Estado e Movimentos
Sociais:
Efeitos Colaterais e
Dinâmica Relacional
State and Social
Movements:
Side Effects and
Relational Dynamics
Nildo Viana*
Resumo:
O
presente artigo aborda a relação entre Estado e movimentos sociais, analisando
tanto os efeitos colaterais das políticas estatais sobre os movimentos sociais
quanto sua dinâmica relacional direta. No primeiro caso, é destacado o processo
de desenvolvimento capitalista e as mudanças na forma do estado, com a
consequente reordenação das políticas estatais e como isso atinge,
indiretamente, os movimentos sociais. No segundo caso, é abordado a relação
direta entre Estado e movimentos sociais, mostrando sua dinâmica relacional
tanto por iniciativa estatal quanto por iniciativa civil. A conclusão geral do
artigo é a de que as mudanças nas formas de Estado (que faz parte da sucessão
de regimes de acumulação) atingem os movimentos sociais, de forma direta ou
indireta. Em cada forma estatal, alguns movimentos sociais e ramificações são
fortalecidos, outros são enfraquecidos, seja por incentivo das políticas
estatais, seja por problemas das ações estatais em sua relação com a sociedade
civil. Da mesma forma, as formas assumidas pelo Estado capitalista atingem os
grupos sociais de base dos movimentos sociais e por isso também podem
fortalecer ou enfraquecer um determinado movimento social. Outra conclusão foi
a de que as várias formas assumidas pela iniciativa estatal voltada diretamente
para os movimentos sociais, tais como a cooptação, a burocratização, a
repressão e a omissão variam de acordo com o país, a época, a correlação de
forças do bloco dominante, entre outras determinações. O mesmo ocorre com os
movimentos sociais e o que denominamos iniciativa civil.
Palavras-chave:
Estado, Movimentos Sociais, Iniciativa Estatal, Iniciativa Civil, Ramificações.
Abstract:
This
article discusses the relationship between State and social movements,
analyzing both the side effects of state policies on social movements and their
direct relational dynamics. In the first case, the process of capitalist
development and changes in the form of the state are highlighted, with the
consequent reordering of state policies and how this indirectly affects social
movements. The general conclusion of the article is that changes in the forms
of state (which is part of the succession of accumulation regimes) affect
social movements, directly or indirectly. In each state form, some social
movements and ramifications are strengthened, others are weakened, either by
stimulating state policies or by problems of state actions in their
relationship with civil society. In the same way, the forms assumed by the
capitalist state affect the basic social groups of social movements and therefore
can also strengthen or weaken a given social movement. Another conclusion was
that the various forms taken by the state initiative endorsed directly for
social movements, such as cooptation, bureaucratization, repression and
omission vary according to the country, the time, the correlation of forces of
the dominant block , among other determinations. The same is true of social
movements and what we call civil initiative.
Keywords:
State, Social Movements, State Initiative, Civil Initiative, Ramifications.
O objetivo do presente artigo é
analisar a relação entre movimentos sociais e Estado. Esse é um tema complexo e
que ganhou várias contribuições, embora não seja uma das temáticas mais
discutidas, no plano teórico, nas análises sobre movimentos sociais. O que
pretendemos focalizar aqui em tal relação são as mutações estatais e seus
efeitos sobre os movimentos sociais e a ação estatal sobre os movimentos
sociais e o processo contrário, ou seja, como agem os movimentos sociais diante
do Estado.
Antes de iniciar nossa abordagem
é preciso fazer alguns esclarecimentos conceituais. Tendo em vista a
diversidade de definições de movimentos sociais e Estado, o que leva a diversas
formas de compreender esses fenômenos e suas relações, então se torna
necessário esclarecer o significado destes dois termos em nossa análise. Os
movimentos sociais já foram definidos por diversas formas e não cabe aqui fazer
um apanhado das diversas definições[1]. Podemos apresentar, como
definição inicial, a ideia de que movimentos sociais são “movimentos de grupos
sociais” (JENSEN, 2014). Essa definição precisa ser complementada (e não
poderemos fazer isso aqui por questão de espaço). Uma definição que toma essa
como ponto de partida e a amplia é a de que os movimentos sociais são
movimentos de grupos sociais que surgem a partir de determinada situação social
que gera insatisfação e, por conseguinte, gera senso de pertencimento,
objetivos e mobilização (VIANA, 2016a).
Cada um desses elementos requer
explicação e conceituação, mas não poderemos realizar isso aqui. Mesmo sem tal
explicitação, o significado do conceito de movimentos sociais fica
relativamente claro. Um acréscimo necessário consiste em distinguir movimentos
sociais de suas ramificações. Assim, temos os grupos sociais de base dos movimentos
sociais (mulheres, negros, estudantes, ecologistas, etc.) e os indivíduos do
mesmo que realizam mobilização (componentes do movimento social) e, ainda, as
ramificações dos movimentos sociais. As ramificações são compostas por
organizações, indivíduos, mobilizações (protestos, manifestações, piquetes,
etc.), ideologias, doutrinas, representações cotidianas, correntes de opinião,
tendências (orientações políticas) no seu interior. Assim, é fundamental
distinguir um movimento social de uma organização mobilizadora que é sua
ramificação (VIANA, 2016a). A UNE (União Nacional dos Estudantes) não é um
movimento social e sim uma ramificação do movimento estudantil. E isso vale
para todas as organizações do movimento estudantil. O conjunto dessas
organizações (mais indivíduos isolados que contribuem com o mesmo, as
representações e formas de consciência geradas, as ações, etc.) formam o todo
que é o movimento estudantil.
Um elemento importante derivado
dessa concepção de movimentos sociais como movimentos de grupos sociais é sua
distinção em relação a movimento de classes sociais (VIANA, 2016a; VIANA,
2016b). As classes sociais são expressões da divisão social do trabalho e os
grupos sociais da corporeidade (negros, mulheres, etc.), cultura (ecologista,
pacifistas, etc.) ou situação social (estudantes, etc.)[2]. A partir dessa distinção
se estabelece uma coerência entre conceito e fenômeno, pois o primeiro trata de
grupos sociais e estes são o fenômeno a ser analisado em suas mobilizações,
excluindo outros fenômenos que as definições muito amplas acabam englobando
(protestos, manifestações, partidos, classes, etc.). Assim, movimentos sociais e
protestos ou manifestações não significam a mesma coisa (COSTA, 2016). Os
movimentos sociais podem realizar protestos e manifestações, mas nem sempre
estes fenômenos são produzidos por eles, pois a multidão, classes, partidos,
etc., também podem realizar tais ações coletivas.
Após esclarecer o que entendemos
por movimentos sociais, então nos resta esclarecer o significado de Estado. O
Estado é uma “relação social de dominação de classe” que, na sociedade moderna,
é mediada pela burocracia (VIANA, 2015a). Essa dominação de classe se
fundamenta no fato de que o Estado moderno é um aparato do capital (VIANA, 2015a)
ou, em outras palavras, uma “associação” da classe dominante (MARX e ENGELS,
1986) ou, ainda, um “comitê para gerir os interesses da burguesia” (MARX e
ENGELS, 1988). Assim, o estado moderno é uma formação estatal específica e os
dois elementos fundamentais de sua especificidade é a classe que o detém e a
mediação da burocracia estatal. Ele, no entanto, não é estático e muda de forma
com as mudanças na sociedade capitalista. Essa mutação formal do estado
capitalista é elemento fundamental para nossa análise dos movimentos sociais.
Isso será abordado adiante.
A relação entre Estado e movimentos
sociais já foi abordada por diversos autores. Aqui partiremos de uma
determinada concepção e por isso não trabalharemos com uma descrição das
diversas abordagens desta relação. Mas é necessário destacar que uma abordagem
dos movimentos sociais oferece uma ênfase na questão do estado, que é aquela que
ficou conhecida como “teoria do processo político” (ALONSO, 2009), “teoria da
mobilização política” (GOHN, 2002), “teoria das estruturas de oportunidades
políticas” (MISOCSKY, FLORES E SILVA, 2008), “teoria do confronto político”,
entre outras denominações (ALONSO e BOTELHO, 2012)[3]. Essa concepção, que
preferimos denominar neoinstitucionalista, produz um quadro analítico que tem
como elementos básicos as oportunidades políticas, estruturas de mobilização,
quadros interpretativos (ou “frames”) e repertórios[4]. No entanto, o elemento
mais importante dessa abordagem é justamente o que remete ao problema estatal,
ou seja, as oportunidades políticas. A ideia básica é a de que os movimentos
sociais surgem ou se desenvolvem quando aparecem oportunidades políticas[5]. Desta forma, o Estado,
aquele que possibilita as oportunidades políticas, é um agente fundamental no
processo explicativo dos movimentos sociais.
Essa abordagem contribui com
algumas reflexões sobre a relação entre movimentos sociais e Estado e por isso
utilizaremos alguns elementos no decorrer da nossa explanação. No entanto, ela
também tem problemas e limites que nos afastam dela. O primeiro elemento é a
sua definição de movimentos sociais, demasiada ampla, que é bem distinta da
nossa. A definição diferente é complementada pela diferença de quais fenômenos
são considerados movimentos sociais. Por último, mas não menos importante, é a
base teórica e metodológica da qual partimos e que entra em contradição com a
da abordagem neoinstitucionalista e isso produz um conjunto de outras
diferenças.
Vamos destacar aqui a definição
de movimentos sociais e sua diferença em relação à nossa concepção. Não existe
uma definição unívoca nessa abordagem. Os diferentes autores, e até um mesmo
autor em distintos momentos, apresenta certas diferenças quando define os
movimentos sociais. Tomemos algumas dessas definições:
Um
movimento social é uma interação sustentada entre pessoas poderosas e outras
que não têm poder: um desafio contínuo aos detentores de poder em nome da população
cujos interlocutores afirmam estar ela sendo injustamente prejudicada ou
ameaçada por isso (McADAM, TARROW, TILLY, 2008, p. 21).
Essa definição é semelhante à
oferecida por um dos autores acima, Charles Tilly, que é a seguinte: um
movimento social é definido como uma “interação contenciosa”, que “envolve
demandas mútuas entre desafiantes e detentores do poder”, em nome de uma
população sob litígio (TILLY, apud. ALONSO, 2009). O mesmo autor também
considera um movimento social como um complexo político combinado de três
elementos:
1)
campanhas de reivindicações coletivas dirigidas a autoridades-alvo; 2) um
conjunto de empreendimentos reivindicativos, incluindo associações com
finalidades específicas, reuniões públicas, declarações à imprensa e demonstrações;
3) representações públicas de valor, unidade, números e comprometimento
referentes à causa. A esse complexo historicamente específico denomino
movimento social (TILLY, 2010, p. 142)[6].
Logo, as definições de
movimentos sociais são semelhantes, mas não exatamente iguais. O elemento
básico da definição é a interação conflituosa e sustentada entre desafiantes e
detentores de poder. Esta definição traz o mesmo problema que diversas outras:
é tão ampla que pode englobar os mais variados fenômenos, tais como partidos,
sindicatos, organizações, classes sociais, manifestações, etc. Essa já é uma
diferença que traz dificuldade para utilizar as suas contribuições, pois o
signo é o mesmo (movimentos sociais), mas o ser, o significado, é outro (a
oposição entre detentores e desafiantes do poder ou movimento de grupos
sociais). A análise dos representantes dessa abordagem envolve uma gama muito
vasta de fenômenos, dentre eles o que nos delimitamos como movimentos sociais,
mas é preciso entender o que é válido ou não nesse caso (não apenas por questão
de concordância, mas também por tratar ou não do fenômeno que focalizamos).
A base teórico-metodológica da
qual partimos difere das bases intelectuais da abordagem neoinstitucionalista.
As fontes inspiradoras dessa tendência podem ser resgatadas na abordagem
institucionalista (mais conhecida como “teoria da mobilização de recursos”)[7], em certos aspectos do
leninismo[8], no interacionismo
simbólico, etc.[9]
Não aparece, nessa abordagem, um arcabouço teórico desenvolvido, nem suas bases
metodológicas, tal como se vê nos grandes representantes da sociologia
(Durkheim, Weber, Parsons, etc.) e em Marx. Os clássicos da sociologia, por
exemplo, elaboraram uma teoria da sociedade e a partir daí abordaram vários
fenômenos específicos (Durkheim e o suicídio, a educação, etc.; Weber e a
religião, a burocracia, etc.), mas os representantes da abordagem
neoinstitucionalista não elaboraram teorias desenvolvidas sobre a sociedade e
mesmo no conjunto de fenômenos que delimitaram, há imprecisões (e mutações) nas
definições, quando não ausência em alguns casos.
Após estes esclarecimentos
introdutórios, vamos iniciar nossa análise da relação entre movimentos sociais
e Estado. Para isso, vamos iniciar tratando da questão mais geral da dinâmica
relacional entre Estado e movimentos sociais e depois da ação estatal em
relação aos movimentos sociais e, por fim, abordaremos a ação dos movimentos
sociais em relação ao estado.
Estado e Movimentos Sociais: Mutação Estatal e Efeito Colateral
A relação entre Estado e
movimentos sociais ocorre em vários planos. Num plano mais geral, uma
determinada forma estatal se relaciona de forma específica com o conjunto dos
movimentos sociais[10]. O Estado capitalista
muda com o desenvolvimento capitalista. O desenvolvimento capitalista, por sua
vez, ocorre através da sucessão de regimes de acumulação (VIANA, 2015a; VIANA,
2009; BRAGA, 2013; ÓRIO, 2014). A cada regime de acumulação emerge uma formação
estatal específica. Assim, temos, sucessivamente, nos países de capitalismo
imperialista (EUA e Europa, principalmente), o Estado liberal (até
aproximadamente metade do século 19), o Estado liberal-democrático (até 1945),
o Estado integracionista (até o final dos anos 1970 e início dos anos 1980,
dependendo do país), o Estado neoliberal (de meados dos anos 1980 até hoje)[11].
A cada forma estatal, o modo de
relação deste com os movimentos sociais se altera. A alteração pode ser vista
nas políticas estatais. Cada forma estatal gera uma modalidade específica de
políticas estatais[12] e isso atinge os
movimentos sociais. Denominamos esse processo como efeito colateral de
determinada modalidade de políticas estatais sobre os movimentos sociais. O
Estado liberal (vigente durante o regime de acumulação extensivo), por exemplo,
gerou uma modalidade liberal que permitia apenas o que foi denominado “direitos
civis”[13]. Para os movimentos
sociais (e o movimento operário), isso era um obstáculo, pois tratava-se apenas
das liberdades individuais e direito à propriedade.
As lutas operárias promoveram um
processo de mutação social e com o novo regime de acumulação (intensivo),
emergiu o Estado liberal-democrático, que passa a incluir os “direitos
políticos”, o que pode ser notado com a substituição da democracia censitária
para a democracia representativa, com a legalização de partidos e sindicatos
(VIANA, 2015a). É nesse contexto que emerge a “sociedade civil organizada”, com
o direito de associação, etc. Assim, a modalidade liberal-democrática de
políticas estatais possibilita o surgimento, mesmo que embrionário, dos
movimentos sociais[14].
As revoluções proletárias
inacabadas (Rússia, Alemanha, Hungria, Itália, Espanha) e a ascensão do
nazifascismo, que gerou um regime de acumulação específico e temporário em
alguns países, que podemos denominar regime de acumulação bélico (VIANA, 2015b),
promoveu após 1945 a emergência de um novo regime de acumulação e, por
conseguinte, uma nova forma estatal. O regime de acumulação conjugado gerou o
Estado integracionista (também chamado de “providencial” ou “de bem estar
social”), o fordismo como forma hegemônica de organização do trabalho e a
expansão do capital oligopolista transnacional. A modalidade integracionista de
políticas estatais e a emergência do que se chamou “direitos sociais”
(MARSHALL, 1967), aliado com as outras mudanças sociais (aumento da renda e
consumo, por exemplo), incentiva o surgimento de novos movimentos sociais, pois
uma vez satisfeita as necessidades básicas por parte da população, novas
reivindicações emergem, bem como aumentam os recursos disponíveis[15].
A crise do regime de acumulação
conjugado a partir da segunda metade de 1960 gerou um novo regime de acumulação
que emerge a partir dos anos 1980, o regime de acumulação integral. O Estado
neoliberal gera uma nova modalidade nas políticas estatais que tem como uma de
suas características a diminuição dos gastos estatais (especialmente com as
políticas de assistência social) e a instituição de políticas segmentares (para
determinados segmentos sociais, ao invés de políticas universais, tal como as
da modalidade integracionista). Essa é a época das “ações afirmativas” e outras
iniciativas semelhantes. O resultado disso é um fortalecimento de certos
setores dos movimentos sociais e a transformação de outros em organizações
burocráticas, etc.
Assim, a modalidade de políticas
estatais realizam impactos sobre os movimentos sociais, que podem ser
incentivando ou restringindo suas possibilidades (financeiras, políticas,
etc.). Elas podem abrir “oportunidades políticas”, como já diziam os
representantes da abordagem neoinstitucionalista, ou criar obstáculos, bem como
atingir diferentemente os movimentos sociais (TARROW, 2009), gerando
oportunidades para grupos específicos (TARROW, 1999). Uns podem ser
beneficiados e outros prejudicados com uma mesma política estatal ou pode até
mesmo aumentar o conflito entre grupos sociais de base de cada um, reforçando
suas tendências extremistas e opostas, tal como no caso de políticas em relação
às mulheres e negros que gera descontentamento e reação de homens e brancos,
respectivamente.
Sem dúvida, os regimes de
acumulação e formas estatais não são estáticos e por isso ocorrem mutações no
seu interior, denominados como ciclos, marcados por seu processo de formação,
consolidação e desestabilização e/ou crise (VIANA, 2015b). As políticas
estatais, nesses diversos momentos, atingem diferentemente os movimentos
sociais. Por exemplo, em épocas de desestabilização e/ou crise, tende a gerar
radicalização em setores dos movimentos sociais e fortalecer suas tendências
revolucionárias ou contestadoras e aumentar a competição entre outros setores
pelos benefícios estatais ou recursos da sociedade civil. Foi esse o processo
que ocorreu na segunda metade dos anos 1960, quando iniciou a crise do regime
de acumulação conjugado.
No entanto, uma modalidade de
política estatal não é imutável e nem homogênea. Ela assume formas distintas em
momentos diferentes e dependendo da correlação de forças dos blocos sociais,
mais especialmente no interior do bloco dominante (VIANA, 2015c). A mudança de
partidos no governo pode gerar alterações no interior dessa modalidade de política
estatal e isso pode atingir sob forma distinta os movimentos sociais. A modalidade
neoliberal no Brasil, durante os governos de Collor, Itamar Franco e FHC se
manteve nos governos petistas posteriores, mas com algumas alterações (BOITO
JR, 2004; VIANA, 2015d; MAIA, 2016). Esse processo gerou diferenciação no
interior de uma unidade que é a modalidade neoliberal. É por isso que a
composição do bloco dominante e a correlação de forças no seu interior e entre
os blocos sociais, bem como a pressão popular, podem gerar mudanças no interior
da modalidade de políticas estatais e assim beneficiar ou prejudicar
determinados movimentos sociais ou setores deles.
Um outro plano é quando a ação
estatal desencadeia reação da população, como, por exemplo, a guerra, que é um
incentivo para a emergência do movimento pacifista. Várias ações estatais mais
esporádicas ou temporárias acabam influenciando os movimentos sociais, seja de
forma positiva ou negativa. A ameaça de guerra nuclear, ou programas de
desenvolvimento de energia nuclear, entre outras, podem incentivar ou
fortalecer setores do movimento ecológico. Determinadas políticas rurais podem
beneficiar ou incentivar setores de movimentos sociais rurais, num primeiro
momento, e enfraquecê-los drasticamente num segundo momento. A construção de
uma barragem, por exemplo, pode colocar uma organização mobilizadora contra a
mesma em evidência, mas após sua construção e consolidação, ela perde sua força
e pode até deixar de existir.
Os demais aspectos dessa relação
e outros planos menos influentes não poderão ser abordados aqui por questão de
espaço. No entanto, o que abordamos até aqui foi a relação indireta entre
Estado e movimentos sociais, ou seja, como que as políticas estatais atingem,
indiretamente (embora inclua também alguns elementos diretos, tal como no caso
da modalidade neoliberal) os movimentos sociais. Mas existem políticas e ações
estatais voltadas diretamente para os movimentos sociais, bem como destes em
relação ao aparato estatal. Esses elementos serão abordados a seguir.
Estado e Movimentos Sociais: A Iniciativa Estatal
Uma das formas de relação direta
entre Estado e movimentos sociais surge a partir da iniciativa estatal. A
iniciativa estatal endereçada para os movimentos sociais (ou um movimento
social específico, ou, ainda, setores, ramificações, organizações, etc. dos
mesmos) pode assumir a forma de cooptação, de burocratização e de repressão.
Uma outra forma de relação do aparato estatal com os movimentos sociais por
decisão sua é a omissão, embora essa não seja exatamente uma “iniciativa” ou “atuação”.
A forma mais comum de atuação
estatal em relação aos movimentos sociais é a cooptação. O que significa
cooptação? A definição clássica de cooptação é a do sociólogo Philip Selznick:
Definimos
previamente este conceito como “o processo de absorção de novos elementos na
liderança ou estrutura de decisões políticas de uma organização, como meio de
evitar ameaças à sua estabilidade ou existência”. Este mecanismo geral adquire
duas formas básicas: cooptação formal, quando há necessidadede estabelecer a legitimidade
da autoridade ou de tornar a administração acessível ao público a que se
dirige; e cooptação informal quando há necessidade de ajustamento às pressões
de centros específicos de poder na sociedade (SELZNICK, 1978, p. 93).
Uma outra definição de cooptação
é a seguinte: “a capacidade de integrar atores estratégicos ao poder dominante
usando mecanismos informais (prebendas, dinheiro) e formais na integração ao
sistema de partidos” (GERSCHEWSKI, apud. TREK e ARÉVALO, 2015, p. 471). Essas duas concepções de
cooptação são úteis para pensarmos a cooptação dos movimentos sociais. Um
elemento comum é que trata-se da “integração” de “atores” ou “lideranças”. Num
caso, trata-se de cooptação por uma organização e noutro pelo “poder
dominante”. Em ambos há a distinção do aspecto formal e informal, mas
compreendidos de forma bem diferente.
Dessas duas definições podemos
derivar uma mais adequada ao fenômeno real. Consideramos que cooptação é o
processo pelo qual as organizações burocráticas conseguem aliciar determinados
indivíduos ou organizações através de sua adesão em troca de benefícios
pessoais diretos (para os indivíduos) ou indiretos (para as organizações, o que,
obviamente, gera benefícios igualmente pessoais para os integrantes destas). Ela
é uma relação de aliciamento por parte de uns (as organizações burocráticas) e
adesão por parte de outros (os cooptados). O aliciamento é feito através de
oferecimento de cargos, financiamento, etc. em troca da adesão. A adesão pode
ser formal (através de cargos, na qual os indivíduos se integram hierarquia
burocrática e passa a defender os interesses desta e diz representar o seu
grupo social no seu interior) ou informal (via apoio, dedicação, etc.). Os
aliciadores são, geralmente, os estratos superiores da burocracia e os
cooptados são, geralmente, burocratas informais, líderes ou ativistas.
No caso do aparato estatal e sua
relação direta com os movimentos sociais, a cooptação pode ser direta ou
indireta[16].
A cooptação direta é quando burocratas informais, líderes ou ativistas dos
movimentos sociais são integrados na burocracia estatal para apoiarem governos
ou o aparato estatal. A cooptação indireta ocorre quando ocorre financiamento,
promessas, etc. (VIANA, 2016a). O problema da cooptação dos movimentos sociais
já foi abordado por diversos autores, seja no plano teórico ou em casos
concretos (VIANA, 2016a; DRUCK, 2006; IGLESIAS, 2015; OFFE, 1996; ALBERONI,
1991). No caso brasileiro, o processo de cooptação durante o Governo Lula foi
alvo de diversas pesquisas (DRUCK, 2006; IGLESIAS, 2015; CORREA, 2013; GOMES e
ALVES, 2017)[17].
O processo de cooptação estatal
direta pode ocorrer através da absorção de burocratas informais, líderes e
ativistas dos movimentos sociais no aparato estatal (criando cargos,
ministérios, secretarias, etc.). Ele também pode ocorrer através da cooptação
indireta via aparelhamento de organizações mobilizadoras, o que pode ser feito
via substituição de líderes, financiamento e mutação dos mesmos, promessas para
os grupos sociais de base dos movimentos sociais, como as chamadas “ações
afirmativas”, que conseguem adesão de pessoas que nem sequer possuem a
possibilidade de usufruir delas, pela simples esperança de poder ter acesso a
elas.
Outra forma de iniciativa
estatal direcionada para os movimentos sociais é a burocratização. A
burocratização pode ser entendida como o processo de formação da burocracia ou
o processo em que as organizações passam ser seus próprios fins (LAPASSADE, 1999).
A burocratização também pode ser compreendida como a extensão do controle
burocrático para além das organizações burocráticas (EISENSTADT, 1978). Pierre
Cardan (Cornelius Castoriadis) apresenta uma concepção diferente:
Por burocratização
entendemos uma estrutura social na qual a direção das atividades coletivas está
nas mãos de um aparato impessoal, organizado de maneira hierárquica, e que atua
supostamente com de acordo com critérios e métodos racionais e racionais
economicamente privilegiados e compostos de acordo com as regras que,
estritamente falando, ele próprio dita e aplica (Apud. LAPASSADE, 1999, p.
141).
Outra forma de conceber a
burocratização é a que a considera um processo de ampliação do controle na
sociedade, o que ocorre sob várias formas: ampliação da quantidade de
organizações burocráticas, transformação de organizações autárquicas
(não-burocráticas) em burocráticas, ampliação e intensificação do controle
social via burocracia, etc. (VIANA, 2017). Essa concepção é mais adequada por
englobar as demais e não se limitar ao caso das chamadas “sociedades
burocratizadas”, vulgo “socialismo real”, tal como abordado por
Cardan/Castoriadis.
A burocratização dos movimentos
sociais como controle burocrático sobre os mesmos ocorre via legislação, financiamento
(que gera controle sobre contas e aspectos organizacionais, etc.), exigência de
regulamentação (para o reconhecimento de organizações mobilizadoras, por
exemplo). Assim, quando a burocracia estatal delimita os locais em que pode
haver reunião, manifestação, ou o trajeto de uma passeata, ela realiza um
processo de controle, ou seja, de burocratização. Quando o aparato estatal
financia uma organização mobilizadora e exige prestação de contas (detalhadas e
delimitadas por lei, regimento, edital, etc.), projetos, compromissos, etc.,
está efetivando controle, burocratização. Da mesma forma, quando exige de uma
organização mobilizadora que tenha regimentos, que seja registrada, o que pressupõe
seguir a imposição da legislação existente, também realiza burocratização[18].
Esse processo está intimamente
ligado ao processo de burocratização através da transformação de organizações
mobilizadoras autárquicas em organizações burocráticas. Quando mais dinheiro,
crescimento, divisão do trabalho, regulamentos, vínculos com o aparato estatal,
maior é a tendência a transformação em organização burocrática, o que
significa, simultaneamente, um crescimento de organizações burocráticas[19]. Uma organização
mobilizadora quando se torna burocrática deixa de ser ramificação de um
movimento social, mudando seu caráter, mesmo que mantenha o discurso de lutar
pelos interesses do grupo social de base, pois isso é apenas uma forma de
legitimar e justificar sua existência.
A repressão é outra forma de
ação estatal diretamente endereçada aos movimentos sociais. O termo
“repressão”, pelo que sabemos, não tem desenvolvimento no interior das ciências
humanas e, mais especificamente, da sociologia, apesar de sua utilização
constante tanto na linguagem cotidiana quanto na linguagem complexa do
pensamento científico. Apenas a psicanálise, a começar por Freud (1987)[20], tratou desse conceito de
forma mais aprofundada. No âmbito da sociologia, Della Porta define “repressão
policial” como “o modo como a polícia controla os atos de protesto” (1999, p.
101).
Entendemos por repressão um modo
de reação que busca impedir uma determinada ação. É um modo de reação por ser uma forma específica de reagir e faz isto em
relação a uma outra ação. Uma ação pode gerar outros modos de reação, tal como
a aceitação ou omissão. O uso de linguagem vulgar por uma criança, por exemplo,
pode ser acompanhada pela omissão, aceitação ou repressão (busca de impedimento
através da censura, castigo, etc.) por parte de um adulto. A sua especificidade
está, portanto, no modo de reagir, que é através do impedimento. Algo mais
específico é a repressão estatal. Esta pode ser entendida como o modo de reação
estatal que busca impedir uma determinada ação através do uso da força (os
aparatos repressivos: exército, polícia, etc.)[21]. A repressão policial,
abordada por Della Porta, é apenas uma das formas da repressão estatal, pois a
repressão estatal não controla apenas atos de protesto, mas também
organizações, ideias, etc. A repressão aos Panteras Negras, nos EUA do final
dos anos 1960, ou à UNE, no Brasil durante o regime ditatorial, mostram esse
processo no caso de organizações. A censura nos regimes ditatoriais legitima a
repressão que ocorre através de apreensão e destruição de materiais, punição
dos autores e responsáveis pela divulgação, etc. Ela também atinge os
movimentos sociais, especialmente seus setores mais radicais.
A repressão assume duas formas
básicas: preventiva e punitiva[22]. A repressão preventiva é
aquela que busca impedir que ocorra uma ação. A prisão de ativistas antes de
uma manifestação pode desencorajar sua realização. A repressão punitiva pode
ser efetivada durante uma manifestação ou após ela (buscando prender os
“líderes” através de acusações de infração da lei). Ela também pode ser
seletiva ou generalizada (VIANA, 2016a), ou seja, pode atingir apenas certos
indivíduos, organizações, movimentos sociais, ou todos. A repressão seletiva
pode ser vista no caso de atingir os líderes ou ativistas de determinada organização;
enquanto que a generalizada, mais comum em regimes ditatoriais e momentos de
crise, e pode ser vista no caso da ditadura no Brasil, cuja censura foi não só
para movimentos sociais (especialmente o movimento estudantil), mas para
partidos, organizações, etc. A repressão seletiva visa mais as tendências
revolucionárias, os movimentos sociais populares, etc.(VIANA, 2016a)[23].
A repressão estatal também pode ser marcada
por violência extrema ou violência moderada. Quando o uso da força é exagerado,
agredindo e ferindo muitos ativistas ou manifestantes, é uma violência extrema.
Quando a violência é limitada e atinge apenas os mais radicais, é moderada. A
primeira tem a desvantagem de criar uma corrente de opinião contrária em
setores da população. Outro elemento é que a repressão estatal pode ser
intensiva ou extensiva. Ela é intensiva quando age com força (violência
extrema) e extensiva quando atinge um espectro mais amplo de movimentos sociais
(VIANA, 2016a).
Além destas formas, ainda existe
a possibilidade da omissão. A omissão é quando o Estado não age diante dos
movimentos sociais. Isso pode ocorrer pela pouca força de determinadas
ramificações de determinados movimentos sociais ou então, o que é mais comum,
quando o aparato estatal não quer agir contra um movimento social específico,
ou ramificação de um movimento social. Isso ocorre principalmente no caso de
movimentos sociais conservadores, diante dos quais o Estado não age (VIANA,
2016a).
Por fim, é preciso deixar claro
que essas ações estatais não ocorrem da mesma forma em relação a todos os
movimentos sociais ou todas as tendências dos movimentos sociais. A cooptação é
mais comum para as tendências reformistas, enquanto que a repressão é mais
comum em relação aos movimentos sociais populares e tendências revolucionárias.
A burocratização é generalizada, mas atinge menos os movimentos sociais
populares e tendências revolucionárias. A omissão é mais frequente no caso dos
movimentos sociais conservadores. Isso se altera historicamente, tanto pela
forma do Estado como pela situação do regime de acumulação. Em síntese, o que
apresentamos aqui foi uma forma geral pela qual o Estado atua em relação aos
movimentos sociais. Outros aspectos derivados foram omitidos por questão de
espaço, tal como a questão da criminalização, que é uma forma de justificar e
legitimar a repressão estatal, para citar apenas um exemplo.
Estado e Movimentos Sociais: A Iniciativa Civil.
A relação entre Estado e
movimentos sociais pode surgir através da iniciativa estatal ou da iniciativa
civil. O que denominamos “iniciativa civil” é a ação dos movimentos sociais em
relação ao aparato estatal, ou seja, oriunda da sociedade civil. A posição e
ação dos movimentos sociais em relação ao aparato estatal é muito menos
pesquisada e por isso é mais difícil encontrar estudos e pesquisas a este
respeito[24].
A orientação dos movimentos
sociais (ou, mais exatamente, de ramificações de movimentos sociais) em relação
ao estado pode ser estatista ou civilista[25]. A orientação estatista é
quando ramificações (setores, organizações) dos movimentos sociais buscam um
vínculo orgânico com o aparato estatal. Isso pode ocorrer sob a forma
utilitarista, que é a busca de financiamentos, recursos, convênios, etc. Também
pode ocorrer por via composicionista, pois transforma o aparato estatal em alvo
de suas reivindicações (reformas legislativas, políticas estatais segmentares,
etc.), o que não impede apelar para ele também para conseguir recursos. Por
fim, há também a forma partidarista, que é caracterizada por organizações,
indivíduos, etc., ligados a setores e organizações dos movimentos sociais
aparelhadas por partidos políticos e seu objetivo é espaços no aparato estatal
e/ou sua conquista (pelo partido do qual faz parte).
O vínculo utilitarista é muito
comum e é realizado por todas as organizações mobilizadoras que busca recursos
ou financiamentos estatais, o que exclui, obviamente, organizações
burocráticas, ONGs e outras. São geralmente pequenas organizações que para
sobreviver buscam apoio financeiro governamental (e privado, em alguns casos). O
vínculo composicionista pode ser visto, por exemplo, no caso da Frente Negra
Brasileira, uma organização do movimento negro que existiu desde 1931 e era
marcada por uma organização forte e que acabou se transformando em partido
político.
O vínculo partidarista pode ser
visto em vários momentos da UNE (União Nacional dos Estudantes), geralmente
atrelada ao partido que ganha o Congresso e depois da redemocratização foi
conquistada na maioria das vezes pelo PCdoB (Partido
Comunista do Brasil) e dessa organização saíram diversos candidatos e futuros
políticos profissionais. A lista de ex-presidentes da UNE mostra que a maioria
se candidatou e muitos foram eleitos a cargos públicos pelo PCdoB.
A orientação civilista pode
assumir três formas: externalista, independente e antiestatista. As suas
primeiras formas são próximas e são mais propensões do que uma posição política
consciente. A propensão externalista é mais comum nos movimentos sociais
populares, que ficam à margem e sem grandes contatos com o aparato estatal,
embora muitas vezes façam reivindicações para o mesmo. Esse é o caso de
movimentos de bairros, luta por moradia, etc. A propensão independente possui
maior contato com o aparato estatal, mas assume uma posição de independência. É
o caso de setores dos movimentos sociais populares, tal como ocorreu em grande
parte deles em 1970 (TELLES, 1987) e em setores do movimento estudantil. A
forma antiestatista é representada por algumas ramificações e tendências nos
movimentos sociais que expressam uma posição anarquista, autonomista ou
marxista autogestionária ou então influenciadas por concepções políticas como o
comunismo conselhista ou situacionismo.
A orientação civilista muda
historicamente de acordo com as mudanças sociais, bem como pode passar de uma
forma para outra. Em um mesmo movimento social, como, por exemplo, o movimento
negro, as três formas de orientação podem coexistir, só que em ramificações diferentes.
Uma pequena associação cultural negra pode ser externalista ou antiestatista e
conviver com outras tendências, inclusive de orientação estatista, nas suas
variadas formas.
A predominância da orientação
estatista ou civilista varia de acordo com a época e lugar. No Brasil, nos anos
1970, durante o regime ditatorial, a orientação civilista era hegemônica, por
razões obvias[26].
O Brasil durante os governos petistas já passou a ter a orientação estatista
como hegemônica e os motivos disso são relativamente claros. Isso significa que
a iniciativa estatal não só atinge ramificações dos movimentos sociais
diretamente como também influencia as orientações dos movimentos sociais, seja
sob forma positiva ou negativa.
Assim, os estudos existentes
sobre a relação entre Estado e movimentos sociais, especialmente no que se
refere à iniciativa civil, ainda é bem restrita, mais ainda numa perspectiva
teórica. No entanto, novas pesquisas começam a ser realizadas e assim podem
desencadear tanto reflexões teóricas quanto análises concretas desta relação em
sua complexidade e diversidade de formas.
Considerações Finais
A relação complexa entre Estado
e movimentos sociais foi aqui esboçada em alguns de seus elementos fundamentais
e necessita de novos desdobramentos, o que remete a outras relações não
apresentadas e que devem ser incorporadas na análise. A síntese aqui apresentada
focalizou o processo mais geral contido nessa relação, através da exposição do
efeito das mutações estatais na existência e dinâmica dos movimentos sociais e,
posteriormente, a iniciativa estatal e civil na relação direta entre Estado e
movimentos sociais. Como ponto de partida, cumpre com o seu objetivo, e abre
novos caminhos, tal como a necessidade de analisar esse processo na dinâmica da
luta de classes, no processo de disputa entre os blocos sociais, bem como
análises concretas de cada época do desenvolvimento capitalista e casos
concretos de determinadas ramificações.
A conclusão geral do presente
artigo é a de que as mudanças nas formas de Estado (que faz parte da sucessão
de regimes de acumulação) atingem os movimentos sociais, de forma direta ou
indireta. Em cada forma estatal, alguns movimentos sociais e ramificações são
fortalecidos, outros são enfraquecidos, seja por incentivo das políticas
estatais, seja por problemas das ações estatais em sua relação com a sociedade
civil. Da mesma forma, as formas assumidas pelo Estado capitalista atingem os
grupos sociais de base dos movimentos sociais e por isso também podem
fortalecer ou enfraquecer um determinado movimento social.
Por outro lado, observamos a
existência de várias formas assumidas pela iniciativa estatal voltada
diretamente para os movimentos sociais, tais como a cooptação, a
burocratização, a repressão e a omissão. Os movimentos sociais, por sua vez,
não são apenas receptáculos das ações estatais e por isso apresentamos a
iniciativa civil por parte deles e suas duas grandes tendências, a orientação
estatista e a orientação civilista. A iniciativa estatal e a iniciativa civil
sofrem múltiplas determinações, desde as mais amplas, como o regime de
acumulação e a forma estatal, até as especificidades do processo histórico de
cada país, governos (composição do bloco dominante), etc. Esse processo nos
permite entender melhor a dinâmica relacional direta entre Estado e movimentos
sociais.
Por fim, essa análise geral das
relações entre Estado e movimentos sociais permite uma percepção da necessidade
de análises de casos concretos em que se manifesta tanto a iniciativa estatal
quanto a iniciativa civil. Isso abre novos elementos para pesquisas concretas,
bem como para aprofundamento teórico.
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* Nildo Viana é Professor da Faculdade de
Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade
Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e
pós-doutor pela Universidade de São Paulo. Email: nildo@nildoviana.com
[1] A variedade de definições
de movimentos sociais já foi problematizada por alguns autores (GOSS e
PRUDÊNCIO, 2004; VIANA, 2016a). É possível entender que há uma certa confusão
nas definições de movimentos sociais, pois elas remetem para fenômenos
distintos, o que traz a necessidade de discutir a relação entre signo e
significado. Não pretendemos realizar tal discussão aqui, mas alertar para sua
necessidade para superar os impasses na definição de movimentos sociais.
[2] A análise marxista das
classes sociais aponta para uma definição de classe social como conjunto de
indivíduos que possuem em comum um determinado modo de vida, determinados
interesses e mesma luta contra outras classes sociais derivadas de sua posição
na divisão social do trabalho, que, por sua vez, é determinada pelas relações
de produção dominantes (VIANA, 2016b). Isso explicita que é uma confusão
considerar que Marx e supostos marxistas do século 19 ou mesmo do século 20
abordaram movimentos sociais “tradicionais”, “clássicos”, etc., pois o que eles
abordaram foram movimentos de classe, especialmente o movimento operário.
[3] A mudança do nome dessa
abordagem está relacionada ou com opção de pesquisadores específicos (teoria da
mobilização política é preferência de Maria da Glória Gohn, por exemplo) ou a
própria evolução e autodenominação da concepção, que se autodenominou por um
tempo como teoria do processo político (embora um grupo restrito no seu
interior que vai culminar para a pesquisa das oportunidades políticas) e
posteriormente “teoria das oportunidades políticas” até que optou, mais
recentemente, por “teoria do confronto político”. Consideramos que uma denominação
mais adequada seria abordagem neoinstitucionalista, pois é uma continuidade e
desenvolvimento da abordagem institucionalista (chamada “teoria da mobilização
de recursos”) que focaliza as organizações, sendo que a concepção derivada
inclui as organizações dos movimentos sociais e focaliza o Estado, a principal
instituição da sociedade moderna, para explicar os movimentos sociais.
[4] Isso varia dependendo do
autor desta abordagem.
[5] As oportunidades políticas
são as mais variadas e, em alguns autores dessa abordagem, são acompanhadas de
“ameaças” ou “restrições” (TARROW, 2009), e uma restrição pode se transformar
em oportunidade, dependendo do caso.
[6] Esse texto é o primeiro
capítulo de sua obra Social Movements,
1768-2004. Esta obra foi ampliada e republicada em coautoria posteriormente
(TILLY e WOOD, 2010).
[7] Grande parte dos
representantes da abordagem neoinstitucionalista (“teoria do processo
político”) é oriunda da abordagem institucionalista (“teoria da mobilização de
recursos”), tais como Zald, McCarthy, McAdam, entre outros.
[8] Isso é visível, por
exemplo, na obra de Tarrow (2009), na qual resume elementos da concepção de
Marx, Lênin e Gramsci. De Marx ele retira pouca coisa, especialmente a questão
do confronto e descontentamento (e relaciona com as chamadas “teorias do
comportamento coletivo”), mas de Lênin destaca a questão da organização e de
Gramsci a questão da hegemonia, relacionando o primeiro com a abordagem
institucionalista e a última com a abordagem culturalista (mais conhecida como “teoria
dos novos movimentos sociais”). No fundo, há outros elementos do pensamento de
Lênin que estão presentes na abordagem de Tarrow, como, por exemplo, a questão
da revolução e dessa acontecer quando a classe dominante está dividida, gerando
o seu discurso sobre “elites divididas”, bem como a necessidade d organização
do proletariado e alianças, o que tem semelhança com os alinhamentos de Tarrow,
embora ele não faça referências a Lênin nesses aspetos (TARROW, 2009). Devemos
destacar que consideramos o leninismo incompatível com o marxismo original (de
Marx), tanto no plano político quanto no teórico-metodológico.
[9] O elemento do
interacionismo simbólico é retirado da ideia dos “quadros interpretativos”
(“frames”) (ALONSO, 2009; GOHN, 2002; TARROW, 2009).
[10] Partimos da distinção de
movimentos sociais gerais e movimentos sociais específicos (VIANA, 2016c). Por
movimentos sociais gerais abordamos o conjunto dos movimentos sociais e por
movimentos sociais específicos abordamos a especificidade de cada movimento
social, como, por exemplo, o negro, o estudantil, etc.
[11] Por questão de espaço não
poderemos desenvolver uma análise desse processo evolutivo e da relação entre
regime de acumulação e Estado, mas algumas obras já realizaram este processo
analítico e podem ser consultadas (VIANA, 2015a; VIANA, 2009; BRAGA, 2013;
ÓRIO, 2014).
[12] Por modalidade de políticas
estatais se entenda uma determinada orientação geral e organizada das mesmas.
[13] O sociólogo T. H.
Marshall (1967) destacou o processo evolutivo dos direitos de cidadania, apesar
de seu evolucionismo e limites analíticos (VIANA, 2015a), mas sua descrição
contribui para percebermos a relação entre forma estatal (em cada regime de
acumulação) e a modalidade de políticas estatais.
[14] O nosso foco aqui é o Estado,
pois obviamente outras mudanças ocorreram e ajudam a explicar a emergência dos
movimentos sociais, bem como as mutações no movimento operário. O
desenvolvimento dos meios de comunicação, por exemplo, também teve um impacto
positivo na sociedade civil e foi outro elemento que incentivou os primeiros
esboços de movimentos sociais, especialmente o movimento feminino e o movimento
estudantil.
[15] Aqui ocorre uma ampliação
do processo de mercantilização e burocratização (VIANA, 2016a) e a teoria da
mobilização de recursos contribui ao descrever a necessidade e ampliação dos
recursos disponíveis nesse momento (MCCARTHY e ZALD, 2017).
[16] Alguns autores não
definem o que entendem por cooptação, mas apontam para sua existência nos
movimentos sociais: “a cooptação e a substituição de líderes são normalmente
usadas por todas as grandes instituições para absorver a energia dos movimentos
e incorporá-los em sua estrutura” (ALBERONI, 1991, p. 398).
[17] O reconhecimento da existência do processo de
cooptação é raro e, quando ocorre, é muitas vezes justificado por
representantes de setores aliciantes (GOMES e ALVES, 2017) e de setores
cooptados (SANTOS, 2001).
[18] O que alguns
contemporaneamente tratam como “judicialização” dos movimentos sociais é apenas
mais uma forma de burocratização dos movimentos sociais.
[19] Por questão de espaço não
abordaremos as relações evidentes entre cooptação e burocratização, bem como
entre esta e o processo de mercantilização. Da mesma forma, não poderemos
abordar a burocratização que emerge a partir da sociedade civil (VIANA, 2016a).
[20] Não será possível entrar
aqui na polêmica entre os termos “repressão” e “recalcamento”, nem nos
problemas derivados e interpretativos.
[21] É isto que distingue a
repressão da cooptação e da burocratização, que também visam impedir o
desenvolvimento de ações revolucionárias, contestação a governos, etc., mas sem
o uso da força.
[22] Della Porta apresenta uma
tipologia com quatro elementos: 1) repressivo versus tolerante; 2) seletivo
versus difuso; 3) preventivo versus reativo; 4) duro versus brando. Trata-se de
um sistema classificatório, tal como Della Porta reconhece, que não é
desenvolvido e fundamentado. Em nossa análise, consideramos os itens 2 (com os
termos seletivo e generalizado), 3 (com os termos preventivo ou punitivo) e 4
(com os termos violência extrema e violência moderada) e acrescentamos o
caráter intensivo e extensivo.
[23] Vários estudos abordam a
questão da repressão em casos concretos (BRAGA, 2013; BRAGA, 2016; MARTINS,
1989; BUHL e KOROL, 2008), isso excetuando a enorme quantidade de trabalhos
sobre o período de regimes ditatoriais.
[24] É possível encontrar
análises de casos concretos, como algumas abordagens do movimento negro
(SANTOS, 2001; ANDRADE, 2016), mas não teóricas ou mais gerais, com a exceção
de Carrion (1985), que faz uma breve referência.
[25] Viana (2016a) é um dos
poucos autores que aborda tais orientações. A ideia de orientação estatista e
civilista se inspira em Carrion (1985), que faz tal distinção na orientação dos
movimentos sociais usando os termos “deriva estatista” e “deriva civilista”.
[26] “Circunstâncias próprias do período ditatorial recente
despertaram as possibilidades criativas da sociedade em face do Estado.
Disseminaram-se os movimentos sociais e as organizações populares e tudo
sugeria, e ainda sugere, uma fase nova de nossa história social marcada pelo
protagonismo da sociedade. No entanto, essa curta vivacidade social parece
estar entrando em crise, diante de um Estado que foi mais ágil na definição das
circunstâncias do agir histórico” (MARTINS, 2000, p. 268).
--------------
Artigo publicado em:
VIANA, Nildo. Estado e Movimentos Sociais: efeitos colaterais
e dinâmica relacional. Café com Sociologia. Volume 6, número 3,
jul./dez. 2017.
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