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sexta-feira, 23 de novembro de 2018

A CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS



A CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Nildo Viana*
Resumo
O presente artigo analisa o processo de criminalização dos movimentos sociais, suas determinações e consequências. Para tanto apresenta alguns conceitos importantes para o desenvolvimento da análise e esclarece o significado do conceito de criminalização, bem como suas formas de manifestação. A explicação da criminalização ocorre através de sua relação com a repressão estatal. A criminalização é entendida como uma forma de legitimação da repressão estatal, mas que é insuficiente e por isso é abordado também o processo complementar de deslegitimação e incriminação dos movimentos sociais.
Palavras-Chave: Repressão, Crime, Ação coletiva, Deslegitimação, Incriminação.

Abstract
This article analyzes the process of criminalization of social movements, their determinations and consequences. In order to do so, it presents some important concepts for the development of the analysis and clarifies the meaning of the concept of criminalization, as well as its forms of manifestation. The explanation of the criminalization occurs through its relation with the state repression. Criminalization is understood as a form of legitimation of state repression, but it is insufficient and therefore the complementary process of delegitimation and incrimination of social movements is also addressed.
Keywords: Repression, Crime, Collective action, Delegitimation, Injury.

Um tema recorrente nos meios militantes e alguns setores dos meios intelectuais é a questão da criminalização dos movimentos sociais. Apesar da recorrência, há pouca reflexão teórica sobre esta questão. O nosso objetivo no presente texto é justamente esboçar uma contribuição teórica para a discussão sobre o problema da criminalização dos movimentos sociais.
Uma reflexão teórica sobre a criminalização dos movimentos sociais requer esclarecimentos conceituais (movimentos sociais, criminalização e conceitos correlatos e derivados), explicação da razão e forma de criminalização, bem como elementos derivados desse processo analítico. Isso significa que a questão é bem mais complexa do que aparece à primeira vista. O nosso objetivo aqui é justamente realizar esse processo de forma introdutória.
A reflexão sobre este tema aponta para explicitar o que são movimentos sociais, ou seja, deixar claro quem é criminalizado. Existem inúmeras definições de movimentos sociais e por isso não pretendemos realizar tal discussão aqui (GOSS e PRUDÊNCIO, 2004; VIANA, 2016a). Para nosso objetivo é suficiente esclarecer qual conceito vamos utilizar. Os movimentos sociais são movimentos de grupos sociais (JENSEN, 2014; VIANA, 2016a) que surgem devido a uma insatisfação social gerada a partir de uma situação social que, por sua vez, geram senso de pertencimento, mobilização e objetivos (VIANA, 2016a). Assim, as bases sociais dos movimentos sociais são grupos sociais (negros, mulheres, estudantes, etc.) e suas reinvindicações são direcionadas para tais grupos. Isso mostra que movimentos sociais são distintos de movimentos de classes sociais, pois estas possuem outra dinâmica e reivindicações, pois são constituídas na divisão social do trabalho e isso gera interesses e formas de luta distintas, tal como a distribuição de renda, aumento salarial, alteração das condições de trabalho, transformação das relações de produção, etc. (VIANA, 2016a, VIANA, 2016b, JENSEN, 2014). Da mesma forma, os movimentos sociais são distintos de outros fenômenos sociais, incluindo manifestações, protestos, etc. (COSTA, 2016), pois protestos e manifestações, por exemplo, podem ser realizadas por classes sociais, categorias profissionais ou pela multidão (uma parte da população reunindo diversas classes, grupos, etc.). Protestos e manifestações são ações e não movimentos, sendo que os movimentos sociais podem realizar tais atos, mas não podem ser reduzidos a eles. O conjunto de fenômenos que poderiam ser considerados movimentos sociais podem ser ilustrados pelo movimento estudantil, movimento negro, movimento feminino, movimento ecológico, entre outros.
O movimento social só existe quando parte do grupo social de base do mesmo (negros, mulheres, estudantes, ecologistas, etc.) entram em fusão, ou seja, quando se unem e realizam mobilizações. Isso significa dizer que a existência do grupo social não é a mesma coisa que um movimento social. O grupo social pode existir, mas só quando parte dos seus integrantes entram em fusão, ou seja, se unem com determinado objetivo, é que surge um movimento social. As mulheres, por exemplo, sempre existiram como um grupo social, mas o movimento feminino só vai surgir em determinadas condições históricas e sociais. É essa parte do grupo que entra em fusão é que constitui um movimento social e não a totalidade dos indivíduos integrantes do grupo (muitos podem, inclusive, ser contra o movimento social derivado do grupo).
É por isso que temos que dividir o movimento social como um todo e suas ramificações (organizações, representações e ideologias, tendências, etc.). Um movimento social é o conjunto dos indivíduos e ações dos seus integrantes, tal como o movimento negro, feminino, estudantil, entre outros. As ramificações são partes dele, tal como organizações, concepções, tendências, etc. Assim, o movimento estudantil (universitário, mais especificamente) gera um conjunto de organizações, oficiais e extraoficiais (VIANA, 2016c), como a UNE (União Nacional dos Estudantes), DCEs (Diretórios Centrais de Estudantes), CAs (Centros Acadêmicos), associação de casa de estudante, organizações específicas, etc. A UNE é parte do movimento estudantil, uma ramificação do mesmo. A UNE não é “o” movimento estudantil, nem é um movimento social, é uma ramificação de um movimento específico que é o estudantil. Isso vale também para as diversas ideias e concepções existentes no interior do mesmo, bem como suas tendências internas. O movimento negro gera uma diversidade de organizações: UNEGRO, MNU (Movimento Negro Unificado), MNS (Movimento Negro Socialista), etc. O mesmo vale para as distintas tendências (orientações políticas) que podem surgir no mesmo, bem como ideologias, representações, doutrinas, etc. Assim, setores do movimento negro o articulam com o socialismo, o que significa que suas reinvindicações não são apenas as específicas do grupo, mas também a transformação social. Essa concepção desses setores é uma ramificação do movimento negro e não ele como um todo, que convive com outras concepções.
Esclarecido o que entendemos por movimentos sociais, falta esclarecer o que é “criminalização”[1]. De forma mais simples, criminalizar é o ato de tornar criminosa determinada ação. No entanto, o que é um “crime”? Não apontaremos as várias definições de crime, mas vamos partir de uma delas para poder esclarecer o que entendemos por crime. Segundo Durkheim (1995), o crime é um ato que ofende os estados fortes e definidos da “consciência coletiva”[2]. Essa definição é interessante, mas inexata. Um crime é um ato contra a legislação instituída. Essa legislação pode expressar a “consciência coletiva” em uma determinada sociedade, mas isso não ocorre sempre, pois a constituição das leis é um processo derivado da luta de classes e outras lutas sociais, com o predomínio dos interesses da classe dominante[3]. Os atos contrários à “consciência coletiva”, para utilizar expressão durkheimiana, podem ser, em determinado momento histórico, considerados “crimes”, mas em outro não, pois pode ser visto apenas como “imoral”, por exemplo. Em síntese, o crime é um ato que contraria a legislação existente e é esta que define o que é ou não um crime, bem como ela condensa os interesses da classe dominante, tal como o direito à propriedade[4].
Por conseguinte, a criminalização dos movimentos sociais significa tornar crime determinadas ações realizadas por eles. Os exemplos de ações de movimentos sociais que podem ser consideradas crimes são vários: ocupações (de prédios públicos, terras privadas, etc.), atos de depredação, bloqueio de vias públicas, atos de violência contra os policiais, etc.
Uma vez que esclarecemos os conceitos e os fenômenos que estamos analisando, podemos passar para a parte explicativa do processo de criminalização. A criminalização dos movimentos sociais não ocorre aleatoriamente ou ao acaso. Há uma razão para se criminalizar os movimentos sociais. Mas, antes disso, é preciso esclarecer que existem duas formas de criminalizar os movimentos sociais. A primeira forma é a criminalização derivada. A criminalização derivada é o que ocorre quando uma ramificação de um movimento social (organização, por exemplo) realiza um ato que é considerado crime por ser contrário a alguma expressão das relações sociais dessa sociedade que foi cristalizada na lei e que possui uma não-relação direta com as lutas sociais. A legislação, por exemplo, garante o direito de propriedade e já fazia isso antes de existirem movimentos sociais[5]. Por isso é uma criminalização derivada da legislação anteriormente existente.
A segunda forma de criminalização dos movimentos sociais é a direcionada. A criminalização direcionada é aquela voltada especificamente para criminalizar os movimentos sociais (e o movimento operário)[6]. Esse é o caso, por exemplo, da proibição de manifestações sem “aviso prévio às autoridades” ou então, como no caso de uma lei estadual no Rio de Janeiro, que proíbe o uso de máscaras. Segundo a Lei Estadual 6.538/2013, do Estado do Rio de Janeiro, temos o seguinte:
Art. 3º O direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento será exercido:
I - pacificamente;
II - sem o porte ou uso de quaisquer armas;
III - em locais abertos;
IV - sem o uso de máscaras nem de quaisquer peças que cubram o rosto do cidadão ou dificultem sua identificação;
V - mediante prévio aviso à autoridade policial.
§ 1º – Incluem-se entre as armas mencionadas no inciso II do caput as de fogo, brancas, pedras, bastões, tacos e similares.
§ 2º - Para os fins do inciso V do caput, a comunicação deverá ser feita à delegacia em cuja circunscrição se realize ou, pelo menos, inicie a reunião pública para manifestação de pensamento.
§3º – A vedação de que trata o inciso IV do caput deste artigo não se aplica às manifestações culturais estabelecidas no calendário oficial do Estado.
§4º – Para os fins do Inciso V do caput deste artigo a comunicação deverá ser feita ao batalhão em cuja circunscrição se realize ou, pelo menos, inicie a reunião pública para a manifestação de pensamento;
§5º – Considera-se comunicada a autoridade policial quando a convocação para a manifestação de pensamento ocorrer através da internet e com antecedência igual ou superior a quarenta e oito horas.
Portanto, se uma ação coletiva não cumpre com as exigências acima, ela será enquadrada como crime. Se aparecerem manifestantes usando máscaras, isso será crime. Podemos ver também, no Diário da República de Angola I Série nº 20 de 11 de Maio de 1991, a lei sobre o direito de reunião e das manifestações, o seguinte:
ARTIGO 4.°
(Limitações ao exercício do direito)
1. O exercício do direito à reunião e manifestação não afasta a responsabilidade pela ofensa à honra e consideração devidas às pessoas e aos órgãos de soberania.
2. Não é permitida a realização de reuniões ou manifestações com ocupação não autorizada de locais abertos ao público ou particulares.
3. Por razões de segurança, as autoridades competentes poderão impedir a realização de reuniões ou manifestações em lugares públicos situados a menos de 100 metros das sedes dos órgãos de soberania, dos acampamentos e instalações das forças militares e militarizadas, dos estabelecimentos prisionais, das representações diplomáticas ou consulares e das sedes dos partidos políticos.
Outro artigo coloca o seguinte:
ARTIGO 5.°
(Limitações em função do tempo)
1. As reuniões e manifestações não poderão prolongar-se para além da meia-noite, salvo se realizadas em recintos fechados, em salas de espetáculos em edifícios sem moradores ou, em caso de terem moradores, se forem estes os
promotores ou tiverem dado o seu assentimento por escrito.
2. Os cortejos e os desfiles não poderão ter lugar antes das 19.00 horas nos dias úteis e antes das 13.00 horas aos sábados, salvo em situações devidamente fundamentadas e autorizadas[7].
Aqui temos limites impostos pela legislação no que se refere a horários, localização, etc. Outro exemplo é a Lei Antiterrorismo, aprovada em fevereiro de 2016 durante o governo Dilma Roussef, que foi questionada até pela ONU[8]. A definição de “atos de terrorismo” é a seguinte:
“Sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento”[9].
Esta lei apresentaria uma definição de terrorismo que, segundo seus críticos, seria ampla e poderia ser utilizada contra os movimentos sociais:
O ato terrorista ficará sujeito a livre interpretação. Poderá ou não ser, dependerá de quem analisará o acontecimento e também da repercussão nos meios de comunicação. Pretendem criar um fato típico extremamente elástico, adaptável a inúmeras situações que talvez nada terão a ver com o verdadeiro terrorismo. Uma encomenda sob medida para um regime qualquer enquadrar os seus adversários como terroristas (REBOLLA, 2017).
Esses seriam casos de criminalização direcionada. A criminalização direcionada pode ocorrer através da autodeclaração – como no caso da lei estadual do Rio de Janeiro – ou da camuflagem – tal como no caso da lei de antiterrorismo.
Assim, essas duas formas de criminalização (derivada e direcionada) são aspectos importantes para entender uma das formas de relação entre Estado e movimentos sociais. O Estado se relaciona com os movimentos sociais através de um conjunto complexo de relações e tanto através da iniciativa estatal quanto da iniciativa civil (VIANA, 2016a). A iniciativa estatal ocorre através da cooptação, burocratização, repressão, omissão (VIANA, 2016a). Não poderemos tratar da dinâmica relacional entre aparato estatal e movimentos sociais, mas tão somente os elementos dessa relação que nos ajudam a explicar a criminalização. O aparato estatal visa reproduzir as relações de produção capitalistas, o que significa garantir a expressão jurídica dessas relações, ou seja, a propriedade privada[10]. Para garantir esse processo, o aparato estatal usa vários recursos e um dos principais é a legitimação através de ideologias, valores, etc. Quando o processo de legitimação falha, geralmente em épocas de crise de legitimidade, ou então quando as crises no/do capitalismo[11] geram grandes lutas, lhe resta outro recurso: a repressão.
No entanto, a repressão não é utilizada apenas nesse momento. Ela é usada cotidianamente. Sem dúvida, o aparato repressivo combate a criminalidade, mas também os elementos “subversivos”, ou seja, aqueles que são revolucionários. A criminalidade é constituída pelo conjunto de atos criminosos, o que significa que atentam contra as leis vigentes, enquanto que os atos revolucionários são considerados “políticos”, já que seu objetivo é transformar a sociedade. Assim, por exemplo, se um criminoso rouba um indivíduo, ele está infringido a lei por interesse próprio e que torna o objeto do roubo sua propriedade, reproduzindo as relações sociais existentes, mas se um revolucionário distribui panfletos, ele não infringe nenhuma lei (a não ser que seja criada, o que é um processo de criminalização). O processo de repressão também atinge os contestadores e setores das classes trabalhadoras que reivindicam e realizam ações que saem do mero discurso. É possível, de acordo com o aparato jurídico burguês, fazer discurso revolucionário, mas não é possível realizar ações revolucionárias[12]. Da mesma forma, ações coletivas que entram em confronto com os interesses do aparato estatal e do capital são passíveis de repressão. Se uma ramificação de um movimento de luta por moradia ocupa uma propriedade privada ou estatal, a lei será acionada para realizar a “reintegração de posse”. Nesse momento, o aparato repressivo será utilizado para garantir a reintegração de posse, caso isso não seja feito voluntariamente pelos ativistas a partir da decisão judicial e do temor da repressão.
A repressão estatal atinge principalmente os movimentos sociais populares e o movimento estudantil, bem como os movimentos de classes (principalmente do proletariado, campesinato e lumpemproletariado)[13]. Ela também atinge protestos e manifestações (que podem ser geradas por classes sociais, partidos políticos, movimento social, multidão ou diversos responsáveis por sua realização)[14]. No entanto, a repressão é uma faca de dois gumes, pois, sendo considerada injusta, violenta (considerada “brutal” ou “truculenta”), ou seja, se não for legítima, poderá gerar o efeito contrário ao desejado (TARROW, 2009). A repressão precisa ser legítima, pois caso contrário poderá gerar indignação e apoio popular daqueles que foram reprimidos.
Assim, a repressão traz a necessidade de legitimação. É preciso que as ações repressivas sejam consideradas legítimas para não provocar um efeito colateral contrário ao objetivo de reproduzir os interesses da classe capitalista. A criminalização é uma forma de legitimação. Ela é uma legitimação parcial necessária. No entanto, ela é insuficiente. Uma lei que proíbe manifestações de rua pode não ser considera legítima pela maioria da população, por exemplo. Logo, a repressão em relação a uma manifestação de rua é possível devido à criminalização, mas esta nem sempre consegue legitimar essa ação policial.
A criminalização deve, por isso, ser complementada com a deslegitimação da ação coletiva que está sendo reprimida e a sua incriminação. A deslegitimação significa transformar determinada ação em ilegítima. Essa deslegitimação pode ocorrer em relação às suas reivindicações, sua forma de ação, seus ativistas, etc. A deslegitimação dos ativistas pode ocorrer através da classificação negativa[15]. Esse foi o caso das manifestações de junho de 2013, quando a Rede Globo dividiu os manifestantes entre “pacíficos” e “vândalos”. A classificação de uma parte dos manifestantes como “pacíficos” é positiva e a dos demais como “vândalos” é negativa. Esse processo classificatório acima também ajuda a entender a classificação negativa das formas de ação: uma é pacífica (positiva) e outra é depredação e destruição de bens públicos, ou seja, vandalismo (negativa). A deslegitimação em relação às reivindicações é realizada através da contraposição com a lei, moral, valores dominantes, interesses de outros, etc. Assim, quando há ocupação de terra, a deslegitimação aponta para sua ilegitimidade diante da lei, do valor da propriedade individual, dos interesses dos proprietários (legais e legítimos), etc. O caráter de classe de grande parte desse processo de deslegitimação é bem visível:
Considera-se que remover moradores, que ocuparam áreas para moradia ocupadas, para periferias sem infraestrutura fará avançar o progresso com desenvolvimento econômico. O argumento é que ocupam indevidamente propriedades privadas. Procede-se à reintegração de posse, com forte aparato policial, e as manifestações de trabalhadores são punidas violentamente, com poder de polícia. Por outro lado são tidas como manifestações violentas: greves, ocupações de terras para plantar, para morar, passeatas ou demonstrações públicas. Afirma-se que este tipo de manifestação, são violações cometidas pelos inimigos da sociedade, como se os ocupantes, grevistas e outras manifestantes não integrassem a sociedade. Na realidade, com estes discursos, impede-se que estas manifestações sejam entendidas com as que mostram os problemas reais e cotidianos da maioria sociedade (RODRIGUES, 2016, p. 189-190).
A incriminação é outro complemento necessário. A criminalização, tal como foi aqui definida, significa produção de leis que tornam crime determinadas ações, como no exemplo da proibição de uso de máscaras em manifestações no Rio de Janeiro. A deslegitimação dos mascarados é realizada através do questionamento dos seus motivos para usar máscara (tem algo a esconder?) e apontar para um processo de desconfiança em relação a tais pessoas e sua classificação como “vândalos” (ou subversivos), pois o uso de máscara seria para não poder serem punidos pelos crimes que cometeriam. A incriminação significa imputar a alguém uma ação criminosa. A incriminação busca convencer a população de que se trata legitimamente de um crime. Ela possui, portanto, dois elementos: um seria afirmar que é crime e o outro é a busca de convencer que a lei que qualifica determinado ato como criminoso é legítima. A incriminação é realizada através de um discurso legitimador da legislação e da infração da lei por parte dos responsáveis pela ação acusada de ser crime.
A criminalização é um processo real no qual a produção de uma lei torna determinadas ações criminosas e a incriminação é um processo intelectual de afirmar que se trata legitimamente de um crime (pois desrespeita a lei e esta é apresentada como legítima) e que os ativistas são culpados/criminosos. A incriminação é um reforço intelectual (através de valores, concepções, sentimentos) da percepção de que um crime deve ser condenado ou que certas ações são criminosas. Como a lei não é produzida pela população, então uma vez que ela exista e criminalize determinadas ações, então cria-se a necessidade de incriminação, que é uma busca de legitimação da legislação e deslegitimação dos infratores da lei.
A criminalização é uma ação estatal, mas a deslegitimação e incriminação são produzidas tanto pelo aparato estatal quanto pelo capital comunicacional (meios oligopolistas de comunicação), instituições, intelectuais, etc. O processo de deslegitimação e incriminação é produzido no âmbito estatal e também da sociedade civil. Esse processo visa constituir uma corrente de opinião favorável ao processo de criminalização, o que impediria o efeito colateral negativo da indignação da população e possíveis reações coletivas.
Esse processo expressa a realidade cotidiana da relação entre aparato estatal e formas de resistência e luta dos trabalhadores e movimentos sociais. Lisandro Braga, ao analisar o chamado “Massacre de Avellaneda”, em 2002 na Argentina, expressa como esse processo de deslegitimação e incriminação ocorre num caso concreto. Segundo Braga, o conjunto discursivo das matérias do jornal Clarín apontava para ocultar a realidade do massacre e produzir uma “corrente de opinião favorável ao poder”. Acrescenta que:
A verdade é que o jornal Clarín deliberadamente ocultou a responsabilidade da repressão policial pelas mortes dos dois piqueteiros e insinuou, durante todos os discursos veiculados naquela edição, que o movimento piqueteiro especialmente os setores apresentados como duros, mais radicalizados, violentos e antidemocráticos, eram os responsáveis pela escalada de violência. A forma como o Clarín realizou esse processo de criminalização contou com a estratégia discursiva de implicitamente afastar a responsabilidade pelas mortes do aparato policial, alegando ser a crise a responsável pelas mesmas, deixando “livre” para intepretações (não se sabe ainda quem disparou; só se sabe que os dois jovens morreram por impactos de bala), e, ao mesmo tempo, fornecendo explicitamente elementos que induzam a uma interpretação extremamente parcial de que foram os próprios piqueteiros, que por isso eram constantemente apresentados como violentos e antidemocráticos, a Aníbal Verón – o setor dos piqueteiros duros, setor piqueteiro mais radicalizado, caóticos, vândalos, delinquentes, agressores, armados e dispostos ao enfrentamento (e outras inúmeras caracterizações negativas, apresentadas sistematicamente pelo capital comunicacional), e que de forma deliberada tais setores buscavam a morte de alguns piqueteiros para poder tirar proveito político dessa situação.
O autor mostra como que no caso concreto do jornal Clarín se utilizou o processo de deslegitimação (a classificação negativa da ala radical do movimento piqueteiro como “duros”, “vândalos”, “delinquentes”, etc. e a de suas formas de ação e interesses), bem como buscou incriminar os piqueteiros. O processo de atribuição de caráter violento aos piqueteiros é uma forma de classificação e de incriminação, pois não só classifica negativamente os militantes, como também os tornam criminosos pela linguagem utilizada, o que significa um processo de incriminação. Assim, criminalização, deslegitimação, incriminação andam juntas e os casos concretos confirmam sua inseparabilidade.
O nosso objetivo foi apresentar uma reflexão sobre a questão da criminalização dos movimentos sociais. A questão da criminalização remete, necessariamente, ao problema da repressão e das formas de justificação de ambas, o que explica sua razão de ser e suas formas e elementos derivados. Esse processo analítico aponta para novas questões que precisam ser desenvolvidas e aprofundadas a partir de novas reflexões e pesquisas.
Referências

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* Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília.
[1] A questão da criminalização é geralmente abordada juntamente com a questão da repressão (BRAGA, 2013; BRAGA, 2016; MARTINS, 1989; BUHL e KOROL, 2008) e mais adiante estaremos abordando a relação entre esses dois fenômenos.
[2] Durkheim, posteriormente, abandonaria a expressão “consciência coletiva” e passaria a utilizar “representações coletivas” (DURKHEIM, 1996), mas o conteúdo da definição é o mesmo.
[3] Marx apresenta uma concepção crítica sobre o crime e seu envolvimento com as classes sociais e com a totalidade da sociedade capitalista: “Um filósofo produz ideias, um poeta versos, um pastor sermões, um professor manuais etc. Um criminoso produz crimes. Se considerarmos um pouco mais de perto a relação que existe entre este ramo da produção e o conjunto da sociedade, revelaremos muitos preconceitos. O criminoso não produz apenas crimes, mas ainda o Direito Penal, o professor que dá cursos sobre Direito Penal e até o inevitável manual onde esse professor condensa o seu ensinamento sobre a verdade. Há, pois, aumento da riqueza nacional, sem levarmos em conta o prazer do autor. O criminoso produz ainda a organização da polícia e da Justiça penal, os agentes, juízes, carrascos, jurados, diversas profissões que constituem outras categorias da divisão social do trabalho, desenvolvendo as faculdades de espírito, criando novas necessidades e novas maneiras de satisfazê-las. Somente a tortura possibilitou as mais engenhosas invenções mecânicas e ocupa uma multidão de honestos trabalhadores na produção desses instrumentos. O criminoso produz uma impressão, que pode ser moral ou trágica; desta forma ele auxilia o movimento dos sentimentos morais e estéticos do público. Além dos manuais de Direito Penal, do Código Penal e dos legisladores, ele produz arte, literatura, romances e mesmo tragédias. O criminoso traz uma diversão à monotonia da vida burguesa; defende-a do marasmo e faz nascer essa tensão inquieta, essa mobilidade do espírito sem a qual o estímulo da concorrência acabaria por embotar. O criminoso dá, pois, novo impulso às forças produtivas…” (apud. LEFEBVRE, 1979, p. 68-69).
[4] A criminologia crítica vai apresentar a tese da emergência do crime e sua relação com as “sociedades proprietárias” (TAYLOR; WALTON; YOUNG, 1980).
[5] A partir do conceito de movimentos sociais que utilizamos, ao contrário de outros autores que usam um termo muito mais amplo (McCARTHY e ZALD, 2017; FRANK e FUENTES, 1989), e dos fenômenos que abarcamos ao utilizá-lo, os movimentos sociais somente surgem na sociedade capitalista (VIANA, 2016a). Essa compreensão é também defendida pela abordagem neoinstitucionalista (também conhecida como “teoria do processo político”, entre outras denominações) dos movimentos sociais (TARROW, 2009), mas tendo outros pressupostos. É somente quando emerge uma sociedade civil organizada e há o desenvolvimento de meios de comunicação e transporte, que se torna possível a “fusão” de parte do grupo social que faz emergir os movimentos sociais, o que não era possível em sociedades pré-capitalistas, pois se já existiam situações sociais que geravam insatisfações, não existia condições para gerar o senso de pertencimento, o estabelecimento de objetivos e mobilização (VIANA, 2016a). Alguns grupos sociais, por sua vez, somente emergem no capitalismo (estudantes, ecologistas, pacifistas, etc.), o que, obviamente, que o movimento social derivado também só pode surgir nessa sociedade.
[6] O movimento operário é mais visado no processo de criminalização, pois suas lutas, interesses, etc., entram em confronto direto com a classe capitalista e o aparato estatal. No entanto, não focalizamos o movimento operário por ser um movimento de classe e não um movimento social, tal como distinguimos anteriormente.
[10] Marx apontou para o caráter de todo estado ser uma “associação da classe dominante” (MARX e ENGELS, 1983) para fazer valer os seus interesses de classe e o caráter do Estado capitalista, “comitê para gerir os interesses da burguesia” (MARX e ENGELS, 1988). Uma das formas utilizadas pelo aparato estatal para garantir os interesses da classe dominante é o aparato jurídico. O objetivo fundamental do aparato estatal na sociedade moderna é garantir a reprodução das relações de produção capitalistas, ou seja, o processo de produção e apropriação de mais-valor pela classe capitalista, gerando a acumulação de capital. No plano jurídico isso aparece como preservação da “propriedade privada”, que segundo Marx (1989) é uma expressão jurídica dessas relações de produção, o que significa dizer que é a forma ideológica na qual o direito traduz tais relações.
[11] Crises no capitalismo são recorrentes e assumem várias formas, como crises financeiras, políticas, etc. Crise do capitalismo é quando o processo de reprodução dessa sociedade está ameaçado, o que ocorre em época de revoluções sociais (VIANA, 2014).
[12] O discurso revolucionário existe, mas é marginalizado, sufocado, etc. No entanto, ele não é abertamente proibido. Essa marginalização e sufocamento é sutil, passando pelo domínio do capital da produção cultural, desde o capital comunicacional (“indústria cultural”) ao controle burocrático das instituições de ensino, até chegar aos processos de censura velada que existe no conjunto da sociedade.
[13] Algumas reflexões sobre isso foram desenvolvidas por alguns autores (MARTINS, 2000; VIANA, 2016d; BRAGA, 2016).
[14] É esse processo repressivo específico que faz com que Della Porta aborde especificamente a repressão policial aos protestos (DELLA PORTA, 1999).
[15] Falcone (2011, p. 19) trabalha com uma concepção que tem algumas semelhanças com a nossa, usando o termo “categorização”: “Relacionar o estudo da prática jornalística com a noção de categorização mostra-se relevante quando entendemos que o jornalismo atua discursivamente no processo de categorização de atores e grupos sociais. E isso se dá na construção de modelos cognitivos dominantes, a partir do forte controle dos grupos sociais que têm acesso ao discurso da imprensa”.
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Publicado originalmente em:

VIANA, Nildo. A Criminalização dos Movimentos Sociais. Revista Espaço Acadêmico. Ano 17, num. 202, março de 2018.

Disponível em:

http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/40241/21955

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