Karl Marx e a Essência Autogestionária da Comuna de
Paris
Nildo Viana*
Resumo:
O artigo apresenta a interpretação da Comuna de Paris por Karl Marx como
autogoverno dos produtores, autogestão social. Uma análise minuciosa do
capítulo da obra “A Guerra Civil na França” fornece os elementos
interpretativos para compreender a percepção da Comuna de Paris como obra
autogestionária dos operários parisienses, o que foi um elemento fundamental
para o desenvolvimento do marxismo posterior.
Palavras-chave:
Comuna de Paris, Karl Marx, Autogestão Social, Proletariado, 1871
Abstract:
The article presents the interpretation of the Commune of Paris for Karl Marx
as self-management of the producers, social self-management. A minute analysis
of the chapter of the workmanship “The Civil War in France” supplies the
interpretation elements to understand the perception of the Commune of Paris as
workmanship of self management of the parisians laborers, what it was a basic
element for the development of the posterior marxism.
Key-Words:
Commune of Paris, Karl Marx, Social Self management, Proletariat, 1871
A Comuna de Paris foi um acontecimento histórico que marcou gerações,
militantes, pensadores. Dentre o espectro dos grandes pensadores
revolucionários, quase todos dedicaram pelo menos um texto, mesmo que breve, à
Comuna, tal como Marx, Bakunin, Kropotkin, Korsch, CRL James, Debord, entre
diversos outros. Isso se deve tanto à importância histórica da Comuna como ao
papel que desempenha nas lutas de classes contemporâneas. Para Marx, a Comuna
reveste uma importância histórica, social e política inigualável na história da
humanidade, tal como mostraremos a seguir. Por isso ele dedicará um texto de
análise e homenagem à Comuna. Porém, a análise que Marx faz da Comuna
permaneceu e ainda permanece incompreendida por grande parte daqueles que se
dizem marxistas, bem como por outros intérpretes. Isso mostra a importância de
resgatar a análise de Marx e retomar esta análise no contexto da totalidade de
sua obra.
Marx inicia sua discussão sobre a Comuna indagando o que é a Comuna?
Depois cita o Manifesto do Comitê Central que afirma que em meio à traição da
classe dominante, os proletários tomaram em suas mãos a “direção dos negócios
públicos”, “tomando o poder” (Marx, 1986). Marx contesta: “mas a classe
operária não pode limitar-se simplesmente a se apossar da máquina do Estado
como se apresenta e servir-se dela para seus próprios fins” (Marx, 1986, p.
69). Segundo Marx:
“O poder estatal centralizado, com seus órgãos
onipotentes – o exército permanente, a polícia, a burocracia, o clero e a
magistratura –, órgãos criados segundo um plano de divisão sistemática e
hierárquica do trabalho – procede dos tempos da monarquia absoluta e serviu à
nascente sociedade burguesa como uma arma poderosa em suas lutas contra o
feudalismo. Entretanto, seu desenvolvimento foi entravado por todo o tipo de
entulhos medievais: direitos senhoriais, privilégios locais, monopólios e
corporativos, códigos provinciais. A escova gigantesca da Revolução Francesa do
século XVIII varreu todas essas relíquias dos tempos passados, limpando assim,
ao mesmo tempo, o solo da sociedade dos últimos obstáculos que se erguiam ante
a superestrutura do estado moderno, erigido sobre o Primeiro Império, que por
sua vez era fruto das guerras de coalizão da velha Europa semifeudal contra a
França moderna. […]. À medida que os progressos da moderna indústria
desenvolviam, ampliavam e aprofundavam o antagonismo de classe entre o capital
e o trabalho, o poder do Estado foi adquirindo cada vez mais o caráter de poder
nacional do capital sobre o trabalho, de força pública organizada para a
escravização social, de máquina do despotismo de classe” (Marx, 1986, p.
69-70).
A posição de Marx diante do Estado fica evidente. Não se trata de
apoderar do poder estatal e sim destruí-lo. Essa é a tese básica extraída da análise
da Comuna de Paris. Os próprios comunardos confundem o significado de sua ação,
que não foi tomar o poder, mas destruir o Estado. A Comuna, ao abolir o
exército permanente, a polícia, a burocracia e a magistratura, além do seu
aliado, o clero, realizou a abolição do Estado. O que Marx registra é que todos
estes aspectos do Estado moderno que foram destruídos são instituições criadas
de acordo com a divisão social do trabalho típica da sociedade moderna e para
servir à sua reprodução. O Estado moderno era uma arma da burguesia na sua luta
contra o feudalismo e depois contra o proletariado e por isso sua essência era
constituída por esse caráter de classe e sua forma, o poder estatal
centralizado, era sua expressão mais fiel. Foi justamente esta instituição de
classe que foi destruída, o que significa destruir também sua forma, o poder
estatal centralizado.
Após contextualizar a luta de classes na França, Marx coloca que a
antítese direta do Império era a Comuna. O papel de Paris muda, passando de
sede do poder para baluarte da classe operária. O exército é substituído pela
guarda nacional, o povo armado. Nesse contexto, Marx descreve alguns aspectos
da Comuna:
“A Comuna era composta de conselheiros municipais
eleitos por sufrágio universal nos diversos distritos da cidade. Eram
responsáveis e substituíveis a qualquer momento. A Comuna devia ser, não um
órgão parlamentar, mas uma corporação de trabalho, executiva e legislativa ao
mesmo tempo. Em vez de continuar sendo um instrumento do governo central, a
polícia foi imediatamente despojada de suas atribuições políticas e convertida
num instrumento da Comuna, responsável perante ela e demissível a qualquer
momento. O mesmo foi feito em relação aos funcionários dos demais ramos da
administração. A partir dos membros da Comuna, todos que desempenhavam cargos
públicos deviam receber salários de operários. Os interesses criados e as
despesas de representação dos altos dignatários do estado desapareceram com os
próprios altos dignatários. Os cargos públicos deixaram de ser propriedade
privada dos testas-de-ferro do governo central. Nas mãos da Comuna
concentrou-se não só a administração municipal, mas toda iniciativa exercida
até então pelo Estado” (Marx, 1986, p. 72-73).
Os aspectos destacados por Marx acima mostra a formação de conselheiros
delegados em substituição aos altos dignatários e burocratas em geral. A ênfase
oferecida por Marx no caráter responsável, substituível, demissível e
escolhidos pela população, mostra o caráter autogestionário da Comuna em
oposição ao caráter burocrático do poder estatal burguês. O caráter responsável
é um dos elementos fundamentais, pois o delegado (“funcionário”) comunal não
tem autonomia e nem se constitui como dirigente, tal como os funcionários
públicos superiores no Estado capitalista. Este caráter responsável significa
que ele não pode se autonomizar diante da Comuna, que não pode defender
interesses próprios, que deve ser expressão dos interesses da Comuna e,
portanto, não age por conta própria, mas como expressão de um coletivo. Porém,
os seres humanos são falhos e por isso é necessário que ele não tenha meios de
obter interesses pessoais ou condições de vida melhores do que os demais e
assim ele recebe salário de um operário e é demissível a qualquer momento. O caráter
demissível é a forma de resolução dessas falhas humanas que podem ocorrer e a
garantia que a Comuna, ou seja, a decisão coletiva, prevalece. Da mesma forma,
o caráter substituível tem o mesmo sentido e pode ser também realizado por
outros motivos. Esses delegados são escolhidos pela população, através do
sufrágio universal e podem ser substituídos, demitidos, sempre que faltarem com
a responsabilidade diante da Comuna. O exemplo que Marx fornece é a
substituição da polícia pela milícia popular, a primeira possuindo autonomia e
caráter político-repressivo da classe dominante e usando o poder contra a
população, e a segunda, sendo expressão da população sem ter autonomia e
caráter político-repressivo da classe dominante, transformando-se em agente da
e para a população e sendo responsável e demissível a qualquer momento desde
que falhe em sua ação. Desta forma, a Comuna não era um órgão parlamentar e sim
uma “corporação de trabalho”, que é “executiva e legislativa” simultaneamente.
Sem dúvida, as palavras não foram bem escolhidas, mas o significado é claro: a
Comuna não é como a burocracia parlamentar e sim uma auto-organização dos
trabalhadores que decide e executa, sem a divisão entre dirigentes que decidem
e dirigidos que executam. Assim,
o que Marx observa na Comuna é uma experiência prática revolucionária que
soluciona o problema da burocracia, abolindo-a e criando um antídoto a ela. A
abolição da burocracia é pré-condição para abolição da sociedade de classes.
A destruição da força armada da burguesia (exército, polícia) é
acompanhada pela destruição da força espiritual de repressão, o que ocorreu via
expropriação das igrejas. Da mesma forma, Marx nota a mudança no processo
educacional, com as instituições de ensino ficando livres da Igreja e do
Estado. “Assim, não só se punha o ensino ao alcance de todos, mas a própria
ciência se redimia dos entraves criados pelos preconceitos de classe e o poder
do governo” (Marx, 1986, p. 73). Não foi diferente a situação dos funcionários
judiciais, que se tornaram, também, eletivos, responsáveis e demissíveis. Marx
mostra o caráter da Comuna de Paris como uma Revolução Social, ou seja, uma
autêntica revolução proletária que atinge a totalidade das relações sociais,
que abole não apenas o Estado e suas instituições, mas também transforma as
relações sociais cotidianas, a questão cultural, educacional, etc. Outros
elementos desta revolução social e não meramente revolução política,
simplesmente trocando quem está no poder estatal, são retomados por Marx no
decorrer do seu texto e também os abordaremos.
Nesse contexto, a Comuna de Paris deveria servir de modelo até para as
mais pequenas aldeias:
“Como é lógico, a Comuna de Paris havia de servir de
modelo a todos os grandes centros industriais da França. Uma vez estabelecido
em Paris e nos centros secundários o régime comunal, o antigo governo
centralizado teria que ceder lugar também nas províncias ao autogoverno dos
produtores. No breve esboço de organização nacional que a Comuna não teve tempo
de desenvolver, diz-se claramente que a Comuna devia ser a forma política
inclusive das menores aldeias do país e que nos distritos rurais o exército
permanente devia ser substituído por uma milícia popular, com um tempo de
serviço extraordinariamente curto. As comunas rurais de cada distrito
administrariam seus assuntos coletivos por meio de uma assembléia de delegados
na capital do distrito correspondente a essas assembléias, por sua vez,
enviariam deputados à delegação nacional em Paris, entendendo-se que todos os
delegados seriam substituídos a qualquer momento e comprometidos com um mandat
impératif [mandato imperativo] (instruções formais) de seus eleitores. As
poucas mas importantes funções que restavam ainda a um governo central não
seriam suprimidas, como se disse, falseando propositalmente a verdade, mas
seriam desempenhadas por agentes comunais e, portanto, estritamente
responsáveis. Não se tratava de destruir a unidade da nação, mas, ao contrário,
de organizá-la mediante um regime comunal, convertendo-a numa realidade ao
destruir o poder estatal, que pretendia ser a encarnação daquela unidade,
independente e situado acima da própria nação, em cujo corpo não era mais que
uma excrescência parasitária. Enquanto que os órgãos puramente repressivos do
velho poder estatal deviam ser amputados, suas funções legítimas deviam ser
arrancadas a uma autoridade que usurpava uma posição preeminente sobre a
própria sociedade, para restituí-las aos servidores responsáveis dessa
sociedade. Em lugar de decidir uma vez a cada três ou seis anos, que membros da
classe dominante devem representar e esmagar o povo no Parlamento, o sufrágio
universal deveria servir ao povo organizado em comunas, do mesmo modo que o
sufrágio individual serve aos patrões que procuram operários e administradores
para seus negócios. E é um fato perfeitamente conhecido que, tanto as
companhias como os indivíduos, quando se trata de negócios, sabem geralmente
colocar cada homem no lugar que lhe cabe e, se erram alguma vez, reparam o erro
com presteza. Por outro lado, nada podia ser mais alheio ao espírito da Comuna
do que substituir o sufrágio universal por uma investidura hierárquica” (Marx,
1986, p. 73-74).
Marx faz uma importante discussão sobre o governo central, o que causou
muita confusão entre os seus intérpretes. O caráter modelar da Comuna remete ao
seu caráter autogestionário. O autogoverno dos produtores deveria se expandir
para todos os centros industriais e aldeias, até mesmo as menores. Aqui se
encontra novamente a ideia de totalidade, categoria do método dialético e ponto
básico para se pensar a revolução proletária e o comunismo (autogestão social).
A revolução proletária atinge todas as relações sociais, não sendo apenas
“política”, “econômica”, “cultural”, tal como as ideologias burguesas repartem
o mundo, é uma revolução “social”, atinge a totalidade das relações sociais,
generalizando a autogestão. Pois bem, esse caráter totalizante não se limita a
penetrar em todas as relações sociais, mas também a se expandir espacialmente,
atingindo a totalidade das relações sociais em nível espacial. Assim como o
capitalismo domina todas as relações sociais e provoca a mercantilização de
tudo (Viana, 2008; Wallerstein, 1985) e tudo que lhe acompanha (burocratização,
competição, etc.), a autogestão social também se generaliza para todas as
relações sociais e se expande espacialmente, trocando a miséria geral pela
riqueza generalizada.
As poucas funções de um governo central não seriam suprimidas e sim
realizadas por “agentes comunais”, ou seja, delegados submetidos ao mesmo
caráter de qualquer outro: responsável, demissível, substituível, eleito. A unidade
nacional não seria destruída e sim reorganizada a partir do regime comunal,
que, ao destruir o poder estatal, algo independente e acima da nação, inaugura
a autogestão social em todo território nacional. Assim, ao invés de escolher
seus dirigentes a cada eleição burguesa, o sufrágio universal assume o papel
fundamental para a população nas comunas, abolindo a “investidura hierárquica”,
ou seja, a designação dos funcionários pelos escalões superiores da hierarquia,
pelo sufrágio universal, a escolha da própria população.
Marx também questiona as interpretações da Comuna, principalmente a tese
de que ela é uma reprodução das Comunas medievais:
“Em geral, as criações históricas completamente novas
estão destinadas a ser tomadas como uma reprodução de formas velhas, e mesmo
mortas, da vida social, com as quais podem ter certa semelhança. Assim, essa
nova Comuna, que vem destruir o poder estatal moderno, foi confundida com uma
reprodução das comunas medievais, que precederam imediatamente este poder
estatal e logo lhe serviram de base. O regime comunal foi erroneamente
considerado como uma tentativa de fracionar numa federação de pequenos Estados,
como sonhavam Montesquieu e os girondinos, aquela unidade das grandes nações
que, se em suas origens foi instaurada pela violência, se converteu num
poderoso fator da produção social. O antagonismo entre a Comuna e poder do
Estado tem sido apresentado como uma forma exagerada da velha luta contra o
excessivo centralismo. Circunstâncias peculiares podem ter impedido, em outros
países, o desenvolvimento clássico da forma burguesa de governo ao modo Frances
e ter permitido, como na Inglaterra, completar na cidade os grandes órgãos
centrais do Estado com assembléias paroquiais [vestries] corrompidas, conselheiros negocistas e ferozes
administradores da beneficência e, no campo, com juízes virtualmente
hereditários. O regime comunal teria devolvido ao organismo social todas as
forças que até então vinham sendo absorvidas pelo Estado parasitário, que se
nutre às custas da sociedade e freia seu livre movimento” (Marx, 1986, p.
74-75).
A Comuna de Paris não era uma reprodução das comunas medievais, pois
somente olhando semelhanças formais e secundárias se poderia concluir isso. O
regime comunal não era um órgão da classe burguesa buscando aumentar sua
autonomia e combater o excessivo centralismo monárquico e sim a abolição do
Estado parasitário e reabsorção pela sociedade das forças que este havia extraído
dela. No fundo, a Comuna era produto da iniciativa proletária: “Na realidade, o
regime comunal colocava os produtores do campo sob a direção ideológica das
capitais de seus distritos, oferecendo-lhes, nos operários da cidade, os
representantes naturais dos seus interesses” (Marx, 1986, p. 75). A hegemonia
proletária sobre o campesinato mostrava, mais uma vez, o caráter totalizante da
revolução proletária, que deve atingir a todas as classes, todos os locais,
todas as relações sociais. A hegemonia proletária mostra, também, a sua
diferença radical em relação às comunas medievais, dominadas pela hegemonia
burguesa, e sua relação com o aparato estatal.
O regime comunal implicava a autonomia local sem ser um “contrapeso a um
poder estatal”, o que só poderia ocorrer na cabeça de Bismarck. Um outro
elemento secundário da Comuna foi realizar uma promessa das revoluções
burguesas, gerar um “governo módico” ao destruir dois grandes fatores de
gastos, o exército permanente e burocracia estatal.
Marx explica a variedade de interpretações da Comuna e coloca a sua
essência:
“A variedade de interpretações a que tem sido
submetida a Comuna, e a variedade de interesses que a explicam em seu
benefício, demonstram que era uma forma política perfeitamente flexível,
diferente das formas anteriores de governo, todas elas fundamentalmente
repressivas. Eis o seu verdadeiro segredo: a Comuna era, essencialmente, um
governo da classe operária, fruto da luta de classe produtora contra a classe
apropriadora, a forma política afinal descoberta para levar a cabo a
emancipação econômica do trabalho” (Marx, 1986, p. 75-76).
As interpretações variadas da Comuna são produtos de interesses distintos
por detrás da interpretação e se beneficia do caráter flexível da Comuna e seu
caráter não-repressivo. Porém, a verdadeira essência da Comuna era ser um
“governo da classe operária”, ou seja, o autogoverno dos produtores, pois, ao
contrário dos governos burgueses, no qual uma minoria domina a maioria de
acordo com seus interesses e através da burocracia estatal, o “governo da
classe operária” é o autogoverno de toda uma classe social em benefício de toda
a classe. Aqui cabe o destaque para o fato de ser um “autogoverno”, autogestão,
de uma classe inteira, a maioria da população, que converte toda a população em
produtores e logo abole as classes e se torna autogoverno de todos para todos. É
por isso que Marx, um pouco adiante, destaca a ocorrência da generalização do
trabalho produtivo na sociedade comunista:
“Sem essa última condição [de ser um autogoverno
proletário – NV], o regime comunal teria sido uma impossibilidade e uma
impostura. A dominação política dos produtores é incompatível com a perpetuação
de sua escravidão social. A Comuna devia servir de alavanca para extirpar os
fundamentos econômicos sobre os quais se apóia a existência das classes e, por
conseguinte, a dominação de classe. Uma vez emancipado, o trabalho, todo homem
se converte em trabalhador, e o trabalho produtivo deixa de ser um atributo de
classe” (Marx, 1986, p. 76).
O autogoverno proletário é fundamental para abolir os fundamentos da
sociedade de classes e generalizar o trabalho produtivo, abolindo, por conseguinte,
a sociedade de classes. A Comuna anuncia
o comunismo, a abolição da propriedade privada, tão temida pela burguesia, e a
transformação dos meios de produção em meros instrumentos do trabalho livre e
associado (Marx, 1986). Os representantes da burguesia partem em defesa das
cooperativas para argumentar em favor da perpetuação da sociedade capitalista. Porém,
argumenta Marx, a generalização das cooperativas é o mesmo que o comunismo, a
não ser que a produção cooperativa seja uma mera impostura e um ardil.
Marx retoma sua linha de argumentação trabalhando a gênese da Comuna e do
comunismo: a luta proletária. A luta operária não visa realizar nenhum ideal já
pronto, para ser realizado por “decreto do povo”, pois é em sua luta que se
percebe o germe de um “movimento real” que é o comunismo, como já havia dito em
A Ideologia Alemã (Marx e Engels, 2002):
“[Os proletários – NV] Sabem que para conseguir sua
própria emancipação, e com ela essa forma superior de vida para a qual tende
irresistivelmente a sociedade atual, por seu próprio desenvolvimento econômico,
terão de enfrentar longas lutas, toda uma série de processos históricos que
transformarão as circunstâncias e os homens. Eles não têm que realizar nenhum
ideal, mas simplesmente libertar os elementos da nova sociedade, que a velha
sociedade burguesa agonizante traz em seu seio. Plenamente consciente de sua
missão histórica e heroicamente decidida a atuar de acordo com ela, a classe
operária pode sorrir diante das grosseiras invectivas dos lacaios da pena e do
patronato recheado de doutrinas burguesas de beneficência, que derramam suas
ignorantes vulgaridades e suas fantasias sectárias com um tom sibilino de
infalibilidade científica” (Marx, 1986, p. 77).
Aqui Marx coloca o caráter revolucionário do proletariado, oriundo de
suas condições nas relações de produção capitalistas e suas contradições,
lutas, nestas relações (o “desenvolvimento econômico”) e das lutas derivadas,
através de longas lutas e processos históricos, liberta os elementos da nova
sociedade, a autogestão social. Assim, a Comuna “tomou em suas próprias mãos a
direção da revolução; quando, pela primeira vez na história, os simples
operários se atreveram a violar o monopólio de governo de seus ‘superiores
naturais’” (Marx, 1986, p. 77) e isso nas condições mais desfavoráveis.
É nesse sentido que Marx aborda as demais classes sociais e a luta de
classes na França do período da Comuna, colocando que a classe operária é a
“única classe capaz de iniciativa social”. Marx retoma a tese presente no
Manifesto Comunista de que o proletariado é a única classe verdadeiramente
revolucionária. Os artesãos, lojistas e comerciantes acabam se aliando à classe
operária, no contexto da Comuna, devido ao fato do Império os terem
“sacrificados sem cerimônia aos seus credores”. A desilusão com o Império,
contraposto à Comuna, seja qual for o rótulo que se use para expressar essa
oposição, joga estas classes para o lado do proletariado.
O campesinato também, assim como o proletariado agrícola, só tinham a
ganhar com a Comuna:
“A Comuna tinha toda razão quando dizia aos
camponeses: ‘nossa vitória é a vossa única esperança’. De todas mentiras
incubadas em Versalhes e difundidas pelo ilustre penny-liner (escritor
mercenário e barato – NV] europeu, uma das mais tremendas era a de que os
‘rurais’ representavam o campesinato Frances. Imaginai o amor que sentiriam os
camponeses da França pelos homens a quem, depois de 1815, foram obrigados a
pagar um bilhão de indenização. Aos olhos do camponês da França, a simples
existência de grandes latifundiários já é uma usurpação de suas conquistas de
1789. Em 1848 a burguesia gravou seu lote de terra com o imposto adicional de
45 cêntimos por franco, mas então o fazia em nome da revolução; agora,
entretanto, fomentava uma guerra civil contra a revolução, para lançar sobre os
ombros dos camponeses a carga principal dos cinco bilhões de indenização que
devia pagar aos prussianos. De outro lado, a Comuna declarava, em uma de suas
primeiras proclamações, que as despesas da guerra deviam ser pagas pelos seus
verdadeiros responsáveis. A Comuna teria redimido o camponês da contribuição de
sangue; ter-lhe-ia dado um governo barato, teria convertido aos que hoje são
seus vampiros – o tabelião, o advogado, o coletor e outros dignatários
judiciais que lhe sugam o sangue – em empregados comunais assalariados, eleitos
por ele e responsáveis ante ele. Tê-lo-ia libertado da tirania do garde
champêtre, do gendarme e do prefeito. O ensino pelo mestre-escola teria
substituído o embrutecimento pelo cura. E o camponês francês é, antes de tudo,
um homem que calcula. Ele consideraria extremamente razoável que o pagamento do
padre, em vez de ser arrancado dele pelo cobrador de impostos, dependesse
exclusivamente dos sentimentos religiosos dos paroquianos. Tais eram, os
grandes benefícios que o regime da Comuna – e só ele – oferecia como coisa
imediata aos camponeses da França. Seria supérfluo, portanto, fazer aqui um
exame detalhado dos problemas mais complexos, mais vitais, que só a Comuna era
capaz de resolver – em favor dos camponeses, a saber: a dívida hipotecária, que
pesava como uma maldição sobre seu pedaço de terra; o proletariat foncier (o
proletariado rural), que crescia constantemente, e o processo de sua
expropriação da terra que cultivava, processo cada vez mais acelerado em virtude
do desenvolvimento da agricultura moderna e a concorrência da produção agrícola
capitalista” (Marx, 1986, p. 79).
Assim, devido a estes e outros aspectos, o campesinato se aproximava do
proletariado e a burguesia sentia a ameaça de ocorrer uma sublevação geral dos
camponeses ao entra em contato com a Comuna de Paris. Marx mostra o processo de
luta de classes e as classes conservadoras (burguesia, latifundiários), as
classes aliadas do proletariado (lojistas, comerciantes, artesãos, camponeses)
e a hegemonia proletária na Comuna como primeira experiência histórica do
proletariado como classe hegemônica. Ele completa:
“A Comuna era, pois, a verdadeira representação de
todos os elementos sãos da sociedade francesa e, portanto, o governo nacional
autêntico. Mas, ao mesmo tempo, como governo operário e campeão intrépido da
emancipação do trabalho, era um governo internacional em pleno sentido da
palavra. Diante dos olhos do exército prussiano, que havia anexado à Alemanha
duas províncias francesas, a Comuna anexou à França os operários do mundo
inteiro” (Marx, 1986, p. 80).
Marx também analisa as medidas práticas da Comuna. Para ele, “a grande
medida social da Comuna foi a sua própria existência” (Marx, 1986, p. 81). A
existência da Comuna é expressão da primeira revolução proletária iniciada e seus
avanços e recuos, equívocos e acertos, são bem menores diante disso. Apesar
disso, Marx apresenta algumas das medidas concretas da Comuna e sua importância
naquele contexto histórico e cita a abolição do trabalho noturno para os
padeiros, proibição de redução de salários via cobrança de multas para os
operários, entrega aos operários sob reserva de domínio de todas as oficinas e
fábricas fechadas (tanto as fechadas ou as que os patrões fugiram) e acrescenta
as medidas financeiras, moderadas diantes da situação de uma cidade sitiada.
Não escapa à pena de Marx o problema da Igreja, o fechamento e a
revelação de seus crimes, o sentimento de segurança nas ruas sem policiais, as
mulheres e seu papel fundamental na Comuna, bem como os falsos revolucionários,
desde os resquícios da tradição até os charlatães. Ele considera os últimos uma
“mal inevitável” e com o tempo são afastados, tempo que a Comuna não teve. Aqui
Marx se equivoca, pois não percebe que talvez não tenha sido apenas um problema
de tempo, pois a contra-revolução e a burocratização andam lado a lado com tais
indivíduos falsamente revolucionários. Porém, tendo em vista a época e a
situação, Marx não poderia prever o que aconteceria no decorrer do processo com
estes falsos revolucionários e o perigo que representam para a revolução
proletária.
Por fim, Marx cita o massacre do proletariado parisiense e o uso da
guerra nacional como “pura mistificação dos governos, destinada a retardar a
luta de classes” (Marx, 1986, p. 96). E o exército vencedor (Prússia) e
exército vencido (França) se confraternizam diante do massacre do proletariado[1].
Os exterminadores da Comuna possuem seus nomes cravados “para sempre num
pelourinho” e os proletários de Paris serão “exaltados como o arauto glorioso
de uma nova sociedade” (Marx, 1986, p. 97).
A análise de Marx da Comuna é um excelente exemplo de uso do materialismo
histórico-dialético. As categorias de totalidade, de historicidade, das
tendências se revelam no caso concreto da Comuna de Paris, bem como a luta de
classes, as relações de produção, etc. Trata-se de uma breve análise da Comuna
e, apesar de sua brevidade, uma das mais profundas. Marx expressa a perspectiva
do proletariado ao analisar a luta heróica dos comunardos e ao fazê-lo, não só
homenageou os que tombaram pela emergência de uma nova sociedade, como
contribuiu para tornar mais duradouro sua herança, a coragem e a esperança
revolucionárias. O fato deste escrito ter sido deformado, tal como no caso de
Lênin (1987) ou mal interpretado, como no caso de Korsch (1982) e mal lido por
muitos, inclusive devido mediação da interpretação leninista, não é um problema
do autor e sim dos leitores, especialmente dos mal-leitores. Porém, não há
espaço para esta discussão no presente texto, o que deixaremos para outra
oportunidade. Enfim, num sentido diferente do que Korsch (1982) quis colocar,
este acontecimento histórico serviu para aproximar o marxismo da Comuna de Paris.
E é aqui que reside a importância fundamental da Comuna de Paris no
desenvolvimento do pensamento de Marx.
A ideia central do materialismo histórico é a de que a história de todas
as sociedades classistas é marcada pela luta entre as classes que a constituem
(Marx e Engels, 1988). O comunismo, para Marx, é uma tendência no interior do
capitalismo e cujo embrião é o movimento revolucionário do proletariado. Por
isso Marx dizia que o comunismo não é produto da cabeça dos intelectuais e sim
do movimento operário em sua luta pela emancipação (Marx e Engels, 1988). No Manifesto Comunista, escrito em 1848,
Marx propunha a estatização como medida revolucionária. Porém, assim como o
texto sobre a Comuna, também o Manifesto
é pouco e mal lido. O significado da estatização neste escrito é bem abstrato e
se trata da classe operária como uma totalidade e não parte dela, o que deixa
entrever que não se trata de estatização no sentido que hoje se compreende a
expressão ou que ocorreu na Rússia depois dos bolcheviques terem conquistado o
poder estatal. De qualquer forma, a ideia de estatização é abandonada após as
experiências revolucionária dos comunardos e isso promoveu uma importante
alteração na teoria da revolução proletária em Marx.
Antes da Comuna, no início da década de 1950, Marx já abordava a
destruição do poder estatal em seu livro O
Dezoito do Brumário (1985) e como ele mesmo diz em carta a Kugelmann:
“No último capítulo do meu 18 de Brumário digo, como poderia ver se o releres, que a próxima
tentativa da revolução francesa deverá consistir não em fazer passar a máquina
burocrática militar para outras mãos, como foi o caso até agora, mas de a
destruir. É esta a primeira condição de toda a revolução verdadeiramente
popular no continente” (Marx, 1979, p. 22).
Porém, nesta obra há o esclarecimento da posição de Marx diante da
questão do poder estatal, ainda é abstrata, no sentido de defender sua
abolição, mas não avança no sentido de apresentar o que emerge em seu lugar, o
que ocorre após a experiência do regime comunal. De qualquer forma, a Comuna
teve um papel fundamental no desenvolvimento da teoria de Marx, devido ao valor
que ele atribuía à experiência do movimento revolucionário do proletariado
(Viana, 2004). Segundo ele mesmo: “Graças ao combate oferecido por Paris, a
luta da classe operária contra a classe capitalista e o Estado capitalista
entrou em nova fase. Qualquer que seja o resultado, conquistamos um novo ponto
de partida de uma importância história universal” (Marx, 1979, p. 23). Enfim,
para Marx, a Comuna foi uma revolução proletária que marcou um esboço de
autogestão social (autogoverno dos produtores), a forma finalmente encontrada
de libertação dos trabalhadores. O que Marx percebeu e expressou foi a essência
autogestionária da Comuna de Paris, a forma finalmente encontrada de libertação
proletária.
A análise de Marx sobre a Comuna serviu de ponto de partida para ele
repensar o processo revolucionário e assumir uma posição definitivamente
autogestionária, que receberá complementos em obras posteriores. Assim, a
Comuna de Paris foi uma tentativa de revolução proletária que gerou uma
revolução teórica no marxismo, apesar das contra-revoluções práticas e
ideológicas que emergiram posteriormente. No entanto, fica a lição dos
comunardos da necessidade de “assaltar o céu”.
Referências
Korsch,
Karl. Escritos Políticos. Vol. 2.
México, Folios, 1982.
Lênin, W.
O Estado e a Revolução. São Paulo,
Global, 1987.
Lissagaray,
Prosper-Olivier. História da Comuna de
1871. 2ª edição, 1991.
Marx, Karl e Engels, Friedrich.
A Comuna de Paris. Belo
Horizonte, Aldeia Global, 1979.
Marx, Karl e Engels, Friedrich.
A Ideologia Alemã (Feuerbach).
São Paulo, Martins Fontes, 2002.
Marx, Karl e Engels, Friedrich.
Manifesto do Partido Comunista.
Petrópolis, Vozes, 1988.
Marx,
Karl. A Guerra Civil na França. São
Paulo, Global, 1986.
Marx, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas a Kugelmann. 5a edição, Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1985.
Michel,
Louise. A Comuna II. Lisboa,
Presença, 1971.
VIANA, Nildo. A Comuna de Paris Segundo Marx e Bakunin.
Letralivre, Rio de Janeiro, v. 10, n. 41, p. 23-27, 2004. Disponível em: http://informecritica.blogspot.com/2011/01/comuna-de-paris-segundo-marx-e-bakunin.html
Viana,
Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do
Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo, Escuta, 2008.
Wallerstein,
Immanuel. O Capitalismo Histórico.
São Paulo, Brasiliense, 1985.
* Professor
da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB, autor de diversos
livros, entre os quais O Capitalismo na Era
da Acumulação Integral (São Paulo, Ideias e Letras, 2009) e Manifesto Autogestionário (Rio de
Janeiro, Achiamé, 2008).
[1] Sobre
o massacre do proletariado parisiense, pode-se consultar Michel, 1971; Lissagaray,
1991.
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Artigo publicado originalmente na Revista Espaço Acadêmico e republicado em:
VIANA, Nildo (org.). Escritos Revolucionários sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.
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