018

A CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS



A CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Nildo Viana*
Resumo
O presente artigo analisa o processo de criminalização dos movimentos sociais, suas determinações e consequências. Para tanto apresenta alguns conceitos importantes para o desenvolvimento da análise e esclarece o significado do conceito de criminalização, bem como suas formas de manifestação. A explicação da criminalização ocorre através de sua relação com a repressão estatal. A criminalização é entendida como uma forma de legitimação da repressão estatal, mas que é insuficiente e por isso é abordado também o processo complementar de deslegitimação e incriminação dos movimentos sociais.
Palavras-Chave: Repressão, Crime, Ação coletiva, Deslegitimação, Incriminação.

Abstract
This article analyzes the process of criminalization of social movements, their determinations and consequences. In order to do so, it presents some important concepts for the development of the analysis and clarifies the meaning of the concept of criminalization, as well as its forms of manifestation. The explanation of the criminalization occurs through its relation with the state repression. Criminalization is understood as a form of legitimation of state repression, but it is insufficient and therefore the complementary process of delegitimation and incrimination of social movements is also addressed.
Keywords: Repression, Crime, Collective action, Delegitimation, Injury.

Um tema recorrente nos meios militantes e alguns setores dos meios intelectuais é a questão da criminalização dos movimentos sociais. Apesar da recorrência, há pouca reflexão teórica sobre esta questão. O nosso objetivo no presente texto é justamente esboçar uma contribuição teórica para a discussão sobre o problema da criminalização dos movimentos sociais.
Uma reflexão teórica sobre a criminalização dos movimentos sociais requer esclarecimentos conceituais (movimentos sociais, criminalização e conceitos correlatos e derivados), explicação da razão e forma de criminalização, bem como elementos derivados desse processo analítico. Isso significa que a questão é bem mais complexa do que aparece à primeira vista. O nosso objetivo aqui é justamente realizar esse processo de forma introdutória.
A reflexão sobre este tema aponta para explicitar o que são movimentos sociais, ou seja, deixar claro quem é criminalizado. Existem inúmeras definições de movimentos sociais e por isso não pretendemos realizar tal discussão aqui (GOSS e PRUDÊNCIO, 2004; VIANA, 2016a). Para nosso objetivo é suficiente esclarecer qual conceito vamos utilizar. Os movimentos sociais são movimentos de grupos sociais (JENSEN, 2014; VIANA, 2016a) que surgem devido a uma insatisfação social gerada a partir de uma situação social que, por sua vez, geram senso de pertencimento, mobilização e objetivos (VIANA, 2016a). Assim, as bases sociais dos movimentos sociais são grupos sociais (negros, mulheres, estudantes, etc.) e suas reinvindicações são direcionadas para tais grupos. Isso mostra que movimentos sociais são distintos de movimentos de classes sociais, pois estas possuem outra dinâmica e reivindicações, pois são constituídas na divisão social do trabalho e isso gera interesses e formas de luta distintas, tal como a distribuição de renda, aumento salarial, alteração das condições de trabalho, transformação das relações de produção, etc. (VIANA, 2016a, VIANA, 2016b, JENSEN, 2014). Da mesma forma, os movimentos sociais são distintos de outros fenômenos sociais, incluindo manifestações, protestos, etc. (COSTA, 2016), pois protestos e manifestações, por exemplo, podem ser realizadas por classes sociais, categorias profissionais ou pela multidão (uma parte da população reunindo diversas classes, grupos, etc.). Protestos e manifestações são ações e não movimentos, sendo que os movimentos sociais podem realizar tais atos, mas não podem ser reduzidos a eles. O conjunto de fenômenos que poderiam ser considerados movimentos sociais podem ser ilustrados pelo movimento estudantil, movimento negro, movimento feminino, movimento ecológico, entre outros.
O movimento social só existe quando parte do grupo social de base do mesmo (negros, mulheres, estudantes, ecologistas, etc.) entram em fusão, ou seja, quando se unem e realizam mobilizações. Isso significa dizer que a existência do grupo social não é a mesma coisa que um movimento social. O grupo social pode existir, mas só quando parte dos seus integrantes entram em fusão, ou seja, se unem com determinado objetivo, é que surge um movimento social. As mulheres, por exemplo, sempre existiram como um grupo social, mas o movimento feminino só vai surgir em determinadas condições históricas e sociais. É essa parte do grupo que entra em fusão é que constitui um movimento social e não a totalidade dos indivíduos integrantes do grupo (muitos podem, inclusive, ser contra o movimento social derivado do grupo).
É por isso que temos que dividir o movimento social como um todo e suas ramificações (organizações, representações e ideologias, tendências, etc.). Um movimento social é o conjunto dos indivíduos e ações dos seus integrantes, tal como o movimento negro, feminino, estudantil, entre outros. As ramificações são partes dele, tal como organizações, concepções, tendências, etc. Assim, o movimento estudantil (universitário, mais especificamente) gera um conjunto de organizações, oficiais e extraoficiais (VIANA, 2016c), como a UNE (União Nacional dos Estudantes), DCEs (Diretórios Centrais de Estudantes), CAs (Centros Acadêmicos), associação de casa de estudante, organizações específicas, etc. A UNE é parte do movimento estudantil, uma ramificação do mesmo. A UNE não é “o” movimento estudantil, nem é um movimento social, é uma ramificação de um movimento específico que é o estudantil. Isso vale também para as diversas ideias e concepções existentes no interior do mesmo, bem como suas tendências internas. O movimento negro gera uma diversidade de organizações: UNEGRO, MNU (Movimento Negro Unificado), MNS (Movimento Negro Socialista), etc. O mesmo vale para as distintas tendências (orientações políticas) que podem surgir no mesmo, bem como ideologias, representações, doutrinas, etc. Assim, setores do movimento negro o articulam com o socialismo, o que significa que suas reinvindicações não são apenas as específicas do grupo, mas também a transformação social. Essa concepção desses setores é uma ramificação do movimento negro e não ele como um todo, que convive com outras concepções.
Esclarecido o que entendemos por movimentos sociais, falta esclarecer o que é “criminalização”[1]. De forma mais simples, criminalizar é o ato de tornar criminosa determinada ação. No entanto, o que é um “crime”? Não apontaremos as várias definições de crime, mas vamos partir de uma delas para poder esclarecer o que entendemos por crime. Segundo Durkheim (1995), o crime é um ato que ofende os estados fortes e definidos da “consciência coletiva”[2]. Essa definição é interessante, mas inexata. Um crime é um ato contra a legislação instituída. Essa legislação pode expressar a “consciência coletiva” em uma determinada sociedade, mas isso não ocorre sempre, pois a constituição das leis é um processo derivado da luta de classes e outras lutas sociais, com o predomínio dos interesses da classe dominante[3]. Os atos contrários à “consciência coletiva”, para utilizar expressão durkheimiana, podem ser, em determinado momento histórico, considerados “crimes”, mas em outro não, pois pode ser visto apenas como “imoral”, por exemplo. Em síntese, o crime é um ato que contraria a legislação existente e é esta que define o que é ou não um crime, bem como ela condensa os interesses da classe dominante, tal como o direito à propriedade[4].
Por conseguinte, a criminalização dos movimentos sociais significa tornar crime determinadas ações realizadas por eles. Os exemplos de ações de movimentos sociais que podem ser consideradas crimes são vários: ocupações (de prédios públicos, terras privadas, etc.), atos de depredação, bloqueio de vias públicas, atos de violência contra os policiais, etc.
Uma vez que esclarecemos os conceitos e os fenômenos que estamos analisando, podemos passar para a parte explicativa do processo de criminalização. A criminalização dos movimentos sociais não ocorre aleatoriamente ou ao acaso. Há uma razão para se criminalizar os movimentos sociais. Mas, antes disso, é preciso esclarecer que existem duas formas de criminalizar os movimentos sociais. A primeira forma é a criminalização derivada. A criminalização derivada é o que ocorre quando uma ramificação de um movimento social (organização, por exemplo) realiza um ato que é considerado crime por ser contrário a alguma expressão das relações sociais dessa sociedade que foi cristalizada na lei e que possui uma não-relação direta com as lutas sociais. A legislação, por exemplo, garante o direito de propriedade e já fazia isso antes de existirem movimentos sociais[5]. Por isso é uma criminalização derivada da legislação anteriormente existente.
A segunda forma de criminalização dos movimentos sociais é a direcionada. A criminalização direcionada é aquela voltada especificamente para criminalizar os movimentos sociais (e o movimento operário)[6]. Esse é o caso, por exemplo, da proibição de manifestações sem “aviso prévio às autoridades” ou então, como no caso de uma lei estadual no Rio de Janeiro, que proíbe o uso de máscaras. Segundo a Lei Estadual 6.538/2013, do Estado do Rio de Janeiro, temos o seguinte:
Art. 3º O direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento será exercido:
I - pacificamente;
II - sem o porte ou uso de quaisquer armas;
III - em locais abertos;
IV - sem o uso de máscaras nem de quaisquer peças que cubram o rosto do cidadão ou dificultem sua identificação;
V - mediante prévio aviso à autoridade policial.
§ 1º – Incluem-se entre as armas mencionadas no inciso II do caput as de fogo, brancas, pedras, bastões, tacos e similares.
§ 2º - Para os fins do inciso V do caput, a comunicação deverá ser feita à delegacia em cuja circunscrição se realize ou, pelo menos, inicie a reunião pública para manifestação de pensamento.
§3º – A vedação de que trata o inciso IV do caput deste artigo não se aplica às manifestações culturais estabelecidas no calendário oficial do Estado.
§4º – Para os fins do Inciso V do caput deste artigo a comunicação deverá ser feita ao batalhão em cuja circunscrição se realize ou, pelo menos, inicie a reunião pública para a manifestação de pensamento;
§5º – Considera-se comunicada a autoridade policial quando a convocação para a manifestação de pensamento ocorrer através da internet e com antecedência igual ou superior a quarenta e oito horas.
Portanto, se uma ação coletiva não cumpre com as exigências acima, ela será enquadrada como crime. Se aparecerem manifestantes usando máscaras, isso será crime. Podemos ver também, no Diário da República de Angola I Série nº 20 de 11 de Maio de 1991, a lei sobre o direito de reunião e das manifestações, o seguinte:
ARTIGO 4.°
(Limitações ao exercício do direito)
1. O exercício do direito à reunião e manifestação não afasta a responsabilidade pela ofensa à honra e consideração devidas às pessoas e aos órgãos de soberania.
2. Não é permitida a realização de reuniões ou manifestações com ocupação não autorizada de locais abertos ao público ou particulares.
3. Por razões de segurança, as autoridades competentes poderão impedir a realização de reuniões ou manifestações em lugares públicos situados a menos de 100 metros das sedes dos órgãos de soberania, dos acampamentos e instalações das forças militares e militarizadas, dos estabelecimentos prisionais, das representações diplomáticas ou consulares e das sedes dos partidos políticos.
Outro artigo coloca o seguinte:
ARTIGO 5.°
(Limitações em função do tempo)
1. As reuniões e manifestações não poderão prolongar-se para além da meia-noite, salvo se realizadas em recintos fechados, em salas de espetáculos em edifícios sem moradores ou, em caso de terem moradores, se forem estes os
promotores ou tiverem dado o seu assentimento por escrito.
2. Os cortejos e os desfiles não poderão ter lugar antes das 19.00 horas nos dias úteis e antes das 13.00 horas aos sábados, salvo em situações devidamente fundamentadas e autorizadas[7].
Aqui temos limites impostos pela legislação no que se refere a horários, localização, etc. Outro exemplo é a Lei Antiterrorismo, aprovada em fevereiro de 2016 durante o governo Dilma Roussef, que foi questionada até pela ONU[8]. A definição de “atos de terrorismo” é a seguinte:
“Sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento”[9].
Esta lei apresentaria uma definição de terrorismo que, segundo seus críticos, seria ampla e poderia ser utilizada contra os movimentos sociais:
O ato terrorista ficará sujeito a livre interpretação. Poderá ou não ser, dependerá de quem analisará o acontecimento e também da repercussão nos meios de comunicação. Pretendem criar um fato típico extremamente elástico, adaptável a inúmeras situações que talvez nada terão a ver com o verdadeiro terrorismo. Uma encomenda sob medida para um regime qualquer enquadrar os seus adversários como terroristas (REBOLLA, 2017).
Esses seriam casos de criminalização direcionada. A criminalização direcionada pode ocorrer através da autodeclaração – como no caso da lei estadual do Rio de Janeiro – ou da camuflagem – tal como no caso da lei de antiterrorismo.
Assim, essas duas formas de criminalização (derivada e direcionada) são aspectos importantes para entender uma das formas de relação entre Estado e movimentos sociais. O Estado se relaciona com os movimentos sociais através de um conjunto complexo de relações e tanto através da iniciativa estatal quanto da iniciativa civil (VIANA, 2016a). A iniciativa estatal ocorre através da cooptação, burocratização, repressão, omissão (VIANA, 2016a). Não poderemos tratar da dinâmica relacional entre aparato estatal e movimentos sociais, mas tão somente os elementos dessa relação que nos ajudam a explicar a criminalização. O aparato estatal visa reproduzir as relações de produção capitalistas, o que significa garantir a expressão jurídica dessas relações, ou seja, a propriedade privada[10]. Para garantir esse processo, o aparato estatal usa vários recursos e um dos principais é a legitimação através de ideologias, valores, etc. Quando o processo de legitimação falha, geralmente em épocas de crise de legitimidade, ou então quando as crises no/do capitalismo[11] geram grandes lutas, lhe resta outro recurso: a repressão.
No entanto, a repressão não é utilizada apenas nesse momento. Ela é usada cotidianamente. Sem dúvida, o aparato repressivo combate a criminalidade, mas também os elementos “subversivos”, ou seja, aqueles que são revolucionários. A criminalidade é constituída pelo conjunto de atos criminosos, o que significa que atentam contra as leis vigentes, enquanto que os atos revolucionários são considerados “políticos”, já que seu objetivo é transformar a sociedade. Assim, por exemplo, se um criminoso rouba um indivíduo, ele está infringido a lei por interesse próprio e que torna o objeto do roubo sua propriedade, reproduzindo as relações sociais existentes, mas se um revolucionário distribui panfletos, ele não infringe nenhuma lei (a não ser que seja criada, o que é um processo de criminalização). O processo de repressão também atinge os contestadores e setores das classes trabalhadoras que reivindicam e realizam ações que saem do mero discurso. É possível, de acordo com o aparato jurídico burguês, fazer discurso revolucionário, mas não é possível realizar ações revolucionárias[12]. Da mesma forma, ações coletivas que entram em confronto com os interesses do aparato estatal e do capital são passíveis de repressão. Se uma ramificação de um movimento de luta por moradia ocupa uma propriedade privada ou estatal, a lei será acionada para realizar a “reintegração de posse”. Nesse momento, o aparato repressivo será utilizado para garantir a reintegração de posse, caso isso não seja feito voluntariamente pelos ativistas a partir da decisão judicial e do temor da repressão.
A repressão estatal atinge principalmente os movimentos sociais populares e o movimento estudantil, bem como os movimentos de classes (principalmente do proletariado, campesinato e lumpemproletariado)[13]. Ela também atinge protestos e manifestações (que podem ser geradas por classes sociais, partidos políticos, movimento social, multidão ou diversos responsáveis por sua realização)[14]. No entanto, a repressão é uma faca de dois gumes, pois, sendo considerada injusta, violenta (considerada “brutal” ou “truculenta”), ou seja, se não for legítima, poderá gerar o efeito contrário ao desejado (TARROW, 2009). A repressão precisa ser legítima, pois caso contrário poderá gerar indignação e apoio popular daqueles que foram reprimidos.
Assim, a repressão traz a necessidade de legitimação. É preciso que as ações repressivas sejam consideradas legítimas para não provocar um efeito colateral contrário ao objetivo de reproduzir os interesses da classe capitalista. A criminalização é uma forma de legitimação. Ela é uma legitimação parcial necessária. No entanto, ela é insuficiente. Uma lei que proíbe manifestações de rua pode não ser considera legítima pela maioria da população, por exemplo. Logo, a repressão em relação a uma manifestação de rua é possível devido à criminalização, mas esta nem sempre consegue legitimar essa ação policial.
A criminalização deve, por isso, ser complementada com a deslegitimação da ação coletiva que está sendo reprimida e a sua incriminação. A deslegitimação significa transformar determinada ação em ilegítima. Essa deslegitimação pode ocorrer em relação às suas reivindicações, sua forma de ação, seus ativistas, etc. A deslegitimação dos ativistas pode ocorrer através da classificação negativa[15]. Esse foi o caso das manifestações de junho de 2013, quando a Rede Globo dividiu os manifestantes entre “pacíficos” e “vândalos”. A classificação de uma parte dos manifestantes como “pacíficos” é positiva e a dos demais como “vândalos” é negativa. Esse processo classificatório acima também ajuda a entender a classificação negativa das formas de ação: uma é pacífica (positiva) e outra é depredação e destruição de bens públicos, ou seja, vandalismo (negativa). A deslegitimação em relação às reivindicações é realizada através da contraposição com a lei, moral, valores dominantes, interesses de outros, etc. Assim, quando há ocupação de terra, a deslegitimação aponta para sua ilegitimidade diante da lei, do valor da propriedade individual, dos interesses dos proprietários (legais e legítimos), etc. O caráter de classe de grande parte desse processo de deslegitimação é bem visível:
Considera-se que remover moradores, que ocuparam áreas para moradia ocupadas, para periferias sem infraestrutura fará avançar o progresso com desenvolvimento econômico. O argumento é que ocupam indevidamente propriedades privadas. Procede-se à reintegração de posse, com forte aparato policial, e as manifestações de trabalhadores são punidas violentamente, com poder de polícia. Por outro lado são tidas como manifestações violentas: greves, ocupações de terras para plantar, para morar, passeatas ou demonstrações públicas. Afirma-se que este tipo de manifestação, são violações cometidas pelos inimigos da sociedade, como se os ocupantes, grevistas e outras manifestantes não integrassem a sociedade. Na realidade, com estes discursos, impede-se que estas manifestações sejam entendidas com as que mostram os problemas reais e cotidianos da maioria sociedade (RODRIGUES, 2016, p. 189-190).
A incriminação é outro complemento necessário. A criminalização, tal como foi aqui definida, significa produção de leis que tornam crime determinadas ações, como no exemplo da proibição de uso de máscaras em manifestações no Rio de Janeiro. A deslegitimação dos mascarados é realizada através do questionamento dos seus motivos para usar máscara (tem algo a esconder?) e apontar para um processo de desconfiança em relação a tais pessoas e sua classificação como “vândalos” (ou subversivos), pois o uso de máscara seria para não poder serem punidos pelos crimes que cometeriam. A incriminação significa imputar a alguém uma ação criminosa. A incriminação busca convencer a população de que se trata legitimamente de um crime. Ela possui, portanto, dois elementos: um seria afirmar que é crime e o outro é a busca de convencer que a lei que qualifica determinado ato como criminoso é legítima. A incriminação é realizada através de um discurso legitimador da legislação e da infração da lei por parte dos responsáveis pela ação acusada de ser crime.
A criminalização é um processo real no qual a produção de uma lei torna determinadas ações criminosas e a incriminação é um processo intelectual de afirmar que se trata legitimamente de um crime (pois desrespeita a lei e esta é apresentada como legítima) e que os ativistas são culpados/criminosos. A incriminação é um reforço intelectual (através de valores, concepções, sentimentos) da percepção de que um crime deve ser condenado ou que certas ações são criminosas. Como a lei não é produzida pela população, então uma vez que ela exista e criminalize determinadas ações, então cria-se a necessidade de incriminação, que é uma busca de legitimação da legislação e deslegitimação dos infratores da lei.
A criminalização é uma ação estatal, mas a deslegitimação e incriminação são produzidas tanto pelo aparato estatal quanto pelo capital comunicacional (meios oligopolistas de comunicação), instituições, intelectuais, etc. O processo de deslegitimação e incriminação é produzido no âmbito estatal e também da sociedade civil. Esse processo visa constituir uma corrente de opinião favorável ao processo de criminalização, o que impediria o efeito colateral negativo da indignação da população e possíveis reações coletivas.
Esse processo expressa a realidade cotidiana da relação entre aparato estatal e formas de resistência e luta dos trabalhadores e movimentos sociais. Lisandro Braga, ao analisar o chamado “Massacre de Avellaneda”, em 2002 na Argentina, expressa como esse processo de deslegitimação e incriminação ocorre num caso concreto. Segundo Braga, o conjunto discursivo das matérias do jornal Clarín apontava para ocultar a realidade do massacre e produzir uma “corrente de opinião favorável ao poder”. Acrescenta que:
A verdade é que o jornal Clarín deliberadamente ocultou a responsabilidade da repressão policial pelas mortes dos dois piqueteiros e insinuou, durante todos os discursos veiculados naquela edição, que o movimento piqueteiro especialmente os setores apresentados como duros, mais radicalizados, violentos e antidemocráticos, eram os responsáveis pela escalada de violência. A forma como o Clarín realizou esse processo de criminalização contou com a estratégia discursiva de implicitamente afastar a responsabilidade pelas mortes do aparato policial, alegando ser a crise a responsável pelas mesmas, deixando “livre” para intepretações (não se sabe ainda quem disparou; só se sabe que os dois jovens morreram por impactos de bala), e, ao mesmo tempo, fornecendo explicitamente elementos que induzam a uma interpretação extremamente parcial de que foram os próprios piqueteiros, que por isso eram constantemente apresentados como violentos e antidemocráticos, a Aníbal Verón – o setor dos piqueteiros duros, setor piqueteiro mais radicalizado, caóticos, vândalos, delinquentes, agressores, armados e dispostos ao enfrentamento (e outras inúmeras caracterizações negativas, apresentadas sistematicamente pelo capital comunicacional), e que de forma deliberada tais setores buscavam a morte de alguns piqueteiros para poder tirar proveito político dessa situação.
O autor mostra como que no caso concreto do jornal Clarín se utilizou o processo de deslegitimação (a classificação negativa da ala radical do movimento piqueteiro como “duros”, “vândalos”, “delinquentes”, etc. e a de suas formas de ação e interesses), bem como buscou incriminar os piqueteiros. O processo de atribuição de caráter violento aos piqueteiros é uma forma de classificação e de incriminação, pois não só classifica negativamente os militantes, como também os tornam criminosos pela linguagem utilizada, o que significa um processo de incriminação. Assim, criminalização, deslegitimação, incriminação andam juntas e os casos concretos confirmam sua inseparabilidade.
O nosso objetivo foi apresentar uma reflexão sobre a questão da criminalização dos movimentos sociais. A questão da criminalização remete, necessariamente, ao problema da repressão e das formas de justificação de ambas, o que explica sua razão de ser e suas formas e elementos derivados. Esse processo analítico aponta para novas questões que precisam ser desenvolvidas e aprofundadas a partir de novas reflexões e pesquisas.
Referências

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VIANA, Nildo. Os Movimentos Sociais. Curitiba: Prismas, 2016a.




* Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília.
[1] A questão da criminalização é geralmente abordada juntamente com a questão da repressão (BRAGA, 2013; BRAGA, 2016; MARTINS, 1989; BUHL e KOROL, 2008) e mais adiante estaremos abordando a relação entre esses dois fenômenos.
[2] Durkheim, posteriormente, abandonaria a expressão “consciência coletiva” e passaria a utilizar “representações coletivas” (DURKHEIM, 1996), mas o conteúdo da definição é o mesmo.
[3] Marx apresenta uma concepção crítica sobre o crime e seu envolvimento com as classes sociais e com a totalidade da sociedade capitalista: “Um filósofo produz ideias, um poeta versos, um pastor sermões, um professor manuais etc. Um criminoso produz crimes. Se considerarmos um pouco mais de perto a relação que existe entre este ramo da produção e o conjunto da sociedade, revelaremos muitos preconceitos. O criminoso não produz apenas crimes, mas ainda o Direito Penal, o professor que dá cursos sobre Direito Penal e até o inevitável manual onde esse professor condensa o seu ensinamento sobre a verdade. Há, pois, aumento da riqueza nacional, sem levarmos em conta o prazer do autor. O criminoso produz ainda a organização da polícia e da Justiça penal, os agentes, juízes, carrascos, jurados, diversas profissões que constituem outras categorias da divisão social do trabalho, desenvolvendo as faculdades de espírito, criando novas necessidades e novas maneiras de satisfazê-las. Somente a tortura possibilitou as mais engenhosas invenções mecânicas e ocupa uma multidão de honestos trabalhadores na produção desses instrumentos. O criminoso produz uma impressão, que pode ser moral ou trágica; desta forma ele auxilia o movimento dos sentimentos morais e estéticos do público. Além dos manuais de Direito Penal, do Código Penal e dos legisladores, ele produz arte, literatura, romances e mesmo tragédias. O criminoso traz uma diversão à monotonia da vida burguesa; defende-a do marasmo e faz nascer essa tensão inquieta, essa mobilidade do espírito sem a qual o estímulo da concorrência acabaria por embotar. O criminoso dá, pois, novo impulso às forças produtivas…” (apud. LEFEBVRE, 1979, p. 68-69).
[4] A criminologia crítica vai apresentar a tese da emergência do crime e sua relação com as “sociedades proprietárias” (TAYLOR; WALTON; YOUNG, 1980).
[5] A partir do conceito de movimentos sociais que utilizamos, ao contrário de outros autores que usam um termo muito mais amplo (McCARTHY e ZALD, 2017; FRANK e FUENTES, 1989), e dos fenômenos que abarcamos ao utilizá-lo, os movimentos sociais somente surgem na sociedade capitalista (VIANA, 2016a). Essa compreensão é também defendida pela abordagem neoinstitucionalista (também conhecida como “teoria do processo político”, entre outras denominações) dos movimentos sociais (TARROW, 2009), mas tendo outros pressupostos. É somente quando emerge uma sociedade civil organizada e há o desenvolvimento de meios de comunicação e transporte, que se torna possível a “fusão” de parte do grupo social que faz emergir os movimentos sociais, o que não era possível em sociedades pré-capitalistas, pois se já existiam situações sociais que geravam insatisfações, não existia condições para gerar o senso de pertencimento, o estabelecimento de objetivos e mobilização (VIANA, 2016a). Alguns grupos sociais, por sua vez, somente emergem no capitalismo (estudantes, ecologistas, pacifistas, etc.), o que, obviamente, que o movimento social derivado também só pode surgir nessa sociedade.
[6] O movimento operário é mais visado no processo de criminalização, pois suas lutas, interesses, etc., entram em confronto direto com a classe capitalista e o aparato estatal. No entanto, não focalizamos o movimento operário por ser um movimento de classe e não um movimento social, tal como distinguimos anteriormente.
[10] Marx apontou para o caráter de todo estado ser uma “associação da classe dominante” (MARX e ENGELS, 1983) para fazer valer os seus interesses de classe e o caráter do Estado capitalista, “comitê para gerir os interesses da burguesia” (MARX e ENGELS, 1988). Uma das formas utilizadas pelo aparato estatal para garantir os interesses da classe dominante é o aparato jurídico. O objetivo fundamental do aparato estatal na sociedade moderna é garantir a reprodução das relações de produção capitalistas, ou seja, o processo de produção e apropriação de mais-valor pela classe capitalista, gerando a acumulação de capital. No plano jurídico isso aparece como preservação da “propriedade privada”, que segundo Marx (1989) é uma expressão jurídica dessas relações de produção, o que significa dizer que é a forma ideológica na qual o direito traduz tais relações.
[11] Crises no capitalismo são recorrentes e assumem várias formas, como crises financeiras, políticas, etc. Crise do capitalismo é quando o processo de reprodução dessa sociedade está ameaçado, o que ocorre em época de revoluções sociais (VIANA, 2014).
[12] O discurso revolucionário existe, mas é marginalizado, sufocado, etc. No entanto, ele não é abertamente proibido. Essa marginalização e sufocamento é sutil, passando pelo domínio do capital da produção cultural, desde o capital comunicacional (“indústria cultural”) ao controle burocrático das instituições de ensino, até chegar aos processos de censura velada que existe no conjunto da sociedade.
[13] Algumas reflexões sobre isso foram desenvolvidas por alguns autores (MARTINS, 2000; VIANA, 2016d; BRAGA, 2016).
[14] É esse processo repressivo específico que faz com que Della Porta aborde especificamente a repressão policial aos protestos (DELLA PORTA, 1999).
[15] Falcone (2011, p. 19) trabalha com uma concepção que tem algumas semelhanças com a nossa, usando o termo “categorização”: “Relacionar o estudo da prática jornalística com a noção de categorização mostra-se relevante quando entendemos que o jornalismo atua discursivamente no processo de categorização de atores e grupos sociais. E isso se dá na construção de modelos cognitivos dominantes, a partir do forte controle dos grupos sociais que têm acesso ao discurso da imprensa”.
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Publicado originalmente em:

VIANA, Nildo. A Criminalização dos Movimentos Sociais. Revista Espaço Acadêmico. Ano 17, num. 202, março de 2018.

Disponível em:

http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/40241/21955

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Movimentos Sociais no Século 21 (Palestra)


Palestra "Movimentos Sociais no Século 21".
UFCAT - Universidade Federal de Catalão
https://eventosppghmp.wordpress.com/programacao/ 

domingo, 18 de novembro de 2018

Filmes e Crítica Social - playlist

Abaixo playlist "Filmes e crítica social":

Para assistir os filmes, basta clicar no canto superior direito para escolher o filme:

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Billy Liar: Sonho e Covardia




BILLY LIAR: SONHO E COVARDIA

Nildo Viana

O filme O Mundo Fabuloso de Billy Liar (John Schlesinger, EUA, 1963) é um filme aparentemente despretensioso, mas, no fundo, trata de uma questão fundamental para os seres humanos. Billy Liar é um sonhador. Ele sonha para fugir da cotidianidade capitalista. O filme, no fundo, realiza uma contraposição entre tal cotidianidade e a insatisfação e sonhos que ela gera nos indivíduos. No início do filme, as donas de casa buscam fugir da cotidianidade massacrante na qual não podem desenvolver suas potencialidades através do rádio e da música, que promovem, com o locutor citando seus nomes, um reconhecimento social que faz ficar mais fácil suportar esse mundo vazio e repetitivo promovido pela divisão social do trabalho. Além dessas “satisfações substitutas”, para usar termo psicanalítico, há outra forma de fugir do cotidiano: o sonho acordado. Billy Liar ilustra essa forma de evasão e o universo ficcional do filme gira em torno disso.

Trailer de "O Mundo Fabuloso de Billy Liar"



Após a cotidianidade das donas de casa, o filme mostra o início do dia de Billy Liar. A dificuldade de acordá-lo para que ele vá para o trabalho, pois ele está sonhando (acordado) que é um líder que luta pela democracia e contra a ditadura. Ele é um membro da classe subalterna, um empregado de escritório, que tenta dar sentido à sua cotidianidade através dos sonhos de grandeza, nos quais ao invés de subordinado é líder. Assim, os sonhos de Billy Liar mostram uma consciência contraditória: recusa a subordinação à qual está submetido, mas aponta para sua superação tornando-se o líder e não mais o “liderado”. As relações familiares também são motivo de insatisfação, pela situação financeira (daí sonhar que sua família se tornou rica) e as cobranças, o que significa negar a família (por causa das cobranças) e querer o melhor para ela (a riqueza), em sua concepção.

O mundo fabuloso de Billy Liar consiste em suas fábulas e revelam sua insatisfação, que, algumas vezes, manifesta o sentimento de ódio, tal como nas cenas em que imagina metralhar outras pessoas (família, namorada, etc.). Assim, um cotidiano marcado pela reprodução do capitalismo, nas cobranças familiares de se tornar um adulto responsável, na cobrança de casamento das namoradas, na cobrança de responsabilidade no emprego, mostra um adulto inadaptado, infeliz, que ainda gostaria de ser um jovem[1] não inserido no mundo adulto do trabalho, dos compromissos familiares, das relações amorosas. Billy Liar acaba enfrentando diversos problemas derivados de sua insatisfação e do modo como trabalha com ela: sonhos e mentiras. Os sonhos aliviam seu sofrimento (derivado de sua não realização como ser humano e seu cotidiano insatisfatório) e as mentiras são a forma como ele busca fugir dos seus problemas, da responsabilidade e das atividades insatisfatórias. Ele foge da sua responsabilidade no trabalho ao não entregar os calendários que o patrão ordenou, foge do compromisso com as duas namoradas problemáticas, etc.

Billy Liar foge através da evasão[2]. A fuga da realidade é acompanhada por uma pequena esperança de mudança. Assim, os “sonhos acordados” de Billy Liar não geram uma “utopia”, como diria Ernst Bloch, mas geram a ideia de superação de uma determinada realidade social. Ele pensa em se tornar um roteirista e buscava concretizar isso através de um contato com o Danny Boon, um comediante de TV. Assim,  ele é um sonhador e tenta concretizar um sonho realizável, ser roteirista. Isso é compartilhado por Liz, que é diferente das duas namoradas que possui. Liz também é sonhadora, mas sem os defeitos de Billy Liar, e corre atrás dos seus projetos e por isso viaja e mora fora da pequena cidade do interior em que nasceu. Eles fazem planos e Liz convence Billy Liar a viajar para Londres à meia noite. Ele tem imprevistos, como a morte da avó, mas consegue chegar e encontrar com Liz, mas inventa uma desculpa para descer do trem e acaba não voltando e perdendo a viagem.

Billy Liar acaba revelando que é um grande sonhador, mas tem medo, não luta por concretizar seus sonhos mesmo quando tem a oportunidade. Perde Liz e o sonho. Ele foge da realidade, mas ao mesmo tempo foge da liberdade. A covardia é mais forte do que o sonho. Ele prefere voltar para a segurança do seu lar, apesar de toda insatisfação e se refugiar num mundo de fábulas e fantasias, tal como mostra o seu retorno para casa após perder o trem, ao invés de realizar os seus projetos, os seus sonhos. Billy Liar é uma expressão de milhões de indivíduos que estão insatisfeitos, sonham e projetam, não conseguem e quando possuem oportunidade, se acovardam e retornam para a sua cotidianidade. A fuga da liberdade que se observa até nos indivíduos que se dizem revolucionários, aqueles que teriam sonhos utópicos mais amplos, mas logo cedem ao pragmatismo, à escolha do “menos ruim” e até mesmo à defesa daquilo que condenam. Billy Liar é uma legião, pois eles são muitos. Mas assim como existem milhões de Billy Liar, existem milhares de Liz e por isso a esperança e a luta pela realização dos sonhos e projetos continua.


Para assistir, clique aqui.




[1] Sobre juventude e o mito do adulto-padrão, veja: VIANA, Nildo. A Dinâmica da Violência Juvenil. Ar editora, 2014; VIANA, Nildo. Juventude e Sociedade. Ensaios sobre a Condição Juvenil. São Paulo: Giostri, 2015.
[2] Alguns chamariam de “alienação”, mas este termo, no sentido marxista, remete a algo distinto, ao controle e apropriação do trabalho e do seu resultado (VIANA, Nildo. A Alienação como Relação Social. Revista Sapiência: sociedade, saberes e práticas educacionais, v. 01, 2012.). O sentido do conceito de evasão remete ao processo de escapismo, de fuga da realidade, que é um fenômeno psíquico e não uma relação social como no caso da alienação.





Veja o vídeo com a música de The Decemberists: "Billy Liar":


sábado, 10 de novembro de 2018

Estado e Movimentos Sociais: Efeitos Colaterais e Dinâmica Relacional





Estado e Movimentos Sociais:
Efeitos Colaterais e Dinâmica Relacional

State and Social Movements:
Side Effects and Relational Dynamics
Nildo Viana*

Resumo:
O presente artigo aborda a relação entre Estado e movimentos sociais, analisando tanto os efeitos colaterais das políticas estatais sobre os movimentos sociais quanto sua dinâmica relacional direta. No primeiro caso, é destacado o processo de desenvolvimento capitalista e as mudanças na forma do estado, com a consequente reordenação das políticas estatais e como isso atinge, indiretamente, os movimentos sociais. No segundo caso, é abordado a relação direta entre Estado e movimentos sociais, mostrando sua dinâmica relacional tanto por iniciativa estatal quanto por iniciativa civil. A conclusão geral do artigo é a de que as mudanças nas formas de Estado (que faz parte da sucessão de regimes de acumulação) atingem os movimentos sociais, de forma direta ou indireta. Em cada forma estatal, alguns movimentos sociais e ramificações são fortalecidos, outros são enfraquecidos, seja por incentivo das políticas estatais, seja por problemas das ações estatais em sua relação com a sociedade civil. Da mesma forma, as formas assumidas pelo Estado capitalista atingem os grupos sociais de base dos movimentos sociais e por isso também podem fortalecer ou enfraquecer um determinado movimento social. Outra conclusão foi a de que as várias formas assumidas pela iniciativa estatal voltada diretamente para os movimentos sociais, tais como a cooptação, a burocratização, a repressão e a omissão variam de acordo com o país, a época, a correlação de forças do bloco dominante, entre outras determinações. O mesmo ocorre com os movimentos sociais e o que denominamos iniciativa civil.
Palavras-chave: Estado, Movimentos Sociais, Iniciativa Estatal, Iniciativa Civil, Ramificações.

Abstract:
This article discusses the relationship between State and social movements, analyzing both the side effects of state policies on social movements and their direct relational dynamics. In the first case, the process of capitalist development and changes in the form of the state are highlighted, with the consequent reordering of state policies and how this indirectly affects social movements. The general conclusion of the article is that changes in the forms of state (which is part of the succession of accumulation regimes) affect social movements, directly or indirectly. In each state form, some social movements and ramifications are strengthened, others are weakened, either by stimulating state policies or by problems of state actions in their relationship with civil society. In the same way, the forms assumed by the capitalist state affect the basic social groups of social movements and therefore can also strengthen or weaken a given social movement. Another conclusion was that the various forms taken by the state initiative endorsed directly for social movements, such as cooptation, bureaucratization, repression and omission vary according to the country, the time, the correlation of forces of the dominant block , among other determinations. The same is true of social movements and what we call civil initiative.
Keywords: State, Social Movements, State Initiative, Civil Initiative, Ramifications.

O objetivo do presente artigo é analisar a relação entre movimentos sociais e Estado. Esse é um tema complexo e que ganhou várias contribuições, embora não seja uma das temáticas mais discutidas, no plano teórico, nas análises sobre movimentos sociais. O que pretendemos focalizar aqui em tal relação são as mutações estatais e seus efeitos sobre os movimentos sociais e a ação estatal sobre os movimentos sociais e o processo contrário, ou seja, como agem os movimentos sociais diante do Estado.
Antes de iniciar nossa abordagem é preciso fazer alguns esclarecimentos conceituais. Tendo em vista a diversidade de definições de movimentos sociais e Estado, o que leva a diversas formas de compreender esses fenômenos e suas relações, então se torna necessário esclarecer o significado destes dois termos em nossa análise. Os movimentos sociais já foram definidos por diversas formas e não cabe aqui fazer um apanhado das diversas definições[1]. Podemos apresentar, como definição inicial, a ideia de que movimentos sociais são “movimentos de grupos sociais” (JENSEN, 2014). Essa definição precisa ser complementada (e não poderemos fazer isso aqui por questão de espaço). Uma definição que toma essa como ponto de partida e a amplia é a de que os movimentos sociais são movimentos de grupos sociais que surgem a partir de determinada situação social que gera insatisfação e, por conseguinte, gera senso de pertencimento, objetivos e mobilização (VIANA, 2016a).
Cada um desses elementos requer explicação e conceituação, mas não poderemos realizar isso aqui. Mesmo sem tal explicitação, o significado do conceito de movimentos sociais fica relativamente claro. Um acréscimo necessário consiste em distinguir movimentos sociais de suas ramificações. Assim, temos os grupos sociais de base dos movimentos sociais (mulheres, negros, estudantes, ecologistas, etc.) e os indivíduos do mesmo que realizam mobilização (componentes do movimento social) e, ainda, as ramificações dos movimentos sociais. As ramificações são compostas por organizações, indivíduos, mobilizações (protestos, manifestações, piquetes, etc.), ideologias, doutrinas, representações cotidianas, correntes de opinião, tendências (orientações políticas) no seu interior. Assim, é fundamental distinguir um movimento social de uma organização mobilizadora que é sua ramificação (VIANA, 2016a). A UNE (União Nacional dos Estudantes) não é um movimento social e sim uma ramificação do movimento estudantil. E isso vale para todas as organizações do movimento estudantil. O conjunto dessas organizações (mais indivíduos isolados que contribuem com o mesmo, as representações e formas de consciência geradas, as ações, etc.) formam o todo que é o movimento estudantil.
Um elemento importante derivado dessa concepção de movimentos sociais como movimentos de grupos sociais é sua distinção em relação a movimento de classes sociais (VIANA, 2016a; VIANA, 2016b). As classes sociais são expressões da divisão social do trabalho e os grupos sociais da corporeidade (negros, mulheres, etc.), cultura (ecologista, pacifistas, etc.) ou situação social (estudantes, etc.)[2]. A partir dessa distinção se estabelece uma coerência entre conceito e fenômeno, pois o primeiro trata de grupos sociais e estes são o fenômeno a ser analisado em suas mobilizações, excluindo outros fenômenos que as definições muito amplas acabam englobando (protestos, manifestações, partidos, classes, etc.). Assim, movimentos sociais e protestos ou manifestações não significam a mesma coisa (COSTA, 2016). Os movimentos sociais podem realizar protestos e manifestações, mas nem sempre estes fenômenos são produzidos por eles, pois a multidão, classes, partidos, etc., também podem realizar tais ações coletivas.
Após esclarecer o que entendemos por movimentos sociais, então nos resta esclarecer o significado de Estado. O Estado é uma “relação social de dominação de classe” que, na sociedade moderna, é mediada pela burocracia (VIANA, 2015a). Essa dominação de classe se fundamenta no fato de que o Estado moderno é um aparato do capital (VIANA, 2015a) ou, em outras palavras, uma “associação” da classe dominante (MARX e ENGELS, 1986) ou, ainda, um “comitê para gerir os interesses da burguesia” (MARX e ENGELS, 1988). Assim, o estado moderno é uma formação estatal específica e os dois elementos fundamentais de sua especificidade é a classe que o detém e a mediação da burocracia estatal. Ele, no entanto, não é estático e muda de forma com as mudanças na sociedade capitalista. Essa mutação formal do estado capitalista é elemento fundamental para nossa análise dos movimentos sociais. Isso será abordado adiante.
A relação entre Estado e movimentos sociais já foi abordada por diversos autores. Aqui partiremos de uma determinada concepção e por isso não trabalharemos com uma descrição das diversas abordagens desta relação. Mas é necessário destacar que uma abordagem dos movimentos sociais oferece uma ênfase na questão do estado, que é aquela que ficou conhecida como “teoria do processo político” (ALONSO, 2009), “teoria da mobilização política” (GOHN, 2002), “teoria das estruturas de oportunidades políticas” (MISOCSKY, FLORES E SILVA, 2008), “teoria do confronto político”, entre outras denominações (ALONSO e BOTELHO, 2012)[3]. Essa concepção, que preferimos denominar neoinstitucionalista, produz um quadro analítico que tem como elementos básicos as oportunidades políticas, estruturas de mobilização, quadros interpretativos (ou “frames”) e repertórios[4]. No entanto, o elemento mais importante dessa abordagem é justamente o que remete ao problema estatal, ou seja, as oportunidades políticas. A ideia básica é a de que os movimentos sociais surgem ou se desenvolvem quando aparecem oportunidades políticas[5]. Desta forma, o Estado, aquele que possibilita as oportunidades políticas, é um agente fundamental no processo explicativo dos movimentos sociais.
Essa abordagem contribui com algumas reflexões sobre a relação entre movimentos sociais e Estado e por isso utilizaremos alguns elementos no decorrer da nossa explanação. No entanto, ela também tem problemas e limites que nos afastam dela. O primeiro elemento é a sua definição de movimentos sociais, demasiada ampla, que é bem distinta da nossa. A definição diferente é complementada pela diferença de quais fenômenos são considerados movimentos sociais. Por último, mas não menos importante, é a base teórica e metodológica da qual partimos e que entra em contradição com a da abordagem neoinstitucionalista e isso produz um conjunto de outras diferenças.
Vamos destacar aqui a definição de movimentos sociais e sua diferença em relação à nossa concepção. Não existe uma definição unívoca nessa abordagem. Os diferentes autores, e até um mesmo autor em distintos momentos, apresenta certas diferenças quando define os movimentos sociais. Tomemos algumas dessas definições:
Um movimento social é uma interação sustentada entre pessoas poderosas e outras que não têm poder: um desafio contínuo aos detentores de poder em nome da população cujos interlocutores afirmam estar ela sendo injustamente prejudicada ou ameaçada por isso (McADAM, TARROW, TILLY, 2008, p. 21).
Essa definição é semelhante à oferecida por um dos autores acima, Charles Tilly, que é a seguinte: um movimento social é definido como uma “interação contenciosa”, que “envolve demandas mútuas entre desafiantes e detentores do poder”, em nome de uma população sob litígio (TILLY, apud. ALONSO, 2009). O mesmo autor também considera um movimento social como um complexo político combinado de três elementos:
1) campanhas de reivindicações coletivas dirigidas a autoridades-alvo; 2) um conjunto de empreendimentos reivindicativos, incluindo associações com finalidades específicas, reuniões públicas, declarações à imprensa e demonstrações; 3) representações públicas de valor, unidade, números e comprometimento referentes à causa. A esse complexo historicamente específico denomino movimento social (TILLY, 2010, p. 142)[6].
Logo, as definições de movimentos sociais são semelhantes, mas não exatamente iguais. O elemento básico da definição é a interação conflituosa e sustentada entre desafiantes e detentores de poder. Esta definição traz o mesmo problema que diversas outras: é tão ampla que pode englobar os mais variados fenômenos, tais como partidos, sindicatos, organizações, classes sociais, manifestações, etc. Essa já é uma diferença que traz dificuldade para utilizar as suas contribuições, pois o signo é o mesmo (movimentos sociais), mas o ser, o significado, é outro (a oposição entre detentores e desafiantes do poder ou movimento de grupos sociais). A análise dos representantes dessa abordagem envolve uma gama muito vasta de fenômenos, dentre eles o que nos delimitamos como movimentos sociais, mas é preciso entender o que é válido ou não nesse caso (não apenas por questão de concordância, mas também por tratar ou não do fenômeno que focalizamos).
A base teórico-metodológica da qual partimos difere das bases intelectuais da abordagem neoinstitucionalista. As fontes inspiradoras dessa tendência podem ser resgatadas na abordagem institucionalista (mais conhecida como “teoria da mobilização de recursos”)[7], em certos aspectos do leninismo[8], no interacionismo simbólico, etc.[9] Não aparece, nessa abordagem, um arcabouço teórico desenvolvido, nem suas bases metodológicas, tal como se vê nos grandes representantes da sociologia (Durkheim, Weber, Parsons, etc.) e em Marx. Os clássicos da sociologia, por exemplo, elaboraram uma teoria da sociedade e a partir daí abordaram vários fenômenos específicos (Durkheim e o suicídio, a educação, etc.; Weber e a religião, a burocracia, etc.), mas os representantes da abordagem neoinstitucionalista não elaboraram teorias desenvolvidas sobre a sociedade e mesmo no conjunto de fenômenos que delimitaram, há imprecisões (e mutações) nas definições, quando não ausência em alguns casos.
Após estes esclarecimentos introdutórios, vamos iniciar nossa análise da relação entre movimentos sociais e Estado. Para isso, vamos iniciar tratando da questão mais geral da dinâmica relacional entre Estado e movimentos sociais e depois da ação estatal em relação aos movimentos sociais e, por fim, abordaremos a ação dos movimentos sociais em relação ao estado.
Estado e Movimentos Sociais: Mutação Estatal e Efeito Colateral
A relação entre Estado e movimentos sociais ocorre em vários planos. Num plano mais geral, uma determinada forma estatal se relaciona de forma específica com o conjunto dos movimentos sociais[10]. O Estado capitalista muda com o desenvolvimento capitalista. O desenvolvimento capitalista, por sua vez, ocorre através da sucessão de regimes de acumulação (VIANA, 2015a; VIANA, 2009; BRAGA, 2013; ÓRIO, 2014). A cada regime de acumulação emerge uma formação estatal específica. Assim, temos, sucessivamente, nos países de capitalismo imperialista (EUA e Europa, principalmente), o Estado liberal (até aproximadamente metade do século 19), o Estado liberal-democrático (até 1945), o Estado integracionista (até o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, dependendo do país), o Estado neoliberal (de meados dos anos 1980 até hoje)[11].
A cada forma estatal, o modo de relação deste com os movimentos sociais se altera. A alteração pode ser vista nas políticas estatais. Cada forma estatal gera uma modalidade específica de políticas estatais[12] e isso atinge os movimentos sociais. Denominamos esse processo como efeito colateral de determinada modalidade de políticas estatais sobre os movimentos sociais. O Estado liberal (vigente durante o regime de acumulação extensivo), por exemplo, gerou uma modalidade liberal que permitia apenas o que foi denominado “direitos civis”[13]. Para os movimentos sociais (e o movimento operário), isso era um obstáculo, pois tratava-se apenas das liberdades individuais e direito à propriedade.
As lutas operárias promoveram um processo de mutação social e com o novo regime de acumulação (intensivo), emergiu o Estado liberal-democrático, que passa a incluir os “direitos políticos”, o que pode ser notado com a substituição da democracia censitária para a democracia representativa, com a legalização de partidos e sindicatos (VIANA, 2015a). É nesse contexto que emerge a “sociedade civil organizada”, com o direito de associação, etc. Assim, a modalidade liberal-democrática de políticas estatais possibilita o surgimento, mesmo que embrionário, dos movimentos sociais[14].
As revoluções proletárias inacabadas (Rússia, Alemanha, Hungria, Itália, Espanha) e a ascensão do nazifascismo, que gerou um regime de acumulação específico e temporário em alguns países, que podemos denominar regime de acumulação bélico (VIANA, 2015b), promoveu após 1945 a emergência de um novo regime de acumulação e, por conseguinte, uma nova forma estatal. O regime de acumulação conjugado gerou o Estado integracionista (também chamado de “providencial” ou “de bem estar social”), o fordismo como forma hegemônica de organização do trabalho e a expansão do capital oligopolista transnacional. A modalidade integracionista de políticas estatais e a emergência do que se chamou “direitos sociais” (MARSHALL, 1967), aliado com as outras mudanças sociais (aumento da renda e consumo, por exemplo), incentiva o surgimento de novos movimentos sociais, pois uma vez satisfeita as necessidades básicas por parte da população, novas reivindicações emergem, bem como aumentam os recursos disponíveis[15].
A crise do regime de acumulação conjugado a partir da segunda metade de 1960 gerou um novo regime de acumulação que emerge a partir dos anos 1980, o regime de acumulação integral. O Estado neoliberal gera uma nova modalidade nas políticas estatais que tem como uma de suas características a diminuição dos gastos estatais (especialmente com as políticas de assistência social) e a instituição de políticas segmentares (para determinados segmentos sociais, ao invés de políticas universais, tal como as da modalidade integracionista). Essa é a época das “ações afirmativas” e outras iniciativas semelhantes. O resultado disso é um fortalecimento de certos setores dos movimentos sociais e a transformação de outros em organizações burocráticas, etc.
Assim, a modalidade de políticas estatais realizam impactos sobre os movimentos sociais, que podem ser incentivando ou restringindo suas possibilidades (financeiras, políticas, etc.). Elas podem abrir “oportunidades políticas”, como já diziam os representantes da abordagem neoinstitucionalista, ou criar obstáculos, bem como atingir diferentemente os movimentos sociais (TARROW, 2009), gerando oportunidades para grupos específicos (TARROW, 1999). Uns podem ser beneficiados e outros prejudicados com uma mesma política estatal ou pode até mesmo aumentar o conflito entre grupos sociais de base de cada um, reforçando suas tendências extremistas e opostas, tal como no caso de políticas em relação às mulheres e negros que gera descontentamento e reação de homens e brancos, respectivamente.
Sem dúvida, os regimes de acumulação e formas estatais não são estáticos e por isso ocorrem mutações no seu interior, denominados como ciclos, marcados por seu processo de formação, consolidação e desestabilização e/ou crise (VIANA, 2015b). As políticas estatais, nesses diversos momentos, atingem diferentemente os movimentos sociais. Por exemplo, em épocas de desestabilização e/ou crise, tende a gerar radicalização em setores dos movimentos sociais e fortalecer suas tendências revolucionárias ou contestadoras e aumentar a competição entre outros setores pelos benefícios estatais ou recursos da sociedade civil. Foi esse o processo que ocorreu na segunda metade dos anos 1960, quando iniciou a crise do regime de acumulação conjugado.
No entanto, uma modalidade de política estatal não é imutável e nem homogênea. Ela assume formas distintas em momentos diferentes e dependendo da correlação de forças dos blocos sociais, mais especialmente no interior do bloco dominante (VIANA, 2015c). A mudança de partidos no governo pode gerar alterações no interior dessa modalidade de política estatal e isso pode atingir sob forma distinta os movimentos sociais. A modalidade neoliberal no Brasil, durante os governos de Collor, Itamar Franco e FHC se manteve nos governos petistas posteriores, mas com algumas alterações (BOITO JR, 2004; VIANA, 2015d; MAIA, 2016). Esse processo gerou diferenciação no interior de uma unidade que é a modalidade neoliberal. É por isso que a composição do bloco dominante e a correlação de forças no seu interior e entre os blocos sociais, bem como a pressão popular, podem gerar mudanças no interior da modalidade de políticas estatais e assim beneficiar ou prejudicar determinados movimentos sociais ou setores deles.
Um outro plano é quando a ação estatal desencadeia reação da população, como, por exemplo, a guerra, que é um incentivo para a emergência do movimento pacifista. Várias ações estatais mais esporádicas ou temporárias acabam influenciando os movimentos sociais, seja de forma positiva ou negativa. A ameaça de guerra nuclear, ou programas de desenvolvimento de energia nuclear, entre outras, podem incentivar ou fortalecer setores do movimento ecológico. Determinadas políticas rurais podem beneficiar ou incentivar setores de movimentos sociais rurais, num primeiro momento, e enfraquecê-los drasticamente num segundo momento. A construção de uma barragem, por exemplo, pode colocar uma organização mobilizadora contra a mesma em evidência, mas após sua construção e consolidação, ela perde sua força e pode até deixar de existir.
Os demais aspectos dessa relação e outros planos menos influentes não poderão ser abordados aqui por questão de espaço. No entanto, o que abordamos até aqui foi a relação indireta entre Estado e movimentos sociais, ou seja, como que as políticas estatais atingem, indiretamente (embora inclua também alguns elementos diretos, tal como no caso da modalidade neoliberal) os movimentos sociais. Mas existem políticas e ações estatais voltadas diretamente para os movimentos sociais, bem como destes em relação ao aparato estatal. Esses elementos serão abordados a seguir.
Estado e Movimentos Sociais: A Iniciativa Estatal
Uma das formas de relação direta entre Estado e movimentos sociais surge a partir da iniciativa estatal. A iniciativa estatal endereçada para os movimentos sociais (ou um movimento social específico, ou, ainda, setores, ramificações, organizações, etc. dos mesmos) pode assumir a forma de cooptação, de burocratização e de repressão. Uma outra forma de relação do aparato estatal com os movimentos sociais por decisão sua é a omissão, embora essa não seja exatamente uma “iniciativa” ou “atuação”.
A forma mais comum de atuação estatal em relação aos movimentos sociais é a cooptação. O que significa cooptação? A definição clássica de cooptação é a do sociólogo Philip Selznick:
Definimos previamente este conceito como “o processo de absorção de novos elementos na liderança ou estrutura de decisões políticas de uma organização, como meio de evitar ameaças à sua estabilidade ou existência”. Este mecanismo geral adquire duas formas básicas: cooptação formal, quando há necessidade de estabelecer a legitimidade da autoridade ou de tornar a administração acessível ao público a que se dirige; e cooptação informal quando há necessidade de ajustamento às pressões de centros específicos de poder na sociedade (SELZNICK, 1978, p. 93).
Uma outra definição de cooptação é a seguinte: “a capacidade de integrar atores estratégicos ao poder dominante usando mecanismos informais (prebendas, dinheiro) e formais na integração ao sistema de partidos” (GERSCHEWSKI, apud. TREK e ARÉVALO,  2015, p. 471). Essas duas concepções de cooptação são úteis para pensarmos a cooptação dos movimentos sociais. Um elemento comum é que trata-se da “integração” de “atores” ou “lideranças”. Num caso, trata-se de cooptação por uma organização e noutro pelo “poder dominante”. Em ambos há a distinção do aspecto formal e informal, mas compreendidos de forma bem diferente.
Dessas duas definições podemos derivar uma mais adequada ao fenômeno real. Consideramos que cooptação é o processo pelo qual as organizações burocráticas conseguem aliciar determinados indivíduos ou organizações através de sua adesão em troca de benefícios pessoais diretos (para os indivíduos) ou indiretos (para as organizações, o que, obviamente, gera benefícios igualmente pessoais para os integrantes destas). Ela é uma relação de aliciamento por parte de uns (as organizações burocráticas) e adesão por parte de outros (os cooptados). O aliciamento é feito através de oferecimento de cargos, financiamento, etc. em troca da adesão. A adesão pode ser formal (através de cargos, na qual os indivíduos se integram hierarquia burocrática e passa a defender os interesses desta e diz representar o seu grupo social no seu interior) ou informal (via apoio, dedicação, etc.). Os aliciadores são, geralmente, os estratos superiores da burocracia e os cooptados são, geralmente, burocratas informais, líderes ou ativistas.
No caso do aparato estatal e sua relação direta com os movimentos sociais, a cooptação pode ser direta ou indireta[16]. A cooptação direta é quando burocratas informais, líderes ou ativistas dos movimentos sociais são integrados na burocracia estatal para apoiarem governos ou o aparato estatal. A cooptação indireta ocorre quando ocorre financiamento, promessas, etc. (VIANA, 2016a). O problema da cooptação dos movimentos sociais já foi abordado por diversos autores, seja no plano teórico ou em casos concretos (VIANA, 2016a; DRUCK, 2006; IGLESIAS, 2015; OFFE, 1996; ALBERONI, 1991). No caso brasileiro, o processo de cooptação durante o Governo Lula foi alvo de diversas pesquisas (DRUCK, 2006; IGLESIAS, 2015; CORREA, 2013; GOMES e ALVES, 2017)[17].
O processo de cooptação estatal direta pode ocorrer através da absorção de burocratas informais, líderes e ativistas dos movimentos sociais no aparato estatal (criando cargos, ministérios, secretarias, etc.). Ele também pode ocorrer através da cooptação indireta via aparelhamento de organizações mobilizadoras, o que pode ser feito via substituição de líderes, financiamento e mutação dos mesmos, promessas para os grupos sociais de base dos movimentos sociais, como as chamadas “ações afirmativas”, que conseguem adesão de pessoas que nem sequer possuem a possibilidade de usufruir delas, pela simples esperança de poder ter acesso a elas.
Outra forma de iniciativa estatal direcionada para os movimentos sociais é a burocratização. A burocratização pode ser entendida como o processo de formação da burocracia ou o processo em que as organizações passam ser seus próprios fins (LAPASSADE, 1999). A burocratização também pode ser compreendida como a extensão do controle burocrático para além das organizações burocráticas (EISENSTADT, 1978). Pierre Cardan (Cornelius Castoriadis) apresenta uma concepção diferente:
Por burocratização entendemos uma estrutura social na qual a direção das atividades coletivas está nas mãos de um aparato impessoal, organizado de maneira hierárquica, e que atua supostamente com de acordo com critérios e métodos racionais e racionais economicamente privilegiados e compostos de acordo com as regras que, estritamente falando, ele próprio dita e aplica (Apud. LAPASSADE, 1999, p. 141).
Outra forma de conceber a burocratização é a que a considera um processo de ampliação do controle na sociedade, o que ocorre sob várias formas: ampliação da quantidade de organizações burocráticas, transformação de organizações autárquicas (não-burocráticas) em burocráticas, ampliação e intensificação do controle social via burocracia, etc. (VIANA, 2017). Essa concepção é mais adequada por englobar as demais e não se limitar ao caso das chamadas “sociedades burocratizadas”, vulgo “socialismo real”, tal como abordado por Cardan/Castoriadis.
A burocratização dos movimentos sociais como controle burocrático sobre os mesmos ocorre via legislação, financiamento (que gera controle sobre contas e aspectos organizacionais, etc.), exigência de regulamentação (para o reconhecimento de organizações mobilizadoras, por exemplo). Assim, quando a burocracia estatal delimita os locais em que pode haver reunião, manifestação, ou o trajeto de uma passeata, ela realiza um processo de controle, ou seja, de burocratização. Quando o aparato estatal financia uma organização mobilizadora e exige prestação de contas (detalhadas e delimitadas por lei, regimento, edital, etc.), projetos, compromissos, etc., está efetivando controle, burocratização. Da mesma forma, quando exige de uma organização mobilizadora que tenha regimentos, que seja registrada, o que pressupõe seguir a imposição da legislação existente, também realiza burocratização[18].
Esse processo está intimamente ligado ao processo de burocratização através da transformação de organizações mobilizadoras autárquicas em organizações burocráticas. Quando mais dinheiro, crescimento, divisão do trabalho, regulamentos, vínculos com o aparato estatal, maior é a tendência a transformação em organização burocrática, o que significa, simultaneamente, um crescimento de organizações burocráticas[19]. Uma organização mobilizadora quando se torna burocrática deixa de ser ramificação de um movimento social, mudando seu caráter, mesmo que mantenha o discurso de lutar pelos interesses do grupo social de base, pois isso é apenas uma forma de legitimar e justificar sua existência.
A repressão é outra forma de ação estatal diretamente endereçada aos movimentos sociais. O termo “repressão”, pelo que sabemos, não tem desenvolvimento no interior das ciências humanas e, mais especificamente, da sociologia, apesar de sua utilização constante tanto na linguagem cotidiana quanto na linguagem complexa do pensamento científico. Apenas a psicanálise, a começar por Freud (1987)[20], tratou desse conceito de forma mais aprofundada. No âmbito da sociologia, Della Porta define “repressão policial” como “o modo como a polícia controla os atos de protesto” (1999, p. 101).  
Entendemos por repressão um modo de reação que busca impedir uma determinada ação. É um modo de reação por ser uma forma específica de reagir e faz isto em relação a uma outra ação. Uma ação pode gerar outros modos de reação, tal como a aceitação ou omissão. O uso de linguagem vulgar por uma criança, por exemplo, pode ser acompanhada pela omissão, aceitação ou repressão (busca de impedimento através da censura, castigo, etc.) por parte de um adulto. A sua especificidade está, portanto, no modo de reagir, que é através do impedimento. Algo mais específico é a repressão estatal. Esta pode ser entendida como o modo de reação estatal que busca impedir uma determinada ação através do uso da força (os aparatos repressivos: exército, polícia, etc.)[21]. A repressão policial, abordada por Della Porta, é apenas uma das formas da repressão estatal, pois a repressão estatal não controla apenas atos de protesto, mas também organizações, ideias, etc. A repressão aos Panteras Negras, nos EUA do final dos anos 1960, ou à UNE, no Brasil durante o regime ditatorial, mostram esse processo no caso de organizações. A censura nos regimes ditatoriais legitima a repressão que ocorre através de apreensão e destruição de materiais, punição dos autores e responsáveis pela divulgação, etc. Ela também atinge os movimentos sociais, especialmente seus setores mais radicais.
A repressão assume duas formas básicas: preventiva e punitiva[22]. A repressão preventiva é aquela que busca impedir que ocorra uma ação. A prisão de ativistas antes de uma manifestação pode desencorajar sua realização. A repressão punitiva pode ser efetivada durante uma manifestação ou após ela (buscando prender os “líderes” através de acusações de infração da lei). Ela também pode ser seletiva ou generalizada (VIANA, 2016a), ou seja, pode atingir apenas certos indivíduos, organizações, movimentos sociais, ou todos. A repressão seletiva pode ser vista no caso de atingir os líderes ou ativistas de determinada organização; enquanto que a generalizada, mais comum em regimes ditatoriais e momentos de crise, e pode ser vista no caso da ditadura no Brasil, cuja censura foi não só para movimentos sociais (especialmente o movimento estudantil), mas para partidos, organizações, etc. A repressão seletiva visa mais as tendências revolucionárias, os movimentos sociais populares, etc.(VIANA, 2016a)[23].
 A repressão estatal também pode ser marcada por violência extrema ou violência moderada. Quando o uso da força é exagerado, agredindo e ferindo muitos ativistas ou manifestantes, é uma violência extrema. Quando a violência é limitada e atinge apenas os mais radicais, é moderada. A primeira tem a desvantagem de criar uma corrente de opinião contrária em setores da população. Outro elemento é que a repressão estatal pode ser intensiva ou extensiva. Ela é intensiva quando age com força (violência extrema) e extensiva quando atinge um espectro mais amplo de movimentos sociais (VIANA, 2016a).
Além destas formas, ainda existe a possibilidade da omissão. A omissão é quando o Estado não age diante dos movimentos sociais. Isso pode ocorrer pela pouca força de determinadas ramificações de determinados movimentos sociais ou então, o que é mais comum, quando o aparato estatal não quer agir contra um movimento social específico, ou ramificação de um movimento social. Isso ocorre principalmente no caso de movimentos sociais conservadores, diante dos quais o Estado não age (VIANA, 2016a).
Por fim, é preciso deixar claro que essas ações estatais não ocorrem da mesma forma em relação a todos os movimentos sociais ou todas as tendências dos movimentos sociais. A cooptação é mais comum para as tendências reformistas, enquanto que a repressão é mais comum em relação aos movimentos sociais populares e tendências revolucionárias. A burocratização é generalizada, mas atinge menos os movimentos sociais populares e tendências revolucionárias. A omissão é mais frequente no caso dos movimentos sociais conservadores. Isso se altera historicamente, tanto pela forma do Estado como pela situação do regime de acumulação. Em síntese, o que apresentamos aqui foi uma forma geral pela qual o Estado atua em relação aos movimentos sociais. Outros aspectos derivados foram omitidos por questão de espaço, tal como a questão da criminalização, que é uma forma de justificar e legitimar a repressão estatal, para citar apenas um exemplo.
Estado e Movimentos Sociais: A Iniciativa Civil.
A relação entre Estado e movimentos sociais pode surgir através da iniciativa estatal ou da iniciativa civil. O que denominamos “iniciativa civil” é a ação dos movimentos sociais em relação ao aparato estatal, ou seja, oriunda da sociedade civil. A posição e ação dos movimentos sociais em relação ao aparato estatal é muito menos pesquisada e por isso é mais difícil encontrar estudos e pesquisas a este respeito[24].
A orientação dos movimentos sociais (ou, mais exatamente, de ramificações de movimentos sociais) em relação ao estado pode ser estatista ou civilista[25]. A orientação estatista é quando ramificações (setores, organizações) dos movimentos sociais buscam um vínculo orgânico com o aparato estatal. Isso pode ocorrer sob a forma utilitarista, que é a busca de financiamentos, recursos, convênios, etc. Também pode ocorrer por via composicionista, pois transforma o aparato estatal em alvo de suas reivindicações (reformas legislativas, políticas estatais segmentares, etc.), o que não impede apelar para ele também para conseguir recursos. Por fim, há também a forma partidarista, que é caracterizada por organizações, indivíduos, etc., ligados a setores e organizações dos movimentos sociais aparelhadas por partidos políticos e seu objetivo é espaços no aparato estatal e/ou sua conquista (pelo partido do qual faz parte).
O vínculo utilitarista é muito comum e é realizado por todas as organizações mobilizadoras que busca recursos ou financiamentos estatais, o que exclui, obviamente, organizações burocráticas, ONGs e outras. São geralmente pequenas organizações que para sobreviver buscam apoio financeiro governamental (e privado, em alguns casos). O vínculo composicionista pode ser visto, por exemplo, no caso da Frente Negra Brasileira, uma organização do movimento negro que existiu desde 1931 e era marcada por uma organização forte e que acabou se transformando em partido político.
O vínculo partidarista pode ser visto em vários momentos da UNE (União Nacional dos Estudantes), geralmente atrelada ao partido que ganha o Congresso e depois da redemocratização foi conquistada na maioria das vezes pelo PCdoB (Partido 
Comunista do Brasil) e dessa organização saíram diversos candidatos e futuros políticos profissionais. A lista de ex-presidentes da UNE mostra que a maioria se candidatou e muitos foram eleitos a cargos públicos pelo PCdoB.

A orientação civilista pode assumir três formas: externalista, independente e antiestatista. As suas primeiras formas são próximas e são mais propensões do que uma posição política consciente. A propensão externalista é mais comum nos movimentos sociais populares, que ficam à margem e sem grandes contatos com o aparato estatal, embora muitas vezes façam reivindicações para o mesmo. Esse é o caso de movimentos de bairros, luta por moradia, etc. A propensão independente possui maior contato com o aparato estatal, mas assume uma posição de independência. É o caso de setores dos movimentos sociais populares, tal como ocorreu em grande parte deles em 1970 (TELLES, 1987) e em setores do movimento estudantil. A forma antiestatista é representada por algumas ramificações e tendências nos movimentos sociais que expressam uma posição anarquista, autonomista ou marxista autogestionária ou então influenciadas por concepções políticas como o comunismo conselhista ou situacionismo.
A orientação civilista muda historicamente de acordo com as mudanças sociais, bem como pode passar de uma forma para outra. Em um mesmo movimento social, como, por exemplo, o movimento negro, as três formas de orientação podem coexistir, só que em ramificações diferentes. Uma pequena associação cultural negra pode ser externalista ou antiestatista e conviver com outras tendências, inclusive de orientação estatista, nas suas variadas formas.
A predominância da orientação estatista ou civilista varia de acordo com a época e lugar. No Brasil, nos anos 1970, durante o regime ditatorial, a orientação civilista era hegemônica, por razões obvias[26]. O Brasil durante os governos petistas já passou a ter a orientação estatista como hegemônica e os motivos disso são relativamente claros. Isso significa que a iniciativa estatal não só atinge ramificações dos movimentos sociais diretamente como também influencia as orientações dos movimentos sociais, seja sob forma positiva ou negativa.
Assim, os estudos existentes sobre a relação entre Estado e movimentos sociais, especialmente no que se refere à iniciativa civil, ainda é bem restrita, mais ainda numa perspectiva teórica. No entanto, novas pesquisas começam a ser realizadas e assim podem desencadear tanto reflexões teóricas quanto análises concretas desta relação em sua complexidade e diversidade de formas.
Considerações Finais
A relação complexa entre Estado e movimentos sociais foi aqui esboçada em alguns de seus elementos fundamentais e necessita de novos desdobramentos, o que remete a outras relações não apresentadas e que devem ser incorporadas na análise. A síntese aqui apresentada focalizou o processo mais geral contido nessa relação, através da exposição do efeito das mutações estatais na existência e dinâmica dos movimentos sociais e, posteriormente, a iniciativa estatal e civil na relação direta entre Estado e movimentos sociais. Como ponto de partida, cumpre com o seu objetivo, e abre novos caminhos, tal como a necessidade de analisar esse processo na dinâmica da luta de classes, no processo de disputa entre os blocos sociais, bem como análises concretas de cada época do desenvolvimento capitalista e casos concretos de determinadas ramificações.
A conclusão geral do presente artigo é a de que as mudanças nas formas de Estado (que faz parte da sucessão de regimes de acumulação) atingem os movimentos sociais, de forma direta ou indireta. Em cada forma estatal, alguns movimentos sociais e ramificações são fortalecidos, outros são enfraquecidos, seja por incentivo das políticas estatais, seja por problemas das ações estatais em sua relação com a sociedade civil. Da mesma forma, as formas assumidas pelo Estado capitalista atingem os grupos sociais de base dos movimentos sociais e por isso também podem fortalecer ou enfraquecer um determinado movimento social.
Por outro lado, observamos a existência de várias formas assumidas pela iniciativa estatal voltada diretamente para os movimentos sociais, tais como a cooptação, a burocratização, a repressão e a omissão. Os movimentos sociais, por sua vez, não são apenas receptáculos das ações estatais e por isso apresentamos a iniciativa civil por parte deles e suas duas grandes tendências, a orientação estatista e a orientação civilista. A iniciativa estatal e a iniciativa civil sofrem múltiplas determinações, desde as mais amplas, como o regime de acumulação e a forma estatal, até as especificidades do processo histórico de cada país, governos (composição do bloco dominante), etc. Esse processo nos permite entender melhor a dinâmica relacional direta entre Estado e movimentos sociais.
Por fim, essa análise geral das relações entre Estado e movimentos sociais permite uma percepção da necessidade de análises de casos concretos em que se manifesta tanto a iniciativa estatal quanto a iniciativa civil. Isso abre novos elementos para pesquisas concretas, bem como para aprofundamento teórico.

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* Nildo Viana é Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e pós-doutor pela Universidade de São Paulo. Email: nildo@nildoviana.com
[1] A variedade de definições de movimentos sociais já foi problematizada por alguns autores (GOSS e PRUDÊNCIO, 2004; VIANA, 2016a). É possível entender que há uma certa confusão nas definições de movimentos sociais, pois elas remetem para fenômenos distintos, o que traz a necessidade de discutir a relação entre signo e significado. Não pretendemos realizar tal discussão aqui, mas alertar para sua necessidade para superar os impasses na definição de movimentos sociais.
[2] A análise marxista das classes sociais aponta para uma definição de classe social como conjunto de indivíduos que possuem em comum um determinado modo de vida, determinados interesses e mesma luta contra outras classes sociais derivadas de sua posição na divisão social do trabalho, que, por sua vez, é determinada pelas relações de produção dominantes (VIANA, 2016b). Isso explicita que é uma confusão considerar que Marx e supostos marxistas do século 19 ou mesmo do século 20 abordaram movimentos sociais “tradicionais”, “clássicos”, etc., pois o que eles abordaram foram movimentos de classe, especialmente o movimento operário.
[3] A mudança do nome dessa abordagem está relacionada ou com opção de pesquisadores específicos (teoria da mobilização política é preferência de Maria da Glória Gohn, por exemplo) ou a própria evolução e autodenominação da concepção, que se autodenominou por um tempo como teoria do processo político (embora um grupo restrito no seu interior que vai culminar para a pesquisa das oportunidades políticas) e posteriormente “teoria das oportunidades políticas” até que optou, mais recentemente, por “teoria do confronto político”. Consideramos que uma denominação mais adequada seria abordagem neoinstitucionalista, pois é uma continuidade e desenvolvimento da abordagem institucionalista (chamada “teoria da mobilização de recursos”) que focaliza as organizações, sendo que a concepção derivada inclui as organizações dos movimentos sociais e focaliza o Estado, a principal instituição da sociedade moderna, para explicar os movimentos sociais.
[4] Isso varia dependendo do autor desta abordagem.
[5] As oportunidades políticas são as mais variadas e, em alguns autores dessa abordagem, são acompanhadas de “ameaças” ou “restrições” (TARROW, 2009), e uma restrição pode se transformar em oportunidade, dependendo do caso.
[6] Esse texto é o primeiro capítulo de sua obra Social Movements, 1768-2004. Esta obra foi ampliada e republicada em coautoria posteriormente (TILLY e WOOD, 2010).
[7] Grande parte dos representantes da abordagem neoinstitucionalista (“teoria do processo político”) é oriunda da abordagem institucionalista (“teoria da mobilização de recursos”), tais como Zald, McCarthy, McAdam, entre outros.
[8] Isso é visível, por exemplo, na obra de Tarrow (2009), na qual resume elementos da concepção de Marx, Lênin e Gramsci. De Marx ele retira pouca coisa, especialmente a questão do confronto e descontentamento (e relaciona com as chamadas “teorias do comportamento coletivo”), mas de Lênin destaca a questão da organização e de Gramsci a questão da hegemonia, relacionando o primeiro com a abordagem institucionalista e a última com a abordagem culturalista (mais conhecida como “teoria dos novos movimentos sociais”). No fundo, há outros elementos do pensamento de Lênin que estão presentes na abordagem de Tarrow, como, por exemplo, a questão da revolução e dessa acontecer quando a classe dominante está dividida, gerando o seu discurso sobre “elites divididas”, bem como a necessidade d organização do proletariado e alianças, o que tem semelhança com os alinhamentos de Tarrow, embora ele não faça referências a Lênin nesses aspetos (TARROW, 2009). Devemos destacar que consideramos o leninismo incompatível com o marxismo original (de Marx), tanto no plano político quanto no teórico-metodológico.
[9] O elemento do interacionismo simbólico é retirado da ideia dos “quadros interpretativos” (“frames”) (ALONSO, 2009; GOHN, 2002; TARROW, 2009).
[10] Partimos da distinção de movimentos sociais gerais e movimentos sociais específicos (VIANA, 2016c). Por movimentos sociais gerais abordamos o conjunto dos movimentos sociais e por movimentos sociais específicos abordamos a especificidade de cada movimento social, como, por exemplo, o negro, o estudantil, etc.
[11] Por questão de espaço não poderemos desenvolver uma análise desse processo evolutivo e da relação entre regime de acumulação e Estado, mas algumas obras já realizaram este processo analítico e podem ser consultadas (VIANA, 2015a; VIANA, 2009; BRAGA, 2013; ÓRIO, 2014).
[12] Por modalidade de políticas estatais se entenda uma determinada orientação geral e organizada das mesmas.
[13] O sociólogo T. H. Marshall (1967) destacou o processo evolutivo dos direitos de cidadania, apesar de seu evolucionismo e limites analíticos (VIANA, 2015a), mas sua descrição contribui para percebermos a relação entre forma estatal (em cada regime de acumulação) e a modalidade de políticas estatais.
[14] O nosso foco aqui é o Estado, pois obviamente outras mudanças ocorreram e ajudam a explicar a emergência dos movimentos sociais, bem como as mutações no movimento operário. O desenvolvimento dos meios de comunicação, por exemplo, também teve um impacto positivo na sociedade civil e foi outro elemento que incentivou os primeiros esboços de movimentos sociais, especialmente o movimento feminino e o movimento estudantil.
[15] Aqui ocorre uma ampliação do processo de mercantilização e burocratização (VIANA, 2016a) e a teoria da mobilização de recursos contribui ao descrever a necessidade e ampliação dos recursos disponíveis nesse momento (MCCARTHY e ZALD, 2017).
[16] Alguns autores não definem o que entendem por cooptação, mas apontam para sua existência nos movimentos sociais: “a cooptação e a substituição de líderes são normalmente usadas por todas as grandes instituições para absorver a energia dos movimentos e incorporá-los em sua estrutura” (ALBERONI, 1991, p. 398).
[17] O reconhecimento da existência do processo de cooptação é raro e, quando ocorre, é muitas vezes justificado por representantes de setores aliciantes (GOMES e ALVES, 2017) e de setores cooptados (SANTOS, 2001).
[18] O que alguns contemporaneamente tratam como “judicialização” dos movimentos sociais é apenas mais uma forma de burocratização dos movimentos sociais.
[19] Por questão de espaço não abordaremos as relações evidentes entre cooptação e burocratização, bem como entre esta e o processo de mercantilização. Da mesma forma, não poderemos abordar a burocratização que emerge a partir da sociedade civil (VIANA, 2016a).
[20] Não será possível entrar aqui na polêmica entre os termos “repressão” e “recalcamento”, nem nos problemas derivados e interpretativos.
[21] É isto que distingue a repressão da cooptação e da burocratização, que também visam impedir o desenvolvimento de ações revolucionárias, contestação a governos, etc., mas sem o uso da força.
[22] Della Porta apresenta uma tipologia com quatro elementos: 1) repressivo versus tolerante; 2) seletivo versus difuso; 3) preventivo versus reativo; 4) duro versus brando. Trata-se de um sistema classificatório, tal como Della Porta reconhece, que não é desenvolvido e fundamentado. Em nossa análise, consideramos os itens 2 (com os termos seletivo e generalizado), 3 (com os termos preventivo ou punitivo) e 4 (com os termos violência extrema e violência moderada) e acrescentamos o caráter intensivo e extensivo.
[23] Vários estudos abordam a questão da repressão em casos concretos (BRAGA, 2013; BRAGA, 2016; MARTINS, 1989; BUHL e KOROL, 2008), isso excetuando a enorme quantidade de trabalhos sobre o período de regimes ditatoriais.
[24] É possível encontrar análises de casos concretos, como algumas abordagens do movimento negro (SANTOS, 2001; ANDRADE, 2016), mas não teóricas ou mais gerais, com a exceção de Carrion (1985), que faz uma breve referência.
[25] Viana (2016a) é um dos poucos autores que aborda tais orientações. A ideia de orientação estatista e civilista se inspira em Carrion (1985), que faz tal distinção na orientação dos movimentos sociais usando os termos “deriva estatista” e “deriva civilista”.
[26]Circunstâncias próprias do período ditatorial recente despertaram as possibilidades criativas da sociedade em face do Estado. Disseminaram-se os movimentos sociais e as organizações populares e tudo sugeria, e ainda sugere, uma fase nova de nossa história social marcada pelo protagonismo da sociedade. No entanto, essa curta vivacidade social parece estar entrando em crise, diante de um Estado que foi mais ágil na definição das circunstâncias do agir histórico” (MARTINS, 2000, p. 268).
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Artigo publicado em:
VIANA, Nildo. Estado e Movimentos Sociais: efeitos colaterais e dinâmica relacional. Café com Sociologia. Volume 6, número 3, jul./dez. 2017.

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