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quinta-feira, 15 de setembro de 2016

MITO, IDEOLOGIA E UTOPIA


MITO, IDEOLOGIA E UTOPIA
Nildo Viana
Resumo:
O presente artigo visa discutir o mito e sua manifestação no mundo moderno. As formas do mito na sociedade capitalista são analisadas a partir dos conceitos de ideologia e utopia. A conclusão é a de que os mitos modernos podem ser manifestar tanto como ideologia quanto como utopia, sendo que a classe social que é responsável pela sua produção oferece a tendência ideológica ou utópica, tal se percebe nas manifestações analisadas do mito como antissemitismo e como messianismo.
Palavras-Chave: Mito, Ideologia, Utopia, Classes Sociais, Messianismo, Antissemitismo.

Abstract:
This article aims to discuss the myth and its manifestation in the modern world. Forms of myth in capitalist society are analyzed based on the concepts of ideology and utopia. The conclusion is that modern myths can be manifested as both ideology and utopia, and social class that is responsible for its production offers the utopian or ideological bias, as can be seen in the demonstrations analyzed the myth as anti-semitism and how messianism.
Keywords: Myth, Ideology, Utopia, Social Classes, Messianism, Anti-Semitism.

O mito é uma das manifestações culturais mais antigas da humanidade. Apesar disso, não recebeu a mesma atenção que outros fenômenos culturais. Uma das razões para isso é a suposição, comum nas representações cotidianas, de que os mitos desapareceram na sociedade capitalista, na qual a secularização e racionalização não permitiriam manifestações do “pensamento primitivo”. Essa suposição, no entanto, pode ser questionada. Sem dúvida, os mitos na sociedade moderna não poderiam se manifestar exatamente da mesma forma que nas sociedades simples ou pré-capitalistas, mas a suposta racionalização total de nossa sociedade é uma ficção.
Por conseguinte, para saber se o mito se manifesta ou não na sociedade capitalista, é necessário, em primeiro lugar, explicitar o que é um mito. Dentre as diversas concepções de mito (LÉVI-STRAUSS, 1978; CASSIRER, 1985; GODELIER, 1982; ELIADE, 1989a)[1], grande parte assume um caráter ideológico, ou seja, são um sistema de pensamento ilusório que busca definir o mito mas que acaba ofuscando o seu verdadeiro caráter (VIANA, 2011). Nesse sentido, começaremos definindo mito para depois ver suas manifestações na sociedade moderna.
O primeiro ponto a se destacar é que o conteúdo do mito não se encontra nele mesmo, pois uma representação não pode se autonomizar em relação àqueles que a produziram, ou seja, os seres humanos. Segundo Marx:
“As representações que estes indivíduos elaboram são representações a respeito de sua relação com a natureza, ou sobre suas mútuas relações, ou a respeito de sua própria natureza. É evidente que, em todos estes casos, estas representações são expressão consciente – real ou ilusória – de suas verdadeiras relações de atividades, de sua produção, de seu intercambio, de sua organização política e social. A suposição oposta é apenas possível quando se pressupõe fora do espírito de indivíduos reais, materialmente condicionados, em outro espírito à parte. Se a expressão consciente das relações reais destes indivíduos é ilusória, se em suas representações põem a realidade de cabeça para baixo, isto é consequência de seu modo de atividade material limitado e das suas relações sociais limitadas que daí resultaram” (MARX e ENGELS, 1982, p. 36).
Os mitos são representações que buscam explicar e conhecer o mundo, devido às necessidades existenciais e sociais, e que servem para se atuar sobre a realidade reconhecida ou pelo menos se situar diante dela sem ocorrer ricos desnecessários. Entretanto, existem várias outras representações que buscam o mesmo objetivo, pelo menos motivos, e apresentam os mesmos resultados.
Portanto, a definição do mito não pode se limitar a isto, pois é necessário delimitar a forma específica em que ele se manifesta para compreendermos sua especificidade enquanto forma cultural. Entretanto, não se pode autonomizar esta forma cultural, pois aí retornaríamos ao formalismo (com todos os seus defeitos: descrição ao invés de explicação, generalização abusiva a todas as formas parecidas de discurso, etc.). A definição do mito, assim como de todas as formas culturais, deve se basear na unidade de seu “fundamento material” e sua forma específica de manifestar tal fundamento.
A especificidade do mito encontra-se, como diria Hegel (1980), nas “imagens” ou na “forma do figurativo” sob as quais se manifesta. A característica do mito é que ele se manifesta sob uma determinada “linguagem simbólica”. Entretanto, em antropologia muito se fala dos “símbolos” e do “simbólico”, mas geralmente não se define esses termos. Concordamos com a definição de Erich Fromm:
“Costuma-se definir símbolo como 'algo que representa outra coisa'. Essa definição parece um tanto decepcionante. Torna-se mais interessante, entretanto, caso nos interessemos pelos símbolos que são expressões sensoriais da visão, audição, olfato e tato como representando 'outra coisa' que é uma experiência interior, um sentimento ou pensamento. Um símbolo dessa espécie é algo exterior a nós mesmos; o que ele simboliza é algo dentro de nós. A linguagem simbólica é aquela por meio da qual exprimimos experiências interiores como se fossem experiências sensoriais, como se fosse algo que estivéssemos fazendo ou que fosse feito com relação a nós no mundo dos objetos. A linguagem simbólica é uma língua onde o mundo exterior é um símbolo do mundo interior, um símbolo de nossas almas e nossas mentes” (FROMM, 1983, p. 20).
Resta, então, esclarecer qual é a relação entre o símbolo e o que é simbolizado. E, Fromm distingue três espécies de símbolos: o convencional, o acidental e o universal. O símbolo convencional é aquele que aplicamos na linguagem cotidiana. Tomemos como exemplo a palavra “mesa”: ela representa outra coisa, que é um objeto que nós vemos, tocamos e usamos. Qual é a relação entre a palavra e o objeto? Não existe nenhuma relação inerente entre esta palavra e este objeto. A única razão para tal palavra simbolizar tal objeto se encontra na convenção de dar o nome de “mesa” a este objeto determinado, ou seja, determinado nome foi dado a determinado objeto por convenção. Não só as palavras, mas também as imagens podem ser símbolos convencionais. Por exemplo, uma bandeira que representa determinado país e foi adotado convencionalmente como símbolo. Segundo Erich Fromm:
O oposto exato do símbolo convencional é o símbolo acidental, apesar de ambos terem uma coisa em comum: não há relação intrínseca entre o símbolo e o simbolizado. Suponhamos que alguém teve em certa cidade uma experiência dolorosa; ao ouvir o nome dessa cidade, facilmente ligará o nome a um estado de espírito deprimido, tal como o associaria a uma disposição alegre se a experiência tivesse sido agradável. Está claro nada existir de um triste ou alegre na natureza da cidade: é a experiência individual ligada à cidade que transforma em símbolo de um estado de ânimo (FROMM, 1983, p. 21).
O símbolo universal, segundo Erich Fromm, apresenta uma relação intrínseca entre o símbolo e o simbolizado. Fromm explica esta espécie de símbolo através do exemplo do fogo:
“Ficamos fascinados por certas qualidades dum fogo aceso numa lareira. Antes de mais nada, por sua atividade, ele muda constantemente, mexe-se todo o tempo, e no entanto há constância nele: permanece igual sem ser o mesmo. Dá impressão de força, energia, graça e leveza. É como se tivesse uma fonte inexaurível de energia. Quando usamos o fogo como símbolo, descrevemos a experiência interior caracterizada pelos elementos percebidos na experiência sensorial do fogo: o estado de espírito de energia, leveza, movimento, graça e regozijo – às vezes outro desses elementos, predominando no sentimento” (FROMM, 1983, p. 22-23).
Acontece que em determinadas sociedades certos símbolos universais mudam de significado. O sol, por exemplo, nos países nórdicos assume um aspecto simbólico positivo devido à existência abundante de água e todo o crescimento depender da luz solar enquanto que, nos países tropicais, o sol assume um aspecto negativo, pois, devido seu calor intenso, lá ele se apresenta como uma força perigosa da qual é necessário se proteger. Portanto, as experiências se manifestam simbolicamente diferentes e por isso podemos dizer que existem diversos “dialetos simbólicos”. Além disso, um mesmo símbolo pode ter mais de um significado, pois diferentes tipos de experiências podem ser relacionados e associados a um mesmo fenômeno natural.
Qual é a relação destas três espécies de símbolos e linguagem simbólica? A linguagem simbólica como expressão do “mundo interior” descarta o símbolo convencional, pois este não possui os seus elementos fundamentais. O símbolo acidental, por sua vez, dificilmente pode ser compartilhado por outros indivíduos e por isso é muito raro sua utilização nos mitos ou na literatura, nos contos de fada, etc. Escritas em linguagem simbólica. Portanto, a linguagem simbólica dos mitos utiliza, fundamentalmente, os símbolos universais.
Entretanto, não é suficiente definir o mito como uma “linguagem simbólica”, pois a poesia também é uma linguagem simbólica e não é um mito. Embora o mito se utilize dos símbolos universais isto não é privilégio seu. A especificidade do mito está não só no fato dele se manifestar sob linguagem simbólica, mas na forma específica na qual realiza isto. Consideramos que esta linguagem simbólica tem como características próprias: a) tal como colocou Mircea Eliade (1989a; 1989b; 1988), aqueles que produzem e reproduzem o mito acreditam dele como algo verdadeiro e, além disso, sua reprodução se dá em coletividade, que é a dos seus produtores e reprodutores; b) o mito realiza o processo de personificação e é desta forma que ele busca explicar o mundo.
Portanto, se formos definir os mitos em poucas palavras, diríamos que eles são representações que buscam explicar e conhecer o mundo provocadas por necessidades existenciais e sociais que servem para atuar sobre a realidade buscando controlá-la ou se situar diante dela. Essas representações se manifestam sob uma linguagem simbólica que é considerada verdadeira pelos que a produzem e reproduzem e que executa o processo de personificação e assim busca explicar o mundo. Estas necessidades existenciais são as necessidades de resposta ao que Erich Fromm (1961) chama de “dicotomias existenciais”, que são a posição do homem diante da morte, a sua impossibilidade de desenvolver toda a sua potencialidade devido a curta duração da vida e o fato do homem ser um ente individual orgânico (logo, sozinho) que só se sente bem ao lado de outros de sua espécie. As necessidades sociais estão ligadas às relações dos homens entre si e com a natureza, inclusive para satisfazer as suas outras necessidades (biológicas e psíquicas). Existe, obviamente, um entrelaçamento entre esses tipos de necessidades.
Portanto, esse é o conteúdo do mito, sua “essência”. Mas, como dizia Hegel (1980), a essência em sua manifestação concreta é existência. Por isso, o mito assume formas diferentes em sociedades e tempos históricos diferentes. Os mitos nas sociedades simples tratam da origem do cosmos, do homem, das instituições, etc. A dependência do homem em relação à natureza nestas sociedades faz com que ela se torne o tema fundamental dos mitos, embora as relações sociais se apresentem também como temas.
Tal como colocou Hegel (1980) e Godelier (1985), as mitologias nas sociedades simples apresentam-se sob a forma do antropomorfismo. Os seres da natureza ganham características humanas. Dentre essas características existe uma que é fundamental e que explica todas as outras: a intencionalidade. O sol, a lua, o mar, etc. ganham intencionalidade, se tornam agentes. Essa intencionalidade não difere em nada da intencionalidade humana, a não ser as “razões ocultas” que movem as ações das divindades.
Resta saber os motivos que levam os homens a executar esse procedimento. Uma explicação para isso foi dada por E. P. Tylor. Segundo Pierre Smith (1978), Tylor afirmava que foram as ilusões do sonho que criaram a crença em almas e espíritos que, para os indígenas, tudo povoam e assim fundaram os mitos. Estes seriam uma análise confusa da realidade. Os deuses e heróis da mitologia seriam personificações de forças naturais explicadas por “doença da linguagem” que permite a transformação de objetos inanimados em sujeitos de ação. Portanto, a explicação do antropomorfismo se encontra nas “ilusões do sonho”. Esta explicação, entretanto, nos parece inconsistente. Consideramos que a relação do homem com a natureza é mediada pelo trabalho e neste o homem atua sobre a natureza e esta, de acordo com a regularidade seu funcionamento, responde à ação humana. Além do trabalho material que o homem realiza sobre a natureza, mas relacionando-se com ele, há também um trabalho intelectual sobre ela, onde se busca compreendê-la. Essa busca de compreensão da natureza (e também das relações sociais) é mediada pelo trabalho intelectual da consciência. O homem não pode possuir uma “consciência da natureza”, mas sim uma consciência da sua relação com a natureza (VIANA, 2007b). Esta autoconsciência produz uma visão da natureza que tem como referencial o próprio homem em sua relação com a natureza. Sendo o homem o referencial para a compreensão da natureza torna-se compreensivo o antropomorfismo. Os conceitos, os sentimentos, as relações que são próprias do homem são transferidos para a natureza por serem o referencial que eles possuem para buscar compreendê-la e explicá-la. A personificação dos seres naturais, que assim se tornam “sobrenaturais”, é um procedimento racional realizado em condições sociais determinadas[2]
Essa situação se modifica com o processo crescente de separação entre o homem e a natureza, provocado pelo desenvolvimento das forças produtivas. O homem adquire, com isto, a autoconsciência da real diferença entre ele e a natureza. São os homens que são portadores de intelectualidade e não a natureza.
Quando as populações das sociedades simples entram em contato com outras populações (principalmente no caso dos povos ocidentais e suas invasões) há uma reformulação dos mitos, ou seja, os mitos também estão envolvidos da dinâmica histórica. Vejamos isto através de um exemplo. Os índios hidatsa, norte-americanos, tinham mito que dizia o seguinte:
“(...) dois demiurgos criaram a terra e fizeram emergir os humanos do mundo subterrâneo. Depois que as tribos e as línguas se diversificaram, aconteceu, em certo lugar, que uma mulher 'ofereceu de beber' (provavelmente um eufemismo) a seu jovem cunhado. Este julgou o oferecimento inconveniente e declinou do convite. Furiosa por ter sido repelida, a mulher acusou seu cunhado de ter pretendido violá-la, e, a pretexto de conduzi-lo à guerra, o marido ultrajado abandonou seu irmão mais novo numa ilha. Os deuses intrometeram-se na questão, tomando partido por um ou por outro dos irmãos. Os protestos do irmão prevaleceram finalmente e destruíram, numa conflagração, o irmão casado e quase todos os habitantes da aldeia. Os sobreviventes separaram-se. Os que partiram para o norte, tornaram-se os Crow-hidatsa; os que formam para o sul, os awaxawi, cuja migração foi provocada por um dilúvio, que se seguiu aos acontecimentos, dirigiram-se para o Missouri, onde encontraram, mais tarde, outro grupo hidatsa, os awatixa. Quanto aos Crow-hidatsa propriamente ditos, voltaram para o sul, onde se cindiram, dando origem às duas tribos respectivamente conhecidas por esses nomes (LÉVI-STRAUSS, 1983, p. 147-148).
Este mito relata migrações, fusões e separações de tribos que ocorreram historicamente. Segundo Lévi-Strauss,
De fato essas migrações são aquelas provocadas por ataques dos Ojibwa dos bosques, armados pelos colonos franceses do Canadá, e em consequência de que os ancestrais comuns dos Crow e dos hidatsa tiveram que refugiar nas planícies. A arqueologia confirma esses movimentos de populações. A chegada dos Awatika ao Missouri, a separação ulterior dos Crow-hidatsa em duas tribos, são também fatos históricos atestados (LÉVI-STRAUSS, 1983, p. 149).
Vemos, portanto, que as novas condições históricas e a nova situação social se refletiram na explicação mítica do mundo, inclusive criando novos temas, pois muda-se também o próprio significado de elementos existentes no mito, tal como demonstra os maias de Yucatán que consideravam os Dzules (estrangeiros) como deuses e após a invasão espanhola passaram a considerá-los como destituídos de sabedoria, palavras e ensinamentos, aqueles que vieram para “ensinar o terror”, “secar as flores”, “mutilar o sol”, e que deixaram apenas “a amargura” (GENDROP, 1987).
Demonstrando que o mito muda temas e significados com a mudança histórica e social e que tais mudanças ocorreram dentro de sociedades simples. Resta saber qual é o tipo de mudança que ocorre no mito quando se instaura uma sociedade complexa em substituição a uma sociedade simples. Portanto, é aqui que devemos colocar a questão do mito no mundo moderno[3]. A contradição entre o homem e natureza como tema fundamental dos mitos nas sociedades simples é substituída pelo tema das contradições sociais nas sociedades de ascensão da sociedade capitalista traz consigo a “secularização” (parcial) da cultura e juntamente com ela se expande o racionalismo e o cientificismo. Entretanto, isso não afeta todas as classes sociais com a mesma intensidade, pois classes trabalhadoras possuem menor acesso às “conquistas da ciência” e as classes privilegiadas possuem um maior domínio neste campo. Cada classe social produz aqueles que irão sistematizar as ideias e/ou ilusões sobre si e sobre a sociedade. Na classe dominante realiza-se uma divisão entre aqueles que executam o trabalho manual e aqueles que executam o trabalho intelectual (MARX e ENGELS, 1982). No caso das classes trabalhadoras, a elaboração de suas concepções acerca de si e da sociedade é realizada principalmente pelos seus próprios integrantes que não exercem uma profissão intelectual embora existam algumas exceções.
Se retornarmos a tese de que os homens criam representações reais ou ilusórias como expressão consciente de suas relações sociais então devemos ver a diferença entre estes dois tipos de representações e como elas se relacionam com as classes sociais. A ideologia dominante é, como dizia Marx, a ideologia da classe dominante (MARX e ENGELS, 1982). Esta busca “naturalizar” e “universalizar” o mundo existente e assim evitar o reconhecimento da história e das contradições sociais. Ela é, portanto, uma representação ilusória da realidade, ou seja, é uma inversão da realidade, falsa consciência, sistematizada pelos ideólogos (MARX e ENGELS, 1982). As classes exploradas, devido a sua própria situação social, não podem evitar o reconhecimento da história e das contradições sociais e por isso apresenta em suas representações a necessidade da mudança. Portanto, a classe dominante evita reconhecer a história e as classes exploradas buscam, ao contrário, reconhecê-la e, consequentemente, as ideias da classe dominante são conservadoras e as ideias das classes exploradas são revolucionárias. No primeiro caso, temos a ideologia e, no segundo caso, a utopia.
Se a ideologia busca “naturalizar” e “universalizar” o existente, a utopia traz, ao contrário, a proposta de um novo existente, ou, mais exatamente, uma nova sociedade que constitui uma mudança radical. Entretanto, tal como exposto por Ernst Bloch, existem dois tipos de utopia: a utopia abstrata e a utopia concreta (BICCA, 1987). A utopia concreta é aquela que leva em consideração as possibilidades de sua realização enquanto a utopia abstrata não fundamenta as condições de sua concretização.
A relação entre mito e ideologia é bastante complexa, pois a ideologia só surge com a divisão entre trabalho manual e intelectual, ou seja, quando surgem os ideólogos, e o mito surgiu antes de tal divisão. Em outras palavras: a ideologia surge com a ascensão das sociedades de classes e o mito é anterior ao surgimento dessas sociedades. Isto quer dizer que o mito não é uma ideologia nas sociedades sem classes, embora possa, numa sociedade classista assumir a forma de ideologia. A ideologia, por sua vez, pode assumir a forma de mito, embora isto seja raro por possuir inúmeras outras formas de se manifestar.
A relação entre mito e utopia é semelhante mas não é igual. A utopia também surge com o aparecimento das sociedades de classes e se apresenta sob as duas formas acima citadas. O mito surge antes mas se reproduz de forma modificada nas sociedades classistas. O mito, quando propõe uma nova sociedade e realiza a crítica da sociedade existente, assume a forma de utopia, embora por suas características intrínsecas, como demonstraremos mais à frente, somente pode assumir a forma de utopia abstrata. A utopia, assim como a ideologia, possui inúmeras outras formas de se manifestar.
Se recordarmos a definição de mito apresentada anteriormente, veremos como ele se manifesta no mundo moderno. O deslocamento da contradição do homem com a natureza para as contradições sociais cria a necessidade se buscar compreender e controlar principalmente os fenômenos sociais, ao invés, como nas sociedades simples, os fenômenos naturais, neste sentido, o tema dos mitos modernos são “secularizados” e tornam-se sociais. A transformação ou conservação das relações sociais tornam-se produtos da ação social. Se os mitos das sociedades simples personificam os seres da natureza transformando-os em “seres sobrenaturais”, os mitos das sociedades complexas fazem com que essa “natureza personificada”, reconhecida pela “herança cultural”, se materialize em pessoas e/ou grupos sociais. Os mitos, nas sociedades simples, servem como regularizador das relações e ações sociais por serem “modelo exemplar” que se deve reproduzir, seja através de tabus ou rituais[4]. Nas sociedades complexas, os mitos também cumprem o papel de incentivar ações sociais, seja através da prática política ou de rituais.  Os mitos são representações que fundamentam ações sociais e por isso não podem ser analisados isoladamente em sua dimensão simbólica, pois as ações que eles provocam estarão sempre presentes.
Podemos dizer que os mitos na sociedade capitalista foram precedidos por outros nas sociedades de classes pré-capitalistas. Entretanto, como nosso objetivo é tratar dos mitos no mundo moderno, só trataremos dos mitos nas sociedades classistas pré-capitalistas quando contribuírem para compreensão dos “mitos modernos”.
Os mitos no mundo moderno se manifestam tanto como ideologia quanto como utopia abstrata. O exemplo mais típico nesse último caso é o do messianismo. Embora alguns autores coloquem que o messianismo tenha surgido a partir do declínio do mundo feudal (MANNHEIM, 1986), o primeiro movimento messiânico na história foi representado pelo cristianismo primitivo[5]. Mas antes de tratarmos do messianismo no mundo moderno, devemos primeiro defini-lo. Os termos “messias” e “messianismo”. Surgiram a partir dos relatos bíblicos e posteriormente passaram a ser aplicados a outros fenômenos fora da religião cristã e judaica, devido à descoberta dos etnólogos da existência de crenças e figuras messiânicas em sociedades primitivas. Segundo Jean-Pierre Dozon o messianismo tem como aspectos essenciais: “1. negação do mundo presente; 2. espera de um mediador: profeta ou messias; 3. crença no milênio” (DOZON, 1978, p. 13).
A partir dessa definição vemos que o messianismo é uma subcategoria do milenarismo, pois este pode existir sem a figura de um messias. O milenarismo também apresenta uma estrutura mítica, mas geralmente se reproduz no interior de uma seita e tem suas manifestações bastante reduzidas no mundo moderno[6]. O profetismo, segundo Dozon, pode ser considerado uma subcategoria do messianismo, pois o profeta é o mensageiro que anuncia a vinda do messias. Maria Isaura P. De Queiróz diz que Max Weber e P. Alphandery apresentaram uma definição muito próxima de messias: “o messias é alguém enviado por uma divindade para trazer a vitória do bem sobre o mal, ou para corrigir a imperfeição do mundo, permitindo o advento do paraíso terrestre, tratando-se pois de um líder religioso e social” (1976, p. 27).
Portanto, resta saber se podemos definir o messianismo como um mito. Julgamos que sim, pois o messianismo se manifesta, tal como os mitos, sob uma linguagem simbólica que se caracteriza por: a) é considerada verdadeira pelos que a produzem e reproduzem coletivamente; b) realiza a encarnação de um ser ‘sobrenatural’ – tal como definido anteriormente – ou então dota um ser humano de atributos mágicos por ser um enviado dos seres divinos. Entretanto, essa definição é incompleta, pois o mito também é: a) uma representação que busca compreender e explicar o mundo; b) esta representação é provocada por necessidades existenciais e sociais; c) seu objetivo é, ao compreender e explicar o mundo, controla-lo ou se situar diante dele. Consideramos que estes elementos também estão presentes no messianismo. O messianismo também busca compreender e explicar as contradições sociais, pois ele surge em momentos de crise social ou em regiões extremamente empobrecidas, sendo gerado a partir de necessidades existenciais e sociais e seu objetivo é controlar o mundo através da instauração de uma nova “idade de ouro”. As diferenças são evidentes: as representações voltam-se para as contradições sociais, sendo expressão mais destas do que da contradição homem-natureza. E sua atuação sobre o mundo também assume característica de ação política. Outra diferença está em que a personificação de seres da natureza é pressuposta e essa natureza personificada se manifesta através de um homem, o messias que é a encarnação de um ser sobrenatural ou seu “enviado”.
Portanto, o messianismo é uma forma de manifestação de mito. Tanto o mito quanto o messianismo são representações que possuem as mesmas características e as mesmas raízes. O messianismo, no entanto, é também uma mobilização social, manifestação da luta de classes, além de ser uma representação. O mito, nas sociedades simples, produz um conjunto de atividades que lhe são complementares, assim como o messianismo nas sociedades complexas. O mito e o messianismo são mobilizadores, pois são representações que geram ações coletivas. Entretanto, o messianismo é não só um mito, mas uma manifestação deste sob a forma de utopia abstrata. Isto é comprovado pelo seu discurso utópico que propõe a instauração de uma nova sociedade e por isso traz implícita ou explicitamente uma crítica da sociedade existente.
O messianismo surge como uma negação da sociedade existente. Entretanto, existem outras formas de negação da sociedade existente que não utilizam a linguagem mítica. Por isso, para explicarmos o surgimento do messianismo temos que realizar uma análise que supere tanto o reducionismo sociológico (que explica o fenômeno messiânico por razões puramente sociais) quanto o reducionismo religioso (que explica o messianismo por razões puramente religiosas). Ernst Bloch (1973) já dizia que a compreensão da rebelião camponesa liderada por Thomas Münzer, sob a forma de milenarismo, não pode ser proporcionada pelo estudo isolado do aspecto econômico, pois é necessário compreender o contexto cultural em que ele se realizou.
(...) convém olhar as rebeliões camponesas mais profundamente e não só levar em conta o seu aspecto econômico, se se quer realmente apreender, o que então aconteceu e podia acontecer, tem-se de levar necessariamente, em consideração, uma outra coação e um outro apelo, ao lado do choque econômico. Pois o apetite econômico é, aliás, o mais sóbrio e permanente, porém não o motivo mais peculiar da alma humana, sobretudo em exaltados tempos religiosos. Não só vacilantes e livres orientações da vontade, bem como estruturas de sentido espiritual, pelo menos sociologicamente reais e amplamente compreensivas, agem efetivamente sobre o acontecimento econômico, ou ao lado dele. A situação do respectivo modo de produção é já, em si mesmo enquanto desígnio econômico, dependente de conjunto de decisões mais altas e complexas, principalmente de sentido religioso, conforme Max Weber demonstrava; portanto, a economicidade logo se encontra bastante sobrecarregada com superestrutura e, no seu autônomo processo, condiciona e efetiva aparição de conteúdos culturais-religiosos, porém de nenhum modo isolada, por sua parte, deste conteúdo. O que significa que não pode, sozinha, fazê-los eclodir, abstraída de um intercondicionamento, entrelaçado com características nacionais, com sobreviventes ideológicos de anteriores relações econômicas, com a ideologia da sociedade em ascensão, cuja superestrutura se encontrava, pois, em vários aspectos, já mais amadurecida que a econômica, cuja madureza só em seguida ocorria. E, finalmente, existe, percebida pela respectiva classe revolucionária, a influência, a longo prazo, por parte do autônomo processo espiritual-religioso, pelo menos ‘histórico-filosófico’ – com frequência interrompido – enquanto autoeducação do gênero humano” (BLOCH, 1973, p. 47-48)[7].
A partir disto consideramos que o messianismo só pode ser compreendido como expressão das lutas de classes. Acontece que ele é uma expressão específica dessas lutas e para ser compreendido em sua especificidade é necessário compreender aqueles que estão envolvidos nestas contradições e contexto cultural em que eles vivem.
Não tratamos do messianismo na sociedade escravista e na sociedade feudal com suas características particulares, mas apenas de sua manifestação na sociedade moderna. O messianismo surge como produto das contradições sociais, seja a miséria e a destruição do mundo rural tradicional, seja a opressão colonial (principalmente no caso da África) e revela a necessidade sentida pelas classes exploradas de lutar por mudanças sociais. Essa luta por mudanças sociais é realizada muitas vezes inintencionalmente e é esse caráter inintencional que revela suas limitações políticas e faz com que ele não ultrapasse o nível da utopia abstrata.
A penetração do modo de produção capitalista em nações ou regiões pré-capitalistas ou não-capitalistas destrói relações sociais tradicionais e traz a resposta das classes exploradas sob a forma de messianismo[8]. Portanto, um dos motivos fundamentais do surgimento dos movimentos messiânicos é a desestruturação de relações sociais tradicionais pela expansão capitalista. Tal expansão se caracteriza pela subordinação de modos de produção pré-capitalistas ou não-capitalistas às suas necessidades. Os modos de produção pré-capitalistas são aqueles que são anteriores ao capitalismo (escravismo, feudalismo, modo de produção tributário, etc.) enquanto que os não-capitalistas são aqueles que surgem simultaneamente com o capitalismo (por exemplo, modo de produção camponês e o artesão) e se caracterizam por serem subordinados a ele. A penetração capitalista em modos de produção pré-capitalistas ocorre apenas a nível nacional e somente após isto é com a formação do predomínio do capitalismo juntamente com a formação de modos de produção não-capitalistas é que há a penetração sobre estes últimos, o que leva, com o desenvolvimento capitalista, à sua destruição. Portanto, podemos dizer que o capitalismo só cria relações de produção tipicamente capitalistas e a produção de relações de produção não-capitalistas é produto do contato entre capitalismo e pré-capitalismo ou passagem deste para aquele[9]. O messianismo como produto do primeiro caso ocorre principalmente em países africanos e como produto do segundo caso em países como o Brasil.
O fenômeno messiânico não surge somente da expansão capitalista, mas também da formação cultural de onde ele emerge. O cristianismo primitivo surgiu como uma apropriação/assimilação cultural das mitologias anteriormente existentes realizada pelo povo judeu. O messianismo africano das classes exploradas se caracteriza por ser uma apropriação cultural feita por estas do cristianismo do colonizador e das mitologias africanas, criando, assim, o sincretismo messiânico. São os agentes histórico-concretos, as classes sociais, que, partindo de suas condições reais de existência que assimilam os elementos culturais existentes para satisfazerem suas necessidades e interesses. Esse processo de assimilação é um processo cultural comum, pois é a partir das necessidades e cultura já existente que se interpreta e produz novas representações.
É por isso que no período de crise da sociedade feudal todas as mobilizações sociais contestatórias assumiam uma linguagem religiosa e herética. Os camponeses conviviam com a desarticulação do modo de produção feudal e a formação do capitalismo e sofriam as consequências sociais da ascensão do domínio do capital e do predomínio do mundo urbano e mercantil. A forma dominante da ideologia dominante era a teologia e era esta, portanto, que servia de referencial cultural para os camponeses lutarem pela sua emancipação. Foi por isto que Engels afirmou que no mundo feudal “todas as doutrinas revolucionárias sociais e políticas tinham de ser ao mesmo tempo e principalmente heresias teológicas” (ENGELS, 1978).
Vejamos o exemplo do messianismo brasileiro expresso no caso de Canudos e Contestado. Em ambos os casos havia uma desestruturação das sociedades tradicionais e esta atingia as classes sociais mais empobrecidas tanto destruindo seu modo de vida tradicional quanto criando uma situação social insuportável para elas. O conflito de terras, a pobreza, as dificuldades para sobrevivência, que se agravaram depois da proclamação da república, fizeram com que os camponeses identificassem a “República dos Coronéis” como o reino do mal e por isso uma volta à monarquia era tida como um retorno ao reino do bem. A penetração capitalista durante a república dos coronéis acirrou as lutas de classes expressas na luta pela terra, provocando as rebeliões camponesas (MARTINS, 1986; QUEIRÓZ, 1977).
Entretanto, isso, por si só, não explica por qual motivo a classe camponesa reagiu diante desta situação usando uma linguagem mítica. É preciso, para compreendermos isto, conhecermos a formação cultural predominante no campo brasileiro nesta época. Neste, o que predominava era a cultura rústica[10]. A base cultural do messianismo brasileiro era o “catolicismo rústico” (MONTEIRO, 1982). As classes exploradas retiram do universo cultural existente, no caso, do catolicismo rústico, os elementos culturais e os re-elabora fazendo uma assimilação dele para satisfazer suas necessidades, produzindo assim o messianismo.
Portanto, o messianismo de Canudos e Contestado são produtos da expansão capitalista no campo e em regiões não-capitalistas e da assimilação cultural que as classes exploradas realizam do catolicismo rústico para compreenderem e explicarem sua realidade e a partir disto agirem diante das transformações sociais que lhes atingiam. A volta da “monarquia”, ou seja, do reino onde predomina a “Lei do Céu”, em substituição à “República”, onde predomina a “Lei do Diabo”, é a proposta de uma nova “idade de ouro”, com a implantação do “igualitarismo comunitário”.
Os mitos no mundo moderno também se manifestam sob a forma de ideologia. Vamos retomar, então, a discussão sobre ideologia e utopia, mas agora como formas de manifestação do mito. O mito como utopia abstrata é um produto principalmente das classes exploradas enquanto que sob a forma de ideologia é um produto das classes auxiliares da burguesia e em momentos de crise recebem o apoio da classe dominante e tornam-se consolidados socialmente. Outra diferença se encontra no fato de que, como utopia abstrata, o mito coloca a ênfase na construção de uma nova sociedade e na ação do enviado da divindade que representa o bem enquanto que o mito como ideologia coloca a ênfase no combate àqueles que representam o mal para proteger a sociedade existente de suas ações maléficas. Outra diferença substancial encontra-se no fato de que o mito enquanto utopia se manifesta principalmente em regiões subordinadas ou colonizadas, surgindo como negação desta situação, mas o mito como ideologia surge nas regiões dominantes e colonizadoras. Todas essas diferenças podem ser sintetizadas em uma só: o mito como utopia é uma assimilação cultural das classes exploradas da cultura existente para satisfazer suas necessidades e interesses e o mito como ideologia é uma assimilação cultural da burguesia e suas classes auxiliares.
Uma das manifestações do mito na sociedade capitalista sob a forma de ideologia é o antissemitismo. O que é o antissemitismo? Antes de responder a esta pergunta é necessário responder outra: o que é semita? Semitas são os “descendentes de Sem”, um dos filhos de Noé, que depois do dilúvio teriam povoado a Ásia, assim como os filhos de Cam povoaram a África e os de Japmet a Europa. Isto, obviamente, é uma crença popular que nem mesmo é coerente com a genealogia bíblica. Nesse sentido, é melhor buscar uma definição melhor fundamentada:
A palavra foi criada em 1781 pelo filósofo alemão Schözer para designar um grupo de línguas que constitui uma família, de parentesco evidente, e comparável ao grupo indo-europeu, a que pertencem idiomas tão diversos como o latim, o alemão, o russo e o sânscrito. As principais línguas semitas são o árabe, o hebraico, o aramaico (ainda falado hoje por uns poucos milhares de indivíduos), além das mortas, como o acadiano ou babilônico e o assírio, usadas nos antigos documentos cuneiformes (MORAIS, 1972, p. 45).
Portanto, a palavra semita não possui conotação racial, pois parentesco linguístico não implica parentesco racial. Além disso, os que falam a língua semita pertencem à raças diferentes. Apesar de uma grande diversidade de concepções sobre raças e quantidade de raças, a que é mais próxima da realidade é a que reconhece a existência de apenas três raças: a negroide, a mongoloide e a caucasoide (LEWIS, 1968; VIANA, 2009a; VIANA, 2009b) demais concepções fazem proliferar uma grande quantidade de raças, que, no entanto, dificilmente são sustentáveis. 
Portanto, por tudo que foi visto é pouco convincente pensar na existência de uma “raça semita”. Resta saber, nesse caso, qual é o sentido da palavra antissemitismo. Segundo Vamberto Morais (1972), tal palavra é um “eufemismo incorreto” que busca dar uma “fachada respeitável” ao antijudaísmo. Por isso, a pergunta correta é a seguinte: o que é o judaísmo? Ele era uma religião unitária que se dividiu em duas outras: a dos judeus rabínicos e a dos judeus cristãos. Os primeiros mantiveram as suas crenças originárias intactas enquanto que os outros se tornaram cristãos, ou seja, passaram a defender que o messias – Jesus Cristo – já havia surgido e que teria morrido para salvar a humanidade (MARGULIES, 1976). Os judeus, inclusive, serão acusados de serem responsáveis pela morte de Cristo. Em poucas palavras, o antissemitismo é o antijudaísmo e o judaísmo é uma religião de um povo que se dispersou pelo mundo e sofreu diversas mudanças no decorrer de sua longa história.
A origem histórica do antissemitismo se encontra na separação entre judeus e cristãos. Além da divergência sobre a vinda ou não de Cristo, eles se separavam porque o judaísmo se caracterizava por ser um messianismo nacional e o cristianismo um messianismo social. Por isso, os judeus continuaram combatendo o império romano enquanto que os cristão defendiam a tese do “daí a César o que é de César”, pregando um messianismo universalista que não se opunha, diretamente, a Roma. Os cristãos acusavam os judeus de “deicídio”: “a culpa pelo sangue de Cristo cairá sobre todos os descendentes do povo deicida (Mateus, 27, 25), que se assemelhará ao Diabo (João, 8, 44)” (MARGULIES, 1976). Com a integração do cristianismo na sociedade feudal, o judaísmo se tornou ainda mais marginalizado e acabou sendo, em muitos casos, perseguido pela Igreja Católica e os judeus passaram a ser relegados a guetos, de acordo com os interesses dos senhores feudais.
Mas o nosso interesse é no antissemitismo na sociedade moderna. O antissemitismo vem para compreender e explicar as razões das tensões sociais, das crises sociais e financeiras, das dificuldades das classes sociais subsidiárias, e, como em todo mito, a partir deste “saber”, busca controlar ou se situar diante da situação existente. As necessidades que levam os seres humanos a adotar essa visão da realidade é o sentimento de insegurança e impotência de determinadas classes diante da crise social e financeira e o temor da burguesia em relação ao proletariado. Tal compreensão e explicação do mundo são consideradas “verdadeiras” pela coletividade que a produz e reproduz, ou seja, os antissemitas. O antissemitismo busca concentrar o mal nos judeus. No fundo, eles criam um inimigo imaginário (VIANA, 2007a; VIANA, 2009a). A “conspiração judaica” para dominar o mundo é apresentada como obra dos “judeus capitalistas” ou dos “judeus comunistas”. Claro que isto é bastante confuso e ambíguo. Segundo Jean-Paul Sartre:
Para o antissemita, o que faz o judeu é a presença nele da judiaria, princípio judeu análogo ao Flogístico ou à virtude dormitiva do ópio. Não nos iludamos: as explicações pela hereditariedade e pela raça apareceram mais tarde, são como o tênue revestimento científico desta convicção primitiva; muito antes de Mendel e Gobineau, existia o horror ao judeu e os que o experimentavam não poderia explicá-lo senão dizendo, como Montaigne dizia de sua amizade por La Boetie: ‘porque é ele, porque sou eu’. Sem esta virtude metafísica, as atividades atribuídas ao judeu seriam rigorosamente incompreensíveis. De fato, como conceber a obstinada loucura de um rico comerciante judeu que deveria, se fosse razoável, almejar a prosperidade do país onde comercia e que, segundo nos afiançam, se encarniça em arruiná-lo? Como compreender o internacionalismo nefasto de homens cujas famílias, afetos, costumes, interesses, natureza e fonte de suas fortunas deveriam ligá-lo ao destino de um país particular? Os hábeis falam de uma vontade judaica de dominar o mundo: mas ainda aqui, se não possuirmos a chave, as manifestações desta vontade correm o risco de nos parecer ininteligíveis; pois, ora nos apontam atrás do judeu, o capitalismo internacional, o imperialismo dos trustes e dos traficantes de canhões, ora o bolchevismo, com seu punhal entre os dentes, e não se vacila em tornar igualmente responsáveis pelo comunismo os banqueiros israelitas, a quem deveriam horrorizar, e pelo capitalismo imperialista, os judeus miseráveis que povoam a Rue des Rosiers. Mas tudo se esclarece se dispensarmos o judeu de uma conduta racional e conforme com seus interesses, se discernirmos nele, ao contrário, um princípio metafísico que o impele a praticar o mal em todas as circunstâncias, ainda que para tanto deva destruir-se a si mesmo. Este princípio, não resta a menor dúvida, é mágico: de um lado, é uma essência, uma forma substancial, e ao judeu, faça o que fizer, não é dado modificá-la, assim como o fogo não pode impedir-se de arder. E, de outro, como é necessário que se possa odiar os judeus e como não se detesta um tremor de terra ou a filoxera, esta virtude é também liberdade. Só que a liberdade em questão é cuidadosamente limitada: o judeu é livre para praticar o mal, não o bem, pois dispõe de livre arbítrio suficiente apenas para arcar com a plena responsabilidade dos crimes que comete, mas não o bastante para que possa reformar-se. Estranha liberdade que, em vez de preceder a essência, lhe permanece inteiramente submetida, que não passa de uma qualidade irracional e continua sendo, não obstante, liberdade. Só há uma criatura, que eu conheça, tão absolutamente livre e acorrentada ao Mal: é  o próprio Espírito do Mal, é Satã. Destarte, o judeu é assimilado ao espírito maligno (SARTRE, 1960, p. 25-26).
O antissemitismo inverte a realidade ao produzir um inimigo imaginário e responsabilizá-lo pelos males que afetam a sociedade. Assim, ofusca a percepção das verdadeiras determinações dos fenômenos e da crise social e a concentra num grupo social específico: os judeus. A culpabilidade coletiva dos judeus pelos problemas sociais é uma inversão da realidade e se organiza sob forma sistemática, ou seja, é uma ideologia, e se manifesta sob uma linguagem mítica.
É preciso entender como o antissemitismo é reproduzido no mundo moderno. As contradições do modo de produção capitalista faz com ele viva constantes “crises cíclicas” e estas criam uma situação de insegurança social. O antissemitismo tem nas classes privilegiadas e algumas outras que ficam entre a burguesia e o proletariado, os seus produtores e reprodutores, mas, como o acirramento das lutas de classes, a burguesia se utiliza dessa ideologia para combater o “perigo da revolução”. A competição social, elemento fundamental da sociabilidade capitalista (VIANA, 2008) é outra razão para que as classes ameaçadas pela crise reproduzirem o antissemitismo, pois assim permite encontrar setores da sociedade que podem ser chamados de “inferiores” que lhe possibilita se sentir “superior”, para compensar o sentimento de inferioridade em relação à burguesia. Sartre, tratando da relação entre antissemitismo e as classes que ficam entre a burguesia e o proletariado, afirma:
Parece, com efeito, que a maioria dos ricos utiliza esta paixão mais do que se lhes entrega: tem mais o que fazer. Propaga-se comumente pelas classes médias, precisamente porque não possuem terra, nem castelos, nem casas, mas apenas dinheiro líquido e algumas ações no banco, não foi por acaso que a pequena burguesia alemã de 1925 era antissemita. A principal preocupação deste ‘proletariado de colarinho postiço’ era distinguir-se do autêntico proletariado. Arruinado pela grande indústria, ridicularizado pelos junkers, dedicava todo o coração ao junkers e aos grandes industriais. Entregou-se ao antissemitismo com o mesmo calor que usava roupas burguesas: porque os operários eram internacionalistas, porque os junkers possuíam a Alemanha e ele também queria possuí-la (SARTRE, 1960, p. 17-18).
Karl Marx dizia que uma classe social que busca se tornar uma “nova classe dominante” deve concentrar todas as falhas da sociedade numa outra classe social (1968). Acontece que a classe dominante busca, também, concentrar o mal em alguns setores da sociedade para que esta seja responsabilizada pela situação de crise social e/ou financeira e com isso tenta evitar a revolta contra o conjunto das relações sociais que ela mesma é representante. Por isso, a classe dominante utiliza a ideologia antissemita, e não só ela, para criar o inimigo imaginário[11] e busca jogar o resto da sociedade contra os “culpados” pela situação social indesejável. A burguesia se utiliza deste artifício de forma consciente ou nao-consciente, pois ela tem que evitar o re-conhecimento da histórias e das lutas de classes. Tal como demonstrou Lukács (1989), a “consciência possível” da burguesia nao pode ultrapassar certos limites e re-conhecer as lutas de classes e a historicidade do capitalismo seria re-conhecer o seu próprio fim enquanto classe social, o que só ocorre com indivíduos no interior da classe, mas não no seu conjunto ou maioria, muito menos nos seus representantes ideológicos.
Entretanto, a escolha do grupo específico que será a “vítima” da ação repressora só pode se realizar a partir de dois pressupostos: a) é preciso que exista um grupo social que seja diferenciado em relação ao resto da sociedade; b) é preciso que haja uma tradição cultural que já alimente preconceitos contra tal grupo. Em determinadas sociedades e períodos históricos é possível utilizar como inimigos imaginários mais de um grupo social (na Alemanha nazista, o alvo principal eram os judeus, mas também se visava os homossexuais e os comunistas). Não deixa de ser esclarecedor, nesse sentido, que o neonazismo no Brasil, na falta de judeus e de uma forte tradição antissemita, coloque como inimigos imaginários os negros, os homossexuais e os nordestinos. O antissemitismo na Alemanha tinha toda uma tradição cultural de preconceito contra os judeus e foi isto que possibilitou, juntamente com outras determinações, tal como a crise financeira e social, a ascensão do nazismo.
Portanto, chegamos à conclusão de que existem mitos no mundo moderno e que eles se manifestam tanto como utopia abstrata quanto como ideologia. Claro que neste último caso, segundo o exemplo do antissemitismo, ele se apresenta “disfarçado” como “ciência”, tal como no caso do nazismo que prega a “superioridade” da “raça ariana” e a inferioridade dos judeus como justificativa para a “solução final” (extermínio) usando discurso pseudocientífico. Entretanto, nem os “arianos”, nem os “judeus” podem ser considerados uma “raça” e o mecanismo do pensamento antissemita, tal como demonstrou Sartre, é mítico. O mito, de representação inocente e homogênea nas sociedades simples, passa a ser, nas sociedades de classes, uma representação libertária ou conservadora do mundo existente, expressando uma ou outra classe social existente. Em síntese, o mito como ideologia é uma manifestação geralmente das classes privilegiadas ou que estão entre a burguesia e o proletariado e o mito como utopia é expressão das classes exploradas e essa diferença dos produtores dessas formas de mito também mostra a diferença de perspectiva e objetivo, sendo uma concepção contestadora ou conservadora.

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[1] Sem dúvida, existem diversas outras abordagens do mito, mas não julgamos necessário citar todas elas. Para uma análise crítica destas quatro abordagens do mito, cf. Viana (2011).
[2] “As religiões e as mitologias dos povos são produtos da razão que se torna consciente. Embora pareçam ainda tão insuficientes, tão pueris, contudo contém o momento da razão; o instinto da racionalidade as fundamenta” (HEGEL, 1980, p. 112). Para Hegel, a mitologia é produto da “razão fantasiadora”. No entanto, isto só pode ser afirmado partindo do ponto de vista de nossa sociedade, que tem outro referencial, caracterizada por possuir uma relação diferente com a natureza e relações sociais também distintas e que por isso a mitologia aparece como equivalente da “fantasia”. Portanto, a mitologia não é produto da “razão fantasiadora” e sim da razão, só que esta trabalhando a partir de outro referencial.
[3] Por “mundo moderno” entendemos as sociedades em que predomina o modo de produção capitalista, ou seja, capitalismo e modernidade são uma única e mesma coisa.
[4] Georges Sorel, utilizando-se da distinção bergsoniana do “eu superficial” (resultado da adaptação mecânica ao mundo exterior) e do “eu profundo” (que age livremente, de modo criador), coloca que o mito é a tradução em imagens do “eu profundo” das massas e por isso as tornam protagonistas de uma transformação radical. Portanto, o mito com sua linguagem simbólica é “mobilizador” e gera ações sociais. apesar do acerto dessa colocação, Sorel apresenta uma concepção, em alguns aspectos, equivocada do mito e por isso pode julgar a “greve geral” como um mito (cf. PAOLA, 1984).
[5] Sobre o caráter messiânico e utópico do cristianismo primitivo existe uma ampla bibliografia (LUXEMBURGO, 1986; FROMM, 1986; HOUTART, 1982). Sobre a integração do cristianismo na sociedade feudal há também uma ampla bibliografia (LUXEMBURGO, 1986; MANNHEIM, 1972; DOZON, 1978) e sobre o caráter utópico da doutrina cristã no antigo testamento há a obra de Fromm (1988).
[6] Sobre o milenarismo, o pré-milenarismo e o pós-milenarismo é interessante a leitura de Dozon (1978), Queiróz (1976); Hobsbawn (1978).
[7] A ideia geral de Bloch está correta, apesar de sua linguagem carregar problemas (economia, supesrestrutura, etc.), mas é importante para questionar o economicismo, tal como outros fizeram, especialmente Korsch (1977) e Pannekoek (1978).
[8] O messianismo nem sempre é uma resposta apenas das classes exploradas quando a penetração capitalista se dá em nações, pois as elites locais podem se utilizar da religiosidade popular para romper com o pacto colonial e implantar sua própria dominação, tal como no exemplo do kimbaguismo na África (DOZON, 1978).
[9] Isso entra em visível contraposição com a concepção de José de Sousa Martins, que defende a tese da “produção capitalista de relações de produção não-capitalistas”, inspirado em Rosa Luxemburgo, pois, em nossa concepção, a produção capitalista se expande sobre relações de produção já existentes e tornar o resultado desse contato como produto exclusivo do capitalismo é um equívoco (cf. MARTINS, 1985).
[10] Sobre o conceito de “cultura rústica”, cf. Queiróz (1976).
[11] Em termos populares, também usado na psicologia, o inimigo imaginário é chamado de “bode expiatório”, mas também de “inimigo objetivo”, na expressão de Hannah Arendt (1975). O termo “inimigo imaginário” é utilizado por Viana (2007a) e Agacinski (1991). Para uma análise crítica da concepção de “bode expiatório” e “inimigo objetivo”, cf. Viana (2007a). 
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Publicado originalmente em:
http://www.saps.com.br/sites/estacio/downloads/revista/revista08_humanas-14.pdf
VIANA, Nildo. Mito, Ideologia e Utopia. CIÊNCIAS HUMANAS FACULDADE ESTÁCIO DE SÁ GOIÁS – FESGO VOLUME 02, n. 09, Jul. 2013/Jan. 2014.

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