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terça-feira, 8 de dezembro de 2015

A MERCANTILIZAÇÃO DO LAZER


A MERCANTILIZAÇÃO DO LAZER
Nildo Viana

A sociedade moderna produz um processo de expansão da divisão social do trabalho e uma generalização do assalariamento que faz emergir a preocupação com o “lazer”. No entanto, com o desenvolvimento capitalista, o lazer é cada vez mais absorvido pela dinâmica do capital. Um dos elementos fundamentais desse processo é a mercantilização do lazer, tema que nos deteremos aqui. Para tanto, é necessário explicitar o conceito de lazer e o processo de transformação do capitalismo e seu impacto sobre ele, observando, assim, o processo de crescente mercantilização do lazer.
O Conceito de Lazer
A definição do que é lazer não é consensual. Alguns partem da oposição entre tempo de trabalho e tempo livre, o que é ilusório, pois existem outros aspectos da vida que não podem se restringir a estes dois. Sem dúvida, existe o tempo de trabalho, mas nem tudo que está além dele é “tempo livre” e muito menos poderia ser considerado “lazer”. O trabalho produz e condiciona diversas outras atividades associadas a ele. O tempo gasto em transporte para o trabalho, cursos e outras exigências de formação e qualificação, atividades do trabalho executadas em casa são exemplos disso que podemos chamar, retomando Jofre Dumazedier (1994), de “para-trabalho”, apesar de considerar que tal termo se refere a outras atividades. Da mesma forma, existem diversas obrigações sociais (civis, familiares, comunitárias, etc.) que não se constituem como tempo livre ou lazer, tais como o pagamento de prestações, dívidas e despesas cotidianas, atividades domésticas, participação em processo eleitoral, compras, levar as crianças à escola (e outras atividades relacionadas: reuniões, matrícula, etc.).
É possível pensar que, uma vez excluído o tempo de trabalho, o tempo de para-trabalho e o tempo dedicado às obrigações sociais, estamos diante do resto do tempo de forma livre. Ledo engano, pois precisamos ainda de acrescentar o tempo gasto para a satisfação das necessidades básicas: alimentação (almoço, jantar, etc.), sono, higiene, etc. Se um trabalhador gasta diariamente oito horas de trabalho, mais duas de para-trabalho (transporte, por exemplo), mais uma hora paras as obrigações sociais, já temos onze horas diárias[1]. Ao somar isso com as atividades voltadas para a satisfação das necessidades básicas, que pode girar em torno de dez horas (oito para dormir, por exemplo), temos dezenove horas. Restam cinco horas diárias.
Obviamente que isto varia de acordo com o indivíduo e suas condições de vida (distância entre local de trabalho e local de moradia, meio de transporte utilizado, etc.), época (cursos de qualificação são realizados em determinados períodos, mas nem sempre, e sua duração é variável), tipo de trabalho específico (um professor pesquisador leva muito mais trabalho para casa do que uma secretária), classe social (que tem repercussão sobre todo o resto), etc. Nos fins de semana há muito mais tempo, pois ocorre uma redução drástica do tempo de trabalho (para alguns é inexistente) e do para-trabalho, e mais ainda nas férias.
As cinco horas diárias que restaram podem, então, ser chamadas de tempo de “lazer” ou “tempo livre”? A resposta vai depender do significado atribuído a estas palavras. A etimologia das palavras ajuda a entender o processo de constituição histórica das mesmas, mas nem sempre o seu significado que muda com as mudanças sociais e históricas. Vamos começar pela etimologia para chegar ao seu significado atual. A palavra lazer tem sua origem no latim, especialmente nas palavras licere e licet e significava algo “lícito”, “ter o direito”, “permitido”, “poder” (GOMES, 2008). O significado da palavra mudou muito com o processo histórico e hoje adquire novos significados.
Na nossa concepção, lazer significa um conjunto de atividades de recreação. A recreação também tem origem no latim, recreatio, e quer dizer recriação. Remete ao recreio, a busca da diversão, distração. É por isso que nas escolas há o momento de recreio para as crianças, pois nele elas podem se divertir e distrair, já que o ensino, assim como o trabalho, requer concentração. A recreação significa o processo no qual os indivíduos podem descansar mentalmente se distraindo de suas atividades laborais, educacionais, obrigatórias. Nesse sentido, é algo espontâneo. Este é o sentido que a maioria das pessoas atribui ao termo “lazer”. Por isto consideramos que este é composto por momentos e atividades de recreação. Inclusive a sua função, como alguns colocam, é renovar a força de trabalho ou todo aquele submetido a atividades cansativas, desgastantes, que exigem certa concentração mental e/ou esforço físico.
Contudo, além do lazer, existem as atividades criadoras, nas quais o ser humano desenvolve suas potencialidades e sua criatividade. Essa distinção é importante para percebermos que tornar equivalente lazer e tempo livre é um equívoco. Só teria sentido se fosse entendido como “livre de” e não como “livre para” (FROMM, 1981). Nessas cinco horas o trabalhador pode estar livre do trabalho alienado e das outras atividades sociais, mas não para desenvolver suas potencialidades e criatividade[2]. A fusão entre lazer e criatividade é bastante rara, principalmente com o desenvolvimento da modernidade, e por isso é possível distinguir entre o lazer como momentos e atividades de recreação, tempo liberado de outras atividades, e práxis[3], momentos de atividades criadoras.
A atividade criativa pressupõe que ela seja teleológica, ou seja, que sua razão de ser seja uma finalidade conscientemente estabelecida pelo indivíduo (ou grupo) e que a atividade desenvolva alguma potencialidade humana. Isso pode ocorrer sob a forma individual (o que predomina na sociedade capitalista) ou através de uma associação com outros seres humanos. Marx, utilizando outras palavras, já havia feito tal distinção:
Economizar tempo de trabalho é aumentar o tempo livre, isto é o tempo que serve ao desenvolvimento completo do indivíduo. O tempo livre para a distração, assim como para as atividades superiores, transformará naturalmente quem dele tira proveito num indivíduo diferente (Apud. DUMAZEDIER, 1994, p. 47).
Claro que na época de Marx, o lazer ainda não tinha sido usurpado pelo capital e por isso ainda era possível pensar que seria “tempo livre”. De qualquer forma, Marx não pensava na sociedade capitalista e sim em sua superação e por isso não havia o significado que tem no capitalismo, muito menos nos dias atuais.
Essa distinção entra em contradição com algumas definições de lazer, segundo as quais lazer e imposição são coisas opostas:
‘recreação’ é um termo frequentemente utilizado para designar algo semelhante ao lazer. A recreação sempre indica algum tipo de atividade e, como o lazer e o jogo, não possui uma forma única. Em seu sentido literal (re-criação), pode ser visto como uma das funções do lazer: a de renovar o ego ou de preparar para o trabalho. Esse elemento da recreação é o que mais a recomenda àqueles que desaprovam o lazer ‘inútil’ ou ‘dissipado’, uma atitude sem dúvida bem retratada na expressão ‘recreação sadia’. Mas é também esse elemento carregado de valores que tem levado os críticos a comparar desfavoravelmente a recreação ao lazer. Assim, Thelma McCormack escreve: ‘a recreação é um sistema de controle social e, como todos os sistemas de controle social, é até certo ponto manipulável, coercivo e doutrinador. O lazer não é nada disso’ (PARKER, 1978, p. 23).
No entanto, esse tipo de posição, além de não fundamentada, confunde o lazer real, concreto, com sua projeção ideal, o que pensa que deveria ser ao invés do que efetivamente é. Também abstrai que existem formas de recreação mais ou menos controladas e outras fora do controle, ou seja, não é sua característica e sim condições sociais que promovem a sua organização heterogerida. Essa idealização do lazer provoca o ocultamento do seu verdadeiro caráter. Na verdade, o lazer, nessas abordagens, é uma abstração metafísica, pois o seu processo de constituição social e seu vínculo com a sociedade em geral são ofuscados. Porém, existem abordagens mais adequadas para o entendimento do lazer, pois este, apesar de ter menos controle, não é “uma escolha ou construção livre”:
Alguns autores chegam a dar ao lazer, como sinônimo, a expressão tempo livre. É um traçado plano, achatado. O conteúdo do tempo de lazer permanece sujeito a uma série de circunstâncias sociais, culturais, econômicas, ideológicas e físicas, da mesma forma que a qualidade ou a força de trabalho que se vende ou se troca. O lazer será possível de acordo com a capacidade de consumo e com a posição ocupada na estrutura social, conforme o capital escolar e as experiências vividas no processo de socialização, de acordo com hábitos adquiridos ou predisposições psíquicas. Dada a sua natureza duplamente subtrativa – do tempo produtivo e do tempo residual ou complementar –, o lazer permanece como categoria interna da economia política, sendo gerado e apropriado em decorrência das mesmas relações sociais. É por isso que ele traduz – à sua maneira – as esferas da produção, da distribuição, da troca e do consumo. Suas formas individuais e coletivas não surgem nem são vividas, a não ser como emanações da própria economia política.  É por essa razão que as classes de uma sociedade praticam lazeres diferenciados, seja em relação à forma, ao conteúdo, ao seu grau ou intensidade – mesmo naqueles países com menores disparidades de renda e desequilíbrios sociais. E quanto mais acentuada a hierarquia de classes, maiores se apresentam as distinções do tempo e das atividades de lazer (CUNHA, 1977, p. 19-20).
Nesse sentido, o lazer deve ser entendido como o conjunto de atividades recreativas desenvolvidas pelos indivíduos e que são realizadas num tempo residual após o trabalho alienado e outras atividades (para-trabalho, obrigações sociais). O lazer existe em relação com o trabalho alienado, que é um trabalho heterogerido e alheado (MARX, 1983; VIANA, 2012)[4]. Ele é um complemento dele ao promover um alívio e recuperação de forças para voltar a exercê-lo, tal como diversos pesquisadores perceberam (VEGA, 1979; KRINPPENDORF, 2001). A distinção entre trabalho (alienado), para-trabalho, obrigações sociais e lazer é produto da sociedade capitalista, pois ela amplia a divisão social do trabalho e submete o indivíduo a elas (como especialista e como indivíduo submetido a diversas outras especializações de outros indivíduos). Além desses itens, poderíamos acrescentar a práxis, que não é realizada por todos os indivíduos e é marginal na vida de quem a concretiza, mas, no processo de luta pela transformação social, se amplia e com a superação do capitalismo, reunifica em si tudo que foi dividido pelo capitalismo, abolindo tais distinções.
O conceito de lazer aqui apresentado é mais restrito do que outros, pois sua ampliação acaba ofuscando seu real significado. Pensar em “três funções do lazer”, que englobaria a função de descanso; a função de divertimento/recreação/entretenimento e a função de desenvolvimento, como faz Dumazedier (1976) é confundir e fundir o que é separado. O descanso e repouso faz parte da satisfação de necessidades básicas e significa mais inatividade do que atividade, e o lazer aqui e em grande parte das abordagens é algo ativo e não mero ócio (outra palavra com vários significados e que varia com o idioma). O desenvolvimento, nesse caso, pode ser entendido sob forma marxista, sendo práxis, ou sob forma útil para o trabalho alienado, mera formação e qualificação da força de trabalho (para-trabalho). Em nenhum dos dois casos isso pode ser considerado lazer, já que exige esforço, concentração e outros aspectos presentes em atividades produtivas e criativas, sendo distinto do lazer. Claro que para o aparato estatal e o capital é interessante colocar as atividades de formação e qualificação da força de trabalho como lazer, pois isso significa apresentar o para-trabalho como sendo não-trabalho.
Em síntese, o lazer é um produto da sociedade moderna (DUMAZEDIER, 1979). Isso não quer dizer que não havia formas de distração e atividades lúdicas em sociedades pré-capitalistas, mas que o lazer é a forma específica que assume na nossa sociedade. Isto é coerente com o princípio da “especificidade histórica”, característica do materialismo histórico (MARX e ENGELS, 1991; MARX, 1989) e enfatizado por Korsch (KORSCH, 1983; VIANA, 2013).
Desenvolvimento Capitalista e Mercantilização do Lazer
O lazer não é sempre o mesmo, pois, embora mantenha o seu caráter essencial, ele sofre alterações formais no decorrer da história do capitalismo. Da mesma forma, a mercantilização é um processo que acompanha o desenvolvimento capitalista[5], tal como outros, e sua ampliação pode ser interpretada como determinadas ondas que se acrescentam às anteriores. Assim, a cada regime de acumulação uma nova onda de mercantilização (e burocratização) ocorre, o que mostra o seu vínculo indissolúvel com o desenvolvimento capitalista. O mesmo ocorre com o lazer, pois ele é atingido nesse processo e quanto mais intenso é o processo de mercantilização, mais ele se torna mercantilizado (e o mesmo vale para a burocratização, que não é nosso foco aqui).
O lazer na sociedade moderna tem a sua primeira manifestação, sob forma embrionária, a partir do século 16. Essas formas embrionárias de lazer ocorriam por já estar esboçado o modo de produção capitalista, através da produção manufatureira, e por já ter um processo de mercantilização crescente das relações sociais e as classes privilegiadas poderem adquirir o que posteriormente seria chamado de lazer. É nesse contexto, por exemplo, que a aristocracia fazia viagens, esboçando o que posteriormente seria o turismo. Essa é uma época de formação do capitalismo, na qual o capital comercial oferecia a primazia para o capital manufatureiro (MARX, 1988; VIANA, 2003). A expansão comercial era o elemento mais visível de todo esse processo marcado pelo que Marx denominou “acumulação primitiva de capital”.
A acumulação capitalista propriamente dita passa a predominar com a chamada “Revolução Industrial”. O desenvolvimento capitalista é marcado pela sucessão de diversos regimes de acumulação (VIANA, 2009; VIANA, 2003) e é nessa época que passa a predominar o regime de acumulação extensivo, com longas jornadas de trabalho e alto grau de extração de mais-valor absoluto. Da mesma forma, o Estado liberal e o neocolonialismo são outros elementos que caracterizam tal regime de acumulação (VIANA, 2009; VIANA, 2003). O lazer, nesse contexto, passa a ser privilégio da burguesia e de outras classes privilegiadas, mas não se constitui ainda da forma mais acabada, sendo outra forma embrionária.
Sem dúvida, a classe operária e outras classes desprivilegiadas também criavam suas formas de recreação, apesar de serem distintas das formas das classes privilegiadas e, no caso do proletariado, ocupar pequena parte de sua vida cotidiana. Tratavam-se de formas variadas, algumas não-mercantilizadas e outras mercantilizadas. É o caso das festas, principalmente no caso de determinadas regiões, especialmente nas rurais, e da taberna, no caso do proletariado urbano. Marx já colocava que a taberna era apenas um pretexto para uma reunião dos operários (MARX, 1989). Segundo Engels, o mestre que ensinava na escola pública já afirmava que “gente vulgar vai aos bares e gente de bem vai aos clubes” e como ele esteve em ambos afirma que pode “testemunhar a veracidade destas propostas” (ENGELS, 1979, p. 26). Claro que a “gente vulgar” remete ao proletariado e a “gente de bem” se refere à burguesia, e, em ambos os casos, às classes mais próximas (classes desprivilegiadas e privilegiadas, respectivamente). Os bares e os clubes revelam diferenças sociais das classes e do lazer.
A passagem para o regime de acumulação intensivo, marcada pela redução da jornada de trabalho, abre um espaço para maior desenvolvimento do lazer, mas muitas vezes sem o domínio do capital sobre o mesmo. Esse é o caso do piquenique e do futebol de várzea no Brasil no início do século 20. Contudo, há uma mutação que ocorre no Brasil sob forma específica e um pouco posterior em comparação com os países de desenvolvimento capitalista pioneiro, mas que segue a dinâmica dominante que é aumentar o controle burocrático sob forma estatal e aliado ao processo de burocratização das relações sociais em geral e da mercantilização do lazer:
As práticas recreativas tradicionais dos trabalhadores recém-convertidos à nova ordem industrial serão suprimidas e marginalizadas, pois temia-se que elas poderiam ameaçar de algum modo a disciplina do trabalho necessária à nova ordem econômica. As práticas de ócio e lazer, tanto das elites quanto da classe trabalhadora, passam a se constituir, desse modo, em um importante espaço de lutas sociais, culturais e políticas [...] (ALVAREZ, 2002, p. 118).
A instituição do lazer de forma mais acabada ocorre, no entanto, no período posterior. É a partir da emergência do regime de acumulação conjugado marcado pela hegemonia do fordismo (e do sistema de crédito que lhe acompanha), do Estado integracionista (supostamente do “bem estar social”) e da expansão do capital transnacional oligopolista, com todo o processo derivado daí, o que aparentemente constituiu uma “sociedade de consumo”, ou seja, quando ocorre uma “quarta onda de mercantilização” (e burocratização). Nessa nova fase do capitalismo, o que ocorre é um processo de aumento proporcional de produção de bens de consumo e um decréscimo da produção de meios de produção (VIANA, 2008). Obviamente que ambos cresceram em proporções elevadas, mas a produção de meios de consumo foi proporcionalmente superior. A razão disso é a eterna luta do capital contra a tendência declinante da taxa de lucro, provocada com o crescimento da produção de meios de produção e tecnologia (VIANA, 2008).
É nessa época que emerge novos setores para o mercado consumidor, sendo o carro e a televisão algumas das principais mercadorias que se espalham pelo mundo, ao lado de vários outros, principalmente eletrodomésticos. Mas além dessas mercadorias, emerge a primeira fase de consolidação da mercantilização da cultura. É nessa época que surgem os estudos sobre “indústria cultural” (ADORNO e HORKHEIMER, 1986) e que a juventude emerge como novo mercado consumidor de cultura e lazer (VIANA, 2014). O Rock and Roll, o jeans, o chiclete (gomas de mascar) e uma enorme quantidade de novas mercadorias em geral são produzidas, criando novos costumes e práticas de consumo. O lazer é cada vez mais mercantilizado. É nesse momento histórico que ao lado dos bares e outras formas de lazer que ocorrem em locais onde mercadorias são vendidas (nos bares, as bebidas, mas em outros locais outras mercadorias), tais como clubes de jogos, bem como o processo de profissionalização e mercantilização do futebol e outros esportes e da cultura (música, cinema, etc.), abrem um novo campo de lazer mercantilizado: os estádios de futebol e outros locais de eventos esportivos e culturais (clubes, salas de cinema, etc.).
Nessa mesma época, ocorre o que alguns estudiosos do turismo denominam massificação do mesmo. De um produto antes considerado e praticado pelas chamadas “elites” (aristocracia, burguesia), o turismo passa a ganhar um novo e grande filão de consumidores, principalmente devido ao aumento do poder aquisitivo da classe trabalhadora e outros setores da sociedade nos países capitalistas imperialistas, bem como o desenvolvimento da tecnologia, dos meios de comunicação e transporte, e de um conjunto de meios de consumo e produção. O automóvel e a televisão se tornam artigos inicialmente de luxo mas que vão tendo sua posse e uso cada vez mais generalizado e sendo formas de lazer, pois o carro permite um deslocamento mais fácil e a televisão se torna um dos grandes veículos de lazer. As agências e empresas de turismo emergem e passam a oferecer serviços que atingem um contingente cada vez maior da população.
É neste contexto que o capitalismo oligopolista transnacional buscará expandir a produção de necessidades fabricadas, entre elas o lazer. A abundância crescente nos países capitalistas imperialistas (e em menor grau no capitalismo estatal e no capitalismo subordinado) aumenta proporcionalmente o esvaziamento da vida e crescimento da insatisfação:
Contrariando-se, opondo-se, implicando-se, misturam-se de um lado a satisfação, a procura obstinada do estado ‘satisfeito’, e, de outro, a insatisfação, o mal-estar. O consumo de espetáculo torna-se espetáculo do consumo. O consumo devorador do passado (obras de arte, estilos, cidades), a saturação rápida e o tédio se encadeiam. A partir daí, como não aspirar à ruptura? Como não querer fugir do cotidiano? Bem entendido, esse desejo, essa aspiração, essa ruptura e essa fuga são rápida e facilmente recuperáveis: organização do turismo, institucionalização, programação, miragens codificadas, colocação em movimento de vastas migrações controladas. Daí decorre a autodestruição do objeto e do objetivo: a cidade pitoresca, a região turística, o museu desaparecem sob o afluxo dos consumidores, que acabam consumindo apenas a sua própria presença e a sua própria acumulação (LEFEBVRE, 1991, p. 94).
Assim, essa “sociedade burocrática de consumo dirigido” (LEFEBVRE, 1991), que amplia demasiadamente a burocratização e mercantilização das relações sociais (VIANA, 2008)[6], acaba gerando duas formas de lazer:
A menor das análises mostra que há duas espécies de lazer, bem distintos, ‘estruturalmente’ opostos: a) o lazer integrado na cotidianidade (leitura de jornais, televisão, etc.), que deixa uma insatisfação radical, que se interessa pela situação daquele senhor kierkegaardiano que rasga seu jornal diante da mulher e dos filhos, gritando: ‘coisas possíveis! Coisas possíveis!’. B) a espera da partida, a exigência de uma ruptura, a vontade de uma evasão: o mundo, as férias, o LSD, a natureza, a festa, a loucura (LEFEBVRE, 1991, p. 95).
Esse processo, no entanto, não termina aí, pois ele será substituído pela quinta onda de mercantilização (e de burocratização) com o processo de passagem para o regime de acumulação integral. É a partir dos anos 1980 que o capitalismo neoliberal e o processo de hipermercantilização avançam, com a mercantilização crescente e intensificada da cultura, informática, etc. O lazer também é afetado nesse processo. Novas formas de lazer corriqueiro aparecem além do rádio e televisão: videogames, computadores, internet, etc. Emerge também os shopping centers, que unificam no mesmo espaço (gerando “comodidade” que estava esgotada nos grandes centros urbanos e suas dificuldades de estacionamento, trânsito, distância entre as lojas, locais de lazer, etc.) o processo de consumo e lazer.
Nesse contexto histórico, também emergem formas sofisticadas e personalizadas de lazer. Os aparelhos de televisão vão ganhando maior qualidade de imagem, novos atributos (que passou pelos videocassetes até chegar ao DVD), bem como uma hipermercantilização da cultura, tal como se observa na produção de cultura descartável no campo musical e artístico em geral. A constituição de megashows[7], grandes eventos esportivos, etc. e ampliação do turismo e de suas possibilidades, são outros elementos presentes nesse processo. A tecnologia, assim como a cultura, se torna cada vez mais descartável (computadores sempre tornados obsoletos, bem como celulares, etc.) e meio para consumação do lazer. Esse é o caso dos computadores, que servem para o trabalho, mas também através dos jogos, música, etc., servem ao lazer e com a internet passou a ampliar essas possibilidades e torná-las mais atrativas e socializadas. Os celulares, por sua vez, deixaram de ser apenas telefones e passaram a integrar jogos, música, entre inúmeros outros elementos, também ampliados com o acesso à internet através deles, se tornando outro meio de consumação do lazer.
O lazer passa a ser, predominantemente, tempo de consumo de mercadorias. As mercadorias consumidas são as mais variáveis, como alimentação, tecnologia, corpo, esporte, etc. As políticas neoliberais e o neoimperialismo facilitam o desenvolvimento do capital improdutivo e este explora tudo o que é explorável, incluindo coisas que até algum tempo atrás era considerado “inexplorável”. A mercantilização do corpo, no caso da venda de órgãos, não remete ao lazer, mas a prostituição sim, e a expansão do “turismo sexual de massa” (MICHEL, 2015) é apenas um exemplo desse processo, que além de incentivado por essas determinações acima aludidas, ainda é legitimado e justificado por ideologias (pós-estruturalismo em algumas de suas vertentes), estilos de vida hegemônicos (hedonismo, neoindividualismo) e adiaforização[8].
Assim, a hipermercantilização do capitalismo neoliberal amplia e insere o lazer na quinta onda de mercantilização. O lazer é um valor de troca e valor de uso, pois deve ser comprado e consumido, pois outros o vendem e lucram com isso. A mercantilização do lazer é inseparável de sua burocratização e, por conseguinte, do seu controle. E se os indivíduos já se encontravam controlados em seu trabalho, para-trabalho e obrigações sociais, agora mais um momento de sua vida passa a sofrer um controle externo. A práxis é reduzida a quase nada, sendo que em muitos casos se torna inexistente, e resta apenas o sono para ser mercantilizado e burocratizado, ou seja, algo controlado e lucrativo para o capital.
Considerações finais
O presente texto tematizou a mercantilização do lazer, partindo de sua conceituação e análise do desenvolvimento histórico. A conclusão da análise histórica é a de que o lazer é um produto do capitalismo e um mecanismo do mesmo que serve para sua reprodução, não somente por supostamente renovar as energias dos trabalhadores mas também por permitir lucro para o capital improdutivo e gerar renda e empregabilidade para diversos setores, bem como gerar novas formas de envolvimento que desviam os indivíduos da reflexão crítica sobre sua realidade e reais necessidades.
Esse processo todo é realizado via mercantilização e burocratização, o que significa que é algo que tem um preço e é controlado por outros. Nesse caso, o que vem ocorrendo na história do capitalismo é expansão e ampliação da mercantilização e o lazer vem sendo cada vez mais mercantilizado e burocratizado. No entanto, quanto mais mercantilizado e burocratizado, menos atraente para alguns e menos satisfatório para todos. Quanto maior o preço e a coisificação que lhe acompanha, bem como o controle que lhe é inseparável, maior a insatisfação, a resistência, a luta, que pode ser apenas revolta, mas se adquirir consciência do processo, pode se tornar projeto alternativo e, por conseguinte, revolução.
Referências
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BAUMAN, Zygmunt. Vida em Fragmentos: Sobre Ética Pós-Moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

CUNHA, Newton. A Felicidade Imaginada. A Negação do Trabalho e do Lazer. São Paulo: Brasiliense, 1977.

DUMAZEDIER, Joffre. A Revolução Cultural do Tempo Livre. São Paulo: Studio Nobel, 1994.

DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e Cultura Popular. São Paulo: Perspectiva, 1976.

DUMAZEDIER, Joffre. Sociologia Empírica do Lazer. São Paulo: Perspectiva, 1979.

FROMM, Erich. O Medo à Liberdade. 13ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

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LAPASSADE, G. Grupos, Organizações e Instituições. 3ª edição, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1989.

LEFEBVRE, Henri. A Vida Cotidiana no Mundo Moderno. São Paulo: Ática, 1991.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 2ª edição, São Paulo: Hucitec, 1991.

MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª edição, São Paulo: Global, 1989.

MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. In: FROMM, Erich. O Conceito Marxista do Homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

MARX, Karl. O Capital. 3ª edição, Vol. 01, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

MICHEL, Franck. Rumo ao Turismo Sexual de Massa. Le Monde Diplomatique. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=1849 Acessado em 15/01/2015.

PARKER, Stanley. A Sociologia do Lazer. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

VEGA, José Luís G. Lazer e Turismo. Rio de Janeiro: Salvat, 1979.

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VIANA, Nildo. A Dinâmica da Violência Juvenil. São Paulo: Ar Editora, 2014.

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VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo: Ideias e Letras, 2009.

VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. São Paulo: Escuta, 2008.

YOUNG, Jock. A Sociedade Excludente. Exclusão Social, Criminalidade e Diferença na Modernidade Recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002.



[1] Em muitos casos há uma mescla entre lazer e outras atividades. Ou seja, as obrigações familiares podem ser em determinados casos momentos de lazer, bem como em diversas outras oportunidades. Isso, no entanto, não ocorre sempre e depende também dos valores e mentalidade dos indivíduos para considerar certas atividades lazer.
[2] O lazer poder ser, inclusive, imposto. Levar as crianças para o parque de diversões pode ser muito pouco recreativo para determinados indivíduos, para citar apenas um exemplo.
[3] Práxis é uma palavra grega que ganhou o significado semelhante ao de prática. No nosso caso, a concebemos aqui como sinônimo de trabalho como objetivação, humanização do mundo, segundo Marx (1988; 1983), possuindo caráter teleológico consciente.
[4] O trabalho alienado é aquele no qual o trabalhador não controla a sua atividade, o que gera a alienação do produto, pois ele ao perder o controle da atividade também perde o controle do seu resultado. A alienação da atividade gera a alienação do produto. Uma das consequências disto é que tal trabalho se torna alheio a ele, bem como o seu produto (MARX, 1983; VIANA, 2012). Ambos passam a pertencer ao não-trabalhador, o proprietário dos meios de produção. Por conseguinte, a alienação não é um fenômeno da consciência, tal como na filosofia hegeliana e nas representações cotidianas atuais, bem como nas interpretações deformadas do pensamento de Marx. Inclusive as traduções deformadoras, uma trocando inclusive “trabalho alienado” por “trabalho estranhado” acabam transformando Marx novamente num pensador idealista, enquanto que sua concepção era materialista.
[5] Para um aprofundamento sobre isso, a obra no prelo A Mercantilização das Relações Sociais – Modo de Produção Capitalista e Formas Sociais Burguesas, é indicada, pois busca apresentar as características e dinâmica da mercantilização e sua fonte geradora e demonstrar que ela é uma forma concreta pela qual o modo de produção capitalista determina as formas sociais (“superestrutura” ou “formas de regularização das relações sociais”).
[6] Lapassade (1989) identifica nesse momento, marcado pelo capitalismo oligopolista transnacional, sob a dinâmica do regime de acumulação conjugado, como a fase B da burocratização da sociedade moderna. Poderíamos, no entanto, dizer que aí ocorre a quarta onda de burocratização (e mercantilização, algo deixado de lado por Lapassade, por focar apenas na questão da organização e burocracia). As ondas de burocratização e mercantilização acompanham o desenvolvimento dos regimes de acumulação: primeira onda, capitalismo comercial, acumulação primitiva de capital; segunda onda, capitalismo liberal (concorrencial), regime de acumulação extensivo; terceira onda, capitalismo oligopolista, regime de acumulação intensivo; quarta onda, capitalismo oligopolista transnacional, regime de acumulação conjugado; quinta onda, capitalismo neoliberal, regime de acumulação integral.
[7] Desde os regionais até os internacionais, como o Rock’n Rio, cantores internacionais, para citar o caso brasileiro. Isso sem falar na ampliação da mercantilização de eventos mais antigos e tradicionais, como o Carnaval, Copa do Mundo, Olimpíadas, etc., que foram, historicamente, cada vez mais mercantilizados, e agora cada vez mais fonte de interesses estatais, empresariais e de desvio de dinheiro através de corrupção.
[8] Adiaforização, pode ser definida como “tornar certas ações ou certos objetos de ação moralmente neutros ou irrelevantes – isentá-los da adequada categoria de fenômenos para a de avaliação moral” (BAUMAN, 2011, p. 202), sendo que o “efeito de adiaforização é alcançado pela exclusão de algumas categorias de pessoas da esfera de sujeitos morais”, entre outros possíveis efeitos. Jock Young afirma que na modernidade recente (capitalismo neoliberal), em relação ao aparato jurídico, a adiaforização é ampliada ao se referir às culturas: “outras culturas não são moralmente julgadas; itens de sua agenda podem ser vistos com uma certa má vontade (e. g. critoridectomia e amputação judicial), mas são vistos como separados das culturas elas mesmas, que aí estão para serem celebradas em vez de julgadas” (YOUNG, 2002, p. 151). É esse fenômeno que permite, por exemplo, algumas pessoas tentarem legitimar a prostituição e pedofilia, acusando seus opositores de “moralistas”.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Mercantilização do Lazer. Revista Espaço Livre. vol. 09, num, 18, jul./dez. 2014.

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