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terça-feira, 29 de agosto de 2017

A Dialética Marxista - Curso do Nupac




A dialética marxista é famosa, mas relativamente pouco conhecida efetivamente. Marx, a partir de toda sua erudição e partindo da perspectiva do proletariado, elabora uma concepção de dialética que supera Hegel, apesar de se inspirar nesse pensador e em diversos outros. A dialética materialista é uma revolução no pesamento metodológico e radicalmente diferente dos demais métodos e do modo de pensar burguês.

O curso "A Dialética Marxista" visa resgatar o verdadeiro caráter da dialética marxista, ofuscado por sua apropriação pelo modo de pensar burguês, e assim retomar o caráter crítico-revolucionário do marxismo. 

As inscrições para o curso "A Dialética Marxista" devem ser realizadas através do envio de um email contendo nome completo e ao ser confirmado a pré-inscrição, deve realizar o pagamento e enviar comprovante de pagamento da inscrição para o mesmo email. O email para envio é o locusinscricoes@gmail.com.

Há número limitado de vagas. Não haverá seleção e por isso o preenchimento das vagas será por ordem de inscrição e haverá pré-inscrição.

O valor da inscrição é de 20 reais. A taxa de inscrição deve ser realizada via depósito ou transferência para a seguinte conta:

Caixa Econômica Federal
Agência: 1575
Conta-Poupança: 49398-0
André de Melo Santos

ATENÇÃO! Apenas 30 vagas! Faça sua inscrição, enquanto ainda tem vagas.



segunda-feira, 28 de agosto de 2017

NEONAZISMO - A RENOVAÇÃO DO MANIQUEÍSMO REACIONÁRIO


NEONAZISMO
A RENOVAÇÃO DO MANIQUEÍSMO REACIONÁRIO

Nildo Viana

O neonazismo aparece como um fenômeno recente, marcado por uma retomada do nazismo, o que gera espanto em alguns setores da população. Como é possível um “neonazismo”? O que gera este fenômeno? O que significa neonazismo? Tais questões são formuladas por aqueles que consideram o nazismo um fenômeno indesejável sob qualquer ponto de vista. O fato é que o neonazismo existe e por isso precisa ser explicado. A compreensão do neonazismo pressupõe o entendimento do que foi o nazismo e das bases sociais e psíquicas deste fenômeno social e político. Por isso vamos apresentar uma breve análise do nazismo, para, posteriormente, mostrar o que o neonazismo mantém e o que trás de novo em sua concepção em relação a ele.

O nazismo foi analisado por diversos historiadores e pesquisadores que mostraram seu processo de formação, sua chegada ao poder, suas ações ditatoriais, seus processos de perseguição dos judeus e outros grupos sociais, etc. Alguns tentaram definir e explicitar o caráter do nazismo enquanto ideologia ou concepção de mundo ou a razão de sua tomada do poder e relativo apoio de parte da população[1]. No entanto, é fundamental entender o significado do nazismo e suas bases sociais e psíquicas para entender sua reemergência renovada chamada neonazismo. O nazismo é uma ideologia pouco sistematizada que traz em si um elemento mítico, que é o maniqueísmo, e é perpassado por diversas ambiguidades. O nazismo pode ser definido como uma ideologia maniqueísta reacionária e totalitária que serve de suporte para a legitimação, justificação e valoração de uma política de superioridade dos predestinados que expressa, intencionalmente ou não, os interesses da classe dominante.

O nazismo, como ideologia, é permeado por contradições e ambiguidades. É uma tentativa de sistematização que se sustenta em meio a diversas contradições que são apagadas pelo seu elemento mítico – o maniqueísmo. O maniqueísmo, caracterizado pela oposição entre o bem e o mal, possibilita a formação de um inimigo imaginário. No caso do nazismo, as vítimas foram especialmente os judeus e secundariamente outros grupos. Esse maniqueísmo é “reacionário”, ou seja, é uma forma assumida pelo conservadorismo, por buscar, simultaneamente, impedir mudanças (reação) e voltar ao passado. Por isso o nazismo combate não apenas os revolucionários e contestadores, mas também aqueles que permitem sua existência e luta (democratas, por exemplo). Trata-se de um passado mítico apontando como o objetivo, voltando a um tempo em que o mal ou a impureza não vagavam pela terra. Assim, o antissemitismo é a forma pela qual esse maniqueísmo se manifestou no caso do nazismo alemão. O seu caráter totalitário se revela no fato de que, fundado em seu maniqueísmo, ele não aceita divisão/oposição e por isso, uma vez no poder, exerce um poder ditatorial.

O nazismo precisa criar um inimigo imaginário e reduzir todos os adversários a tal inimigo (VIANA, 2007). O inimigo imaginário é o que popularmente se chama “bode expiatório”, aquele que será culpabilizado por todos os males. Assim, a invenção de tal inimigo, que é imaginário (ilusório), tem a função de responsabilizar determinado grupo social pelos problemas identificados na sociedade. O inimigo imaginário principal criado pelos nazistas é o judeu. Mas, com sua ambiguidade estrutural, há o judeu comunista e o judeu capitalista e ambos são combatidos, bem como os comunistas (geralmente interpretados como sendo judeus) e homossexuais (apesar de sua ligação com a homossexualidade, mostrando outra ambiguidade). Esse inimigo imaginário, no discurso nazista, pode ser interpretado de várias formas e ser completado por outros inimigos imaginários, seja por possuírem uma função semelhante, apoiá-lo ou ser parte dele, mesmo negando-o (e assim de nada adianta o discurso e a prática concreta desse grupo, pois ele negaria o que realmente é).

Se o nazismo é maniqueísta e cria o inimigo imaginário, os judeus, então quem seriam os predestinados, responsáveis pela recuperação do mundo puro e verdadeiro? Esses seriam os arianos. Aqui se coloca a questão do racismo no interior do nazismo. Contudo, não se trata de “raça”, propriamente dita. Os “arianos” podem ser considerados partes de uma raça humana, que seria a raça branca, mas não sua totalidade. Os judeus, por sua vez, mesmo se originalmente tiveram uma unidade étnica que seria simultaneamente uma unidade racial, ainda seriam uma parte e não a totalidade. O desenvolvimento histórico dos judeus suprimiu os laços originais e o judaísmo se constituiu como uma religião, a qual qualquer indivíduo pode aderir independente de sua raça. A ideologia nazista, contudo, se move não através de análises históricas ou científicas e sim mitológicas, apesar de seu discurso pseudocientífico. E para se legitimar, pode lançar mão do darwinismo, da eugenia, da filosofia de Nietzsche, etc. Os predestinados são a raça pura, forte, a mais apta. Nesse sentido, o racismo é, aparentemente, um elemento definidor do nazismo, mas trata-se de um falso racismo. O maniqueísmo reacionário define melhor a concepção nazista. A ambiguidade é uma de suas marcas e que permite encontrar adesão até em indivíduos pertencentes a grupos considerados “inferiores” e vítimas da perseguição nazista.

No fundo, a origem da ideologia nazista remete à figura de Hitler. Ele foi o principal idealizador do nazismo e contou com a ajuda de inúmeros outros para uma maior sistematização de sua ideologia. É necessário entender as raízes psíquicas do nazismo. A concepção e recepção do nazismo pressupõem determinadas relações sociais. Ele emerge em momentos de crise geral da sociedade capitalista ou então quando alguns grupos, classes ou frações de classes sociais são atingidos negativamente pelas mudanças sociais. Ou seja, o terreno em que brota o nazismo é o da crise, seja da sociedade em geral ou de setores da sociedade.

Esse momento de crise gera inquietação, angústia, etc. (GIRARDET, 1977). É nesse contexto que a invenção, reprodução, aceitação, de um inimigo imaginário se torna mais comum e generalizada (no conjunto da sociedade ou em setores específicos da mesma). Esse inimigo imaginário é uma resposta simples, repetitiva e geral, que fornece uma explicação da crise e dos problemas e, ao mesmo tempo, encontra seus responsáveis e a solução. A solução pode ser o extermínio ou a subjugação, entre outras possibilidades, do inimigo imaginário (VIANA, 2007). Assim, o sentimento de insegurança, medo, ansiedade, etc. provocados por uma situação de crise, cria uma predisposição em muitos indivíduos, grupos, frações de classes, etc., a aderirem à explicação e solução fácil expressa no maniqueísmo reacionário. O nazismo usa como uma de suas estratégias a manipulação dos sentimentos da população ou setores dela, fortalecendo o ódio e o medo, e canalizando-os para determinado inimigo imaginário. Na Alemanha, essa manipulação de sentimentos ocorreu em relação aos atingidos pela crise, setores atingidos pelo desemprego, por exemplo. Os recém desempregados tinham uma explicação simples e solução fácil para os seus problemas: os judeus eram os responsáveis pelo desemprego e, portanto, tinham que ser excluídos, o que permitiria a retomada do emprego.

O nazismo surge a partir de pequenos grupos atingidos por essa desestabilização social, por problemas sociais específicos, aglutinando também indivíduos com desequilíbrios psíquicos. Esse pequeno grupo, no entanto, com o passar do tempo, cresce e com a continuidade da crise e com a insegurança crescente da burguesia, esta acaba apoiando os nazistas, o que os leva ao poder. O nazismo aparece, portanto, como a ideologia adequada e o partido nazista como a organização necessária para superar a crise capitalista e manter a dominação burguesa.

Uma vez que o nazismo se estabelece no poder, a ditadura fundamentada em sua ideologia maniqueísta reacionária acaba se generalizando e trazendo a necessidade de manter seu discurso, e a guerra aparece como a expansão da solução para outros lugares e todos os países inimigos podem se considerados “nações judaicas”. A unidade nacional é garantida agora via a unidade dos predestinados, a “raça ariana”.

Essa breve análise do nazismo é fundamental para entender o neonazismo. O sufixo “neo” aponta para a emergência de um “novo nazismo”. Desta forma, há permanência e mudança. O neonazismo é uma forma nova de nazismo. Por isso é, tal como o nazismo, uma ideologia maniqueísta reacionária e totalitária que legitima, justifica e valora uma política de superioridade dos predestinados e que expressa, intencionalmente ou não, os interesses da classe capitalista.

A questão, então, é o que há de novo no neonazismo? A novidade representada pelo neonazismo é que ele reaparece em novos contextos sociais e históricos. O maniqueísmo reacionário continua, mas os predestinados e o inimigo imaginário devem ser outros, de acordo com os adeptos do neonazismo, com qual é o país e suas divisões sociais, com a dinâmica das classes sociais e da evolução das crises (setoriais ou geral), com as tradições culturais, etc. Os judeus eram os inimigos imaginários adequados para o caso alemão dos anos 1920-1930, devido sua existência, condições sociais e antissemitismo existente, pois podiam ser responsabilizados pelos problemas sociais. A situação dos neonazistas na Inglaterra é bem distinta. Os skinheads surgiram após a copa do mundo de 1966, num contexto de relação com torcidas organizadas e violência, gerando uma gangue de origem jovem e operária, que depois, com a crise do final dos anos 1960 (incluindo aumento do desemprego), ao lado da imigração de força de trabalho da África e Ásia, lhe proporciona a aproximação com a ideologia nazista. Assim surgem as gangues neonazistas.

Contudo, as gangues neonazistas são apenas a ponta do iceberg. Ao contrário do nazismo, que surge como pequeno grupo e vai buscando financiamento, adeptos, etc. o neonazismo emerge a partir de duas fontes. Uma fonte são as gangues neonazistas. Outra fonte são partidos e instituições com recursos financeiros e lugares estratégicos no mundo político-institucional. Esse é o caso de National Allience, American Nazi Party, nos Estados Unidos; ou National Front, na Inglaterra, ou, ainda, determinados partidos e organizações na França, Alemanha, Holanda, Áustria e Itália, embora nem todos se declarem nazistas, por razões óbvias. Há também relatos sobre algumas instituições que se autodeclaram como “associação cultural” ou “filosófica”, e que seriam, na verdade, apenas fachada de organizações neonazistas. Da mesma forma, existem indivíduos nazistas inseridos em outras agremiações partidárias e com espaços político-institucionais, como se pode ver no filme Infiltrator (dirigido por John Mackenzie, de 1995), baseado em fatos reais, no qual se mostra as diversas faces do neonazismo, desde as gangues até os altos burocratas e senadores.

No Brasil, existem várias gangues neonazistas, sendo os Carecas do Subúrbio, que surgiu nos anos 1980, a mais famosa. Em São Paulo, haveria também o Kombat Rac, Front 88 e Impacto Hooligan e há notícias sobre existência de gangues neonazistas em todos os estados da região sul do país (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná), Minas Gerais, Distrito Federal[2]. Em cada contexto, o neonazismo muda o inimigo imaginário. Em São Paulo, os nordestinos já foram alvos dos neonazistas, bem como negros, homossexuais, etc. Os judeus ainda podem ser alvos em determinadas cidades e contextos. A ideologia neonazista realiza poucas alterações na versão original produzida por Hitler e outros. Isso pode ser visto no caso do grupo Valhalla 88:

As novas teorias raciais utilizadas pelo grupo Valhalla 88 são construídas a partir da década de 1980, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. Um dos destaques mencionados pelo grupo no site é o supremacista racial David Lane. Durante sua vida, ele defendeu que a raça branca estaria em extinção, então propunha que a raça branca se isolasse do mundo, se organizando em fazendas ou sociedades segregadas. Frases que ficaram conhecidas e foram utilizadas como slogans pelos grupos neonazistas, hoje é referência na forma de identificação dos grupos racistas e neonazistas. Eles, após suas manifestações ou produção de artigo no final, utilizam os números 14/88. O número 14 é referência as quatorze palavras de David Lane “Devemos assegurar a existência de nosso povo e um futuro para as Crianças Brancas" e o número 88 se refere às letras do alfabeto: 8 seria a letra H, os dois números 88 fazem referência a saudação nazista Heil Hitler (ANDRADE, 2014, p. 172).

Esse grupo, pouco conhecido, ajuda a explicar a pouca inovação ideológica do neonazismo. Um dos motivos dessa pouca inovação reside no fato de as gangues neonazistas, pequenos grupos, entre outros, não possuem, em seus quadros, intelectuais ou ideólogos que pudessem efetivar acréscimos ou alteração na ideologia nazista. A composição social desses grupos é geralmente de jovens, a maioria das classes sociais desprivilegiadas, e sem grande bagagem cultural. Além disso, a repressão e censura (sendo que em alguns países, como no Brasil, existe lei contra propaganda nazista, o que impede a existência de sites neonazistas, que são fechados tão logo sejam identificados) dificultam não só a proliferação, mas a colaboração dos diferentes grupos e desenvolvimento da ideologia. No que se refere aos partidos, instituições e outras formas mais desenvolvidas de neonazismo, há também dificuldades com a repressão e censura, mas o fenômeno nazista e sua imagem é suficiente para que eles mesmos queiram adotar a discrição e não se assumam publicamente como tal e assim, não podem apresentar, pelo menos para o público externo, suas teses, o que é outro obstáculo para o desenvolvimento e divulgação de inovações ideológicas.

A força do neonazismo é diminuta. O aparecimento do neonazismo de forma mais popular, ou seja, através das gangues neonazistas, surge com a desestabilização social da segunda metade dos anos 1960 e da crise posterior, que dura até os anos 1970, sendo que a emergência de um novo regime de acumulação, caracterizado por uma nova formação estatal (neoliberalismo), nova forma de organização do trabalho (toyotismo), novas relações internacionais (hiperimperialismo, mais conhecido como “globalização”), trouxe um aumento do empobrecimento da população (inclusive nos países de capitalismo superdesenvolvido, como Estados Unidos e França, sendo que neste país se cunhou a expressão “exclusão social” para expressar a nova situação), reforça suas bases de existência. A situação difícil, a desilusão, a ansiedade, a insegurança, a insatisfação de diversos setores acabam proporcionando adeptos ao neonazismo. O seu crescimento acompanha o desenvolvimento da sociedade moderna e as novas mudanças que ocorrem com a nova desestabilização reforçam os extremismos e entre eles o neonazismo[3].

Em síntese, o neonazismo é um desdobramento contemporâneo do nazismo, cuja inovação é pequena, sendo mais no que se refere ao inimigo imaginário e para adaptação às mudanças sociais e diferenças nacionais, regionais, etc. A essência do nazismo continua a mesma, mudança apenas alguns aspectos do maniqueísmo reacionário que o caracteriza. Nesse sentido, o neonazismo possui o mesmo significado que o nazismo quando este surgiu: grupos sem força e sem popularidade, que, com o desenvolvimento de uma crise, pode ganhar espaço e receber apoio de setores do grande capital, ganhando a possibilidade real de tomar o poder estatal.

Referências

ANDRADE, Guilherme. A ideologia racial do grupo neonazista Valhalla 88 e a influência da teoria racial de Adolf Hitler. Revista Hominum. Num. 15, julho de 2014.

ARENDT, Hannah. Anti-Semitismo, Instrumento do Poder. Rio de Janeiro, Documentário, 1975.

FROMM, Erich. O Medo à Liberdade. 13ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

GIRARDET, Raul. Mitos e Mitologias Políticas. São Paulo, Companhia das Letras, 1977.

JESUS, Carlos G. N. Neonazismo: Nova Roupagem para um Velho Problema. Akrópolis, V. 11, n.2, abr./jun., 2003. Disponível em: http://revistas.unipar.br/index.php/akropolis/article/view/333/300 Acessado em: 05/03/2017

LENHARO, Alcir. Nazismo. O Triunfo da Vontade. São Paulo, Ática, 1986.

SARTRE, Jean-Paul. Reflexões sobre o Racismo. São Paulo, Difel, 1960.

VIANA, Nildo. A Invenção do Inimigo Imaginário. Antítese. Ano 02, num. 04, Outubro de 2007.

VIANA, Nildo. Capitalismo e Racismo. In: VIANA, Nildo e SANTOS, Cleito P. (orgs.). Capitalismo e Questão Racial. Rio de Janeiro: Corifeu, 2009.

Nildo Viana é Professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB, pós-doutor pela Universidade de São Paulo e autor de diversos livros.

Artigo publicado em “Mistérios da Psique”.



[1] Existe uma extensa bibliografia sobre o nazismo, desde livros introdutórios, passando por livros históricos, análises sociológicas e psicológicas, etc. A nossa análise se baseia em diversas obras, com destaque para: ARENDT (1975), FROMM (1981), GIRARDET (1977), LENHARO (1986), SARTRE (1960), VIANA (2009), VIANA, (2007).

[2] http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38603560

[3] A força do moralismo progressista e a competição social por espaços na sociedade capitalista por parte daquilo que foi chamado “minorias” (uma crítica a tal expressão pode ser vista em: http://redelp.net/revistas/index.php/rpo/article/view/6viana09pos/378), é outro elemento contemporâneo propulsor de intolerância e de adesão ao reacionarismo, incluindo sua forma neonazista.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Comuna de Paris, Interpretações e Perspectiva de Classe


Comuna de Paris, Interpretações e Perspectiva de Classe

Nildo Viana*

Resumo: O presente artigo analisa algumas das interpretações da Comuna de Paris, que expressam diferentes perspectivas de classe, focalizando a perspectiva burocrática. Após uma discussão teórica introdutória sobre perspectiva de classe na abordagem materialista histórica, apresenta, brevemente a perspectiva burguesa e a proletária da Comuna de Paris e, posteriormente, a perspectiva burocrática, extraída da obra de Lênin. A conclusão geral é que as interpretações são perpassadas por perspectivas de classe e por isso não são neutras e o caso de Lênin é exemplar, pois tanto sua interpretação da Comuna quanto do texto de Marx é burocrática e por isso deforma a ambos.
Palavras-chave: Comuna de Paris, Interpretações, Perspectiva de Classe, Perspectiva Burocrática, Interesses de Classe.

O objetivo do presente artigo não é analisar a Comuna de Paris e sim as interpretações que existiram sobre ela. Para tanto, lançamos mão do materialismo histórico e do método dialético para reconstituir algumas interpretações e mostrar seu vínculo de classe, ou seja, seu caráter de classe, apresentando uma percepção do fenômeno ligada a perspectiva da classe de pertencimento ou adesão do intérprete.
Os acontecimentos históricos são abordados sob inúmeras formas e possuem as mais variadas interpretações. O caso não é diferente com a Comuna de Paris de 1871. Esse acontecimento histórico recebeu inúmeras interpretações desde seu desencadeamento até os dias de hoje. O presente artigo visa, justamente, analisar algumas das interpretações da Comuna de Paris a partir da análise do materialismo histórico e, portanto, remete ao problema das classes sociais e de que como, a partir delas, emergem determinadas interpretações correspondentes aos seus interesses. Isso significa que não realizaremos nenhuma discussão sobre as variadas concepções e teorias acerca da interpretação e sim utilizaremos uma abordagem específica para trabalhar as interpretações da Comuna.
Materialismo Histórico, Interpretação e Perspectiva de Classe
A interpretação de um livro, de um fenômeno social, um acontecimento histórico, um filme, entre diversos outros elementos, revelam uma determinada perspectiva de classe. O que é uma perspectiva de classe? Como um indivíduo pode expressar uma perspectiva de classe sem saber ou ter essa intencionalidade? Como identificar a perspectiva de classe de um escrito? Vamos fornecer uma breve resposta a estas questões ao expor a base de nosso processo analítico de algumas das interpretações da Comuna de Paris.
A ideia básica se encontra exposta por Marx. Para ele, as ideias, representações, formas de consciência, não podem ser separadas dos indivíduos reais, concretos. A consciência é o ser consciente, ou seja, não existe “a consciência” fora dos indivíduos e, portanto, fora de sua corporeidade, sua história, suas relações sociais. As representações ilusórias que os indivíduos criam tem sua fonte nas relações sociais limitadas que possuem com os outros seres humanos ou com a natureza. Assim, a base das representações ilusórias e da ideologia é social (Marx e Engels, 2002). Com a emergência das sociedades de classes, a divisão social do trabalho produz relações sociais limitadas e derivadas da posição de cada individuo nessa divisão, ele irá ter um modo de vida específico, atividades fixas e específicas, costumes, representações determinadas, o que gera determinados interesses. E isto é compartilhado por todos os indivíduos de uma determinada classe social que promove oposição e luta contra as demais classes sociais (Marx e Engels, 2002; Marx, 1989; Marx, 1986). Segundo Korsch:
“A classe no seu conjunto – diz Marx no 18 do Brumário, onde se debruçou um pouco mais profundamente sobre esta relação – cria e forma, a partir das suas ‘bases materiais’ toda uma ‘superestrutura’ e diversas sensações, ilusões, modos de pensar e concepção da vida ‘particularmente configurados ‘e a filosofia da classe em questão pertence, primeiro, pelo seu conteúdo e, no fim de contas, também pela sua forma, à superestrutura assim ‘condicionada pela classe’, como parte particularmente afastada da ‘base material, econômica’” (Korsch, 1977, p. 70).
Derivado do pertencimento de classe (o que determina seu processo histórico de vida, o conjunto de relações sociais em que vive e se desenvolve), o indivíduo possui a tendência de desenvolver valores, concepções, sentimentos, e, por conseguinte, interesses, que são os de sua classe (Viana, 2007a), mesmo que seja de forma contraditória em alguns casos, devido influências culturais e outras oriundas de outras classes (Viana, 2008).
Porém, cada classe social gera os seus próprios representantes políticos, literários e intelectuais (Marx, 1986). Estes expressam os interesses de uma classe social sob forma literária, política ou ideológica/teórica. Segundo Marx, ao abordar a questão dos representantes intelectuais da pequena burguesia, coloca os elementos que vinculam classe e representantes intelectuais:
“O que os torna representantes da pequena burguesia é o fato de que sua mentalidade não ultrapassa os limites que esta não ultrapassa na vida, de que são consequentemente impelidos, teoricamente, para os mesmos problemas e soluções para os quais o interesse material e a posição social impelem, na prática, a pequena burguesia. Está é, em geral, a relação que existe entre os representantes políticos e literários de uma classe e a classe que representam” (Marx, 1986, p. 48).
Assim, cada classe possui uma perspectiva, ligada aos seus interesses materiais, posição social, problemas e soluções para os quais são impelidos. É nesse sentido que Marx percebe e realiza a crítica aos economistas burgueses (vulgares, ecléticos e clássicos) por não ultrapassarem a perspectiva burguesa. Porém, é preciso acrescentar que, de acordo com Marx e os principais representantes do materialismo histórico (Labriola, 1979; Korsch, 1977; Lukács, 1989), as diversas perspectivas de classes não são equivalentes, pois as classes sociais envolvidas com a sociedade existente, a classe dominante e suas classes auxiliares[1], possuem limites na percepção da realidade tal como ela é devido seus interesses, voltados para a reprodução da dominação e da exploração. Porém, existe uma classe social que, devido sua posição nas relações de produção e interesses de classe, realiza a crítica da sociedade burguesa e pode expressar uma consciência correta da realidade. Trata-se do proletariado, “cuja missão histórica é a derrubada do modo de produção capitalista e a abolição final das classes”, que é uma classe cujos interesses particulares, já que não visa implantar uma nova forma de dominação, é, simultaneamente, os interesses universais da humanidade (Marx, 1968; Marx e Engels, 2002). O proletariado é a classe social que ao realizar a revolução social, emancipa a humanidade como um todo abolindo a sociedade de classes e as classes em geral (Marx, 1983; Marx, 1979; Marx e Engels, 2002; Marx, 1989).
Nesse sentido, as interpretações dos processos históricos (e obras, etc.) são perpassadas por uma perspectiva de classe que bloqueia ou incentiva uma interpretação correta. A perspectiva de classe que está na base das interpretações dos acontecimentos históricos – e não só destes – é um elemento fundamental para sua compreensão. A perspectiva de classe é o conjunto de valores, sentimentos, concepções, interesses de uma classe social expressa por um indivíduo.
A Comuna de Paris e suas interpretações, uma interpretação das interpretações
A Comuna de Paris foi um acontecimento histórico, tal como tantos outros, interpretado sob diversas formas. As diversas interpretações da Comuna de Paris surgem com o próprio desencadeamento da luta operária na França em 1871. Karl Marx (2011) e Mikhail Bakunin (2011) foram dois dos primeiros intérpretes dessa primeira experiência revolucionária do proletariado. E quando eles escrevem fazem referências às demais interpretações. Claro que a interpretação de ambos é mais desenvolvida do que a da maioria da época. No entanto, Marx apresenta um elemento importante que explica a diversidade de interpretações desse fenômeno histórico:
“A variedade de interpretações a que foi submetida a Comuna e a variedade de interesses que a interpretaram a seu favor, demonstram que era uma forma política perfeitamente flexível, diferentemente das formas anteriores de governo que foram todas fundamentalmente repressivas. Reside aqui o seu verdadeiro segredo: a Comuna era, essencialmente, um governo da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe apropriadora, a forma política finalmente descoberta que permitia realizar a emancipação econômica do trabalho” (Marx, 2011, p. 21).
Assim, a flexibilidade da Comuna de Paris permite uma variedade de interpretações que “a interpretam a seu favor” a partir de uma “variedade de interesses”. Nesse sentido, é interessante perceber a história das interpretações da Comuna de Paris e que estas interpretações são produtos de determinadas perspectivas de classe. Porém, não será possível aqui apresentar esse conjunto de interpretações e nem mesmo analisar profundamente as principais. O que podemos fazer, no espaço que temos, é apenas destacar que existem, fundamentalmente, três tendências interpretativas da Comuna de Paris, expressando três perspectivas de classes diferentes. Assim, as interpretações burguesas, burocráticas e proletárias são as principais e mais comuns e escolher uma no interior delas para objeto de análise, mas enfatizando uma delas em especial.
Assim, discutiremos resumidamente as duas perspectivas explicitamente antagônicas, a das duas classes fundamentais, a da burguesia e do proletariado, e encerramos com a análise de uma perspectiva que se aproxima de uma delas e diz manifestá-la, mas, no fundo, expressa outra classe social, que é a perspectiva da burocracia. O foco na perspectiva da burocracia tem o objetivo de não só apresentar uma outra perspectiva além da burguesa e proletária como demonstrar que, grande parte do que se coloca como sendo proletário, no fundo é burocrático.
A Comuna de Paris segundo a Perspectiva Burguesa e a Perspectiva Proletária
As interpretações burguesas da Comuna de Paris iniciaram desde que eclodiu este acontecimento histórico. Não poderemos analisar mais profundamente as diversas interpretações burguesas da Comuna de Paris e por isso apresentaremos a forma como este acontecimento foi recebido pelos literatos que expressavam a perspectiva burguesa no momento da existência da Comuna e depois um autor específico que reproduz tais concepções. O trabalho de Paul Lidsky revela bem isso. Ele faz um apanhado dos principais temas que a literatura anticomunarda e, portanto, que parte da perspectiva burguesa, usou par abordar a Comuna. O primeiro tema é a orgia. Ele cita Montégut e diversos outros que descreveram a Comuna como o “desencadeamento dos instintos mais baixos”, uma “irrupção das bestas imundas do subterrâneo”. Enfim, a orgia, tema repetido ao infinito, através das descrições literárias, seria, nessa perspectiva, “o verdadeiro sentido da Comuna” (Lidsky, 1971, p. 131).
Emile Zola, por sua vez, considera a Comuna como uma “enfermidade coletiva” e para outros é manifestação de uma “cultura pervertida”. A família é outro tema recorrente, onde os comunardos, em novelas fictícias, buscam abolir a família. Os personagens criados são comunardos, muitos arrependidos do envolvimento com a política, pois “a verdadeira família”, diz um personagem comunardo, “é uma mulher que se ama, são algumas crianças em casa” (Lidsky, 1971, p. 141). A descrição do autor de Germinal, Emile Zola, mostra claramente a perspectiva burguesa: “O terror reina, a liberdade individual e o respeito às propriedades são violados, o clero é odiosamente perseguido, as buscas e requisições são utilizadas como meio de governar, em toda sua miséria e vergonha” (Zola, 1992, p. 92)[2].
Porém, a expressão da perspectiva burguesa sobre a Comuna de Paris mais sistematizada se encontra na obra do português Manuel Pinheiro Chagas é aquele que expressa de forma mais sistemática a posição anticomunarda. Pinheiro Chagas afirma que “o princípio autoritário é a base de todas as doutrinas socialistas”. A burguesia conquistou quais direitos que o operário não usufrui? Pergunta essa feita em 1972. Pinheiro Chagas também refuta que a burguesia tenha privilégio da riqueza, pois ela conquistou seus bens “pelo trabalho, pela inteligência, pela economia” (Pinheiro Chagas, 1872, p. 7).
Depois de citar várias passagens de Marx, demonstrando não entender bem o que lia (confundia autogoverno da classe por governos de indivíduos da classe, “direção intelectual” com “direção prática”), Pinheiro Chagas chega à sua conclusão: “A república ideal da Comuna era a oligarquia operária” (Pinheiro Chagas, 1872, p. 121). Uma oligarquia de uma classe inteira é uma contradição, porém, no imaginário burguês isso é possível. Pinheiro Chagas apresenta a Comuna como se fosse a materialização da AIT – Associação Internacional dos Trabalhadores. A sua análise da Comuna, baseada em documentos, pode ser sintetizada da seguinte forma:
“Assim, a Internacional está sendo atualmente, não a associação universal dos operários para poderem discutir com mais eficácia as questões do seu salário, mas uma associação que tem por fim a destruição da sociedade atual, destruição completa e absoluta. Os internacionalistas não são nem progressistas, nem liberais, nem sequer republicanos. Os seus fins são diversíssimos dos dos partidos políticos mais avançados. [...]. Supõe alguém que eles combatem contra a distinção de classes. Querem-na, pelo contrário, mas a sua há de ter o predomínio. Os ouvriers, dizia um declamador socialista, quand serez-vous lês maîtres de vos maîtres? Note-se bem que não se diz: Les ègaux de vos maîtres, mas sim les maîtres de vos maîtres! Estas ideias de ódio, de guerra sem tréguas, de tirania, são pregadas a cada instante pelo jornalismo internacional” (Pinheiro Chagas, 1872, p. 18).
Assim, a interpretação burguesa da Comuna de Paris a apresenta como o mal a ser combatido, o lugar da destruição da liberdade (individual ou coletiva), da família, da propriedade e, além disso, o lugar da orgia, da baixeza, dos instintos baixos, da cultura pervertida.
A perspectiva proletária foi manifesta sob formas diferentes por diversos indivíduos que escreveram sobre a Comuna de Paris, tais como Marx, Bakunin, Korsch, Kropotkin, Debord, entre outros[3]. Não poderemos apresentar todas elas e por isso escolhemos apenas uma para apresentar de forma sintética a perspectiva proletária. Optamos pela concepção de Marx, por ser a mais conhecida e aquela que a perspectiva burocrática, tal como mostraremos a seguir, busca se apropriar e deformar.
Marx buscou explicitar o que foi a Comuna de Paris. Ele analisa a luta de classes e como ela engendrou essa experiência histórica do proletariado, mostrando seu caráter, seus limites e suas lições para o futuro. Marx afirmou que a Comuna de Paris foi marcada pela recusa do poder estatal centralizado e seus “órgãos onipotentes”, o exército permanente, a polícia, a burocracia, o clero e a magistratura, oriundo da divisão social do trabalho da sociedade burguesa.
Dessa recusa prática, Marx deriva o princípio de que uma revolução proletária o objetivo não é a conquista do poder estatal e sim sua abolição. A Comuna realizou essa tarefa e substituiu a máquina estatal burguesa por uma nova forma de organização, o “autogoverno dos produtores” (Marx, 2011). Essa nova organização tinha como base a decisão coletiva e a formação de delegados comunais elegíveis, substituíveis, demissíveis e responsáveis. A elegibilidade garantia que todo trabalhador poderia ser delegado; a substitubilidade permitia a substituição sempre que necessário; o caráter demissível permitia que os comunardos demitissem os que não executassem a decisão coletiva; a responsabilidade, elemento fundamental, significa que o delegado não pode se autonomizar, criar interesses próprios, devendo ser expressão da decisão coletiva da Comuna.
Nesse contexto, Marx cita o exemplo da milícia popular, composta por indivíduos responsáveis e demissíveis a qualquer momento, como expressão da transformação, parcial[4], realizada pela Comuna. A Comuna não se constitui de forma parlamentar e sim como organização coletiva do trabalho, simultaneamente “executiva” e “legislativa”, ou seja, sem a divisão entre dirigidos e dirigentes. Marx coloca, de forma relativamente detalhada, a destruição dos aparelhos da sociedade burguesa (exército, polícia, igreja, etc.) e as mudanças ocorridas nas relações sociais. O governo centralizado foi substituído pelo autogoverno dos produtores e algumas poucas funções do governo central não seriam suprimidas e sim realizadas por agentes comunais (responsáveis, demissíveis, substituíveis e eleitos). Note-se aqui que Marx não fala de manutenção do governo central e sim de funções dele – tal como, por exemplo, serviço de energia elétrica – que não mais seriam executadas por ele e sim por agentes comunais submetidos à decisão coletiva.
A autogestão operária na Comuna de Paris, um autogoverno proletário, é condição fundamental, segundo Marx, para abolir os fundamentos da sociedade classista e generalizar o trabalho produtivo, abolindo as classes sociais. A Comuna anuncia o comunismo, ou seja, a abolição da propriedade privada e a transformação dos meios de produção em instrumentos dos trabalhadores livremente associados. Ela apontava para a concretização da transformação total e iniciou esse processo, que foi interrompido pela contrarrevolução burguesa e por isso não pode levar até o fim o seu projeto iniciado. A Comuna significou que os “simples operários” ousaram violar o “monopólio de governo” de seus superiores “naturais” (Marx, 2011), apesar das condições mais desfavoráveis.
As medidas práticas da Comuna também foram analisadas por Marx, colocando seus méritos no contexto – uma cidade sitiada – em que ocorria a luta proletária. Os limites da Comuna são apontados por Marx e são explicados por dois motivos essenciais: o primeiro é seu caráter de revolução proletária inacabada, onde concretizou partes do projeto revolucionário e esboçou outros, ficando aquém em alguns aspectos. De qualquer forma, ao contrário da perspectiva burguesa, Marx ressalta a emancipação humana esboçada num novo tipo de organização social, autogestionária, na qual a exploração de classes começava a ser destruída e a divisão da sociedade em dirigentes e dirigidos foi abolida em diversas instâncias da sociedade e avançava para outra. Nesse sentido, Marx demonstrou a essência autogestionária da Comuna de Paris (Viana, 2011d), o que foi possível devido ao fato dele partir da perspectiva do proletariado[5].
A Comuna de Paris Segundo a Perspectiva Burocrática
A perspectiva burocrática da Comuna de Paris (expressa por Lênin e Trotsky, entre outros que seguiram seus passos), se manifesta através de um conjunto de interpretações problemáticas e que coloca ênfase nas falhas nas luta heroica do proletariado francês. Porém, se a perspectiva burguesa se manifesta em pleno e direto confronto com a perspectiva proletária, o mesmo não ocorre com a perspectiva burocrática.
Tal como Marx já colocava, toda classe que aspira se tornar nova classe dominante deve apresentar seus interesses particulares como interesses universais (Marx, 1968). Porém, na sociedade atual, a transformação social radical só pode ocorrer com a mudança nas relações de produção, mas, para mudanças superficiais, tal como a troca da classe dominante no poder, e, portanto, a substituição de uma sociedade de classes por outro, a radicalidade não é tão grande. Uma classe que busca a dominação tem que conquistar apoio das demais classes e, no capitalismo, precisa do apoio fundamental do proletariado. É por isso que a burocracia diz representar ou ser a vanguarda do proletariado, pois não poderia transformar as relações de produção por não ser a classe produtora e por sua esfera de ação ser o Estado, as organizações burocráticas, etc.
É por isso que tomaremos como exemplo da interpretação da Comuna de Paris de inspiração burocrática a obra de Lênin. E este, por conseguinte, remete a Marx, que, como já vimos, expressa a perspectiva do proletariado. Marx e Lênin são pensadores antagônicos. Afirmação que muitos considerarão curiosa ou mesmo extravagante. Porém, não é uma leitura totalmente original, pois outros já perceberam isso (Berger; etc.). A estranheza desta afirmação é derivada da não-leitura, ou da pouca ou má leitura destes dois pensadores e, principalmente, a partir do processo de bolchevização dos partidos comunistas, da interpretação do primeiro mediada pelo segundo. Esse é o caso da interpretação da Comuna de Paris realizada por Marx e deformada por Lênin, que se tornou a interpretação canonizada da abordagem marxista da Comuna. Devido a isto, vamos, sinteticamente, discutir as teses de Marx sobre a Comuna em contraposição à interpretação de Lênin.
Não iremos aqui reconstituir a interpretação geral que Marx realizou da Comuna de Paris, o que realizamos em outro lugar (Viana, 2011d). O nosso objetivo aqui é destacar os pontos dissonantes das afirmações de Lênin sobre tal interpretação e mostrar o que Marx realmente disse, para recordar título do livro de Ernst Fischer (1970).
Lênin afirma que a “única correção” que Marx julgou necessária realizar a partir das lições da experiência revolucionária dos comunardos de Paris reside na ideia de que não basta à classe operária se apoderar da máquina estatal existente e usá-la para seus fins. “Assim, Marx e Engels atribuíam uma importância tão gigantesca a essa lição fundamental da Comuna de Paris, que a introduziram como correção essencial no Manifesto Comunista” (Lênin, 1987, p. 82).
Lênin contesta as interpretações daqueles que ele chama de “oportunistas”, que falsearam o caráter da correção, cujo sentido seria desconhecido por 99% dos leitores do Manifesto. Lênin, afirma, parecendo se aproximar do anarquismo, que “a ideia de Marx consiste em que a classe operária deve destruir, romper, a ‘máquina estatal existente’ e não limitar-se simplesmente a apoderar-se dela” (Lênin, 1987, p. 82). Lênin cita a carta de Marx a Kugelmann na qual diz que já no seu livro O Dezoito Brumário (1986), já abordava a questão da destruição do Estado. Esta concepção teria sido adulterada pelo kautskismo.
Esse início aproxima Lênin do marxismo autêntico e do anarquismo e é um dos motivos de O Estado e a Revolução ser considerado um livro anarquista, por alguns comentaristas e “libertário”, por representantes ou autores próximos do marxismo autêntico. Porém, não é nada disso. E basta observar as motivações e afirmações posteriores para desaparecer o encantamento libertário envolto na obra de Lênin.
Quando Lênin passa para a questão do que deve substituir a máquina estatal após sua destruição é que começa a delinear sua verdadeira concepção, que ele atribui a Marx. Ele inicia ainda dentro do espírito libertário, colocando que, para Marx, houve a passagem da resposta abstrata constante no Manifesto Comunista para uma resposta concreta no texto sobre a Comuna e isso foi resultado do fato de Marx não se perder em utopismo e, ao mesmo tempo, por se fundamentar na experiência do movimento de massas. Até aqui Lênin não deformou nenhuma afirmação de Marx. No Manifesto, Marx apontava para substituir a máquina do Estado pela “organização do proletariado em classe dominante” e pela “conquista da democracia”. Lênin inicia a deformação do pensamento de Marx a partir de sua análise do que deve substituir a máquina estatal. Após algumas citações de Marx, Lênin passa para sua interpretação:
“Assim, ao destruir a máquina estatal, a Comuna aparentemente 'apenas' a substitui por uma democracia mais completa: supressão do exército permanente e total elegibilidade e removibilidade de todos os funcionários. Mas, na realidade, esse 'apenas' representa uma substituição gigantesca de umas instituições por outras, essencialmente diferentes. Encontramo-nos exatamente diante de um caso de 'transformação da quantidade em qualidade': a democracia, levada à prática do modo mais completo e conseqüente que se pode conhecer, transforma-se de democracia burguesa em democracia proletária, de um Estado (força especial de repressão de uma determinada classe) em algo que já não é um Estado propriamente dito” (Lênin, 1987, p. 87).
Aqui parece, à primeira vista, que Lênin é um intérprete fiel de Marx, porém, já se nota duas ausências importantes, que complementam a elegibilidade e removibilidade, que é o caráter substituível e responsável dos agentes comunais, o que é uma ausência significativa, tal como mostraremos adiante. Mas Lênin avança com um “porém”: é preciso reprimir e vencer a resistência da classe burguesa e a maioria do povo deve reprimir por si mesma seus opressores, não sendo necessário uma “força especial” para tal. É, continua Lênin, “nesse sentido o Estado começa a extinguir-se”. Essas considerações apontam para a necessidade de uma força repressiva e nesse sentido o Estado começa a se extinguir. Para Marx, na verdade, o Estado não começa a se extinguir, afirmação que não se encontra em seus escritos e muito menos em seu texto sobre a Comuna, o que ocorre é a abolição do Estado, como o próprio Lênin disse anteriormente. Lênin vai destacar um ponto secundário da abordagem de Marx e superada por ele: a questão de todos receberem salários de operários:
“A esse respeito, é singularmente notável uma das medidas decretadas pela Comuna, que Marx sublinha: a abolição de todas as verbas de representação, de todos os privilégios pecuniários dos funcionários, a redução dos ordenados de todos os funcionários do Estado até o nível do 'salário de um operário'. É aqui que se expressa da maneira mais evidente a passagem da democracia burguesa para a democracia proletária, da democracia dos opressores para a democracia das classes oprimidas, do Estado como 'força especial' de repressão de uma classe determinada para a repressão dos opressores pela força conjunta da maioria do povo, dos operários e camponeses! E é precisamente nesse ponto tão evidente – talvez o mais importante, no que se refere à questão do Estado – que as lições de Marx foram mais relegadas ao esquecimento!” (Lênin, 1987, p. 88).
Nada mais curioso do que essa superênfase na igualdade de salários, um elemento ainda da sociedade capitalista que a Comuna não teve tempo de superar e que Marx, em seu texto de Crítica ao Programa de Gota (Marx, 1974) já havia superado pelo sistema de bônus, coerente com a sua tese da abolição do salariato (Berger, 1977)[6]. Em Marx, é uma medida da Comuna que se dá num contexto preciso e que contribui com o que é realmente importante (elegibilidade, removibilidade, substitubilidade e responsabilidade) de forma temporária, pois logo se deveria generalizar o trabalho produtivo e abolir as classes e o salariato. Outra diferença é que no texto sobre a Comuna Marx não afirma em nenhum lugar que tal igualdade de salários, nem as demais medidas, se aplicam aos “funcionários do Estado” e sim agentes comunais, etc., ou seja, a ideia de Estado está ausente em Marx. Obviamente que a superênfase de Lênin reside, em parte, em sua polêmica contra Bernstein e Kautsky, bem como a toda a social-democracia reformista, o que se observa nos seus parágrafos seguintes. Porém, nada mais cômico do que combater o reformismo com teses reformistas, afinal, a igualdade de salários, agora transformado em “talvez o mais importante” das lições extraídas da Comuna por Marx, significa a manutenção do trabalho assalariado, do dinheiro, etc., em síntese, do capitalismo.  Esse é o elemento eleito por Lênin como sendo da passagem da “democracia burguesa” para a “democracia proletária”, sendo que joga para a questão da democracia algo que se refere ao processo de remuneração pelo trabalho. Lênin não se esquece, expressando a ideologia da burocracia partidária da qual era representante, de ver a necessidade de chamar para seu lado o campesinato.
“A total elegibilidade e a removibilidade a qualquer “momento de todos os funcionários, a redução de seu ordenado até os limites do 'salário corrente de um operário', estas medidas democráticas, simples, e 'compreensível por si mesmas', ao mesmo tempo que unificam totalmente os interesses dos operários e da maioria dos camponeses, servem como ponte que leva do capitalismo ao socialismo” (Lênin, 1987, p. 89).
Aqui temos novamente a forma vanguardista de ver o processo social. Trata-se, segundo Lênin, de “reorganização estatal” e de fornecer um “governo barato” aos camponeses, o desejo desta classe (Lênin, 1987). Isso significaria um passo “em direção da transformação socialista do Estado”, ou seja, Lênin não abandona a ideia de Estado e isto terá implicações, como veremos adiante.
Lênin passa a trabalhar a questão do parlamentarismo. Marx, ao colocar que a Comuna não é uma corporação parlamentar e sim de trabalho, e criticar as eleições a cada quatro ou seis anos, e defender o sufrágio universal, critica o parlamentarismo que Lênin reconhece corretamente. Porém, Lênin não poderia ir até o fundo e expressar a perspectiva do proletariado. Vejamos como ele vai da crítica do parlamentarismo à defesa da participação nele: “Essa notável crítica do parlamentarismo, feita em 1871, hoje também figura, graças ao predomínio do social-chauvinismo e do oportunismo, entre as 'palavras esquecidas' do marxismo” (Lênin, 1987, p. 90). Assim, os oportunistas deixaram campo aberto para os anarquistas.
“Mas, para Marx, a dialética revolucionária nunca foi essa vaga frase de moda, essa ninharia em que foi convertida por Plekhânov, Kautsky e outros. Marx soube romper implacavelmente com o anarquismo, pela incapacidade deste em aproveitar até o 'estábulo' do parlamentarismo burguês – sobretudo quando se sabe que não se está perante situações revolucionárias – porém, ao mesmo tempo, também sabia fazer uma crítica autenticamente revolucionária, proletária, do parlamentarismo” (Lênin, 1987, p. 90).
Lênin não mostra, em nenhum momento, onde estaria essa concepção de Marx sobre o parlamentarismo. No fundo, esta é uma atribuição de Lênin a Marx e por isso não cita fonte e o texto citado, sobre a Comuna, mostra justamente não só os limites do parlamentarismo, mas seu caráter burguês, tal como toda a organização do Estado moderno. Lênin se pergunta sobre qual é a opção ao parlamentarismo e responde: a alternativa não é abolir as instituições representativas e sim transformá-las em corporações de trabalho. Após criticar alguns social-democratas e semelhantes, afirma que a Comuna substitui o parlamentarismo por instituições marcadas pela liberdade de opinião e discussão[7].
Porém, com o desenvolvimento do texto, Lênin se afasta cada vez mais de Marx falando em nome deste: “é extremamente instrutivo que Marx, ao falar das funções daquela burocracia de que a comuna e a democracia proletária necessitam, tome como termo de comparação os empregados de 'qualquer outro patrão', ou seja, uma empresa capitalista comum, com 'operários, inspetores e contadores'”. Curiosamente Lênin inventa que Marx fala das funções de uma suposta burocracia que a Comuna e a “democracia proletária” necessitariam. Obviamente, que qualquer um que leia o texto de Marx sobre a Comuna não verá nenhuma referência a qualquer necessidade de burocracia. E para convencer os leitores incautos, os não-leitores e mau-leitores de Marx, ele diz que em Marx não há utopismo e complementa:
Não se pode falar da abolição da burocracia de repente, em toda parte e totalmente. Isso é uma utopia. Porém destruir de imediato a velha máquina burocrática e começar no mesmo instante a construir outra nova, que permita ir reduzindo gradualmente toda burocracia, não é uma utopia; é a experiência da Comuna, é a tarefa essencial e imediata do proletariado revolucionário” (Lênin, 1987, p. 93).
Eis o que diz Lênin, em um texto que para muitos é “libertário”: não se pode abolir a burocracia imediatamente e sim substituir a velha máquina burocrática por uma nova, que, magicamente, não defenderia seus próprios interesses e se reduziria por conta própria gradualmente. Lênin reforça dizendo que não é utópico, e que é “sonho anarquista” prescindir de vez de todo governo e subordinação:
Não somos utópicos. Não 'sonhamos' em como se poderá prescindir de uma vez de todo governo, de qualquer subordinação; esses sonhos anarquistas, baseados na incompreensão das tarefas da ditadura do proletariado, são fundamentalmente estranhos ao marxismo e, de fato, só servem para adiar a revolução socialista até que os homens sejam diferentes. Não, nós queremos a revolução socialista com homens como os de hoje, com homens que não podem passar sem subordinação, sem controle, sem “inspetores e contadores” (Lênin, 1987, p. 93).
Nessa passagem Lênin esclarece que defende um novo governo e existência da subordinação, totalmente ao contrário de Marx e, obviamente, sem fazer referência direta a ele, apesar de ficar subentendido de que essa seria sua posição. Curiosamente diz que quer fazer a revolução socialista com os homens de hoje, domesticados que precisam de subordinação, ao contrário ao que diz Marx, que afirma no seu texto sobre a Comuna (que serve de base para toda a argumentação leninista):
“[Os proletários – NV] Sabem que para conseguir sua própria emancipação, e com ela essa forma superior de vida para a qual tende irresistivelmente a sociedade atual, por seu próprio desenvolvimento econômico, terão de enfrentar longas lutas, toda uma série de processos históricos que transformarão as circunstâncias e os homens. Eles não têm que realizar nenhum ideal, mas simplesmente libertar os elementos da nova sociedade, que a velha sociedade burguesa agonizante traz em seu seio. Plenamente consciente de sua missão histórica e heroicamente decidida a atuar de acordo com ela, a classe operária pode sorrir diante das grosseiras invectivas dos lacaios da pena e do patronato recheado de doutrinas burguesas de beneficência, que derramam suas ignorantes vulgaridades e suas fantasias sectárias com um tom sibilino de infalibilidade científica” (Marx, 2011, p. 22-23)”.
Assim, Marx pensa que a luta de classes transformam as circunstâncias e os homens, e esses que realizarão o comunismo, enquanto que para Lênin é dispensável esta transformação dos homens, ele quer homens servis para reproduzir a servidão. Mas, se há subordinação, então existem aqueles que subordinam e os que são subordinados. Quem subordina? Lênin responde: “mas é à vanguarda armada de todos os explorados e trabalhadores, ao proletariado, que devem se submeter”. A vanguarda armada é quem subordina. Porém, no texto, Lênin toma como equivalente “vanguarda armada dos explorados e trabalhadores” e proletariado. Sem dúvida, se não fosse a palavra “armada” a equivalência seria aceitável e a ambigüidade esconde algo que só será revelado posteriormente. Ele acrescenta que “nós mesmos, os operários” (como se ele tivesse sido operário alguma vez na vida...), “partindo do que já tenha sido criado pelo capitalismo”, partindo de “nossa experiência” e estabelecendo uma “disciplina rigorosíssima, férrea, mantida pelo poder estatal dos operários armados” (Lênin, 1987, p. 94) é que tem a responsabilidade de reorganizar a produção. Partindo do que foi criado pelo capitalismo, e não é demais lembrar que Lênin era um entusiasta do capitalismo e sua verdadeira e profunda aversão era ao czarismo, retoma a questão da disciplina férrea organizada por um poder estatal dos operários armados.
Aqui ainda existe, partindo das criações capitalistas, um poder estatal que impõe uma disciplina férrea. Apenas problemas de vocabulário equivocado? Hipótese pouco plausível, mas que é totalmente descartada lendo o resto do texto. Ele usa o exemplo dos correios, “uma empresa organizada no estilo de um monopólio capitalista de estado”, como forma de usar algo criado pelo capitalismo para servir ao socialismo, onde os operários armados (obviamente, a vanguarda, pois se todos os operários estivessem armados, seria desnecessário o uso da segunda palavra) irão “contratar” (relação tipicamente burguesa: contrato de trabalho, assalariamento) técnicos, inspetores, contadores, a serviço do novo estado. Lênin continua:
“Organizar toda a economia nacional como está organizado o correio, para que os técnicos, os inspetores, os contadores e todos os funcionários em geral recebam ordenados que não sejam superiores ao 'salário de um operário', sob o controle e a direção do proletariado armado: esse é o nosso objetivo imediato. Esse é o Estado que necessitamos e essa é a base econômica sobre a qual deve repousar. Nisso é que dará a abolição do parlamentarismo e a conservação das instituições representativas; isso é o que livrará a classe trabalhadora da prostituição dessas instituições pela burguesia” (Lênin, 1987, p. 95).
Indiretamente, ao colocar o correio com sua divisão social do trabalho e hierarquia como modelo, Lênin reproduz todos os elementos da sociedade capitalista. A diferença seria que ao invés do burocrata estatal ou do capitalista ou burocrata empresarial, o comando está nas mãos da “vanguarda armada” do proletariado e ele confunde a si mesmo com o proletariado, não sem motivo, como veremos adiante. Esse é o “Estado” defendido por Lênin. Aqui a distância de Marx é grande e é por isso que ele não cita nada de Marx para defender suas teses extravagantes para a perspectiva marxista.
Porém, quanto mais Lênin avança, mas evidente ficam suas concepções. Ao discutir a questão da “organização da unidade da nação”, explicita-se o caráter deformador da interpretação leninista de Marx. Após citar alguns trechos de Marx sobre organização nacional, cita Bernstein e a proximidade das teses de Marx com as do federalismo de Proudhon. Segundo Bernstein, há uma enorme semelhança entre o federalismo de Proudhon e a proposta contida no escrito de Marx sobre a Comuna. Lênin busca desqualificar o escrito de Bernstein com o estratagema retórico da escandalização, dizendo que “isso é simplesmente monstruoso”. Segundo ele, Bernstein confunde a tese da destruição do poder estatal parasita (ou seja, um poder estatal que é parasita, ao contrário do que Marx coloca, que todo poder estatal é parasita...) com o federalismo de Proudhon. Lênin diz que não passa na cabeça do oportunista Bernstein que Marx se referia à destruição da velha máquina burguesa de Estado e não uma oposição do federalismo ao centralismo.
Os oportunistas, “ridículos”, com seu “filisteísmo mesquinho”, continua o retórico Lênin, não conseguem pensar a revolução. Assim, em meio a vários adjetivos pejorativos, outro estratagema retórico de Lênin, ele afirma que nem os defensores do “marxismo ortodoxo” (Kautsky e Plekhanov) discutiram essa tergiversação de Marx por Bernstein. Não, segundo Lênin, nem “sombra de federalismo” em Marx e Bernstein nem desconfia em que Marx concorda e discorda de Proudhon. Marx concorda com Proudhon no que se refere à “destruição” (as aspas são de Lênin...) da máquina moderna do Estado. E Lênin revela sua concepção ao dizer em que Marx discorda:
“Marx discorda de Proudhon e de Bakunin precisamente na questão do federalismo (ainda sem falar da ditadura do proletariado). O federalismo deriva, em princípio, das concepções pequeno-burguesas do anarquismo. Marx é centralista. Em suas passagens citadas anteriormente não se afasta minimamente do centralismo. Só os que se acham possuídos da ‘fé supersticiosa’ dos filisteus no Estado podem confundir a destruição da máquina estatal burguesa com a destruição do centralismo!” (Lênin, 1987, p. 97). [Grifos meus].
Assim, lendo e acreditando em Lênin, ficamos sabendo que Marx é centralista e que suas passagens citadas por Lênin mostram que ele não se afasta minimamente do centralismo. Aqui a deformação é clara e isso pode ser provado com as citações de Marx apresentadas por Lênin:
“[...] No breve esboço de organização nacional que a Comuna não teve tempo de desenvolver, mostrou-se claramente que a Comuna haveria de ser [...] a forma política que atingisse até a menor aldeia [...]. As comunas elegeriam também a ‘delegação nacional’ de Paris.
[...] As poucas, mas importantes, funções que ainda restassem para um governo central não seriam suprimidas, como foi dito, deturpando a verdade propositadamente - mas seriam desempenhadas por agentes comunais e, portanto, estritamente responsáveis. [...].
[...] Não se tratava de destruir a unidade da nação, mas, pelo contrário, de organizá-la mediante um regime comunal, convertendo-a numa realidade ao destruir o poder do Estado, que pretendia ser a encarnação daquela unidade, independente e situado acima da própria nação, em cujo corpo não era mais que uma excrescência parasitária [...].
Enquanto os órgãos puramente repressivos do velho poder estatal teriam que ser amputados, suas funções legítimas teriam de ser arrancadas a uma autoridade que usurpava uma posição proeminente sobre a própria sociedade, para restituí-las aos servidores responsáveis dessa sociedade” (Lênin, 1987, p. 95).
O que Lênin faz é, como provam as chaves que apontam para partes do texto retiradas, é selecionar trechos que apóiam sua interpretação e deixar de lado o que contradiz tal interpretação. Ele usa trechos descontextualizados para tornar sua interpretação mais convincente. Ele, por exemplo, retira as duas primeiras frases (em seu lugar aparece os parêntesis) que antecede sua primeira citação, sendo que a segunda afirma o seguinte: “Uma vez estabelecido o regime comunal em Paris e nos centros secundários, o antigo governo centralizado teria de dar lugar, inclusive nas províncias, ao autogoverno dos produtores” (Marx, 2011, p. 73). Aqui se complicaria a interpretação leninista, pois o antigo governo centralizado cede lugar ao autogoverno dos produtores, elemento fundamental e nunca reproduzido por Lênin em suas 10 páginas sobre um texto de aproximadamente o mesmo tamanho.
A última frase da primeira citação de Lênin diz: “As comunas elegeriam também a ‘delegação nacional’ de Paris”, enquanto que, na verdade, Marx disse: “as comunas rurais de cada distrito administrariam seus assuntos coletivos por meio de uma assembléia de delegados na capital do distrito correspondente a essas assembléias, por sua vez, enviariam deputados à delegação nacional em Paris, entendendo-se que todos os delegados seriam substituídos a qualquer momento e comprometidos com um mandat impératif [mandato imperativo] (instruções formais) de seus eleitores” (Marx, 1986, p. 73-74).
Obviamente que pode ser mero problema de tradução, mas o significado altera radicalmente. Uma coisa é as comunas elegerem uma “delegação nacional”, outra coisa é elegerem seus delegados e os enviarem para Paris, pois num caso temos centralização (a “delegação nacional” é eleita nacionalmente) e noutro a descentralização (cada comuna escolhe seus delegados e os enviam à Paris). Num caso, temos eleições típicas da democracia burguesa e noutro forma autogestionária de escolha dos delegados. Outros elementos problemáticos existem, mas deixaremos quando Lênin for apresentar sua interpretação do texto de Marx.
Assim, Lênin diz que nas citações acima “Marx não se afasta minimamente do centralismo” e ele é “centralista”. Além da afirmação de Marx sobre a substituição do antigo poder centralizado pelo autogoverno dos produtores, em toda interpretação leninista do texto sobre a Comuna, a questão da responsabilidade é ocultada. Num dos trechos citados por Lênin aparece, bem como em uma ou outra passagem. Porém, Lênin enfatizou a igualdade de salários, algo que nada tem de comunista, e a elegibilidade e removibilidade. O caráter substituível e responsável é esquecido e o mais importante de todos é justamente a questão da responsabilidade. É no caráter responsável dos agentes comunais diante da Comuna que reside o caráter autogestionário da Comuna (Viana, 2011d). O que significa tal caráter responsável? Significa que não pode se autonomizar e constituir interesses próprios, deve seguir a decisão coletiva da Comuna.  Assim, não existe a divisão entre dirigentes e dirigidos, por isso Marx colocava que a Comuna devia ser “legislativa e executiva” simultaneamente. Pois bem, ao recolocar o caráter responsável, então fica insustentável qualquer centralismo, pois este significa que há um centro de decisão, o que nunca foi expresso no texto de Marx. Lênin continua:
“Ora, se o proletariado e os camponeses pobres tomam o poder do Estado, se organizam de um modo absolutamente livre em comunas e unificam a ação de todas as comunas para dirigir os golpes contra o capital, para esmagar a resistência dos capitalistas, para entregar a propriedade privadas das ferrovias, das fábricas, da terra, etc., a toda a nação, a toda a sociedade, por acaso isso não será o centralismo? Por acaso isso não será o mais conseqüente centralismo democrático e, além disso, um centralismo proletário?” (Lênin, 1987, p. 97).
Aqui novamente Lênin parece libertário. Mas lendo mais atentamente, observa-se que ele diz que o proletariado e os camponeses pobres “tomam o poder do Estado”. Ora, se tomam o poder estatal, é o poder já existente, o poder estatal burguês. Esse poder estatal, agora “tomado”, não se sabe como, pelo proletariado e campesinato pobre, socializa os meios de produção. A chave para entender esse “centralismo” é dizer, no fundo, quem toma o poder estatal centraliza tudo. Eis a questão, e esta não é respondida nessa frase, mas veremos a resposta adiante. A escolha da palavra centralismo, não usada por Marx positivamente em nenhum momento, é já um sinal de preferência que não é gratuita.
Lênin continua criticando Bernstein com seus adjetivos pejorativos e diz que para tal “filisteu”, o centralismo “só pode ser imposto e mantido pela burocracia e pelo militarismo” (Lênin, 1987, p. 98). Apenas mais uma aparente contradição? Tal afirmação quer dizer que o centralismo pode ser imposto e mantido por outros que não os burocratas e militares. Quem são estes outros que irão impor e manter o centralismo? Veremos adiante. Antes, vejamos mais aspectos da interpretação leninista do texto de Marx sobre a Comuna:
“Marx sublinha intencionalmente, como se previsse a possibilidade de que suas ideias fossem adulteradas, que acusar a Comuna de querer destruir a unidade da nação, de querer suprimir o poder central, é uma falsidade consciente. Marx usa intencionalmente a expressão ‘organizar a unidade da nação’ para contrapor o centralismo consciente, democrático, proletário, ao centralismo burguês, militar, burocrático” (Lênin, 1987, p. 98).
Curiosa forma de interpretação, pois Lênin lê os pensamentos não escritos de Marx, suas intenções secretas, de décadas anteriores... Na verdade, Marx como bom escritor e leitor que era, sabia muito bem que existem aqueles que deformam o pensamento alheio, e Lênin é um dos mais famosos praticantes dessa “arte”, coisa que hoje nós sabemos. Porém, Marx se referia à Comuna e não ao seu próprio pensamento. No que se refere ao problema da unidade da nação, Marx afirmou que não se tratava de destruir a unidade da nação, mas organizá-la sob o regime comunal, realizando-a ao destruir o poder estatal. O que significa isso? O poder estatal cria uma unidade falsa e artificial, e ele sendo destruído e substituído por um regime comunal, a nação converte-se em realidade[8]. Porém, a Comuna também era “um governo internacional no pleno sentido da palavra” (Marx, 2011, p. 17). A questão é que a discussão sobre a questão nacional em Marx é distinta da do poder central. Aliás, Marx vê antagonismo entre ambos e Lênin usa a defesa da unidade nacional para defender o poder central, esquecendo todas as afirmações de Marx contra o poder central e usando o estratagema retórico de unir crítica ao centralismo com anarquismo, para conseguir ser convincente para parcela dos leitores que carregam preconceitos contra o anarquismo.
Contudo, a interpretação do texto sobre a Comuna de Marx não vai mais longe do que isso e os pontos não respondidos se encontram nas outras partes da obra O Estado e a Revolução. Por isso, vamos preencher as lacunas de Lênin com algumas passagens de sua obra. A primeira refere-se à defesa leninista da abolição do Estado burguês e emergência de um Estado proletário:
“Engels diz logo no começo de seu raciocínio que, ao tomar o poder estatal, o proletariado ‘destrói com isso, o Estado como tal. Não é costume parar-se para pensar no que significa isso. O comum é fazer-se de desentendido a esse respeito e considerá-lo algo assim como uma ‘debilidade hegeliana’ de Engels. Na realidade, essas palavras encerram concisamente a experiência de uma das maiores revoluções proletárias, a experiência da Comuna de Paris de 1871 [...]. Na verdade, Engels fala aqui de ‘destruição’ do Estado da burguesia pela revolução proletária, enquanto as palavras relativas à extinção do Estado se referem aos restos do Estado proletário, depois da revolução socialista. O Estado burguês não se ‘extingue’, segundo Engels, mas ‘é destruído’ pelo proletariado na revolução. O que se extingue, depois dessa revolução, é o Estado ou semi-Estado proletário” (Lênin, 1987, p. 64).
Aqui Lênin repete o procedimento comum do pseudomarxismo de citar Engels como se ele e Marx fossem a mesma coisa ou pessoa. Porém, o argumento aqui é a de que Engels defendia a destruição do Estado burguês, o que é correto, e sua substituição por um Estado proletário, o que é problemático, e este se “extinguiria”. Não vamos comentar o texto de Engels e a interpretação de Lênin do mesmo, pois nosso objetivo é outro. Na seqüência, Lênin dá a entender que o Estado proletário mantém o uso da força e esse seria o seu elemento característico. É por isso que ele afirma, posteriormente, o papel do “proletariado armado”. Porém, no capítulo dedicado à Comuna, Lênin fala da subordinação, do centralismo e da necessidade da burocracia, afinal, “não se pode falar da abolição da burocracia de repente”, isso seria utopia. Então haverá o aspecto repressivo, subordinação, centralismo e burocracia. É possível destruir imediatamente “a velha maquina burocrática”, e “começar no mesmo instante a construir outra nova” (Lênin, 1987, p. 93).
Nas páginas posteriores ao capítulo de análise do texto de Marx sobre a Comuna, vai ficando mais claro quem exerce a subordinação, de quem é esse centralismo e qual é essa burocracia: “Mas a ditadura do proletariado, quer dizer, a organização da vanguarda dos oprimidos em classe dominante para esmagar os opressores”. A vanguarda dos oprimidos, pode-se interpretar, é o proletariado. A questão é que não se trata do proletariado como um todo e aqui reside o caráter da tese leninista. Trata-se do proletariado armado e “organizado”. Por questão lógica, se pensar em um proletariado armado, então deve existir o “desarmado” e ao usar a expressão “organização da vanguarda” revela que não se trata de organização de todos . Porém, mais importante do que isso é a referência a proletariado armado junto com centralismo e burocracia. O que é burocracia para Lênin? Ele afirma que os burocratas são “pessoas privilegiadas, divorciadas das massas, situadas acima delas” (Lênin, 1987, p. 157). E acrescenta: “Nisso reside a essência do burocratismo e, enquanto os capitalistas não forem expropriados, enquanto não se derrubar a burguesia, uma será inevitável uma certa ‘burocratização’, inclusive dos funcionários proletários” (Lênin, 1987, p. 157). Ou seja, Lênin justifica e legitima a burocracia e não só faz isso como atribui tal pensamento a Marx, que foi totalmente contrário a isso.
A questão da responsabilidade é outra questão fundamental e deixada de lado por Lênin, não sem razão. O caráter responsável, discutido por Marx, mostra justamente o antídoto contra a burocracia, a possibilidade de autonomização dos delegados comunais e Lênin se esquece disso e prefere colocar a necessidade de uma burocracia, entrando em frontal contradição com o pensamento de Marx que ele diz reproduzir.
Para encerrar essa breve análise da deformação leninista do pensamento de Marx e da prática comunarda, resta colocar dois elementos. Um é explicar as razões pelas quais subsiste algumas afirmações ambíguas em Lênin que alguns confundem com um suposto caráter libertário e outro é apresentar, mesmo que resumidamente, outras considerações de Lênin sobre a Comuna apresentada em outros textos dele. O aparente caráter libertário do texto de Lênin tem três determinações básicas. A primeira é o escrito de Marx ao qual tem que se remeter e por mais que o tenha deformado, não era possível fazer de conta que certas coisas não estavam escritas lá, tal como abolição do poder estatal centralizado. Daí foi necessário um subterfúgio (destrói o poder estatal centralizado burguês e cria um proletário...). A segunda foi que o seu objetivo era combater a socialdemocracia, o anarquismo, ou seja, os adversários políticos, embora seu foco fosse a socialdemocracia e o confronto dessa com o pensamento Marx (o que faz ele apelar até para Pannekoek, que pouco depois seria um dos grandes teóricos do Comunismo de Conselhos, antileninista) para qualificá-los de oportunistas, tinha como objetivo combatê-los e enfraquecer sua influência. A última determinação é a fundamental, o texto foi redigido antes da tomada de poder estatal pelo partido bolchevique e após a Revolução de Fevereiro, na qual os sovietes – conselhos operários – já haviam emergido e criando novas formas de auto-organização dos trabalhadores. Nesse sentido, Lênin buscava, por um lado, atacar os adversários (principalmente a socialdemocracia que tinha forte influência na Rússia, inclusive nos mencheviques), e para isso retomava Marx, o que era problemático, mas era resolvido com a deformação daquilo que era útil aos seus propósitos insurrecionalistas e, ainda, manter uma posição aparentemente libertária e a favor dos sovietes, para, assim, garantir sua hegemonia no desencadear do processo, permitindo a conquista do poder estatal.
Outro aspecto importante é a ênfase nas falhas da Comuna e ele reproduziu suas considerações sobre os erros da Comuna em várias oportunidades:
“Porém, dois erros estragaram os frutos da brilhante vitória: em lugar de proceder à ‘expropriação dos expropriadores’, colocou-se a sonhar com a entronização da justiça suprema em um país unido por uma tarefa comum a toda a nação; não se apoderou de instituições como, por exemplo, o banco; as teorias dos proudhonistas da “troca justa”, etc., dominavam ainda entre os socialistas. O segundo erro consistiu na excessiva magnanimidade do proletariado: em lugar de exterminar seus inimigos, que era o que devia ter feito, tratou de influir moralmente sobre eles, desprezou a importância que na guerra civil tem as ações puramente militares e, ao invés de coroar sua vitória em Paris com uma ofensiva resoluta contra Versalhes, deu tempo ao tempo e permitiu que o governo versalhense reunisse as forças tenebrosas e se preparasse para a semana sangrenta de maio” (Lênin, 1978, p.21).
Aqui, além de uma posição não-marxista, voltada para “exterminar seus inimigos”, a ideia de se “apoderar” das instituições burguesas ao invés de aboli-las, e ênfase nas “ações puramente militares”, temos uma questão fundamental que é o exemplo do banco, que deveria ter sido “apoderado”. Sem dúvida, para quem pensa que o trabalho assalariado deve permanecer (através da equiparação), tomar o banco é algo necessário. Ou seja, o dinheiro, o salário, o banco, um conjunto de instituições burguesas, continuam existindo (junto com a burocracia e a nova máquina estatal) e o que muda, no fundo, é quem se apropria disso tudo e não é a totalidade da classe proletária que o faz e sim sua “vanguarda organizada”, o partido.
Desta forma, Lênin interpreta a Comuna de Paris a partir da perspectiva burocrática e por isso deve sustentar a necessidade de conquista do poder estatal, de burocracia, de vanguarda, etc. junto com a manutenção de aspectos da sociedade burguesa, pois o objetivo não é a abolição geral das classes sociais e sim substituição da classe dominante.
Considerações Finais
A Comuna de Paris foi uma obra coletiva de importância histórica fundamental. Nesse contexto, sofreu inúmeras interpretações, tal como colocamos aqui. De forma breve, apresentamos as interpretações burguesa, proletária e burocrática da Comuna de Paris. Focalizamos mais esta última por expressar a versão dominante dos acontecimentos de 1871 em Paris.
A interpretação hegemônica é a bolchevique, leninista. Essa expressa a perspectiva de classe da burocracia. Por qual motivo esta interpretação é a dominante? Isso se deve ao fato de que a interpretação burguesa da Comuna é quantitativamente diminuta. Os representantes intelectuais e literários da burguesia assumiram duas posições diante deste evento histórico: a primeira posição, mais forte no calor da luta, era de combate e ataque à experiência comunarda. Contudo, a posição dominante na perspectiva burguesa é aquela que quer esquecer a Comuna de Paris e sua existência, pois ela foi um evento traumático para a burguesia, em primeiro lugar, por sua própria existência e apresentado a primeira tentativa de revolução proletária da história e, depois, porque seu massacre dos operários parisienses não é algo muito agradável de recordar, pois coloca em evidência o papel do poder burguês[9].
A interpretação proletária, por sua vez, é a que foi efetivada por um conjunto de representantes intelectuais e literários do proletariado, desde Marx e Bakunin, passando por Kropotkin, Korsch, Debord e outros. No entanto, foi uma interpretação sufocada pela interpretação leninista. No caso de Marx e dos marxistas, ela foi deformada e adulterada ou então simplesmente esquecida e substituída pelos escritos de Lênin e leninistas. No caso dos anarquistas, foi amplamente sufocada e sobreviveu marginalmente.
Assim, os textos e interpretações mais famosos acabaram sendo o de Marx e Lênin e o primeiro foi lido a partir da interpretação do segundo – e até aqueles que expressavam a perspectiva do proletariado foram influenciados por essa interpretação e por isso se colocaram em uma posição crítica em relação ao texto de Marx (Korsch, 2011a; Korsch, 2011b; Viana, 2011e).
A interpretação leninista se tornou, portanto, hegemônica. Aqueles leitores que perceberam a proximidade com o texto de Marx e aspectos aparentemente libertários, acabaram realizando uma confusão e passaram a pensar que o livro de Lênin, O Estado e a Revolução, era uma obra libertária. Ledo engano, pois, no fundo, era uma “obra tática”, estava ligada aos interesses políticos de Lênin, tal como a necessidade de combater adversários políticos e conquistar apoio popular. A perspectiva burocrática se manifesta na obra de Lênin e diversos outros, ressaltando que o grande problema da Comuna foi a falta de um partido revolucionário (Luquet, 1968), falta de conquista do poder estatal, falta de tomar o banco, etc., ou seja, falta de burocracia, controle, poder, justamente o contrário da proposta comunal e de Marx (Viana, 2011d). A concepção leninista é burocrática e segue a lógica da política burguesa, na qual a burocratização e canalização das lutas rumo ao Estado se opõe à política proletária de autogestão das lutas (Viana, 2011f).
Assim, uma história das interpretações da Comuna de Paris de 1871 e de outras experiências históricas a partir do materialismo histórico e do conceito de perspectiva de classe assume grande importância para as análises históricas e das lutas sociais. O que fizemos aqui foi esboçar, brevemente, alguns elementos para tal discussão no que se refere ao caso da Comuna e abordar introdutoriamente algumas das perspectivas de classe que geraram distintas interpretações deste fenômeno histórico.
Abstract:
This article examines some of the interpretations of the Paris Commune, which express different perspectives of class, focusing on the bureaucratic perspective. After an introductory theoretical discussion about class perspective on historical materialist approach, briefly presents the perspective of proletarian and bourgeois Paris Commune, and later, the bureaucratic perspective, drawn from the work of Lenin. The general conclusion is that interpretations are pervaded by the prospects of class and therefore are not neutral and the case is an example of Lenin, for both their interpretation of the Commune and Marx's text is so bureaucratic and distorts both.
Keywords: Paris Commune, Interpretations, Perspective Class, bureaucratic perspective, class interests.


* Professor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG/Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB/Universidade de Brasília.





[1] A existência de classes auxiliares da burguesia é tematizada em algumas obras (Viana, 2007; Viana, 2011a; Viana, 2011b), para as quais remetemos, pois não poderíamos trabalhar esse aspecto no presente trabalho, mesmo porque não é nosso foco.
[2] Para uma descrição mais detalhada sobre essa literatura anticomunarda, a consulta da obra de Lidsky (1971) e a coletânea de texto de Vallés (1992) e outros é um bom material.
[3] Uma seleção de textos que abordam a Comuna nesta perspectiva pode ser consultada em Viana, 2011c, contendo também comentários sobre os mesmos.
[4] A Comuna de Paris foi uma revolução proletária inacabada e por isso apresentou, em alguns aspectos, uma forma autenticamente autogestionária, mas em alguns aspectos teve limites, principalmente no processo de abolição das relações de produção capitalistas, que se iniciou mas sua curta duração impediu sua concretização.
[5] Sem dúvida, a breve apresentação da concepção de Marx se deve aos limites do espaço para o presente trabalho, mas uma análise mais pormenorizada pode ser vista em Viana, 2011d.
[6]  Lênin não faz nenhuma ressalva quanto a isto e não tem como afirmar que não conhecia esse escrito, pois ele cita nos capítulos posteriores de sua obra. Também podemos destacar que elemento “tão importante” só é defendido de acordo com o oportunismo vanguardista de Lênin, pois o mesmo, ao chegar ao poder, mesmo considerando “um passo atrás”, implantará “salários elevados para alguns especialistas burgueses” (Lênin, 1988).
[7]  Não é preciso lembrar que, uma vez no poder, Lênin fez novamente o contrário: “poderes ditatoriais e direção unipessoal não são contraditórios com a democracia socialista” (apud. Rodrigues e De Fiore, 1978, p. 51). Basta lembrar a abolição das frações no interior do partido bolchevique, a repressão à Kronstadt, o esvaziamento dos sovietes, para ver a prática leninista. Sobre isto, há uma boa documentação no livro de Brinton (1975).
[8] “Não se tratava de destruir a unidade da nação, mas, ao contrário, de organizá-la mediante um regime comunal, convertendo-a numa realidade ao destruir o poder estatal, que pretendia ser a encarnação daquela unidade, independente e situado acima da própria nação, em cujo corpo não era mais que uma excrescência parasitária (Marx, 2011, p. 22).
[9] Pinheiro Chagas mostra sua reserva sobre o massacre, que não era possível evitar num escrito sobre a Comuna: “então começaram as sinistras vinganças. Levado pela opinião pública desvairada o governo de Thiers procedeu largo tempo aos fuzilamentos em massa. Essa vingança, que a França inteira aplaudia, foi uma nódoa na vitória, nodoa indelével, que transformou em mártires homens que não tinham sido senão simples e vulgares criminosos” (Pinheiro Chagas, 1872, p. 304). Eis que o governo de Thiers apenas atendeu a “opinião pública”, mas, o que mostra esse trecho, além da justificativa dos atos do governo, é a vergonha de uma pessoa de mentalidade burguesa diante do ocorrido, sendo que entrava em contradição com os princípios que defendeu em sua obra e que mostra um ato criminoso por parte do Estado (assassinato) é apenas um erro.


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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Comuna de Paris, Interpretações e Perspectiva de Classe. História Revista. v. 16, n. 2 (2011), doi: 10.5216/hr.v16i2.18146

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