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segunda-feira, 17 de agosto de 2015

MARX E OS INTELECTUAIS


MARX E OS INTELECTUAIS

Nildo Viana


RESUMO: O presente artigo analisa a abordagem de Marx a respeito dos intelectuais, a partir de suas próprias referências aos mesmos. O objetivo é reconstituir a concepção de Marx sobre o que são os intelectuais. Nesse sentido, o artigo expõe a crítica de Marx aos ideólogos, a sua concepção sobre o papel dos intelectuais e sua posição diante do que o intelectual dever.
Palavras-Chave: Marx, Intelectuais, Ideólogos, Ideologia, Práxis Revolucionária

A discussão sobre os intelectuais é bastante antiga e é perpassada não só por um conjunto de problemas e questões como também por distintas concepções e interpretações. Essa série de problemas surge desde a definição do que é ser intelectual, de que tipo de grupo se trata (camada ou classe, as duas respostas mais frequentes para tal pergunta), suas representações e autoimagem (mais conhecida através da discussão sobre sua “missão”, “papel social”, “responsabilidade social” ou “função”), além de questões históricas (os intelectuais sempre existiram ou seriam produtos da sociedade moderna? Quando eles surgiram nessa sociedade?). Nesse contexto, a obra de Marx é, muitas vezes, citada, mas analisada superficialmente ou vista sob forma anacrônica, ou, ainda, sendo apenas mencionado para ser substituído por outros autores, supostamente seus sucessores (especialmente Gramsci). Além disso, a inexistência de qualquer artigo ou análise mais profunda sobre a concepção de Marx sobre os intelectuais, deixa claro uma lacuna que precisaria ser resolvida nessa discussão.

Mas isso gera uma outra questão: Marx discutiu a questão dos intelectuais? Na verdade, ele fez diversas referências a diversos indivíduos que nós qualificamos como intelectuais, bem como abordou diversas produções intelectuais e a relação entre tais produções/produtores e as classes sociais. Contudo, ele raramente usa a palavra “intelectual”[1], e focalizou sua discussão sobre a questão da ideologia. Isto pode ser explicado pela época em que ele produziu suas ideias. A sua época era a do início da consolidação da classe intelectual, e é mais para o fim da sua vida que isso se cristaliza e a autoimagem dos intelectuais começa a se firmar e esta classe se autonomiza. Nesse contexto, seria exigir muito para que ele elaborasse uma teoria ou mesmo apresentasse uma concepção mais ampla da intelectualidade como classe social.

Antes de passar para análise da contribuição de Marx para a compreensão da questão dos intelectuais, é necessário explicitar que aqui não será realizado uma mera descrição e reprodução das ideias deste pensador e sim uma análise do conjunto da sua obra visando extrair uma percepção mais profunda de sua concepção a respeito da intelectualidade. Da mesma forma, fica claro aqui que o nosso foco não é no signo (palavra) e sim no ser, no significado. Ou seja, não procuramos no texto de Marx os usos da palavra “intelectual” e sim as referências que ele faz àquilo que denominamos intelectualidade, a classe intelectual. Por conseguinte, é necessário definir o que entendemos por este termo.

A intelectualidade é uma classe social existente na sociedade capitalista composta por indivíduos que possuem uma atividade fixa, derivada da divisão social do trabalho, determinada, por sua vez, pelas relações de produção dominantes, pelo modo de produção dominante. Essa atividade fixa expressa um modo de vida e interesses comuns, bem como uma oposição comum a outras classes sociais. Essa atividade fixa geradora de modo de vida, interesses e conflitos com outras classes, é, fundamentalmente, o processo de produção cultural, o trabalho intelectual.

A intelectualidade é composta por indivíduos especializados no trabalho intelectual, tais como cientistas, filósofos, artistas, etc., o que gera um determinado modo de vida específico desta classe, além de gerar interesses, valores, representações, e, ainda, conflito com determinadas classes sociais. Ela é uma classe social cuja função é a produção cultural e cujo papel é auxiliar a classe dominante, capitalista, no processo de reprodução social. A partir do desenvolvimento capitalista, torna-se cada vez mais uma classe de trabalhadores improdutivos, cuja renda ou salário tem sua origem no mais-valor produzido no processo de produção capitalista. Logo, é uma classe social auxiliar e, nesse caso, sua autonomia é mais restrita do que no caso de outras classes, embora sempre busque, como todas as demais, se autonomizar.

Essa concepção não é tão distinta da de Marx, sendo que a diferença fundamental reside na percepção do caráter de classe da intelectualidade, apenas vislumbrado por este pensador em algumas passagens de sua obra. A sua análise crítica da ideologia e dos ideólogos apenas revela o vínculo entre intelectualidade e burguesia, o que, no entanto, não foi percebido por ele como classe específica e sim, num primeiro momento, como parte da burguesia. Em alguns momentos ele coloca de forma mais independente os “intelectuais de prestígio”, as “capacidades”, os “homens de saber”, principalmente quando analisa as lutas de classes ou o papel do intelectual e da ciência na produção capitalista. O seu foco, no entanto, foi mais nas concepções dos intelectuais e menos em sua posição social e por isso é necessário reconstituir sua crítica dos ideólogos, sua explicação sobre o que os produtores de ideias (intelectuais) realmente expressam e o que deveriam expressar (a concepção do que o intelectual dever ser), pois é nesse campo que Marx fez contribuições mais diretas ao estudo dessa questão.

Crítica dos Ideólogos

Um dos elementos fundamentais da análise de Marx a respeito dos intelectuais é a questão da ideologia. Marx foi um crítico radical das ideologias e um dos elementos fundamentais de sua crítica reside na sua recusa de que ela tenha uma realidade própria e autônoma. As ideologias são produtos sociais e históricos. Isto quer dizer que são produtos humanos, ou seja, são seres humanos, históricos e sociais, que produzem as ideologias, bem como as formas de consciência em geral. Por isso ele diz que a consciência é nada mais nada menos do que o ser (indivíduo, social e histórico) consciente. Segundo Marx e Engels:

A produção de ideias, de representações, da consciência, está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e como intercambio material dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercambio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias, etc., mas os homens reais e ativos, tal como se acham condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercambio que a ele corresponde até chegar às suas formações mais amplas. A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. E se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos como numa câmara escura, tal fenômeno decorre de seu processo histórico de vida, do mesmo modo por que a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico” (MARX e ENGELS, 1991, p. 36-37)[2].

Logo, para compreender a ideologia é necessário entender a época e a sociedade em que ela é produzida, bem como os seus produtores, os ideólogos[3]. Claro que, para Marx, ao contrário dos seus epígonos, a ideologia é um sistema de pensamento ilusório, falsa consciência sistematizada. O caráter sistemático da ideologia é explicado por ela não ser qualquer forma de consciência e por isso a sua produção é fundamentalmente realizada por aqueles que possuem as condições materiais para tal, ou seja, aqueles que estão livres do trabalho manual.

A divisão do trabalho torna-se realmente divisão apenas a partir do momento em que surge uma divisão entre o trabalho material e o espiritual. A partir deste momento, a consciência pode realmente imaginar ser algo diferente da consciência da práxis existente, representar realmente algo sem representar algo real; desde este instante, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à criação da teoria, da teologia, da filosofia, da moral, etc., ‘puras’ (MARX e ENGELS, 1991, p. 45).

Marx coloca que a primeira forma dos ideólogos teriam sido os sacerdotes. É nesse contexto, marcado por outras divisões e contradições, tal como a nacional (que Marx utiliza para explicar a ideologia alemã e suas ideias fora do lugar), emerge as ideologias, formas fantasmagóricas de pensamento, que “representam realmente algo sem representar algo real”. A divisão social do trabalho gera uma atividade fixa e determinada para os indivíduos. Com ela, “fica dada a possibilidade, mais ainda, a realidade, de que a atividade espiritual e a material – a fruição e o trabalho, a produção e o consumo – caibam a indivíduos diferentes” (MARX e ENGELS, 1991, p. 45). Desta forma, a divisão social do trabalho que separa trabalho manual e intelectual produz indivíduos diferentes para a produção de bens materiais e para a para a produção de ideias, cultura.

A classe dominante (que em cada modo de produção é diferente, sendo que no capitalismo é a burguesia) domina a produção material e, por conseguinte, a produção intelectual. Tal classe possui não apenas os meios de produção material, mas também os meios de produção intelectual. Por isso, as ideias dominantes são as ideias da classe dominante. No entanto, para que isso seja convincente, é necessário que a ideologia apresenta o interesse particular da classe dominante como interesse geral da sociedade e separar as ideias dominantes dos indivíduos dominantes e das relações geradas a cada fase do modo de produção, para concluir que a cada etapa da história, as ideias sempre dominam. Assim, o processo de abstrair as bases reais das ideologias (ideólogos, mudanças no modo de produção, etc.) permite pensar que a história é a história dos grandes homens, das ideias, etc. Para provar a supremacia das ideias na história, é necessário separar as ideias dos dominantes dos próprios dominantes para que apareça como a dominação das ideias na historia; produzir uma hierarquia na dominação das ideias, estabelecendo uma “conexão mística” entre as ideias sucessivamente dominantes; e, por fim, transformar o aspecto místico presente nessas ideias através da sua corporificação numa pessoa ou numa série de pessoas, “os pensadores, os filósofos, os ideólogos, concebidos como os fabricantes da história, como o ‘conselho dos guardiães’, como os dominantes” (MARX e ENGELS, 1991, p. 77).

Desta forma, entende-se que a ideologia não surge do cérebro dos indivíduos arbitrariamente e nem que é produto de sua genialidade ou debilidade. Os seus produtores são os ideólogos e portanto é preciso entender estes para se entender as ideologias que eles produzem. No entanto, o próprio Marx coloca que a corporificação das ideias dominantes nos ideólogos é um truque da classe dominante para manter sua dominação. A questão é que é preciso discutir quem são estes ideólogos. A princípio, para Marx, tais ideólogos são indivíduos da classe dominante:

Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o façam em toda sua extensão e, consequentemente, entre outras coisas, dominem também como pensadores, como produtores de ideias; que regulem a produção e a distribuição das ideias de seu tempo e que suas ideias sejam, por isso mesmo, as ideias dominantes da época (MARX e ENGELS, 1991, p. 72).

Marx afirma que há uma divisão do trabalho também no interior da classe dominante e que essa se reproduz no caso da produção de ideologia:

A divisão do trabalho [...] expressa-se também no seio da classe dominante como divisão do trabalho espiritual e material, de tal modo que, no interior dessa classe, uma parte aparece como os pensadores desta classe (seus ideólogos ativos, conceptivos, que fazem da formação de ilusões desta classe a respeito de si mesma seu modo principal de subsistência), enquanto que os outros relacionam-se com estas ideias e ilusões de maneira mais passiva e receptiva, pois são, na realidade, os membros ativos desta classe e têm pouco tempo para produzir ideias e ilusões acerca de si próprios (MARX e ENGELS, 1991, p. 73).

Assim, os ideólogos são indivíduos da classe dominante. No entanto, isso não quer dizer que todo ideólogo pertence a tal classe. Em outro lugar, por exemplo, Marx cita os “ideólogos em geral”, juristas e políticos. O ideólogo, nesse contexto, é um especialista do trabalho intelectual, um indivíduo que se dedica à produção intelectual, que pode ser um filósofo, jurista, cientista, teólogo, etc. Mas a classe dominante possui os meios de produção intelectual e cria seus ideólogos conceptivos, garantindo assim a dominância cultural, fazendo de suas ideias as ideias dominantes.

Em Marx, nessa obra, dedicada especialmente à ideologia alemã, há uma certa imprecisão conceitual no que se refere aos ideólogos. Se por um lado a classe dominante cria seus próprios ideólogos conceptivos e receptivos, pertencentes à própria classe, não fica claro a posição dos demais ideólogos, que não pertencem à classe dominante. Nas suas obras posteriores Marx vai avançar nesse processo de análise dos ideólogos. Tendo em vista que A Ideologia Alemã foi escrita em 1845-1846, numa Alemanha de capitalismo retardatário, e com uma classe intelectual ainda em desenvolvimento e fortemente subordinada à classe dominante, bem como convivendo com a existência de diversos ideólogos dessa classe, isso é compreensível[4].

A autonomia da classe intelectual era muito restrita e isso dificultava sua percepção enquanto classe social. Além disso, o ideólogo, em Marx, não é a mesma coisa que o intelectual no sentido oferecido pela sociologia dos intelectuais, ou seja, como camada social ou classe social especializada. Em alguns textos, Marx começa a apontar para a percepção de um grupo social especializado e autônomo formado pelos intelectuais, mas o termo ideólogo é aplicado a todo indivíduo, independentemente de classe, que produz um sistema de pensamento ilusório, uma ideologia. Esses, obviamente, naquela época, eram pertencentes principalmente à classe dominante, devido às condições e meios materiais para produção de ideologia.

Em outras obras ele coloca por diversas vezes a figura do intelectual não apenas como ideólogo, ou seja, produtor de ideologia, mas como indivíduos submetidos à divisão social do trabalho. Ele cita os cientistas, advogados e médicos como porta-vozes da classe camponesa e da pequena-burguesia (MARX, 1986a). Aqui ele não só coloca especialistas no trabalho intelectual desligados da classe dominante, mas também os unifica ao dizer “em uma palavra as chamadas capacidades” (MARX, 1986a, p. 52). Já em O Capital, ele observa a dicotomia entre os trabalhadores e o “homem de saber”:

O homem do saber e o trabalhador produtivo estão amplamente separados um do outro, e a ciência, em vez de nas mãos do trabalhador aumentar suas próprias forças produtivas para ele mesmo, colocou-se contra ele em quase toda parte. (...). O conhecimento torna-se um instrumento capaz de ser separado do trabalho e oposto a ele (apud. MARX, 1988a, p. 271).

Desta forma, Marx começa a perceber a posição dos indivíduos especialistas no trabalho intelectual, mas não os define como uma classe social, apesar de alguns afirmarem isso. Nesse sentido, Marx contribui com a compreensão dos ideólogos e, indiretamente, dos intelectuais. Ao mostrar que a produção dos ideólogos é a ideologia, sistema de pensamento ilusório, já coloca o problema da intelectualidade, pois é esta que vai, paulatinamente, tomando o lugar dos ideólogos burgueses e assumindo o seu papel, passando a ser uma classe auxiliar da burguesia, como o próprio Marx começa a vislumbrar em suas obras posteriores.

O Papel dos Intelectuais

Uma das discussões mais conhecidas no âmbito da filosofia e das ciências humanas é sobre o “papel”, “missão”, “responsabilidade”, “vocação” do intelectual. Isso se refere tanto à autoimagem que os intelectuais fazem de si como também ao que alguns julgam que deveria ser a posição dos intelectuais. Marx, obviamente, não discutiu isso, pois na sua época isso não estava em questão. A discussão sobre o papel dos intelectuais começa a ganhar espaço com o chamado “Caso Dreyfus”, em 1894, 11 anos após a sua morte[5]. Contudo, Marx apresenta uma discussão sobre o que efetivamente fazem os ideólogos e outros pensadores, bem como apresenta o que ele pensa que eles deveriam fazer. Isso já é uma diferença significativa, pois muitos confundem o que é um intelectual com o “dever-ser”, ou seja, com o que eles acham que ele deveria ser. Em Marx não há esta confusão e por isso ele contribui também com esta discussão.

A discussão sobre os ideólogos já foi suficiente para esclarecer que os ideólogos são os produtores de ideologias, sistemas de pensamento ilusórios e, portanto, servem aos interesses da classe dominante. Porém, nem todos os pensadores (ou, num sentido mais estrito, os intelectuais) são ideólogos e nem todos expressam os interesses da classe burguesa. Marx utiliza os termos “representantes intelectuais e literários” ou “representantes políticos e literários”, bem como “representantes ideológicos”, “científicos”, “teóricos”, em algumas passagens para expressar o que esses pensadores são efetivamente. Efetivamente, esses pensadores, produtores de ideias e representações sobre a realidade, expressam os interesses de uma ou outra classe social. Segundo Marx, ao discutir o papel dos representantes democráticos, da socialdemocracia, e pequena-burguesia, a relação entre classe e seus representantes é a seguinte:

O que os torna representantes da pequena burguesia é o fato de que sua mentalidade não ultrapassa os limites que esta não ultrapassa na vida, de que são consequentemente impelidos, teoricamente, para os mesmos problemas e soluções para os quais o interesse material e a posição social impelem, na prática, a pequena burguesia. Esta é, em geral, a relação que existe entre os representantes políticos e literários de uma classe e a classe que representam (MARX, 1986b, 18, p. 48).

Desta forma, ao contrário do que os intérpretes vulgares de Marx pensam, ele não deriva automaticamente os representantes literários de uma classe do seu pertencimento de classe. Sem dúvida, e como se pode notar na discussão sobre os ideólogos alemães, a tendência e o mais provável é que o indivíduo que produz ideias seja representante intelectual de sua classe, mas isso não é uma “lei”, algo inevitável e inexorável. É possível que um indivíduo pertencente a uma classe represente literariamente outra e por isso um conjunto de críticas de autores pouco conhecedores da obra de Marx é sem sentido[6].

Obviamente que, para saber por qual motivo um determinado pensador não expressa os interesses de sua classe, é necessário analisar o seu processo histórico de vida, tal como já anunciavam Marx e Engels (1991) em relação ao processo de compreensão da produção de ideologias. Esses representantes não ultrapassam os limites instransponíveis da consciência de sua classe e tais limites são os limites da própria classe na sua vida material, nos seus interesses. Assim, para Marx, os indivíduos que produzem cultura, que realizam a produção intelectual (intelectuais ou não), são, efetivamente, a manifestação dos interesses de classes. Logo, são representantes (literários, ideológicos ou teóricos) das classes sociais. É isso que ele afirma no livro A Miséria da Filosofia: “assim como os economistas são os representantes científicos da classe burguesa, os socialistas e os comunistas são os teóricos da classe proletária” (MARX, 1989, p. 118)[7].

Esse é o processo analítico utilizado por Marx. No entanto, quando ele analisa o caso específico dos economistas políticos, ele avança para reconhecer as divergências internas no interior daqueles que não ultrapassam o horizonte burguês. Marx analisa a economia política colocando três tendências básicas, a clássica, a vulgar e a eclética. A economia política clássica é a de Adam Smith e David Ricardo, que atingiram o limite máximo da consciência burguesa e depois são sucedidos pelos economistas vulgares, tal como Bastiat, que realiza a apologia do capitalismo, e dos ecléticos, de Stuart Mill, que busca conciliar o inconciliável, proletariado e burguesia. O processo histórico (e as diferenças nacionais, quando se refere ao caso alemão) e o avanço da luta de classes promove esse recuo da economia política e gera os “sicofantas” e “lacaios da pena”, os economistas vulgares que buscam satisfazer seus interesses próprios se vendendo para o capital. Os ecléticos, buscando manter a “dignidade professoral da sua ciência”, tentam, por isso, unir as perspectivas burguesa e proletária[8].

Os produtos desses ideólogos são ideologias, sob formas distintas, de acordo com suas divisões internas, contexto nacional e histórico, entre outras determinações. Assim, os ideólogos da classe dominante[9], pertencentes ou não a ela, produzem sistemas de pensamento ilusórios, formas diferenciadas de consciência ilusória e cujo grau de falsidade e veracidade varia devido ao conjunto de determinações acima aludidas.

No entanto, não existem apenas representantes ideológicos da classe dominante. Marx refere-se, explicitamente, tal como colocamos anteriormente, nos “representantes teóricos” do proletariado, os socialistas e comunistas. Nesse campo, no entanto, ele também não poupa críticas, pois ele distingue entre várias formas de “socialismo”, sendo que quanto mais distante estivesse uma concepção de expressar teoricamente o movimento revolucionário do proletariado, mais forte é a sua crítica. No início, suas críticas foram endereçadas ao “socialismo utópico” e, posteriormente, foi estendido as formas de deformação do pensamento socialista. Isso se deve ao fato de que Marx contextualiza historicamente o socialismo utópico, sendo este considerado como produto de representantes literários do proletariado, mas sendo que este estaria ainda em um processo de formação ainda não completado. Nesse sentido, uma classe social formada de maneira incipiente gera representantes intelectuais incipientes.

Na seção III do Manifesto Comunista, Marx critica as várias tendências na “literatura socialista e comunista”. Nesse contexto, ela aborda os representantes literários através do vínculo entre eles e as classes sociais que representam. Num primeiro momento, ele aborda o “socialismo reacionário”, composto por tendências que apontam para um retorno ao pré-capitalismo. Inicialmente ele crítica os representantes do socialismo feudal, “meio lamentação, meio escárnio; metade ecos do passado, metade ameaças ao futuro; às vezes ferindo a burguesia no coração com sua crítica amarga, mordaz e espirituosa, mas sempre produzindo um efeito cômico, devido à sua absoluta incapacidade de compreender a marcha da história moderna” (MARX e ENGELS, 1988, p. 89). A sua principal crítica à burguesia é ter criado o proletariado, a classe revolucionária que pode abolir as classes sociais em geral.

Ele também crítica os representantes literários da pequena-burguesia, outra fração do socialismo reacionário, que teria como maior representante Sismonde de Sismondi. Esta tendência teria analisado “como muita perspicácia as contradições inerentes às modernas relações de produção”, realizando uma forte crítica à sociedade burguesa. No entanto, “quanto ao seu conteúdo positivo, tal socialismo ou deseja restabelecer os antigos meios de produção e de troca”, restaurando “as antigas relações de propriedade e a antiga sociedade”, ou deseja aprisionar à força os meios de produção da sociedade moderna, novamente, aos quadros restritos da sociedade feudal.

Ainda no interior do socialismo reacionário, Marx aborda os representantes do chamado “socialismo verdadeiro”, em moda na Alemanha. Ao contrário do caso francês, os representantes literários dessa tendência eram os “filósofos, semifilósofos e belos espíritos” que se inspiravam no caso francês, vivendo numa realidade bem diferente (ou seja, é o que já havia criticado em A Ideologia Alemã, as ideias fora do lugar) e, representando a pequena burguesia alemã, numa sociedade de capitalismo incipiente, “aparecia apenas como uma especulação ociosa sobre a verdadeira sociedade, sobre a realização da essência humana” (MARX e ENGELS, 1988, p. 91).

Se o socialismo reacionário aglutina os representantes literários da classe feudal decadente, da pequena-burguesia e do campesinato, os representantes da outra tendência analisada por Marx, o socialismo conservador, representavam a burguesia, que buscavam “remediar os males sociais para garantir a existência da sociedade burguesa”. Eles pertecenm às seguintes categorias “economistas, filantropos, humanitários, os que pretendem melhorar a situação da classe operária, organizadores de beneficências, protetores dos animais, fundadores de sociedades de temperança, reformadores obscuros de toda espécie” (MARX e ENGELS, 1988, p. 94). A concepção de tais representantes literários da burguesia pode ser assim resumida: “os burgueses socialistas querem as condições de vida da sociedade moderna sem as lutas e os perigos que delas necessariamente decorrem”, ou seja, sem a classe revolucionária, o proletariado.

Por fim, Marx aborda os representantes literários do socialismo e comunismo crítico-utópicos (Babeuf, Saint-Simon, Fourier, Owen, etc.). Essa literatura acompanhou as primeiras lutas do proletariado numa sociedade capitalista ainda em desenvolvimento, faltando-lhe as condições materiais adequadas e por isso seu conteúdo é “forçosamente reacionário”, “preconiza um ascetismo universal e um grosseiro igualitarismo” (MARX e ENGELS, 1988, p. 95). Devido ao fato do proletariado ainda não ter desenvolvido sua força revolucionária,

“Os inventores desses sistemas reconhecem, sem dúvida, o antagonismo das classes, assim como a eficácia dos elementos dissolventes da própria sociedade dominante. Mas não vêem nenhuma atividade histórica autônoma da parte do proletariado, nenhum movimento político que lhe seja próprio [...]. No lugar da atividade social precisam colocar sua própria atividade pessoal inventiva; no lugar das condições históricas de emancipação, condições fantásticas; no lugar da organização gradual do proletariado em classe, uma organização  da sociedade pré-fabricada por eles mesmos. A futura história do mundo, para eles, resolve-se na propaganda e na realização prática dos seus planos de sociedade” (MARX e ENGELS, 1988, p. 96).

Eles defendem os interesses da classe operária mas apenas como “classe que mais sofre”, querem melhorar a vida de todos na sociedade, até dos mais privilegiados e “não cessam de apelar indistintamente para toda a sociedade e de preferência para a classe dominante” (MARX e ENGELS, 1988, p. 96). Porém, os escritos dos representantes do socialismo utópico possuem elementos críticos: “atacam todas as bases da sociedade existente. Por isso, forneceram valioso material para o esclarecimento dos operários” (MARX e ENGELS, 1988, p. 96). As suas proposições positivas, contudo, possuem um “sentido puramente utópico”. Como expressão de uma época de um proletariado ainda incipiente, com o de histórico da luta de classes, perdem importância e seus discípulos que se apegam às suas teses em outro contexto, de capitalismo desenvolvido, criam seitas reacionárias e caem nas fileiras do socialismo reacionário ou conservador.

Essa análise de Marx dos representantes literários do “socialismo” mostra que representam determinadas classes sociais e que apesar dos nomes (socialismo, comunismo, etc.) estão perpassados por interesses de distintas classes em luta. Isso ocorre na filosofia alemã, na economia política inglesa e no socialismo francês, como em todas as outras manifestações literárias existentes.

Nesse sentido, relacionando essa análise de Marx com a produção sobre o papel dos intelectuais, se observa que estes tem seu papel intimamente inserido no conjunto das relações sociais e por isso representam uma ou outra classe social. O seu papel real, concreto, existente realmente, é o de expressar as classes sociais e seus interesses, e os “literatos” representam, no fundo, a classe dominante ou outras classes que não ultrapassam os limites da perspectiva da sociedade burguesa.

O que deve ser o intelectual?

Na discussão sobre o “papel”, “missão”, “vocação”, “responsabilidade” do intelectual, muitos pensadores confundem o que o intelectual realmente é e o que ele deve ser. Alguns dizem apenas o que os intelectuais são realmente, outros dizem o que eles devem ser, enquanto que alguns confundem ambos, tomando um pelo outro, considerando que o que é deve ser ou o que deve ser é o que é. A abordagem de Marx que resumimos acima apresenta o que são os representantes literários das classes sociais, mostrando seu vínculo com determinada perspectiva de classe, manifestando interesse de uma ou outra classe social. Contudo, Marx não se limitou a isso. Ele também diz o que tais representantes, próximos da figura do intelectual, devem ser.

Uma célebre frase dele, ao abordar o caso dos filósofos, aponta para essa concepção do que o intelectual deve ser: “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (MARX, 1991, p. 14). Nesse sentido, Marx concebe uma unidade entre pensamento e ação, intelectual e revolucionário.

O conceito de práxis é exatamente esse processo unitário entre pensamento e ação. Nesse sentido, Marx não faz o elogio da especialização e muito menos da divisão entre trabalho intelectual e manual. Pelo contrário, ele era um crítico da especialização e divisão social do trabalho e propunha a sua abolição. No contexto da sociedade burguesa, a sua proposta é a práxis revolucionária. É por isso que Marx reprova Feuerbach, por que “não compreende a importância da atividade ‘revolucionária’, prático-crítica” (MARX, 1991, p. 12). Segundo Marx, o ser humano é, fundamentalmente, um ser ativo e social, e sua atividade é práxis, ou seja, é teleológica consciente, ao contrário do trabalho animal (MARX, 1988a) e isso ocorre através da cooperação (MARX e ENGELS, 1991), por isso o ser humano é, simultaneamente, um ser ativo e um ser social (MARX, 1983).

Cabe aos indivíduos que são representantes literários, políticos, de uma classe, efetivar a sua atividade revolucionária sob a forma teleológica consciente, como práxis revolucionária, prático-crítica. É nesse sentido que Marx irá afirmar que a coincidência da transformação das circunstâncias e da autotransformação só pode ser compreendida como práxis revolucionária (MARX, apud. LABICA, 1990)[10]. Desta forma, a posição de Marx sobre o que deve ser o intelectual – no sentido de produtor de ideias, seja ou não um profissional – é a unidade indissolúvel entre prática e crítica, visando a transformação social, ou, em síntese, efetivar uma práxis revolucionária.

Nesse sentido, a teoria é uma práxis revolucionária, pois ela visa a transformação radical da sociedade e não é meramente contemplativa, como no materialismo vulgar. O seu alvo é a realidade concreta e seu objetivo é sua transformação. Não se trata de realizar a separação entre teoria e realidade. Não existe tal separação na realidade concreta, pois a teoria é parte, produto e expressão da realidade e se volta para ela, visando transformá-la. Também não existe tal separação na análise que esta faz seja da teoria seja da realidade, pois elas são inseparáveis: não é possível explicar a teoria sem analisar a realidade que lhe produz e nem é possível compreender a realidade sem a teoria que a explica. E isso não é feito apenas por “passatempo”, sob a forma coisificada ou contemplativa, e sim sob a forma ativa, visando entender/explicar para transformar. Nesse processo, o que ocorre é uma atividade, mental, mas que tem sua origem na realidade e que analisa a realidade para explicá-la e transformá-la. Ela é teleológica, pois visa a sua transformação, e é consciente. No entanto, a ação prática se faz necessária e deve complementar a ação teórica, pois a transformação necessita da ação. Nesse sentido, a crítica é um dos elementos fundamentais nesse processo, e engloba a crítica do modo de produção, das ideologias e todo o conjunto das relações sociais. A crítica fundada na teoria, no entanto, visa constituir o novo, a nova sociedade, o comunismo: “A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas para que rompa com as cadeias e apanhe a flor viva” (Marx, 1968, p. 10).

A ação teórica é teórico-prática, visa a crítica e superação da sociedade burguesa. Essa ação, no entanto, não é vista por Marx sob a forma voluntarista, como se bastasse a ação ou a vontade do indivíduo (ou dos intelectuais ou, ainda, dos representantes literários do proletariado) para que ocorra a transformação social. É preciso que tanto a teoria quanto a prática esteja unificadas tendo por base condições sociais reais, o que remete ao problema do proletariado. O socialismo utópico era uma expressão incipiente de um movimento operário ainda em formação e o socialismo científico emerge a partir do proletariado que avança em seu processo de constituição como classe autodeterminada[11]. Nesse sentido, é necessário, para que a teoria e a crítica que lhe acompanha assumir a radicalidade necessária, que se parta da perspectiva do proletariado (MARX, 1988a). Contudo, tal perspectiva é do proletariado como classe autodeterminada, pois ou ele “é revolucionário ou não é nada” (apud, RUBEL, 1974).

Nesse contexto, os comunistas, como o próprio Marx, são os representantes teóricos do proletariado e devem produzir teorias e realizar a crítica da sociedade burguesa partindo de sua perspectiva. Mas também devem agir, ou seja, devem complementar sua negação teórica com a negação prática do capitalismo. Segundo Marx, “os comunistas lutam para alcançar os interesses e objetivos imediatos da classe operária, mas no movimento presente representam ao mesmo tempo o futuro do movimento” (MARX e ENGELS, 1988, p. 98). Eles “não tem interesses distintos dos interesses do conjunto do proletariado”; “representam sempre os interesses do movimento em seu conjunto” (MARX e ENGELS, 1988, p. 79).

Na prática, portanto, os comunistas constituem a parte mais resoluta dos partidos operários de todos os países, a parte que impulsiona sempre mais avante; quanto à teoria, têm sobre a restante massa do proletariado a vantagem de uma compreensão das condições, do andamento e dos resultados gerais do movimento proletário (MARX e ENGELS, 1988, p. 79).

Marx ainda coloca que o objetivo dos comunistas é a constituição do proletariado como classe autodeterminada[12] e derrubada da dominação burguesa. Desta forma, o que Marx coloca é que o papel dos “intelectuais” (profissionais ou não) é, no fundo, expressar teoricamente o movimento revolucionário do proletariado, realizar a crítica desapiedada do existente, e lutar pela abolição das relações de produção capitalistas e do Estado (MARX e ENGELS, 1991). Aqui temos toda uma discussão sobre a práxis revolucionária, apenas mencionada nas Teses Sobre Feuerbach.

Essa posição de Marx em relação aos comunistas, que são os representantes teóricos do proletariado, mostra qual é o papel que ele atribuiria aos intelectuais no sentido do que eles deveriam ser. Nas passagens em que ele se aproxima de uma análise mais direcionada para a classe intelectual, tal como a concebemos, ele reafirma o que já havia colocado em outras oportunidades. Ao criticar os economistas políticos como “mercenários”, coloca uma relação extremamente atual que é os intelectuais se venderem para o capital em troca de dinheiro e privilégios, algo que se tornou muito mais comum e corriqueiro após as críticas de Marx. Mas já na sua época ele alertava: “é preciso ganhar dinheiro para viver e escrever, mas não se deve viver e escrever para ganhar dinheiro” (MARX, apud, Marx e ENGELS, 1986). Em síntese, essa é a contribuição de Marx para se pensar o papel dos intelectuais numa perspectiva marxista.

Considerações Finais

A contribuição de Marx para se pensar hoje a questão da classe intelectual é importante sob diversos aspectos. Obviamente que sua teoria do capitalismo, bem como sua teoria das classes sociais, são fundamentais para compreender tal classe, suas representações, suas ideologias, sua posição social e política, entre outras coisas, assim como o método dialético e materialismo histórico. Contudo, nosso objetivo não foi utilizar as diversas possíveis contribuições de Marx (método dialético, materialismo histórico, teoria do capitalismo, teoria das classes socais, etc.) para analisar a classe intelectual ou os intelectuais na sociedade moderna e sim observar como ele abordou mais diretamente a questão dos intelectuais apesar do seu foco diferenciado.

O foco de Marx é a ideologia, os ideólogos, os representantes literários das classes sociais, os filósofos, os cientistas, entre outros temas, que tem relação direta com a questão dos intelectuais, mas cujo significado aponta não para uma classe social (ou posição social), ou seja, não focalizando a condição social dos intelectuais e sim para um sentido mais geral de “produtores de ideias”, vinculando as produções intelectuais com a classe social a qual expressam os interesses.

No entanto, as reflexões de Marx a esse respeito acabam contribuindo para se pensar alguns dos aspectos mais discutidos em relação aos intelectuais, tal como enfatizamos aqui: o papel dos intelectuais e o que deve ser um intelectual. E, nesse caso, há uma coerência entre o que ele defendeu e o que ele efetivamente fez, ou seja, Marx, durante sua vida, esteve de acordo com sua ideia de práxis revolucionária como o modo de ser de um representante teórico do proletariado.

Marx realizou o que ele propunha: a crítica das ideologias, a crítica da realidade concreta, unidade de crítica teórica e projeto de transformação social radical, unidade de crítica teórica e prática revolucionária. Afinal, grande parte de sua obra é uma crítica das ideologias, desde a filosofia alemã até a economia política, bem como a sua análise das lutas de classes na França e outros países e sua teoria do modo de produção capitalista mostra a sua crítica da realidade social expressa pelo capitalismo. E sua crítica nunca foi a “crítica pela crítica” e sim para a superação da situação criticada, a transformação revolucionária da sociedade capitalista. Da mesma forma, o seu vínculo teórico e prático com o proletariado e sua posição revolucionária, partindo da perspectiva desta classe como classe autodeterminada e sua luta política, desde a Liga dos Comunistas até a participação na Associação Internacional dos Trabalhadores, apenas confirma sua coerência entre o ideal a ser seguido no contexto da sociedade capitalista e sua ação efetiva.

As contribuições de Marx para pensar a questão dos intelectuais são muito mais amplas, pois vai além das referências diretas. Mas, mesmo desconsiderando o método dialético e materialismo histórico, a teoria das classes e do capitalismo, é importante ver que nas referências diretas aqui apresentadas existem elementos que podem nos fazer aprofundar algumas questões referentes aos intelectuais. Por exemplo, podemos deduzir da discussão de Marx que o papel dos intelectuais, tal como atribuído por eles mesmos, remete ao problema de qual classe representam. Assim, quando os intelectuais defendem a suposta “neutralidade valorativa”, “autonomia da arte” e outras fantasmagorias, revelam os interesses de classe dos quais são portadores. Estas e outras possibilidades dedutivas apenas mostram o potencial teórico da obra de Marx e que é contribuição fundamental para a compreensão da classe intelectual. Para os objetivos do presente texto, nos limitamos apenas às referências diretas que já são extremamente importantes para pensar a questão dos intelectuais. Esse é o primeiro passo para novas iniciativas no sentido de resgatar, em sentido mais amplo, as contribuições de Marx para a análise daqueles que são os especialistas na produção intelectual.

ABSTRACT: This article analyzes the approach of Marx on the intellectuals from their own references to them. The goal is to reconstruct Marx's conception of what they are intellectuals. In this sense, the article exposes Marx's critique of the ideologues, their conception of the role of intellectuals and their position before his intellectual duty.
Keywords: Marx, Intellectuals, Ideologues, Ideology, Revolutionary Praxis

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[1] Marx usa alguns termos relacionados, embora nem sempre equivalentes, como “ideólogos”, “representações intelectuais e literários” de uma determinada classe, “cientistas”, “filósofos”, “artistas”, entre outros. Em muitas passagens também não usa produção intelectual e sim “espiritual”, etc. Em algumas passagens usa o termo “intelectual”, como mostraremos adiante.

[2] Note-se que, aqui, Marx opõe o material e o ideal não no sentido da matéria física, como certo pseudomarxismo irá interpretar, e sim no sentido de algo real, prático, existente concretamente, em contraposição às formas de consciência, representações, ideal.

[3] Não desenvolveremos aqui a crítica da ideologia segundo Marx, pois isso demandaria muito mais tempo e remeteria a diversas obras que apenas mencionamos aqui e seria necessário aprofundar sua análise, tal como A Miséria da Filosofia, O Capital, A Sagrada Família, A Ideologia Alemã (de forma mais completa e englobando o segundo volume), Teorias da Mais-Valia, etc. O nosso foco, aqui, não é a crítica das ideologias e sim a crítica aos ideólogos. Sobre a crítica à ideologia, algumas obras já se dedicaram a sintetizar a abordagem de Marx (VIANA, 2010) e por isso não será necessário realizar isso no presente artigo.

[4] Os ideólogos emergem como indivíduos que vão se especializando na produção intelectual, mas em muitos casos essa especialização é ainda incipiente e mesclada com outras atividades e condição social. É por isso que entre os representantes do iluminismo existiam burgueses, aristocratas e pessoas mais especializadas no trabalho intelectual. É com o passar do tempo, a formação de instituições novas, como a universidade moderna e a instituição das ciências humanas e consolidação das ciências naturais separadas da filosofia, é que esse processo de especialização se consolida e fortalece o processo de constituição e consolidação da classe intelectual, o que ocorre no final do século 19.

[5] A discussão já existia antes, tal como no texto de Fichte (1999), 100 anos antes, sobre “a missão do erudito”. Contudo, não é difícil perceber que a obra de Fichte, assim como de outros antes do século 19, se referia ao “filósofo”, ao “erudito”, e não do intelectual enquanto membro de uma classe social específica, embora tenha uma certa relação e seja fonte de inspiração para os sucessores que irão realizar tal discussão.

[6] Esse é o caso de alguns historiadores ao discutir o iluminismo e pensam, com toda ingenuidade, de que ao apresentarem o fato de que alguns filósofos iluministas não eram burgueses, refutam a teoria marxista (FALCON, 1986; FORTES, 1985). O mesmo vale para o sociólogo Pierre Bourdieu (1996; VIANA, 2007).

[7] “Cada classe social cria os seus representantes políticos e literários e estes expressam os interesses da classe que representam. Podemos dizer que a burguesia e as suas classes auxiliares criam representantes ideológicos, ou, simplesmente, ideólogos, que sistematizam as ideias de sua classe elaborando ideologias. O proletariado, por sua vez, produz representantes teóricos que se encarregam de elaborar a teoria revolucionária desta classe” (VIANA, 2008, p. 61-62). O uso destes termos foi abandonado pela tradição pseudomarxista, mas foi utilizada pelo jovem Lukács (1989) e por Karl Korsch (1977), que usam “representantes ideológicos” e “filosóficos” (VIANA, 2008).

[8] Aqui podemos notar que os clássicos, devido a evolução histórica e luta de classes, são superados pelos novos ideólogos da burguesia, representados, no fundo, por novos tipos de pensadores, os intelectuais propriamente ditos. Veja que Marx afirma que com a economia apologética, não se trata mais de saber se algo é verdadeiro ou falso e sim útil ou não para o capital e revela os interesses dos economistas. Esses interesses dos “lacaios da pena” e sua “espadacharia mercenária” é o retorno financeiro, que revela a existência dos intelectuais venais, que se vendem ao capital e deixam de lado qualquer noção de autonomia ou dignidade da ciência. Os ecléticos, por sua vez, são mais dignos e tentam se autonomizar como intelectuais, defendendo a “dignidade da ciência”.

[9] Na época de Marx, as ideologias das classes auxiliares (burocracia, intelectualidade) da burguesia eram pouco desenvolvidas e estas classes não tinham se consolidado totalmente e por isso não era perceptível a existência de ideologias destas classes sociais. De qualquer forma, a ideologia das classes auxiliares da burguesia, devido sua própria posição de classe auxiliar, é apenas uma forma de aliança ideológica com a classe dominante. Apenas as frações mais radicalizadas, as mais marginais no interior da classe ou da sociedade, é que se autonomizam mais e buscam realizar discursos e ideologias “revolucionárias”, tal como no caso de Lênin e do bolchevismo, para citar apenas um exemplo.

[10] Há um problema de tradução do que ficou conhecido como “Teses Sobre Feuerbach” e que é de difícil solução, enquanto não se produz uma tradução portuguesa mais adequada. Aqui utilizamos a leitura do original alemão disponível na internet e diversas traduções portuguesas, especialmente a que está em anexo ao livro A Ideologia Alemã (MARX e ENGELS, 1991) e a que está exposta e comentada por Georges Labica (1990), sendo esta marcada por diversas observações sobre os termos em alemão, as traduções e alterações, inclusive as realizadas por Engels na segunda versão das Teses. Em algumas traduções, práxis é simplesmente traduzida como “prática”, o que é equivocado, tendo em vista que Marx usa as duas palavras (práxis e praktische) na versão original alemã, bem como “autotransformação”, palavra retirada na versão de Engels (LABICA, 1990), é substituída em alguns casos por “alteração de si próprio”. Obviamente que nenhuma tradução é neutra e é permeada por diversas opções técnicas, valorativas e de concepção do tradutor, bem como remete ao conhecimento da obra do autor e por isso existem muitos problemas, que são mais graves no caso de determinados pensadores, quando estes são mais complexos, polêmicos e envolvidos em lutas políticas, como é o caso de Marx.

[11] Marx distingue, a partir de Hegel, classe em-si e classe para-si. A primeira, no caso do proletariado, seria uma classe determinada pelo capital, ou seja, vivendo no interior do capitalismo e sofrendo suas determinações, não sendo ainda uma classe revolucionária, mas potencialmente revolucionária; a segunda é a classe autodeterminada, ou seja, revolucionária, na qual já criou sua associação para fazer valer seus interesses de classe, o que significa lutar e superar o capital.

[12] Muitos não compreendem as passagens em que Marx afirma “proletariado organizado como partido”, pensando que se trata de uma organização formal chamada partido político, que nem existia na época em que escreveu o Manifesto do Partido Comunista e não entendo que o significado da palavra partido era outro, queria simplesmente dizer de forma independente, autônoma, auto-organizado como classe social unificada, para defender seus interesses. Em síntese, como classe autodeterminada.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Marx e os Intelectuais. CSOnline - Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF  v. 1, n. 16 (7) jun./set. 2013.
http://csonline.ufjf.emnuvens.com.br/csonline/article/view/2655/1627

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