O
FETICHISMO ELEITORAL
Nildo Viana
Os períodos eleitorais são momentos de ilusões. A questão é
que quando há um acirramento na disputa eleitoral, essas ilusões, que tendem, geralmente,
a mover apenas votos, começa a extrapolar e virar fanatismo, violência,
agressividade, etc. O fetichismo toma conta e a racionalidade desaba. Ao lado
do fetichismo, crenças, interesses, desejos, entre outros processos, atuam de
forma que muitas pessoas não consigam mais ver o mundo como ele realmente é ou
mesmo como via normalmente e sim através do maniqueísmo, a mistificação da luta
do bem contra o mal.
O fetichismo eleitoral é uma das fontes desse processo. O
fetichismo é um processo mental que Marx (1988) utilizou para analisar a
mercadoria. A mercadoria enfeitiça a consciência humana, que passa a pensar que
ela tem “vida própria”, que ela é um agente, que é um ser de vontade e ação, ou
seja, que é algo como um ser humano e, ao mesmo tempo, transforma o ser humano
em “coisa”, em mero “objeto”. É a inversão entre o reino dos homens e o reino
das coisas, gerando a coisificação do humano e a humanização das coisas. Erich
Fromm (1983) tratou do fenômeno análogo da idolatria, no qual o criador acaba
se rendendo à sua criatura.
O fetichismo eleitoral é um processo semelhante. O que é o
fetichismo eleitoral? Ele é um processo no qual os candidatos e os partidos
ganham autonomia, se tornam agentes e seres poderosos (quase mágicos) que podem
decidir o destino e o futuro[1] da sociedade. E isso vale
para o bem e para o mal, ou seja, para o lado A, o partido e candidato
defendido, e para o lado B, o partido e candidato que é adversário. Ambos
ganham propriedades mágicas de resolver ou aprofundar os problemas a partir de
sua mera vontade. Assim, a crença no discurso eleitoral (sobre discurso
eleitoral clique
aqui) se torna irracional, pois todos, por experiência, sabe que as
promessas raramente são cumpridas, que as soluções mágicas não funcionam, que
não depende apenas do candidato[2], que é discurso
condicionado para ganhar votos e as eleições.
Isso cria o isolamento das eleições, dos candidatos e dos
partidos. A fonte disso está no discurso dos candidatos e partidos, que, apesar
de seu caráter mentiroso e oportunista, autodeclaram sua sinceridade. Candidato
A e candidato B juram ser sinceros. Uma parte do eleitorado, ingenuamente,
acredita nisso. E assim fica uma disputa eleitoral que gera adesões apaixonadas
a um ou outro lado. Porém, isso se agrava no caso de processos eleitorais que
possuem segundo turno, pois a disputa se reduz a apenas dois lados. No caso
brasileiro atual, a polarização entre duas forças políticas, já no primeiro
turno (e que se retroalimentam), atinge um grau elevado e extremado no segundo
turno. Quando o discurso eleitoral dos competidores passa a realizar o discurso
maniqueísta da luta entre o “bem” e o “mal” (o que é reforçado por outros e no
final quase todo mundo cai nesse discurso falso e útil para ambos os lados em
disputa), a irracionalidade toma conta e quem não fica do lado A vira inimigo e
apoiador do lado B e vice-versa, inclusive para aqueles que não se posicionam
de nenhum lado e para aqueles que são contra ambos os lados[3].
A disputa pelos votos fazem os candidatos apoiarem essa
forma de constrangimento eleitoral (se você não vota em A, você apoia ou é
“fascista”; se você não vota em B, você é ou apoia “comunista”). O
constrangimento eleitoral tem um elemento que é “escandalizar”, tornar
“vergonhoso” a decisão de não apoiar A ou B. No discurso, o constrangimento
aparece não como apoio ao candidato que se defende e sim por votar no outro, no
“fascista” ou no “comunista”, entendidos como o “mal”, o inaceitável, etc. Ao
transformar o adversário na personificação do mal, então resta para o eleitor
votar no seu concorrente, mesmo que não goste, não concorde ou não queira ele.
Essa é uma mágica eleitoral: vote no que não
quer para evitar o que não quer.
O constrangimento eleitoral é execrável, e é típico de políticos profissionais,
projetos de ditadores, que querem apoio por transformar o outro em
personificação do mal. A irracionalidade toma conta, pois a disputa não é mais
de candidatos, propostas, partidos, projetos, e, o que é mais comum, promessas
irrealizáveis e algumas poucas ações realizáveis, e sim entre o bem e o mal. O
debate não é mais de ideias, propostas, projetos, posições políticas, e sim
entre quem está do lado do bem e quem
está do lado do mal, caindo na irracionalidade.
Uma vez criado esse clima, reina o fetichismo eleitoral. Mas
o mais interessante disso tudo é que isso é alimentado e reforçado por ambos os
lados. Da mesma forma, eles se retroalimentam. Quanto mais A ataca B e o coloca
como a personificação do mal, e quanto mais B reproduz o processo de forma
idêntica, mais temos a polarização e um reforça o outro. No casos das eleições
presidenciais no Brasil desse ano, é isso que ocorreu e que contribuiu
drasticamente para um segundo turno ocorresse justamente com as duas tendências
que os setores mais conscientes queriam evitar. O problema é que no segundo
turno isso se torna “plebiscitário” e a ânsia pelo poder faz os dois lados
ficarem cada vez mais ansiosos pelo poder e seus adeptos cada vez mais
desesperados, agressivos, violentos.
Isso, por sua vez, gera um clima eleitoral de polarização,
irracionalidade e agressividade. Os mais fervorosos defensores da democracia,
ironicamente, não respeitam as decisões eleitorais dos demais, o que
proporciona o constrangimento eleitoral. Inclusive emergem discursos contraditórios
(o que faz parte da irracionalidade) tal como aquele que afirma que é preciso
defender a democracia e para isso é preciso votar contra determinado candidato.
Ora, isso é uma mistificação da democracia, a criação de uma democracia
fictícia em lugar de uma democracia real e, além disso, transforma o ato
democrático em ato antidemocrático. Votar no candidato A é ser contra a
democracia. Ora, a democracia representativa e burguesa se institui justamente
na existência de diversas posições, partidos, candidatos. O veto a um dos
candidatos é, em si mesmo, antidemocrático, mesmo que falando em nome da
democracia. Se candidato A é autoritário e tem muitos votos, podendo ser
eleito, isso é algo que foi permitido (e legitimado e legalizado, ou seja, isso
ocorre tanto no plano da legitimidade quando da legalidade democrática) pela
própria democracia, a que se está, supostamente, defendendo. Segundo essa
versão, o candidato A é um monstro e é contra a democracia e por isso é preciso
votar no candidato B e se esquece que esse candidato monstruoso é produto e só
foi possível por causa da democracia (e do candidato B, que, no caso
brasileiro, gerou esse monstro que agora combate e que o reforça ao
transformá-lo na personificação do mal).
Esse clima eleitoral vai gerar, por exemplo, brigas
familiares, amizades perdidas, antipatia generalizada ao lado contrário e,
novamente uma manifestação fetichista: a coisificação dos outros seres humanos,
que, por mero motivo eleitoral, deixam de ser uma totalidade (um ser humano
completo, com suas grandezas e pequenezas, com seus méritos e deméritos, que
pode falhar, se equivocar, etc.) e passam a ser reduzidos (novamente o
reducionismo) a eleitor de X ou apoiador ou que tem a “inaceitável”
neutralidade ou recusa de ambos os candidatos. Assim, viraram “inimigos”. Isso
daria até um novo ditado popular: “quem não é contra o meu inimigo é meu
inimigo”. Obviamente que, na sociedade brasileira, esse é um processo que vem
de algum tempo e se acirrou nos últimos anos, especialmente 2014, após a
derrota das manifestações de 2013 e a crise de legitimidade e financeira que se
desenvolveu com mais força a partir de 2015.
Em síntese, o fetichismo eleitoral gera um clima eleitoral
que o reforça e que gera um processo de exasperação política, num contexto de
crise financeira e outros problemas sociais, que podem gerar aquilo que se quer
combater. Ao se isolar o processo eleitoral, os candidatos, os partidos,
perde-se de vista o humano, a sociedade, as relações sociais. O partido A não
vai fazer o que promete, nem o B. Isso não depende da vontade do futuro
presidente, pois precisará de apoio parlamentar, apoio empresarial, apoio
internacional. Precisará de recursos financeiros, administradores competentes,
quadros técnicos, etc. (que, aliás, nenhum dos dois partidos em disputa no
segundo turno nas atuais eleições brasileiras possuem)[4]. Dependerá da situação
internacional, da ação dos demais países, etc. Dependerá também das disputas
entre os aliados e internamente. Dependerá, também, da ação da população,
especialmente das classes trabalhadoras. A lista é infinita, com pesos
distintos para cada caso. Mas quem for eleito precisará do apoio da classe
capitalista para governar, especialmente a estrangeira e, secundariamente, a
fraca burguesia brasileira (o que inclui o capital comunicacional, tal como as
grandes redes de rádio e televisão). Mas, pior do que tudo isso, é que entre
candidato A e candidato B não há grandes diferenças. Nenhum dos dois traz
grandes diferenças em relação ao que já está sendo produzido pelo Governo
Temer, as diferenças de detalhes não geram soluções diferentes, são apenas
variação de uma única solução. As maiores diferenças são discursos que ninguém
pretende realmente colocar em prática posteriormente. É fácil dizer que vai
oferecer um 13º “salário” (não é salário...) para quem recebe bolsa família ou
então que vai expandir o ensino superior federal gratuito, como se isso não
dependesse de recursos e outros processos sociais (como a situação fosse a
mesma que há dez anos atrás).
O fetichismo eleitoral traz a ilusão eleitoral, a crença
irracional nos partidos e candidatos. Ele cria falsas esperanças e falsas
desesperanças. Ele reforça a mediocridade e desmobilização das classes
trabalhadoras. Por isso o fetichismo eleitoral precisa ser combatido, bem como
as falsas soluções eleitorais. Enquanto as pessoas se fiarem no processo
eleitoral estarão escolhendo os seus carrascos, seja de “direita” ou de “esquerda”.
O menos ruim é o discurso de quem quer se iludir com o voto que poderia
significar algo menos prejudicial, o que não tem nenhum fundamento real e a história
já provou isso. Assim, é preciso criticar o fetichismo eleitoral, lutar contra
a ilusão eleitoral e a participação nesse processo de legitimação e reprodução do
poder e do capitalismo. A única opção para quem não quer reproduzir o que
existe – uma sociedade fundada na exploração, dominação e tudo que é derivado
disso, bem como competição, miséria, etc. – e não fortalecer o barbarismo
potencial dentro do capitalismo, é recusar a democracia burguesa votando nulo e
colaborar com a produção cultural e lutas dos trabalhadores para gerar um desenvolvimento
intelectual e organizacional da população, meio necessário para a transformação
radical e total das relações sociais.
Referências
FROMM, Erich. O Conceito Marxista do Homem. 8ª edição,
Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
MARX, Karl. O Capital. Vol. 1, 3ª edição, São Paulo:
Nova Cultural, 1988.
VIANA, Nildo. A Pesquisa em Representações cotidianas.
Lisboa: Chiado, 2015.
VIANA, Nildo. O Modo de Pensar Burguês. Episteme
Burguesa e Episteme Marxista. Curitiba: CRV, 2018.
[1] O fetichismo eleitoral é o
processo que reproduz elementos das representações cotidianas (uma de suas
características: a simplificação, embora também o processo de naturalização
também apareça) e da episteme (modo de pensar) burguesa: o reducionismo. Sobre
representações cotidianas, veja Viana, 2015 e sobre episteme burguesa, veja
Viana, 2018.
[2] O que vai ser efetivado
depois das eleições pelo futuro governo é outra coisa, pois dependerá das
alianças, das pressões de setores do capital, da governabilidade, dos recursos
financeiros existentes, da dinâmica da acumulação de capital (crescimento econômico),
das lutas dos trabalhadores, entre inúmeras outras determinações.
[3] Num caso temos a
“neutralidade”, tal como alguns partidos definiram, o que não passa de
oportunismo para permitir aos integrantes do partido apoiar aqueles nos quais
terá algum retorno, e noutro a recusa. A neutralidade (de setores da população
e não dos partidos políticos oportunistas) é gerada por não gostar, não
confiar, não acreditar nos candidatos ou não ter interesse ou ilusão com o
processo eleitoral. A recusa é uma posição política clara de crítica a ambos os
lados. A recusa se manifesta no voto nulo politizado (de autogestionários,
anarquistas e autonomistas, claro que aqui se trata daqueles que não cedem aos
encantos fetichistas do processo eleitoral, e aqueles que cedem são encontrados
em um número considerável de adeptos das duas últimas posições ou que pelos
menos se dizem adeptos delas e contradizem o que dizem acreditar e defender).
Quem vota nulo de forma politizada, ou seja, sob forma consciente e com outro
projeto político que se contrapõe aos concorrentes eleitorais, questiona ambos
os lados em disputa e discorda deles radicalmente.
[4] Obviamente eles podem “chamar
o Meirelles” ou alguém semelhante.
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