MOVIMENTOS SOCIAIS E
MOVIMENTOS DE CLASSE:
SEMELHANÇAS E
DIFERENÇAS
Nildo Viana*
O fenômeno dos movimentos
sociais encontra sérios obstáculos analíticos e isso prejudica a possibilidade
de uma compreensão mais ampla do mesmo. Um dos problemas mais graves no
processo analítico dos movimentos sociais é sua confusão com os movimentos de classes
sociais (movimento operário, movimento camponês, etc.). Nesse sentido, é
necessário superar tal confusão. A palavra confusão significa, exatamente, a
fusão de coisas distintas, gerando um desentendimento ao misturar dois
fenômenos diferentes.
A confusão entre movimentos
sociais e movimentos de classe deve, portanto, ser superada. Essa superação
remete a um problema real e a um problema metodológico. O problema real é a
confusão entre dois fenômenos distintos e o problema metodológico é o processo
analítico que permite tal confusão. Nesse sentido, é necessário esclarecer tal
confusão, tanto no plano metodológico quanto teórico (real). Este é o objetivo
do presente artigo.
Semelhanças e Diferenças: Questão Metodológica
Semelhança e diferença são duas
categorias do pensamento que facilita o processo de compreensão da realidade.
No entanto, essas categorias, no plano das representações cotidianas, assumem
uma forma elementar. A sua forma desenvolvida só aparece depois de um longo
processo histórico, no qual o saber noosférico (ou seja, com maior grau de
complexidade) vai se desenvolvendo através das reflexões filosóficas e
científicas, até chegar a sua forma mais desenvolvida e completa, no método
dialético, ou seja, na totalidade que é o pensamento marxista[1].
No entanto, as categorias do
pensamento não se desenvolvem de forma unilinear, pois elas estão no olho do
furacão da luta cultural entre as classes sociais. Se assim fosse, as
categorias do pensamento evoluiriam automaticamente para categorias da dialética
(inclusive nem sequer precisaria denominá-las com tal referência a um método
específico). A fusão das categorias do pensamento com as categorias da
dialética tende a ocorrer na futura sociedade autogerida, na qual as lutas de
classes e as divisões sociais derivadas e relacionadas foram abolidas e o saber
pode ter um desenvolvimento livre dos entraves gerados pelas classes dominantes
na história da humanidade e por tudo que é derivado das sociedades classistas.
A forma desenvolvida dessas duas
categorias ainda não alcançou um desenvolvimento completo. As categorias de
“semelhança” e “diferença” possuem sentido num processo comparativo e se
manifestam quando existem relações de unidade ou oposição, mas não de
antagonismo. O modo de pensar burguês, no entanto, confunde essas duas
categorias, seja absolutizando uma delas, seja mesclando-as e tornando-as
indefinidas ou, ainda, subsumindo uma na outra. Assim, é necessário comparar as
duas formas de trabalhar com essas categorias. A forma dialética de trabalhar
com essas categorias é através da abstração e a forma burguesa é através da
abstratificação.
A abstratificação é a raiz da
confusão entre semelhança e diferença. O seu procedimento é defender a
existência de uma semelhança ou diferença absolutas, a existência de ambas sem
maior distinção ou reduzir uma à outra. Trata-se de abstratificação por
abandonar a categoria fundamental da totalidade. Entre um cachorro e um gato
não existe semelhança absoluta. Sem dúvida, existem semelhanças: ambos possuem
olhos, orelhas, quatro patas, etc., mas isso não abole as diferenças reais. Um
late, o outro mia; um é mais leve e ágil, o outro é mais forte; entre inúmeras outras
diferenças. Isso deixa claro que não há semelhança absoluta, pois as diferenças
foram apontadas acima. Da mesma forma, não existe diferença absoluta e os
exemplos anteriores já fundamentam tal afirmação. Também não podemos subsumir
as diferenças nas semelhanças e afirmar que gatos e cachorros são iguais ou
vice-versa. Outro equívoco seria dizer que tanto semelhanças quanto diferenças
existem concretamente e por isso não se pode distinguir ambos[2].
A episteme burguesa, ou o modo
de pensar burguês, cria diversas formas de observar as semelhanças e diferenças.
Essas formas são limitadas por causa de suas antinomias e reducionismo. É por
isso que a partir dessa episteme é possível só ver semelhanças ou só ver
diferenças, ou então criar outras formas ideológicas de compreender a relação
entre o que se compara usando diversas combinações dessas categorias.
A episteme marxista, por sua
vez, usa um processo analítico bem distinto. O processo de abstração no método
dialético aponta para a percepção do fenômeno em sua totalidade. A comparação entre
dois fenômenos se estabelece levando em conta a totalidade de ambos e não
aspectos isolados. Considerar, como na episteme burguesa, aspectos isolados seria
um procedimento que permitiria ver apenas semelhança ou diferença, entre outros
possíveis equívocos interpretativos. Através do método dialético é possível
captar as diferenças e semelhanças existentes entre dois fenômenos sem
apresentar uma concepção deformada dos mesmos. Consequentemente, ao não
abandonar a percepção da essência dos fenômenos e sua totalidade, a concepção
dialética permite a apreensão do caráter da semelhança e da diferença, ou seja,
se se trata de algo essencial ou existencial. A semelhança essencial mostra que
os dois fenômenos comparados são uma única e mesma coisa, sendo manifestações
singulares da mesma. A diferença essencial mostra justamente o contrário. A
semelhança existencial mostra que os dois fenômenos comparados possuem
essências distintas e, portanto, não são manifestações do mesmo ser. A
diferença existencial, por sua vez, mostra que os fenômenos comparados podem
ser um mesmo ser (se houver semelhança essencial) ou então são radicalmente
distintos (onde tanto a diferença quanto a semelhança são apenas existenciais).
Numa concepção dialética, é
preciso entender que esse processo depende dos fenômenos que estão sendo
comparados: se estes fenômenos só existem relacionalmente (um em relação ao
outro, como, por exemplo, as classes sociais), se há relação direta, indireta
ou remota. A questão da semelhança e diferença vai sofrer diversas alterações
nos distintos casos apresentados acima.
Essas observações metodológicas
introdutórias tem apenas o objetivo de trazer alguns elementos para uma melhor
compreensão da discussão a seguir na comparação entre movimentos sociais e
movimentos de classes sociais. No entanto, para isso se concretizar, precisaremos
realizar um breve esclarecimento conceitual a respeito dos dois fenômenos em
questão.
Breve Esclarecimento Conceitual
Os conceitos de “movimentos
sociais” e “classes sociais” são deformados e transformados em construtos que
não contribuem com a compreensão da realidade. No caso dos movimentos sociais,
existem inúmeras definições arbitrárias (VIANA, 2016), cuja base é o
empiricismo ou mesmo idiossincrasias, enquanto que no caso das classes sociais
reina coisa semelhante. As ideologias da estratificação social abolem a relação
entre as classes sociais (exploração e dominação) e em seu lugar coloca um
sistema classificatório arbitrário (classes A, B, C, ou então “alta, média,
baixa”, etc.) entre outras formas ideológicas de abordar as classes sociais
(VIANA, 2012).
O conceito de movimentos sociais
é o que expressa a essência desse fenômeno. Os movimentos sociais são
movimentos de grupos sociais que geram mobilizações geradas por uma
insatisfação social com determinada situação social específica que também
constituem senso de pertencimento e objetivos, o que pressupõe certo
desenvolvimento da consciência e formas organizacionais (VIANA, 2016). O
elemento fundamental é que se trata de movimento de grupos sociais.
Nesse sentido, é fundamental
definir o que são grupos sociais. Os grupos sociais possuem diversas
definições. Em nossa concepção, os grupos sociais são conjuntos de indivíduos
que possuem determinados aspectos em comum que os integra de forma específica
numa determinada sociedade e é isso que lhe fornece o caráter “social”. Esses aspectos em comum são os mais variados,
que é o que distingue um grupo social de outro, podendo ser a corporeidade, as
crenças, situação social, etc. (VIANA, 2016)[3].
As classes sociais são um
conjunto de indivíduos que possuem determinado modo de vida comum, interesses
comuns e luta comum contra outras classes sociais, que são derivados da divisão
social do trabalho, que, por sua vez, é determinada pelas relações de produção
dominantes (VIANA, 2012)[4]. E
por isso, em sociedades diferentes, classes sociais igualmente diferentes.
Todas as classes sociais compartilham esses elementos constitutivos, mas sob
formas distintas, possuindo uma semelhança essencial e diferenças existenciais.
Tanto a classe burguesa quanto a proletária (bem como a burocrática) possuem
estes elementos constitutivos, mas sob formas distintas, pois são modos de
vida, interesses e lutas distintas, com posições antagônicas nas relações de
produção e divisão social do trabalho.
Assim, os movimentos sociais são
inseparáveis dos grupos sociais, mas não são a mesma coisa que estes. Um grupo
social só gera um movimento social quando uma parte dele entra em “fusão”, ou
seja, quando além de aspectos em comum, uma parte do mesmo gera mobilização,
senso de pertencimento e objetivos (o que, por sua vez, gera organizações e
determinada forma de consciência). O movimento social é, portanto, uma parte do
grupo social que se torna efetivo, ganhando mais alguns aspectos em comum.
O que significaria “movimentos
de classes sociais”? As classes sociais, como se observa em seu próprio
conceito, que expressa sua realidade concreta, estão em movimento, quer queira
ou não, quer tenha consciência ou não. No próprio conceito de classes sociais
está explicitada a “luta comum contra outras classes”[5]. Nesse
sentido, o movimento das classes sociais se manifesta na vida cotidiana. Sem
dúvida, é possível realizar distinções na luta das classes sociais. Há a luta
cotidiana, que é expressão da divisão social do trabalho, do processo de
produção e distribuição dos bens[6],
etc. Essa luta cotidiana pode se tornar extracotidiana, radicalizar, etc. Quando
essa luta é coletiva, ela assume várias formas, o que varia de acordo com as
classes sociais e as épocas em que isso ocorre. O que importa destacar aqui é que as classes
sociais se movimentam quer queiram ou não, quer tenha consciência ou não.
Assim, as formas de luta das classes sociais expressam seu movimento.
Movimentos Sociais e Movimento de Classes
A primeira diferença é óbvia,
trata-se de classes sociais e não grupos sociais. Essa diferença é apenas a
primeira de uma série. No entanto, para que sejam fenômenos distintos não basta
apontar a existência de diferenças. É necessário demonstrar que tal diferença é
essencial e não meramente existencial. A diferença essencial mostra que se
trata de fenômenos distintos, seres diferentes. A diferença existencial mostra
apenas diferenças de forma e manifestação.
Os movimentos de grupos sociais
são essencialmente diferentes de movimentos de classes sociais. A diferença
essencial é compreendida na análise das classes e grupos e de seus respectivos
movimentos. Os grupos sociais não são relacionais, ou seja, não é a relação
entre eles que constituem e caracterizam os grupos. Eles coexistem e podem se
relacionar, mas não é a relação que os cria. O grupo dos cinéfilos não existe
graças a sua relação com o grupo dos ecologistas e nenhum dos dois existe
devido sua relação com o grupo dos negros e dos pacifistas. Os grupos sociais
corporais, aparentemente, só existiram em sua relação recíproca. Contudo, a
determinação desse processo é orgânica e não social. Nas relações sociais concretas,
o que ocorre é uma determinada forma de relação entre seres já existentes
independentemente delas. Os indivíduos do sexo masculino não se tornam assim
após se relacionar como indivíduos do sexo feminino. Da mesma forma, os
indivíduos negros não se tornam assim após se relacionar com os indivíduos
brancos. Sem dúvida, uma vez existindo tal relação, ela será marcada por significados,
conflitos, aproximações e separações, etc., mas isso não é uma determinação
orgânica e nem isso antecede a existência real dos grupos corporais.
A relação entre os grupos
sociais não são antagônicas, ou seja, não são fundamentadas na exploração e
dominação, como no caso das classes fundamentais. Mesmo no caso das demais
classes sociais, subsiste a diferença na relação, pois ela é determinada diretamente
pela divisão social do trabalho e distribuição de riqueza na sociedade e não
indiretamente. A relação das classes sociais ocorre via divisão social do
trabalho e a dos grupos sociais em outras formas de relações sociais. Essa é
uma diferença essencial e constitui todas as demais diferenças, tais como
interesses, formas de ação, etc.
Os interesses que formam os
objetivos dos movimentos sociais são interesses grupais, mesmo quando se
articulam com interesses gerais ou universais (VIANA, 2016b), enquanto que os
interesses dos movimentos de classe são, evidentemente, interesses de classes.
Desta forma, os movimentos sociais não possuem autonomia e capacidade de gerar
a transformação social (interesse do proletariado e das demais classes
desprivilegiadas e potencialidade do primeiro por sua determinação de classe),
nem possuem força para garantir a reprodução ou reforma da sociedade (podem
colaborar com este movimento, mas não efetivar o mesmo). Os movimentos sociais
tendem a lutar pela transformação situacional (da situação do grupo social que
constitui um movimento social específico) e somente as tendências
revolucionárias no interior dos mesmos ou em épocas revolucionárias na quais
essas se tornam hegemônicas, é que ocorre a luta pela transformação social.
As formas de ação também são
distintas. Os movimentos das classes sociais geram formas de luta que são
indissoluvelmente ligadas à sua existência e relação com as demais classes. Quando
o movimento operário utiliza a greve como arma de luta, o faz por sua eficácia
e por atingir diretamente a classe antagônica, ou seja, a classe capitalista.
Os movimentos sociais não podem fazer greve. O máximo que podem fazer é
ocupações, manifestações, boicotes, etc. Existem formas de ação que são
semelhantes e que permite certa confusão, como panfletagem, manifestações, etc.
No entanto, na semelhança reside a diferença, pois mesmo quando usam os mesmos
meios de ação, o fazem com objetivos distintos, bem como muitas vezes
direcionados para instituições ou adversários diferentes. Por fim, como já foi
dito, as classes sociais estão em movimento o tempo todo, enquanto que os
movimentos sociais precisam surgir e isso só se concretiza sob certas condições
(VIANA, 2016a).
Movimento Operário e Movimentos Sociais
A semelhança atribuída aos
movimentos sociais e movimento das classes sociais tem sua principal razão de
ser a confusão com o movimento operário e o movimento camponês, mas
especialmente o primeiro. Por isso uma comparação entre o movimento operário,
especificamente, e os movimentos sociais é importante. A confusão entre
movimento operário e movimentos sociais tem a ver com o processo histórico, debilidades
teórico-metodológicas, força da ideologia, semelhanças existenciais (e não
essenciais) reais.
O processo histórico promove uma
aparente linha evolutiva entre o desenvolvimento do movimento operário e dos
movimentos sociais. O movimento operário, como movimento de classe, surge com o
próprio surgimento do proletariado. Quanto mais amadurecido é o modo de
produção capitalista (o que significa aumento quantitativo do proletariado e
consolidação das relações de produção capitalistas e dos conflitos e
antagonismo entre as classes fundamentais), mais o movimento operário se torna
presente com lutas cada vez mais fortes. É no início do século 19 que ocorre
esse fortalecimento do movimento operário e atinge seu ápice em 1871, com a
Comuna de Paris, encerrando uma época da luta de classes entre burguesia e
proletariado[7]
e que será retomada nos regimes de acumulação posteriores.
Os movimentos sociais vão
surgindo paulatinamente após esse momento, sendo que sua consolidação ocorre no
regime de acumulação conjugado (1945-1980). Nesse contexto histórico, o recuo
do movimento operário devido às mutações do capitalismo convive com a emergência
de novas ideologias reprodutivistas que pregam a “integração da classe operária
no capitalismo”[8].
Pouco tempo depois emerge uma nova ideologia, a dos “novos movimentos sociais”[9],
que considera que os movimentos sociais “tradicionais” (de classe) estariam
sendo substituídos por movimentos sociais novos, focados em novas questões e
reivindicações, substituindo o movimento operário como principal movimento
social. O processo histórico promove uma certa confusão ao haver, efetivamente,
no capitalismo imperialista, um recuo do movimento operário e um avanço
paulatino dos movimentos sociais. Isso ocorre simultaneamente com o
desenvolvimento de ideologias que sistematizam o mundo das aparências a partir
da perspectiva burguesa e assim cristalizam uma determinada interpretação da
realidade, que aparece como “verdadeira” e “única”. A força da ideologia se
manifesta nesse processo de hegemonia e homogeneização de um determinado
pressuposto ideologêmico[10],
que é o da “novidade” de determinados movimentos sociais, reproduzido por
muitos acriticamente sem sequer conhecer a base ideológica desta afirmação.
Assim, no reino das ideologias
(e acompanhado por aqueles que se dizem marxistas e possuem determinadas
debilidades teórico-metodológicas[11]),
as semelhanças existenciais aparecem como se fossem essenciais e assim o
movimento operário passa a ser considerado um movimento social como os demais.
Claro está que nessa abordagem ideológica, reproduzida pelos intelectuais de
esquerda, o movimento operário é apenas mais um movimento social (assim como
Marx é apenas mais um sociólogo, etc.) e o antagonismo de classe desaparece na
série de oposições existentes dentro da sociedade capitalista. Com o passar do
tempo, cria-se uma tradição interpretativa (compartilhada por distintas
ideologias e concepções) que gera a hegemonia do equívoco em considerar o
movimento operário (e o camponês) como movimentos sociais.
A dinâmica da luta operária é
distinta das formas de ação dos movimentos sociais. Além do proletariado lutar
o tempo todo, pois não tem como não fazê-lo, ele tem um desenvolvimento nessa
luta, cuja tendência é a passagem das lutas espontâneas para as lutas autônomas
e dessas para as lutas autogestionárias (JENSEN, 2016). Os movimentos sociais
não possuem tal tendência, pois não possuem uma relação antagônica com o
capital que é oriunda de sua própria forma de existência, bem como não tem a
reação do capital e uma luta em torno do mais-valor. Como os movimentos sociais são geralmente e em
sua maioria policlassistas (VIANA, 2016), bem como seus interesses e objetivos
são distintos, então sua dinâmica de desenvolvimento é outra, muito mais
integrada na sociedade capitalista e tendo divisões internas, avanços e recuos,
processos contraditórios, etc. que são marcados pela hegemonia burguesa do
momento (no caso, de um determinado regime de acumulação) reina quase que
absoluta.
O movimento operário tende a
radicalizar quando há um processo de desestabilização e, principalmente, crise
de um regime de acumulação, gerando lutas autônomas e trazendo a possibilidade
de lutas autogestionárias (JENSEN, 2016). Os movimentos sociais não seguem essa
dinâmica. Os movimentos sociais conservadores e a maioria dos movimentos
sociais reformistas seguem a tendência de apoio ao capital, inserção na luta
como classe e não movimento, etc. Apenas as tendências revolucionárias (que
podem se tornar hegemônicas, dependendo da situação concreta) dos movimentos
sociais reformistas e os movimentos sociais populares é que possuem uma maior sincronicidade
com as lutas operárias, mas com limites e ambiguidades na maioria dos casos[12].
Esses limites e ambiguidades são oriundos da hegemonia burguesa, da repressão,
etc. No caso das tendências revolucionárias, os seus setores mais ambíguos
tendem a demorar mais tempo para superar suas ambiguidades e alguns setores
mais dogmáticos ou influenciados pela hegemonia burguesa tendem a encontrar
dificuldades de passagem para uma posição autenticamente revolucionária. No
caso dos movimentos sociais populares há uma tendência de radicalização e
passagem para lutas autônomas, embora a passagem para as lutas autogestionárias
seja mais difícil, pelas condições de classe (a sua composição é das classes
sociais desprivilegiadas e algumas dessas e suas frações possuem maior dificuldade
para aderir à hegemonia proletária).
A confusão nesse processo de
luta traz uma nova questão. A concepção apologética dos movimentos sociais que,
muitas vezes, concebem estes como sendo “revolucionários” ou “avançados”, o que
gera uma percepção romantizada e idealizada dos mesmos por sua “semelhança” com
o movimento operário. Não só desconsideram a existência dos movimentos sociais
conservadores e tendências conservadoras nos movimentos sociais reformistas,
mas também desconhecem os demais problemas dos movimentos sociais em geral. Não
entendem os limites instransponíveis dos movimentos sociais reformistas e nem
as ambiguidades de parte das tendências revolucionárias no seu interior. Os
movimentos sociais só rompem com seus limites quando ultrapassam os interesses
grupais e o próprio movimento, no sentido de não lutar mais por melhorias para
o grupo social dentro do capitalismo e sim lutar pela abolição deste, que é o
gerador do problema dos mesmos, e só fazem isso quando se aliam ao
proletariado, superando a hegemonia burguesa, substituindo-a pela hegemonia
proletária. A hegemonia proletária significa que a influência do bloco
dominante e do bloco progressista perdeu espaço e foi substituída pela força do
bloco revolucionário comandado pela luta operária[13]. Isso
ocorreu em poucos casos históricos, como no Maio de 1968 em Paris e em setores
do movimento negro nos Estados Unidos.
As formas de ação dos movimentos
sociais também tendem a ser ineficazes no contexto da luta de classes. As
manifestações, abaixo-assinados, ocupações, boicotes, etc., são formas de ação limitadas.
Sem dúvida, elas podem surtir determinado efeito, sendo que o principal seria corroer
a hegemonia burguesa e gerar uma unidade de ação anticapitalista. No entanto,
esse avanço da luta tem diversos obstáculos (a começar pelas divisões internas,
pois emerge em um movimento policlassista, bem como marcado por outras divisões
e subdivisões, incluindo as concepções políticas e infiltração dos partidos
políticos, entre outros). A grande vantagem de uma situação em que os
movimentos sociais atuam mais fortemente é a experiência e avanço cultural de
certos setores, o que contribui para fortalecer as lutas futuras. Dependendo de
como ocorre, também pode contribuir para enfraquecer a hegemonia burguesa.
O movimento operário, bem como o
bloco revolucionário como um todo, também lança mão destas e outras formas de
luta. No entanto, não é a forma fundamental, pois são apenas formas de luta
complementares às formas fundamentais. A forma fundamental de luta do movimento
operário (e que também é utilizada por outros setores da sociedade em outro
contexto e com outra eficácia) é a greve[14].
O bloco revolucionário, por sua vez, tem como forma fundamental a luta
cultural. A luta operária fundamental se realiza, portanto, no local de
trabalho, nas empresas capitalistas, enquanto que a luta fundamental do bloco
revolucionário ocorre na sociedade civil, no plano cultural. Obviamente que a
forma de luta fundamental não descarta as complementares e nem se limita às
empresas ou cultura. Os objetivos, em ambos os casos, são a abolição da
sociedade capitalista e a constituição de uma nova sociedade, autogerida. Essa
é outra distinção importante e que torna as formas de ação bem distintas das
mais comuns dos movimentos sociais. E mesmo quando uma mesma ação é realizada,
ela ganha um significado diferente, não só pelos objetivos distintos, mas
também pela forma como se concretiza.
Existem outras diferenças entre
movimento operário e movimentos sociais, mas nos contentamos com destacar as
principais. As semelhanças também existem. Tanto o movimento operário quanto os
movimentos sociais utilizam, por exemplo, as manifestações, fazem
reivindicações, etc. Isso ocorre, no entanto, sob formas distintas, com
objetivos distintos. Da mesma forma, a ocupação pode ser usada tanto por um
quanto por outro. No entanto, ocupar uma fábrica e impedir a produção de
mais-valor (e, por conseguinte, aquisição de lucro) é bem distinto de ocupar
uma escola e impedir a realização de aulas (e coisas derivadas e relacionadas).
A panfletagem é usada tanto por certos movimentos sociais quanto pelo movimento
operário. Mas o local, o conteúdo, etc., dos panfletos podem diferir
radicalmente. Uma coisa é um panfleto que tenta unir uma classe social,
denunciar a dominação e exploração de classe, apontar para a superação dessa
sociedade; outra coisa é pregar igualdade entre dois grupos (raciais, sexuais,
etc.) na relação entre eles abstraindo o pertencimento de classe e as demais
relações sociais. Assim, a conclusão é a de que existem semelhanças e
diferenças entre movimento operário e movimentos sociais. As semelhanças são
existenciais e as diferenças essenciais, sendo dois fenômenos distintos. É o
mesmo no caso de movimento de classes e movimentos sociais: uma diferença
essencial, formando fenômenos distintos.
Considerações Finais
O objetivo do presente texto foi
destacar as diferenças entre movimentos sociais e movimentos de classes. Essa
diferenciação já foi apresentada antes (JENSEN, 2016; VIANA, 2016). Contudo, o
objetivo aqui foi aprofundar um pouco essa diferenciação através de uma
comparação fundada numa concepção dialética e mostrando concretamente a raiz
das diferenças. Consideramos que atingimos nosso objetivo e assim abrimos
espaço para novas discussões e questões a partir do que já foi refletido aqui.
Tendo em vista a problemática
teórica dos movimentos sociais, é fundamental não apenas desenvolver o conceito
de movimentos sociais, mas também distingui-lo de outros fenômenos e aprofundar
suas características, formas, desenvolvimento. A distinção entre movimentos
sociais e movimento de classes é apenas um desses elementos importantes para o
desenvolvimento de uma teoria dos movimentos sociais e que merece outras
reflexões e desenvolvimento.
Referências
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01(01), 2016b.
* Professor da Faculdade de Ciências
Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de
Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e Pós-Doutor pela
Universidade de São Paulo.
[1]
Sobre a linguagem noosférica (complexa), veja: Viana (2007; 2017).
[2]
Aqui são apenas algumas breves considerações metodológicas que não poderemos
desenvolver por questão de tempo e espaço. No entanto, planejamos uma obra
posterior sobre dialética na qual trabalharemos as categorias da dialética e
estes problemas serão abordados mais profundamente.
[3]
Nesse sentido é possível realizar a distinção entre grupos sociais corporais
(sexo, raça, etc.), grupos sociais culturais (causa, estilo de vida, etc.),
grupos sociais situacionais (condição estudantil, condição de moradia, etc.)
(VIANA, 2016).
[4]
Sugerimos, para uma compreensão mais profunda dos conceitos acima apresentados,
a leitura das obras na quais foram extraídos, pois possui toda uma teoria que
fornece sua explicação e inserção na totalidade das relações sociais.
[5]
Marx usa o termo “oposição”, mas isso foi efetivado numa obra (MARX e ENGELS,
1982) em que começava a esboçar alguns conceitos, elaborar outros e usar termos
que posteriormente serão substituídos (como a noção de “formas de propriedade”
que é substituída pelo conceito de modo de produção) e um dos conceitos
fundamentais do materialismo histórico é justamente o de luta de classes, que
ganha destaque a partir do Manifesto
Comunista (MARX e ENGELS, 1988).
[6] No
capitalismo, a luta se daria, fundamentalmente, no processo de repartição de
mais-valor (VIANA, 2016b).
[7]
Para compreender esse processo é necessário entender a dinâmica do
desenvolvimento capitalista, marcado pela sucessão de regimes de acumulação
(VIANA, 2009; VIANA, 2015a; BRAGA, 2013; ORIO, 2014).
[8]
Diversas ideologias apontaram para tal perspectiva, tanto da direita quanto da
esquerda (MARCUSE, 1981; BON e BURNIER, 1975). A razão disso é a constituição
do regime de acumulação conjugado (VIANA, 2009; VIANA, 2015a), que institui o
fordismo, sistema de crédito e ascensão do poder aquisitivo do proletariado, bem
como do consumo (justamente a época em que os ideólogos promoveram a ideia da
“sociedade de consumo”) ao lado de uma renovação hegemônica marcada pela
supremacia do paradigma reprodutivista (estruturalismo, funcionalismo, etc.).
[9]
Uma síntese dessa concepção pode ser vista em Alonso (2009) e Gohn (2002).
[10]
Um ideologema é um fragmento de ideologia que pode aparecer desconectado desta,
como é o caso aqui abordado (VIANA, 2013).
[11]
Esse é o caso daqueles que se pretendem marxistas, mas são, no fundo, leninistas
(GUNDER FRANK e FUENTES, 1989; MONTAÑO e DURIGUETTO, 2011). Portanto, nem
sempre o problema é apenas de debilidade teórico-metodológica, mas também por
limites da consciência derivada de interesses, valores, etc. Concretamente, uns
podem ser apenas pelos limites do leninismo; outros por insuficiência
teórico-metodológica; além daqueles que padecem dos dois problemas
simultaneamente.
[12]
Para entender esse processo é interessante compreender as três variedades de
movimentos sociais (conservadores, reformistas e revolucionários) e sua
composição social e hegemonia interna (VIANA, 2016a) e os movimentos sociais
populares (VIANA, 2016c).
[13]
Os blocos sociais são as expressões políticas, culturais e organizacionais das
classes sociais e não uma organização específica ou a classe social diretamente
(VIANA, 2015b). O bloco revolucionário é expressão política, cultural e
organizacional do proletariado, mas só ganha força efetiva quando este avança,
embora seja também um propulsor desse avanço. Em momentos de estabilidade, o
bloco revolucionário fica enfraquecido, permeado por ambiguidades em diversas
organizações e concepções, etc. Essa situação se altera parcialmente quando se
passa para um momento de desestabilização e, mais ainda, de crise, se
reforçando quantitativamente e também no plano qualitativo. A emergência de uma
forte luta operária autônoma ou autogestionária proporciona seu fortalecimento
e assim o proletariado reforça o bloco revolucionário e vice-versa. Essa é uma
tendência, que, como em todos os casos, possui suas contratendências. Esse
processo depende de um conjunto de determinações, entre as quais, a força
organizativa e cultural (especialmente teórica) do bloco revolucionário, no
sentido de contribuir não somente com a explicação da realidade existente, mas
também da luta cultural no sentido de contribuir com o desenvolvimento da
consciência revolucionária e lançar as consígnias necessárias para o momento.
[14]
Não poderemos desenvolver uma análise da greve aqui, mas algumas obras abordam
e contribuem com uma percepção do significado do movimento grevista (VIANA,
2008; PANNEKOEK, 1977). O uso da greve pelo movimento operário é distinto de
outros setores de trabalhadores. As greves dos trabalhadores improdutivos em
instituições estatais possuem eficácia limitada, pois não interferem na
produção de mais-valor e nem no lucro. Nas instituições privadas acabam
prejudicando e afetando o lucro improdutivo, mas sua repressão e até a
legislação permite uma ação mais repressiva dos capitalistas improdutivos.
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VIANA, Nildo. Movimentos Sociais e Movimentos de Classes: Semelhanças e Diferenças. Revista Espaço Livre, vol. 11, num. 22, 2016.
Disponível em:
http://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/509/516
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VIANA, Nildo. Movimentos Sociais e Movimentos de Classes: Semelhanças e Diferenças. Revista Espaço Livre, vol. 11, num. 22, 2016.
Disponível em:
http://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/509/516
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