Páginas Especiais

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Os Objetivos dos Movimentos Sociais


OS OBJETIVOS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS


Nildo Viana


Os movimentos sociais, assim como todo fenômeno social, são marcados pela complexidade, não apenas de suas características próprias e específicas, mas também devido seu entrelaçamento com o conjunto das relações sociais e sua constituição social numa sociedade complexa. Nesse contexto, uma teoria dos movimentos sociais requer amplo desenvolvimento e, a cada nova conquista teórica que amplia a consciência sobre esse fenômeno, novas questões aparecem e novos problemas devem ser abordados e resolvidos.

Assim, apesar de alguns autores desenvolverem elementos para uma teoria dos movimentos sociais (JENSEN, 2014; VIANA, 2016), que convive com outras tentativas de elaboração de análises e abordagens dos movimentos sociais (GOHN, 1996; ALONSO, 2009), com seus limites (VIANA, 2016), mas trazendo alguns elementos úteis para análise, ainda persiste a necessidade de desenvolvimento de diversas questões relativas aos movimentos sociais.

Uma dessas questões é a dos objetivos dos movimentos sociais. Alguns sociólogos e outros pesquisadores dos movimentos sociais já fizeram apontamentos sobre os objetivos dos movimentos sociais. No entanto, isso é realizado, geralmente, de forma superficial ou descritiva. Há autores que abordaram mais especificamente a questão dos objetivos dos movimentos sociais, mas a abordagem é um tanto ingênua e/ou pouco crítica. A compreensão dos movimentos sociais, assim como de qualquer fenômeno social, só pode se realizar plenamente a partir de uma abordagem crítica e totalizante. O nosso objetivo, aqui, é contribuir com uma análise crítica e totalizante da questão dos objetivos dos movimentos sociais.

Os Objetivos dos Movimentos Sociais

A literatura sobre movimentos sociais aponta para várias questões e pouco se discute uma das mais importantes, que é a questão dos seus objetivos. Um movimento social existe para atingir um objetivo. Sem objetivo, não há movimento. Porém, a maior parte da literatura sobre movimentos sociais ou apresenta o objetivo como algo “dado” e sem necessidade de problematização e análise ou então o coloca superficialmente ao lado de outras questões. O mais comum é apresentar um objetivo “abstrato-metafísico” para os movimentos sociais. É comum diversos autores colocar que o objetivo dos movimentos sociais é a “mudança social”. Esse é um caso quase generalizado e perceptível já na definição dos movimentos sociais. Curiosamente, esse elemento que define os movimentos sociais não é alvo de reflexões e análises, é preconcebido sob forma metafísica pelos autores.

Nessa concepção, que é hegemônica, apesar de superficial e metafísica, os movimentos sociais querem a mudança social. A ideia de mudança social é equivalente à ideia de transformação social, o que significa uma substituição de uma forma de sociedade por outra. Nesse sentido, os movimentos sociais seriam todos “revolucionários”. Claro que isso não corresponde à realidade e por isso determinadas concepções (BOTTOMORE, 1981; TOURAINE, 1997) que defendem tais teses já foram criticadas (JENSEN, 2014). Alguns sociólogos mais desavisados entendem “mudança social” como mera alteração de algum elemento da realidade social. Estes são mais ideólogos reprodutores do que produtores[1]. Nesse sentido, isso seria mero truísmo. A própria formação de um movimento social já significa uma alteração na sociedade, por mais insignificante que seja, pois surge um movimento que não existia. Alguns autores até estampam nos títulos de seus artigos a questão dos objetivos dos movimentos sociais, mas curiosamente esse problema pouco aparece na discussão (MELUCCI, 1989).

Assim, é necessário superar essas concepções e realizar uma discussão mais profunda sobre os objetivos dos movimentos sociais. Antes disso, no entanto, é importante entender a importância dos objetivos na análise dos movimentos sociais. Além do fato já aludido segundo o qual sem objetivo não há movimento, é preciso especificar o que significa objetivo e como ele ajuda a entender os movimentos sociais. A importância do objetivo dos movimentos sociais se revela no conceito que expressa esse fenômeno social. O conceito de movimentos sociais que adotamos explicita o vínculo necessário entre eles e o objetivo: “os movimentos sociais são mobilizações (ações coletivas ou compartilhadas) de determinados grupos sociais derivadas de certas situações sociais que geram insatisfação social, senso de pertencimento e determinados objetivos” (VIANA, 2016a).

Assim, os objetivos estão entre os elementos definidores de um movimento social e por isso não podem ser relegados a segundo plano. O termo “objetivo” expressa a meta onde se quer chegar. Um movimento social surge quando uma determinada situação gera insatisfação para um grupo social e isso, por sua vez, gera um senso de pertencimento e objetivo que provoca mobilização. Logo, o objetivo é a meta, a razão de ser do movimento social e que justifica a mobilização. Ele existe para trabalhar com a situação geradora de insatisfação visando transformá-la. Logo, o objetivo visa uma transformação situacional.

Essa transformação situacional pode ser entendida como defensiva ou ofensiva. A defensiva visa conservar a situação impedindo que haja mudanças prejudiciais ou volta à situação social anterior, antes dessas mudanças terem ocorrido. No primeiro caso, pode ser compreendida como uma conservação ao invés de transformação, mesmo que somente situacional. Contudo, há um elemento de “transformação” que é agir contra tendências, ações, concepções, etc., de outros grupos, do aparato estatal, etc. que pode gerar a alteração que se considera prejudicial. A transformação situacional defensiva só tem sentido se já houver na sociedade alguma mobilização que ameace a continuidade e é isso que cria a situação social específica que gera a insatisfação do seu grupo social de base e o mobiliza, visando mudar/reprimir/abolir a mobilização que contraria seus objetivos e interesses. A transformação situacional ofensiva já visa alterar a situação social específica que gera a insatisfação social no seu grupo social de base. Assim, por exemplo, o movimento racista pode simplesmente combater o movimento negro e suas reivindicações, o que é defensivo, mas pode, em outra ocasião ou outro setor do mesmo, querer a elaboração de leis que sirva aos seus interesses (como aumentar a discriminação) contra o grupo social oposto.

Aqui precisamos destacar que transformação situacional difere de transformação social. A transformação situacional é apenas da situação do grupo social, ou de sua situação ou, ainda, relação com outros grupos. Sem dúvida, se o grupo social gerador do movimento considera que sua transformação situacional só pode ocorrer com uma transformação social, o que é verdadeiro para a maioria dos casos, então o objetivo é simultaneamente a transformação situacional e social. Mas mesmo quando isso é verdadeiro, essa posição só se estabelece a partir de determinada consciência e interesses. A transformação social, tal como colocamos anteriormente, significa uma revolução que atinge a totalidade da sociedade, significando uma mudança radical, a passagem de uma forma de sociedade para outra (como foi a passagem do escravismo para o feudalismo, ou deste para o capitalismo, entre outros exemplos possíveis).

Em síntese, o objetivo dos movimentos sociais, sua meta, é a transformação situacional do seu grupo social de base e em alguns casos, dependendo do contexto social e histórico, isso é identificado com a necessidade de transformação social, ou seja, de revolução social, gerando uma sociedade nova em substituição da antiga. Esse último caso, subentendido em algumas análises e explicitadas em outras, são raras exceções, mais comuns em ramificações dos movimentos sociais e não hegemônicas no seu interior.

A transformação situacional pode ser tanto no sentido conservador, quanto reformista ou, ainda, revolucionário. A transformação situacional conservadora, para um movimento racista, significa retomar uma situação na qual a superioridade racial antes existente em determinadas relações sociais se torne novamente uma realidade ou impedir a manutenção de reivindicações do grupo social que combate se realize ou seus objetivos se concretize. A transformação situacional reformista aponta para reformas que mudam a situação do grupo social, o que se pode perceber nos movimentos que solicitam bens coletivos (moradia, educação, etc.). A transformação situacional revolucionária é simultaneamente uma transformação social, pois entende que a mudança radical da situação só ocorre quando emerge uma nova sociedade em substituição da atual, sendo um processo que concretiza a resolução do problema do grupo social, o que pode ser visto nas tendências revolucionárias dos movimentos negro e feminino, entre outros.

Esses elementos ajudam a compreender os objetivos dos movimentos sociais. No entanto, várias questões precisam ser respondidas: como os objetivos são constituídos? Como eles podem ser identificados pelos pesquisadores? Como eles se transformam? Como esses objetivos se manifestam concretamente? Estas e outras questões são importantes para superar a concepção ingênua e simplista dos objetivos dos movimentos sociais, bem como as abordagens metafísicas a seu respeito.

A Constituição dos Objetivos dos Movimentos Sociais

Determinados indivíduos de um grupo social se encontram insatisfeitos com determinada situação social e identificam que esse problema não é individual e sim coletivo. É um problema de um grupo social inteiro. O racismo é sentido sob forma individual pelos indivíduos negros, mas quando eles percebem que esse problema não é individual e sim coletivo (do grupo social), se desenvolve o senso de pertencimento. Por isso ele não só percebe uma situação social específica como indesejável e sente uma insatisfação diante dela, como também percebe que é um problema coletivo. Isso gera o objetivo individual que, ao desenvolver o senso de pertencimento ao grupo social, é compartilhado e se torna objetivo coletivo. Desde que isso produza mobilização, temos um movimento social (VIANA, 2016a).

Isso, aparentemente, é algo simples e responde à questão dos objetivos dos movimentos sociais. No entanto, a realidade não é simples, é complexa. Os indivíduos não são seres totalmente racionais, bem informados, bem intencionados, livres de desequilíbrios psíquicos, livres de valores contraditórios, livres de pressões sociais e culturais, etc. Os grupos sociais que são as bases dos movimentos sociais são compostos por estes indivíduos e por isso a definição dos objetivos é algo muito mais complexo e possui muitas outras determinações. Assim como não basta ser negro para lutar contra o racismo, ser mulher para lutar contra o sexismo, ser atingido pela degradação ambiental para lutar contra ela, entre milhares de outros exemplos, existem aqueles que aderem aos movimentos sociais, mas a partir de sua situação concreta individual, com seu pertencimento de classe social, sua formação intelectual, seus interesses pessoais, seu grau de informação sobre a realidade, sua personalidade (com ou sem desequilíbrios psíquicos), numa determinada época e contexto cultural, entre diversas outras determinações.

A constituição dos objetivos dos movimentos sociais remete a um conjunto de determinações. No entanto, existe uma determinação fundamental que ao lado das demais determinações geram sua concreticidade. Os objetivos dos movimentos sociais possuem como determinação fundamental os interesses. Por isso é fundamental discutir quais interesses perpassam os movimentos sociais.

Os interesses são derivados das necessidades e desejos dos seres humanos. As necessidades são impulsos que devem ser satisfeitos sob pena de, caso não seja, promover transtornos físicos ou psíquicos. A alimentação é uma necessidade humana e sua não concretização significa, em certo período de tempo, a morte. A sua satisfação inadequada gera desnutrição e doenças. Além das necessidades corporais, que são necessidades básicas, existem as necessidades que são simultaneamente potencialidades dos seres humanos. Elas são especificamente humanas, são necessidades psíquicas (ou “existenciais”), como a práxis e a socialidade. O ser humano necessita desenvolver tais potencialidades, tanto quanto suas necessidades corporais, sendo que seu não desenvolvimento pode gerar doenças, desequilíbrios psíquicos, etc. (RUCK, 2015).

Além dessas necessidades, as sociedades humanas geraram, historicamente, um conjunto de desejos. Esses desejos podem ser coerentes ou não com as necessidades humanas e, no primeiro caso, são autênticos e colaboram com o desenvolvimento do ser humano e, no segundo caso, são inautênticos e são fontes de contradições e insatisfações, geradores de conflitos, desequilíbrios psíquicos, evasão, etc. As necessidades são reais e insuperáveis e os desejos incompatíveis com elas são artificiais, constituídos social e historicamente numa sociedade cujo objetivo não é a satisfação humana (RUCK, 2015).
No caso do capitalismo, há um processo de constituição social dos desejos e esse possui caráter fetichista. A fabricação mercantil dos desejos (RUCK, 2015) significa uma ampla constituição de desejos inautênticos. As necessidades e desejos formam os interesses individuais, bem como os coletivos (de grupos, classes, etc.). As necessidades de alimentação e habitação fazem delas interesses dos indivíduos, independente deles manifestarem isso ou não. Os interesses são necessidades e desejos não explicitados (RUCK, 2015). Quando essas necessidades e desejos são explicitados, tornam-se valores (VIANA, 2007).

Esses elementos são fundamentais para entender os objetivos dos movimentos sociais. Um grupo social só gera um movimento social quando há uma situação social específica que gera insatisfação social. A insatisfação social, por sua vez, não é algo que surge automaticamente e nem é sempre derivado de necessidades. A insatisfação social pode ser derivada de desejos (inclusive dos inautênticos) e está relacionada com os valores, sentimentos, consciência, informações, entre diversas outras manifestações culturais. A relação social concreta que constitui uma situação social específica é interpretada e pode gerar insatisfação ou não. Tal insatisfação, por sua vez, pode ser justa ou injusta.
Uma parte da população pode ser constrangida a não ter sua necessidade de habitação satisfeita, o que gera moradores de rua, ou pode ter essa necessidade satisfeita precariamente, morando em favelas, cortiços, barracas, etc. Essa necessidade constitui uma situação social específica que produz insatisfação social. No entanto, se o conformismo e a resignação reinam, se o individualismo aponta para busca de solução meramente individual ou se o medo da repressão estatal impede a ação, então temos uma situação social que gera insatisfação social, mas não um movimento social.

A insatisfação social gera um movimento social quando um conjunto de indivíduos pertencentes ao grupo social que se encontra nessa situação desenvolve uma consciência que gera senso de pertencimento e objetivos. A consciência é elemento necessário para que o senso de pertencimento apareça e o problema seja visto como coletivo e não meramente individual e os objetivos são possíveis a partir da decisão consciente do que fazer diante da situação indesejável.

E por quais motivos os indivíduos e grupos ficam insatisfeitos? Quando suas necessidades ou desejos não são atendidos, ou seja, quando seus interesses são contrariados e fundamentalmente quando isso se torna consciente. Essa “tomada de consciência”, para usar expressão bastante utilizada por certos setores, ocorre com a formação de valores e objetivos. O interesse por habitação pode gerar valores, ideias, concepções, discursos, tais como o “direito à habitação”, “ocupação”, “reforma urbana”, “financiamento estatal (“público”) de habitação popular”, “revolução urbana”; “revolução social”, entre diversas outras possíveis soluções. Uma vez que existem a insatisfação social e a consciência dela e de seu caráter coletivo (gerando senso de pertencimento), se constitui os objetivos para concretizar a solução do problema.

O exemplo acima é apenas uma possibilidade. Para o movimento racista (branco), a insatisfação pode ser o “excesso” de espaço e direitos dos negros e a solução pode ser mudanças legislativas, ação estatal, violência direta contra os negros, etc. No caso do movimento feminino, o objetivo pode ser “igualdade entre os sexos”, “reformas legais”, “espaços institucionais”, “mudanças culturais”, “revolução social”, “extermínio dos homens”, entre outros.

Isso significa que os movimentos sociais constituem seus objetivos a partir da tomada de consciência e geração de valores, concepções, sentimentos, etc. Isto, no entanto, não explica por qual motivo se escolhe um ou outro objetivo. A constituição dos objetivos, como se pode notar acima, ocorre no interior de uma quantidade variada de opções. Aqueles que lutam por moradia ou contra o racismo, para citar apenas dois exemplos, podem definir distintos objetivos. Esses objetivos distintos, por sua vez, podem gerar divergências e conflitos internos e distintas tendências, organizações, ações, posições, alianças, etc.

É preciso compreender que nos movimentos sociais, assim como em qualquer grupo ou ação coletiva, surgem dois tipos de interesses: os pessoais e os coletivos. No caso dos movimentos sociais, são interesses pessoais e grupais (que é a forma que assume o interesse coletivo, que é do grupo social de base). Os interesses pessoais são os do indivíduo e podem ser ou não coerentes com os interesses grupais. Quanto mais o indivíduo for influenciado pela mentalidade dominante, maior é a tendência de discrepância entre seus interesses e o do grupo social de base do movimento social. O seu interesse será resolver o seu problema de forma individual ou usar o movimento para tal. No primeiro caso, ele tende a se afastar do movimento e buscar a solução individualista. No segundo caso, ele tende a atuar no movimento visando retorno pessoal e pode até se unir com outros e formar uma tendência ou subgrupo visando lutar por benefícios pessoais ao invés de solução do problema do grupo social. Esse é o caso quando o ativismo vira profissão ou fonte de renda, gerando interesses discrepantes com os do grupo social de base do movimento.

O processo de mercantilização e burocratização das relações sociais tende a reforçar isso, pois os indivíduos acabam se submetendo aos valores dominantes e passam a lutar por dinheiro e poder, entre outros valores burgueses, o que muitos reproduzem dentro dos movimentos sociais. Isso ocorre com setores inteiros de determinados movimentos sociais, o que gera determinadas organizações, grupos, etc. Nesse caso, é a hegemonia burguesa na sociedade civil que gera o conjunto de valores, ideias, concepções, ideologias, doutrinas, etc., que servem de sustentação para tais setores e reproduzem/reforçam a sociabilidade capitalista (competitiva, mercantil, burocrática).

Assim, determinadas insatisfações são apenas fachada para a busca de realização de interesses pessoais ou são criações para obter vantagens competitivas dentro do capitalismo. Nesse contexto, causas justas são deformadas e causas nada justas são constituídas. A atual fase do desenvolvimento capitalista, caracterizada pelo regime de acumulação integral, marca uma nova hegemonia burguesa, marcada pelo subjetivismo, que gera desde um microrreformismo voltado para processo de conquista de vantagens competitivas, até sentimentos antipáticos, como o ódio e o ressentimento, que geram novos conflitos e processos destrutivos. Esses setores formam as tendências conservadoras no interior dos movimentos sociais reformistas.

Em contextos anteriores e em certas situações, o que ocorre é a luta por reformas sociais e mudanças no interior do capitalismo, seja acompanhado por discursos de direita ou de esquerda[2], embora predomine o último caso. Aqui os valores são menos explicitamente burgueses, embora a luta pelo poder esteja presente em todo o momento. Os interesses pessoais ainda estão presentes, mas muito mais camuflados e tendo indivíduos que não os priorizam. Os setores que assumem essa posição formam a tendência reformista/progressista dentro dos movimentos sociais.

Por outro lado, quando os indivíduos conseguem escapar da hegemonia burguesa e dos valores dominantes, apontam para outros objetivos, que vão desde reivindicações imediatas até a proposta de revolução. Nesse caso, existe uma maior unidade entre interesses pessoais e interesses grupais. Este é o caso dos setores mais contestadores dos movimentos sociais ou daqueles que formam sua tendência revolucionária.

Os interesses pessoais são a principal fonte de corrupção, cooptação, adesão à hegemonia burguesa ou burocrática. Obviamente que todos, na sociedade capitalista, possuem interesses pessoais. Da mesma forma, os interesses pessoais expressam, em muitos casos, necessidades e desejos individuais. Contudo, a força da hegemonia e mentalidade burguesas, transformam os interesses pessoais cada vez mais uma forma de integração do indivíduo na sociedade capitalista. É por isso que o individualismo extremado, o hedonismo, as identidades, entre outras manifestações contemporâneas, não são contraproducentes para o capitalismo, pois elas integram os indivíduos no seu interior e assim reforçam sua reprodução.

Qual é o interesse pessoal dos indivíduos numa sociedade capitalista? Para os mais ambiciosos, logo, mais adaptados à mentalidade burguesa, é ganhar a competição social e a ascensão social, via riqueza, poder, fama, sucesso. Esses são os principais itens de sua escala de valores. Um político profissional tem o interesse pessoal em ganhar as eleições, adquirir poder e todo o resto que isto acompanha, a começar pelo dinheiro. Um profissional quer o sucesso em sua profissão e assim conseguir espaços, reconhecimento, fama. Um homem faminto necessita de alimentos. Esses são os interesses e estes geram objetivos. Como conseguir ganhar uma eleição? Como conquistar o sucesso profissional? Como conseguir alimentos sem possuir dinheiro? Não é possível ganhar eleição dizendo a verdade, pois esta é impopular, criadora de inimigos, fonte para perda de votos. Não é possível conquistar o sucesso profissional com solidariedade, pois a competição é sua mola propulsora. É possível conseguir alimentos pedindo para os outros, mas nem sempre isso ocorre. É por isso que o discurso eleitoral é um discurso mentiroso, a prática profissional é competitiva e o faminto precisa da caridade alheia e a necessidade é tão primordial que lhe possibilita se vender em troca de alimentos.

Esses processos, no plano dos movimentos sociais, geram a mentira e hipocrisia daqueles que querem se utilizar deles para trampolim político ou ganhar votos. Da mesma forma, aqueles que não conseguem sucesso profissional em certas profissões, pode transformar o ativismo social em profissão, imitando o político profissional, se atrelando a organizações que cada vez mais se afastam do grupo social de base e do movimento social que ele gera, embora isso nem sempre seja perceptível. O faminto pode se vender por migalhas para satisfazer seus interesses pessoais e assim servir aos grupos paramilitares repressivos do aparato estatal ou organizações partidárias, como aconteceu em várias oportunidades na história[3].

Esses exemplos querem dizer que o interesse pessoal é inseparável da sociedade em que ele existe e que, na sociedade capitalista, a busca por satisfação dos interesses pessoais leva, fatalmente, ao conformismo, ao conservadorismo, ao narcisismo, ao hedonismo, etc.[4] Claro está que esse conformismo é diante da sociedade e não de sua situação individual. É por isso que o interesse pessoal geralmente entra em confronto com os interesses grupais, quando o grupo social de base de um movimento social é das classes desprivilegiadas. No caso dos movimentos sociais conservadores, não há contradição, pois o interesse pessoal coincide com o interesse grupal. No caso das tendências conservadoras e reformistas dos movimentos sociais reformistas, geralmente há contradição, mas esta é ofuscada pelas ideologias, doutrinas, etc. No caso das tendências revolucionárias, o interesse pessoal pode entrar em contradição com o interesse grupal, pois mesmo a satisfação de necessidades corporais (básicas) exigem uma certa integração na sociedade capitalista, pois, além da venda da força de trabalho, que pode gerar pouco tempo e cansaço, por exemplo, pode gerar o desejo de estabilidade financeira, vida confortável, etc. e isso pode gerar abandono da luta ou sua substituição por formas oportunistas (partidos, etc.).

No entanto, nem todos os interesses pessoais seguem esta dinâmica de integração. Existem alguns interesses pessoais que são anticapitalistas e, portanto, são motivo para conflito e radicalidade. Isso ocorre especialmente com as necessidades psíquicas, especificamente humanas, como a socialidade e a práxis. A socialidade é dificultada numa sociedade marcada pela luta de classes, por um lado, e pela competição social, por outro. A luta de classes geram conflitos sociais e o combate entre indivíduos na vida cotidiana, na qual os valores, sentimentos, concepções, interesses, entram em confronto. No entanto, mais forte e destruidora é a competição social, que se generaliza nas relações sociais, em todos os lugares (empresas, escolas, instituições, locais de lazer, etc.), em todas as atividades e relações sociais (amorosas, laborais, familiares, lúdicas, etc.). Esse processo estabelece conflitos, derrotas da maioria, tristeza, fracasso, sentimentos antipáticos, infelicidade geral. O trabalho alienado é o maior exemplo desse processo de negação da essência humana.

Num mundo cada vez mais mercantilizado, burocratizado e competitivo, a práxis, a criatividade, o trabalho como autorrealização, é cada vez mais raro e marginal, bem como a socialidade se torna cada vez mais degradada. Nesse sentido, a consciência desse processo gera outro tipo de interesse pessoal, o da autorrealização humana, que não é possível no interior do capitalismo (a não ser de forma muito parcial e marginal e para poucos indivíduos que conseguem resgatar algo de uma socialidade livre desses processos degradantes e um trabalho que permita alguma realização pessoal).
Assim, podemos dizer que os indivíduos possuem duplo interesse: os interesses pessoais imediatos e os interesses pessoais fundamentais. Esses interesses podem entrar em conflito no próprio universo mental do indivíduo, tanto de forma consciente como semiconsciente. Na maioria dos casos individuais predominam os interesses pessoais imediatos, o que pode gerar afastamento dos movimentos sociais ou participação oportunista. Quando predominam os interesses pessoais fundamentais, a relação dos indivíduos com os movimentos sociais tende a ser de maior envolvimento e voltada para os interesses grupais fundamentais. Nos casos em que há certo equilíbrio entre interesses pessoais imediatos e fundamentais, tende haver maior ambiguidade e conflitos interiores nos indivíduos e uma presença igualmente ambígua nos movimentos sociais. Desta forma, o duplo interesse pessoal se reproduz no movimento social. O conjunto de indivíduos voltados para os interesses pessoais tendem a reforçar o oportunismo nos movimentos sociais e os voltados para os interesses fundamentais tendem a reforçar os interesses grupais fundamentais. Voltaremos a isso adiante.

Os interesses pessoais podem gerar valores e estes podem ser apresentados como sendo interesses grupais e se tornarem objetivos dos mesmos, competidno, assim, no interior de um movimento social, com outros objetivos. Isso é mais comum e numeroso nos movimentos sociais policlassistas, pois os interesses pessoais e as oportunidades de sua realização são distintos em classes sociais distintas. O capitalismo é fértil em fabricar desejos inautênticos, o que é fonte de geração de interesses pessoais discrepantes dos interesses grupais, especialmente na juventude. Os valores manifestam, indistintamente, necessidades e desejos (autênticos e inautênticos), o que complexifica a questão. No entanto, os valores são necessidades e desejos explicitados que revelam interesses e estes formam os objetivos dos movimentos sociais.

A análise da constituição de objetivos, bem como de suas mudanças, remete a casos concretos e situação social e histórica específica. Uma vez constituídos os objetivos de um movimento social, eles geram pautas, reivindicações, processo de consolidação e até reificação. É nesse contexto que um objetivo se torna hegemonicamente estabelecido em um movimento social. No interior dos movimentos sociais há uma disputa em torno dos objetivos e esse é o próximo ponto que abordaremos.

Duplo Interesse e Objetivos dos Movimentos Sociais

O duplo interesse pessoal dos indivíduos não são criações destes e sim da realidade concreta da sociedade capitalista. É a divisão social do trabalho e a constituição das classes sociais que faz emergir o dualismo entre “interesse particular” e “interesse coletivo” (MARX  e ENGELS, 1982). Esse duplo interesse se manifesta através dos indivíduos e também nos grupos e classes sociais. Os grupos sociais possuem interesses imediatos e interesses fundamentais. Os interesses imediatos são relativos à sua sobrevivência e reprodução na sociedade capitalista e os interesses fundamentais são aqueles voltados para a resolução definitiva e total da situação que gera insatisfação e permite a autorrealização dos indivíduos que são integrantes do grupo social. Assim, os interesses grupais imediatos são voltados para a reprodução na sociedade capitalista e isso podem ser tanto as necessidades orgânicas (alimentação, habitação, etc.) quanto os desejos produzidos socialmente, incluindo os inautênticos[5].

Esse processo produz conflitos internos nos movimentos sociais (e destes com outros indivíduos, grupos, etc.). Ao se limitar ou priorizar os interesses grupais imediatos, acaba gerando oportunismo, imediatismo, etc. O grande problema é que essa opção acaba gerando uma contradição com os interesses grupais fundamentais, pois as reivindicações imediatas e imediatistas apontam para a realização de alianças, compromissos, moderação, etc. e, em última instância, abandono dos interesses fundamentais. Certos interesses grupais imediatos, por sua vez, são antagônicos aos interesses fundamentais, gerando obstáculos para o mesmo.

Assim, podemos compreender que quando os interesses pessoais imediatistas se manifestam nos movimentos sociais, eles tendem a gerar uma confusão entre eles e os interesses grupais imediatistas. Esse processo, por sua vez, pode gerar um confronto com os setores que priorizam os interesses grupais fundamentais. Em menor medida, também pode gerar confronto com aqueles que não abandonam os interesses grupais fundamentais apesar de priorizar os interesses imediatistas. Isso também pode ocorrer no nível discursivo com aqueles que abordam os interesses fundamentais apenas no discurso sem ter relevância alguma para a mobilização que efetivam.

É por isso que ocorre no interior dos movimentos sociais um fenômeno que já foi chamado de “racionalização”, mas preferimos o termo “razoabilização”, para evitar confusão. No processo de análise dos movimentos sociais, é necessário entender como existem diversos interesses e como eles são propulsores de ações e justificativas destas, mesmo se ocultando atrás de ideologias e “racionalizações”. Nesse sentido, a psicanálise contribui no sentido de explicitar o processo de “racionalização”, no qual os indivíduos buscam dar explicações racionais para suas ações, motivações, sentimentos e emoções. O termo racionalização, foi criado pelo psicanalista Ernest Jones e depois adotado por Sigmund Freud e desenvolvido por Anna Freud (RUCK, 2016). Ruck sugere a alteração do termo para razoabilização, pois é mais adequada, já que o processo é tornar aceitável e razoável as ações, motivações, sentimentos e emoções dos indivíduos.

Assim, a análise dos movimentos sociais ganha maior complexidade, pois não se trata apenas entender os discursos, justificativas e declarações dos agentes dos movimentos sociais e sim observar quais são suas necessidades, interesses, valores e o processo de justificativa e razoabilização por detrás deles. Isso, sem dúvida, aponta para retomar tanto as discussões sobre a manifestação do “irracional” quanto as concepções das “escolhas racionais”, pois, no fundo, na dinâmica dos movimentos sociais, tanto elementos inconscientes, sentimentais ou “não-racionais”, quanto elementos considerados “racionais”, tal como projetos políticos, ideologias, cálculo mercantil e valores culturais, estão presentes.

A razoabilização ocorre, muitas vezes, para os indivíduos justificarem a preponderância dos seus interesses pessoais imediatistas no interior do movimento social. Assim, se uma pessoa do movimento feminino tem o interesse pessoal em um cargo no aparato estatal, pode fazer tal interesse se metamorfosear em interesse grupal, gerando o discurso da necessidade de “igualdade entre os sexos”. Aqui trata-se de uma suposta “igualdade” dentro do capitalismo e abstraindo o conjunto das relações sociais, que expressa interesses pessoais imediatistas e que é a de vários indivíduos deste grupo social gerando um interesse grupal imediatista. Caso ele se torne hegemônico no movimento social, o interesse fundamental do grupo social é relegado a segundo plano ou abandonado. Assim, o objetivo deste movimento social passa a ser o interesse grupal imediato.

Uma vez constituído esse objetivo, se estabelece, dentro do movimento social, um conflito com outros objetivos. Isso pode gerar, para os defensores dos interesses grupais imediatos, alguns fenômenos culturais: razoabilização (agora a nível grupal), imaginário conveniente, doutrinas, ideologias. A razoabilização grupal é geralmente a mesma que é pessoal, só que agora se expressando como algo grupal, sem base individual. A suposta “igualdade dos sexos” dentro do capitalismo e nos termos capitalistas (conquistar espaços competitivos, poder, cargos, etc.) torna-se uma “necessidade” do grupo social como um todo e os indivíduos do grupo (no caso do exemplo, as mulheres) devem lutar e concretizar isso. Isso cria um imaginário (representações cotidianas ilusórias) conveniente e que é usado nos embates com os demais grupos e no interior do próprio grupo. Esse processo se fortalece com a criação de doutrinas e ideologias que apontam para isso de forma mais organizada ou sistematizada. Assim, vão surgir as intelectuais produtoras[6] de tais doutrinas e ideologias e as reprodutoras e divulgadoras, gerando adesão interna no movimento social.

O exemplo não deve provocar a falsa impressão de que isso ocorre apenas no movimento feminino. É algo generalizado e que ocorre em todos os movimentos sociais. O vínculo entre causa (objetivo) dos movimentos sociais e interesses grupais imediatos e os interesses pessoais igualmente imediatos é generalizado e ocorre também no caso de todos os movimentos sociais. O exemplo poderia ser o movimento pacifista ou o movimento negro, ou qualquer outro (ecológico, estudantil, habitacional, etc.). Isso, aliás, ocorre em toda a sociedade e no caso das classes sociais e nos movimentos políticos (a cooptação e corrupção no movimento chamado “socialista” é clássico a este respeito), bem como nos movimentos de classes sociais, como o operário e camponês.

A raiz desse processo se encontra na competição social e na produção capitalista de desejos, que reforçam o imediatismo e enfraquece a luta pela transformação social. O foco, nesse contexto, é a transformação situacional, que gera uma competição social e a busca de vantagens competitivas, um forte elemento de reforço do microrreformismo, no caso do capitalismo contemporâneo.

A proeminência desse processo de razoabilização e prioridade aos interesses grupais imediatistas é mais forte nos setores mais próximos da burocratização e mercantilização e dos indivíduos pertencentes às classes privilegiadas. É hegemônico em organizações e coletivos mais próximos ou ligados a governos, poder, partidos políticos. Isso é reforçado pela força da hegemonia e das organizações burocráticas, que muitas vezes se confundem ou são confundidos com os movimentos sociais[7].

O duplo interesse pessoal desemboca, na sociedade capitalista, na proeminência dos interesses pessoais imediatistas e estes realizam um impacto nos movimentos sociais reforçando a hegemonia dos interesses grupais imediatos. Isso tem efeito sobre os objetivos dos movimentos sociais, em sua substituição e a diferença entre discurso e realidade. Voltaremos a isso adiante, pois é preciso realizar mais um esclarecimento antes de continuar.

O duplo interesse dos grupos sociais se relaciona com outros interesses. Esses outros interesses são os específicos e os gerais (que, em certos casos, são universais). Os interesses específicos são os que oferecem a especificidade de um movimento social, explicitando sua relação com a totalidade da sociedade e suas necessidades específicas. Eles constituem as demandas e reivindicações específicas do grupo social de base do movimento social em questão. Os interesses específicos são geralmente interesses imediatos e os interesses gerais podem ser fundamentais ou conjunturais. Quando se cai no especifismo e imediatismo, ou seja, quando se abandona os interesses fundamentais, os interesses gerais se reduzem a questões conjunturais em sua relação como os interesses específicos e imediatos. Esse é o caso, por exemplo, de setores do movimento estudantil que considera que o apoio eleitoral aos candidatos progressistas é importante para que suas reinvindicações em matéria de política educacional sejam atendidas.

Isso é diferente quando não se abandona os interesses fundamentais, pois estes são universais. Isso pode ser compreendido aos percebermos que a emancipação de determinados grupos sociais (mulheres, negros, etc.) ou de realização de uma causa (ecológica, paz, etc.) só pode ocorrer com a transformação social (no sentido positivo, ou seja, constituindo uma sociedade humanizada). Por isso, os interesses fundamentais são universais, não só por pressupor a libertação de todos os outros grupos e realização de todas as causas justas, mas, principalmente, por que sua concretização no capitalismo é impossível. Isso significa que os interesses fundamentais de um grupo social expressam não somente a resolução dos seus problemas específicos, mas dos problemas sociais em geral, sendo universais[8].

Por outro lado, os interesses grupais imediatos são, simultaneamente, específicos. Os interesses imediatos, desde a mera sobrevivência até as melhores condições de vida possíveis ou situação do grupo na sociedade, são interesses específicos, pois apontam para transformação situacional e não social. Desta forma, podemos sintetizar que os interesses imediatos são equivalentes a interesses específicos e se voltam para transformação situacional e os interesses fundamentais são equivalentes aos interesses universais que se voltam para a transformação social.

Os interesses grupais imediatos e específicos podem gerar oportunismo, reformismo, microrreformismo, competição social, etc. Daí a crítica que se faz ao “especifismo” (TARDIEU, 2014). O grande problema é o isolamento dos interesses específicos e seu desligamento dos interesses fundamentais e universais. Esse processo significa a limitação das lutas dos movimentos sociais ao caso da transformação situacional, o que significa o abandono da transformação social, única possibilidade de concretização dos interesses fundamentais dos grupos sociais que geram movimentos sociais que não são conservadores[9].

Na base desse duplo interesse e objetivos dos movimentos sociais reencontramos uma diferenciação existente na variedade de movimentos sociais. Os movimentos sociais conservadores possui um interesse específico que é particularista, expressão das classes privilegiadas, e por isso os seus interesses fundamentais são a conservação social e assim há uma unidade entre interesses específicos e imediatos e interesses gerais e fundamentais. A unidade do duplo interesse dos movimentos sociais conservadores contrasta com a contradição que ocorre no caso dos movimentos sociais reformistas. No caso destes, os interesses imediatos e específicos podem ser obstáculos para a concretização dos interesses fundamentais e universais. No caso dos movimentos sociais revolucionários, há uma unidade entre os interesses e o foco cai sobre os interesses fundamentais e universais, sendo que os interesses específicos e imediatos que são contraditórios com estes são descartados e apenas aqueles que são coerentes com o objetivo final é que são mantidos como objetivos do movimento.

Hegemonia e a Luta em Torno dos Objetivos

Desta forma, a questão dos objetivos é algo problemático nos movimentos sociais reformistas e não nos movimentos sociais conservadores e revolucionários. Como os movimentos sociais reformistas são predominantemente policlassistas, isto é compreensível. É nesse caso que a questão do duplo interesse acaba gerando problemas e contradições. A partir da base policlassista e das lutas de classes na sociedade civil, que se manifesta também como luta cultural, há um processo de disputa em torno de quais são os objetivos dos movimentos sociais.

A luta em torno dos objetivos apontam para três posições que revelam uma disputa entre as três tendências dos movimentos sociais progressistas. A tendência conservadora tende a priorizar os interesses específicos e imediatos ou se limitar a ele, gerando uma autoctonia e aloctonia[10]. Este é o caso de setores do movimento negro que focalizam apenas o que denominam “dominação branca” e conflito racial. A tendência reformista mantém a tendência de priorizar os interesses específicos e imediatos, mesmo considerando, discursivamente ou efetivamente, os interesses gerais. No caso do movimento negro, é composto pelos setores que defendem reformas e para isso apoiam partidos e governos. A tendência revolucionária tende a priorizar os interesses fundamentais e universais, mas um forte setor acaba priorizando, por causa do ativismo ou das influências das ideologias hegemônicas, os interesses específicos e imediatos. Aqui o exemplo são os setores que vinculam racismo e capitalismo, apontando este último com a causa e, por conseguinte, o alvo principal.

É nesse contexto que há uma luta cultural pela hegemonia no interior dos movimentos sociais reformistas. Nesta luta podemos distinguir as três tendências acima delimitadas e ainda alguns setores (subdivisões no interior dessas tendências, embora muitas vezes sem vínculos com elas). Um setor é composto por aqueles que defendem os interesses grupais imediatos e específicos apenas como meio para satisfazer interesses pessoais, que é o que pode ser chamado de oportunista. Um outro setor é composto por aqueles que se limitam aos interesses específicos e imediatos, que pode ser chamado especifista. Ainda haveria um setor generalista, aparentemente revolucionário por priorizar os interesses gerais, mas no fundo é reformista e submete os interesses específicos e imediatos aos interesses de organizações burocráticas e governos. O outro setor, expressão da tendência revolucionária, é o universalista, pois prioriza os interesses fundamentais e universais. Há também um setor versatilista, que muda de posição ou que tenta, em determinados momentos, unir as distintas posições e tende a ser bastante volúvel, mudando de acordo com a conjuntura, hegemonia, etc. É nesse setor que se agrupa, também, os menos politizados e os que menos entendem as disputas, tendências, concepções, no interior do movimento. Assim, todos esses setores entram em confronto pela hegemonia e definição dos objetivos dos movimentos sociais.

Aqui entramos para a questão da identificação de quais são os objetivos dos movimentos sociais. No fundo, no interior dos movimentos sociais reformistas existem diversos setores e cada um segue a luta pelos objetivos que estabelece. É por isso que podemos analisar a partir da percepção do movimento social como um todo, ou seja, o que é hegemônico no movimento, ou avaliar as suas tendências, setores, organizações, etc., ou seja, suas ramificações. Voltaremos a isso quando formos tratar da questão da identificação de objetivos. É por isso que durante o capitalismo oligopolista transnacional, comandado pelo regime de acumulação conjugado, o objetivo predominante era o generalista e no capitalismo neoliberal, submetido ao regime de acumulação integral, o objetivo predominante é o especifista. A época das políticas estruturais de assistência social e do Estado integracionista era compatível com objetivos generalistas, enquanto que a época de políticas paliativas e segmentares do Estado neoliberal, é compatível com o especifismo.

A definição de quais são os objetivos predominantes num movimento social depende da hegemonia no seu interior essa possui múltiplas determinações, embora a hegemonia burguesa reine absoluta. A hegemonia burguesa, no entanto, muda de forma com o desenvolvimento do processo histórico para se adequar às necessidades da classe dominante no interior de um determinado regime de acumulação. Nesse sentido podemos dizer que o objetivo hegemônico num determinado movimento social é o compatível com a hegemonia burguesa na sociedade em determinado momento. Isso também significa dizer que em momentos de crise de hegemonia, ele se enfraquece e abre espaço para os demais objetivos disputarem o posto hegemônico, o que envolve tendências e setores envolvidos na dinâmica da luta de classes. Isso, por conseguinte, faz com que o objetivo hegemônico no movimento social também tenda a ser hegemônico na maioria das organizações mobilizadoras, bem como nas demais ramificações do mesmo.

A identificação do objetivo hegemônico nos movimentos sociais em sua totalidade remete, portanto, para a análise da sociedade como um todo e especialmente para o regime de acumulação e a hegemonia burguesa no momento analisado. Esse processo se mistura com as questões mais específicas dos movimentos sociais, suas disputas internas, a ação das organizações burocráticas (partidos, igrejas, sindicatos, universidades, etc.), que formam um todo complexo, mas que predomina o que é mais correspondente à hegemonia burguesa.

A hegemonia nas ramificações, por sua vez, é variada, pois, além das tendências e suas subdivisões, são diversas as organizações mobilizadoras e setores no interior de cada um dos movimentos sociais. Para realizar a identificação do objetivo de uma organização mobilizadora ou outra ramificação de um movimento social a formulação de Etzioni é a mais adequada (ETZIONI, 1976). A distinção entre objetivos reais e objetivos declarados é importante para descobrir a diferença entre os objetivos que estão nos discursos e os que são efetivos e alertar para uma possível dicotomia entre ambos. Se uma organização mobilizadora diz que seu objetivo é defender o meio ambiente e buscar garantir sua preservação, então descobrimos o seu objetivo declarado. No entanto, é preciso saber se tal objetivo é real, ou seja, é o objetivo verdadeiro e efetivo de tal organização. Etzioni indica a análise dos gastos e dispêndio de recursos e energia da organização, pois se ela gasta mais com suas próprias despesas (salários, estrutura, etc.) do que com a mobilização para defesa do ambiente, então revela-se uma dicotomia entre objetivo real e declarado. Se os gastos são inferiores e as energias e recursos são voltados para a preservação ambiental, então há unidade entre objetivos reais e declarados. Obviamente que é preciso levar em consideração outras determinações, mas a partir desse processo comparativo já se tem um forte indício para entender se há unidade ou dicotomia entre discurso e ação efetiva.

Um outro elemento importante na identificação dos objetivos é analisar o desenvolvimento histórico da movimento social e suas ramificações. No caso das ramificações, o desenvolvimento histórico geral e a hegemonia no movimento social é fundamental para entender qual objetivo predomina no seu interior. Uma organização mobilizadora tende a reproduzir o objetivo hegemônico do movimento social. Contudo, essa tendência não anula o fato de que as ramificações ligadas às tendências não hegemônicas, bem como diversos setores e organizações mobilizadoras podem desenvolver outros objetivos como hegemônicos no seu interior. E isso não é estático, pois uma organização mobilizadora pode surgir com um objetivo e depois alterá-lo e isso pode ocorrer devido mudança de hegemonia na sociedade civil, alteração dos integrantes da organização, desestabilização do regime de acumulação, burocratização e mercantilização da organização, etc.

Etzioni é, novamente, importante para explicar esse processo, que ele denomina “substituição de objetivos” (ETZIONI, 1976). A substituição de objetivos mais comum é a entre meios e fins. Uma organização mobilizadora é apenas um meio para se atingir o fim, que é o objetivo do movimento social do qual se faz parte. No entanto, com o processo de burocratização, a organização se torna seu próprio fim. Esse processo acaba gerando um duplo objetivo na organização, a autossustentação organizacional e a causa social que era a sua única razão de ser. Quando a autossustentação se torna hegemônica, a organização mobilizadora já se transformou em organização burocrática que não é mais mobilizadora, já que a mobilização torna-se apenas um objetivo secundário e legitimador de sua existência. Há uma outra forma de substituição de objetivos além da autossustentação se tornar o objetivo hegemônico. É o caso quando o objetivo que é a causa do movimento social é substituído por outros objetivos, como, por exemplo, a vitória eleitoral de um determinado partido, o que consiste numa substituição de objetivos via aparelhamento (VIANA, 2016a).

Uma outra forma de identificar os objetivos de um movimento social é através de suas reivindicações. As reivindicações são a forma concreta na qual os objetivos dos movimentos sociais são explicitados. Os objetivos declarados em manifestos, documentos, etc., não são nada e estão em oposição aos objetivos reais se não estiverem presentes nas reivindicações dos movimentos sociais (o que vale para suas ramificações). A este respeito é possível analisar a existência de reivindicações que são específicas e reinvindicações gerais, expressando os interesses específicos e gerais[11]. Essa dualidade reivindicatória é comum nos movimentos sociais, pois existem interesses imediatos e específicos convivendo com interesses fundamentais e universais (ou gerais). Essa dualidade reivindicatória está presente inclusive nos setores especifistas e universalistas, para citar as duas concepções antagônicas.

Os setores especifistas precisam para se legitimar e justificar diante do grupo social de base do movimento social que fazem parte criar um reducionismo para que os interesses fundamentais aparentemente possam ser solucionados na realização dos interesses específicos. Se para um setor do movimento feminino o extermínio dos homens resolve o problema, então isso é algo específico e que é também “fundamental” e realização da razão de ser do movimento social. Se outro setor afirma que o problema é cultural, então uma reforma cultural resolve o problema. O específico, nesse caso, acaba aparecendo discursivamente (e muitas vezes ideologicamente, ou seja, justificada e legitimada por ideologias, pensamento sistematizado) como sendo geral e a solução do problema.

Os setores universalistas, por sua vez, apontam para a transformação da totalidade das relações sociais como solução para o problema e o objetivo do movimento social. No entanto, os interesses específicos e imediatos se tornam presentes por vários motivos. Um deles é o seu caráter mobilizador. A proposta de solução definitiva e total da questão da mulher, por exemplo, é considerado belo e desejável, mas a maioria das mulheres (assim como integrantes de outros movimentos sociais) não querem esperar a realização da utopia para ver algo concretizado e por isso algumas reivindicações imediatas, mesmo que sejam meros paliativos e nada resolvam, são incluídos nas reivindicações, desde que não entrem em contradição com os interesses fundamentais e universais (em casos concretos, às vezes ocorre tal contradição, especialmente nos setores com menor formação política, por não enxergarem as contradições e que certas reivindicações são mais obstáculos do que solução). Outro motivo é que para a efetivação da luta (incluindo a cultural) e sua sedimentação, é necessário constituir espaços de contrapoder, corroer a hegemonia no movimento e sociedade, etc., que estão ligadas a reivindicações específicas. Alguns exemplos podem ajudar a entender isso: um setor do movimento social pode necessitar local de reunião para se organizar ou então estudantes das classes desprivilegiadas necessitam de restaurantes universitários para poderem sobreviver e continuarem na luta.

Essa dualidade reivindicatória aparece também nos outros setores, sob formas distintas. Para os setores generalistas aparelhados por partidos políticos, por exemplo, as reivindicações específicas são formas de conseguirem espaço e legitimidade para apontar para as reivindicações gerais, interpretadas e avaliadas especialmente em termos de governo e eleições (e, no caso dos reformistas extremistas, tomada do poder estatal). Para os setores versatilistas, onde na maioria dos casos reina a confusão, todas as reinvindicações são aceitáveis, mas como existem divisões internas, alguns são mais pragmatistas e só pensam nas reivindicações imediatas.

A dualidade reivindicatória pode, portanto, aparecer sob forma mais ou menos equilibrada, como também pode aparecer através da ênfase nas reivindicações específicas (ligadas aos interesses imediatos e específicos) ou nas reivindicações gerais (ligadas aos interesses gerais ou universais/fundamentais). Essas reivindicações aparecem nos discursos, falas, panfletos, documentos, manifestações, cartazes, campanhas, etc. Através da análise desses materiais é possível entender como se manifesta a dualidade reivindicatória e a partir disso descobrir qual é o objetivo de determinada ramificação ou o objetivo hegemônico num determinado movimento social.

Nesse sentido, as reivindicações dos movimentos sociais ou de suas ramificações são reveladoras dos reais objetivos dos mesmos. É nesse contexto que a análise da dualidade reivindicatória ajuda a compreender o objetivo real e o objetivo declarado dos movimentos sociais e suas ramificações.

Considerações Finais

A análise dos movimentos sociais é algo bastante complexo e que envolve múltiplas determinações e relações, bem como remete para uma enorme diversidade de questões. Um dos elementos mais importantes na análise dos movimentos sociais é o seu objetivo. Esse foi o nosso foco aqui.

A compreensão dos objetivos nos movimentos sociais é fundamental para uma um entendimento mais adequado dos mesmos. Apesar disso, como colocamos anteriormente, há poucos estudos que aprofundam o processo analítico a este respeito. O nosso percurso, após realizar essa problematização e trazer uma definição de objetivos, apontou para a análise do processo de constituição dos objetivos e diversas questões correlacionadas, como a identificação dos objetivos, o seu processo de substituição e os diferentes objetivos gerados pelos movimentos sociais ou suas ramificações.

Nesse contexto, a conclusão geral é a de que os objetivos dos movimentos sociais são expressões dos interesses dos seus grupos sociais de base e estão ligados ao contexto social e histórico mais amplo, o que remete para a questão da hegemonia e regime de acumulação num determinado momento histórico. Da mesma forma, outra conclusão é que a compreensão dos objetivos estabelecidos nas ramificações dos movimentos sociais depende da análise concreta dos mesmos. Assim, é perceptível que análises sobre casos concretos podem ajudar a fazer avançar a discussão sobre a questão dos objetivos dos movimentos sociais, No entanto, reflexão teórica inicial é fundamental, inclusive para que isso seja tematizado em pesquisas futuras e para que essa questão fundamental não fique ausente nas análises dos movimentos sociais.

Referências


ALONSO, A., 2009. As Teorias dos Movimentos Sociais: Um Balanço do Debate. Lua Nova, Issue 76.

BERGER, P., 2015. Movimentos Sociais, Futuro e Utopia. Marxismo e Autogestão, 02(03), p. jan./jun..

BOTTOMORE, T., 1981. Sociologia Política. Rio de Janeiro: Zahar.

ETZIONI, A., 1976. As Organizações Modernas. 5ª edição ed. São Paulo: Pioneira.

GOHN, M. d. G., 1996. Teorias dos Movimentos Sociais. São Paulo: Edições Loyola.

MARX, K. e ENGELS, F., 1982. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo: Ciências Humanas.

MEDEIROS, R., 2016. Práxis Política e Movimentos Sociais. In: VIANA, Nildo (org.). Movimentos Sociais: Questões Conceituais e Teóricas. Goiânia: Edições Redelp.

MELUCCI, A., 1989. Um Objetivo para os Movimentos Sociais?. Lua Nova, 10(17).

RUCK, R., 2015. Marxismo y Psicoanálisis. Madrid: Ferramienta.

RUCK, R., 2016. Razoabilização: Um Mecanismo Psíquico de Defesa. Sociologia em Rede, 06 (06).

SÁNCHEZ, J. M. A., 2000. El Movimiento Estudiantil y la Teoría de los Movimientos Sociales. Convergência, 21(21).

TARDIEU, S., 2014. Crítica ao Especifismo. Marxismo e Autogestão, 01(02).

TOURAINE, A., 1997. Os Movimentos Sociais. In:: J. d. S. e. F. M. MARTINS, ed. Sociologia e Sociedade. Rio de Janeiro: LTC.

VIANA, N., 2007. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasília: Thesaurus.

VIANA, N., 2016a. Os Movimentos Sociais. Curitiba: Prismas.

VIANA, N., 2016b. A Mercantilização das Relações Sociais. Rio de Janeiro: AR editora.


Resumo: A análise dos movimentos sociais é algo complexo e que envolve enorme diversidade de questões. Um dos elementos mais importantes na análise dos movimentos sociais é o seu objetivo. A compreensão dos objetivos nos movimentos sociais é fundamental para uma um entendimento mais adequado dos mesmos. O nosso percurso consistiu em problematizar a questão dos objetivos e trazer uma definição dos mesmos e analisar o processo de constituição dos objetivos e as questões relacionadas, tais como a identificação dos objetivos, o seu processo de substituição e os diferentes objetivos gerados pelos movimentos sociais ou suas ramificações. A conclusão geral é a de que os objetivos dos movimentos sociais estão ligados ao contexto social e histórico mais amplo, o que remete para a questão da hegemonia e regime de acumulação num determinado momento histórico e aos os interesses dos grupos sociais de base. Outra conclusão é que a compreensão dos objetivos estabelecidos nas ramificações dos movimentos sociais depende da análise concreta dos mesmos e de suas manifestações mais concretas, tal como a dualidade reivindicatória.

Palavras-Chave: Movimentos Sociais, Grupos Sociais, Ramificações, Objetivos, Interesses.

Abstract: The analysis of social movements is complex and involves enormous diversity issues. One of the most important elements in the analysis of social movements is their goal. Understanding the goals in social movements is key to a better understanding of them. Our route was to discuss the issue of goals and bring a definition of them and analyze the process of constitution of the goals and related issues such as the identification of goals, the process of substitution and different goals generated by social movements or its ramifications. The general conclusion is that the goals of social movements are linked to the social context and broader historical, which refers to the question of hegemony and accumulation regime in a given historical moment and the interests of social groups base. Another conclusion is that the understanding of the objectives established in the branches of social movements depends on the concrete analysis of the data and its more concrete manifestations, such as vindicatory duality.

Keywords: Social Movements, Social Groups, Ramifications, Goals, Interests.






[1] Marx distingue entre “ideólogos ativos” e “ideólogos passivos” (MARX e ENGELS, 1982). Os primeiros são produtores de ideologias, os demais são reprodutores. Isso cria uma divisão do trabalho no interior da intelectualidade.
[2] Direita e esquerda se tornaram termos abstratos que não significam mais nada, não só pela deformação que vem sofrendo por parte dos setores mais conservadores e das organizações burocráticas que se dizem de esquerda, mas por sua imprecisão que gera a possibilidade de permitir a deformação. Direita e esquerda podem ser consideradas duas posições no interior do capitalismo (e em casos mais restritos, dentro da democracia representativa). Nesse sentido, a direita é expressão do bloco dominante, conservador, e a esquerda é expressão do bloco progressista, reformista ou microrreformista, ou, ainda, meramente “democrático”.
[3] Sem dúvida, há uma diferença entre o faminto e os demais exemplos, pois ele luta por sua sobrevivência e pela satisfação de uma necessidade básica e ineludível, além de não ter opções como os demais.
[4] É preciso esclarecer, também, que todos os indivíduos no capitalismo estão submetidos ao cálculo mercantil. A percepção disso e de suas consequências também precisam ser levadas em conta. O cálculo mercantil constrange os indivíduos a buscarem a satisfação de suas necessidades e/ou desejos levando em conta que tudo é mercantilizado no capitalismo e gera a necessidade de dinheiro e os custos de sua realização (VIANA, 2016b).
[5] Os seres humanos, após conseguirem garantir a satisfação de suas necessidades corporais (básicas) passam a priorizar as necessidades psíquicas ou os desejos inautênticos gerados pela sociedade capitalista. A primeira opção é obstaculizada por essa sociedade que degrada o trabalho (transformando-o em alienado) e as relações sociais (através da competição e outros processos sociais, incluindo a luta de classes, gerando uma desumanização) e se realiza marginalmente, seja na criatividade e liberdade existente na própria luta política (fora das organizações burocráticas, que reproduzem a sociabilidade capitalista), seja nas iniciativas individuais em determinados contextos que permitem isso. A segunda opção gera a evasão, no qual os indivíduos se envolvem com os desejos inautênticos e muitas vezes realiza sua valoração, tal como televisão, jogos, internet, bebidas, esportes, profissão, etc. A primeira opção é mais satisfatória, mas é limitada e geram conflitos e outros problemas e a segunda opção é mais fácil, mas insatisfatória, o que gera o vazio e a perda de sentido. A ida ao shopping center fazer compras ou passar horas jogando algo é mera evasão que podem trazer um prazer momentâneo que logo é substituído pela depressão, insatisfação, etc.
[6] Geralmente são as mulheres da classe intelectual as responsáveis pela organização ou sistematização dessas ideias, embora alguns homens reproduzam isso, seja por interesses escusos ou por boa fé. As demais mulheres apenas adotam ou reproduzem tais concepções, umas por se adequar aos interesses pessoais, outras por causa da força da pressão do movimento social e hegemonia em certos setores da sociedade. Sem dúvida, esse processo de produção e reprodução ou adesão é mais comum nas mulheres das classes privilegiadas, mais envolvidas na competição social e por isso mais atentas para esse tipo de reivindicação.
[7] Sobre o processo de burocratização e mercantilização, bem como sobre a fronteira entre organizações mobilizadoras e movimentos sociais e organizações burocráticas, pode ser vista em Viana (2016a).
[8] Aqui a contribuição de Berger sobre projeto e futuro se torna fundamental. Como não poderemos discutir as questões apontadas por Berger (2015) aqui, tal como a questão do passadismo, presentismo, futurismo no âmbito dos objetivos dos movimentos sociais. o que é retomado por Medeiros (2016).
[9] Os movimentos sociais conservadores (e suas ramificações) não podem ultrapassar o nível da transformação situacional, pois não é desejo dos grupos sociais de base dos mesmos em realizar transformação social, já que sua dinâmica não é direcionada pela luta pela transformação social e sim pela luta pela conservação social.
[10] Autoctonia é a predisposição mental de considerar o grupo ao qual se pertence é superior, gerando um senso de pertencimento maniqueísta, pois gera a aloctonia, que é a predisposição mental que considera os demais grupos ou o grupo oposto como inferior (VIANA, 2016a). A superioridade e inferioridade aqui pode ser entendida sob diversas formas, tais como genética, cultural, política, moral, histórica, etc.
[11] Sánchez buscou explicitar isso no que se refere ao movimento estudantil: “as petições do movimento estudantil se caracterizam por incluir dois tipos de reivindicações: as de caráter gremial, relativas a sua situação de estudantes, tal como a gratuidade da educação, os sistemas de ensino, restaurantes estudantis e outros; e aqueles que caráter político, tal como o debate sobre a situação da universidade, ou as possibilidades de participação na condução geral da sociedade, a política universitária e a geral” (SÁNCHEZ, 2000, p. 246).
-------------------------------------------
Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Os Objetivos dos Movimentos Sociais. Revista Movimentos Sociais. Ano 01, num. 01, 2016. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rms/article/view/453/pdf_2

Nenhum comentário:

Postar um comentário