MARX
E OS INTELECTUAIS
Nildo
Viana
RESUMO: O presente
artigo analisa a abordagem de Marx a respeito dos intelectuais, a partir de
suas próprias referências aos mesmos. O objetivo é reconstituir a concepção de
Marx sobre o que são os intelectuais. Nesse sentido, o artigo expõe a crítica
de Marx aos ideólogos, a sua concepção sobre o papel dos intelectuais e sua
posição diante do que o intelectual dever.
Palavras-Chave: Marx,
Intelectuais, Ideólogos, Ideologia, Práxis Revolucionária
A discussão sobre os
intelectuais é bastante antiga e é perpassada não só por um conjunto de
problemas e questões como também por distintas concepções e interpretações.
Essa série de problemas surge desde a definição do que é ser intelectual, de
que tipo de grupo se trata (camada ou classe, as duas respostas mais frequentes
para tal pergunta), suas representações e autoimagem (mais conhecida através da
discussão sobre sua “missão”, “papel social”, “responsabilidade social” ou
“função”), além de questões históricas (os intelectuais sempre existiram ou
seriam produtos da sociedade moderna? Quando eles surgiram nessa sociedade?).
Nesse contexto, a obra de Marx é, muitas vezes, citada, mas analisada
superficialmente ou vista sob forma anacrônica, ou, ainda, sendo apenas
mencionado para ser substituído por outros autores, supostamente seus
sucessores (especialmente Gramsci). Além disso, a inexistência de qualquer
artigo ou análise mais profunda sobre a concepção de Marx sobre os
intelectuais, deixa claro uma lacuna que precisaria ser resolvida nessa
discussão.
Mas isso gera uma outra
questão: Marx discutiu a questão dos intelectuais? Na verdade, ele fez diversas
referências a diversos indivíduos que nós qualificamos como intelectuais, bem
como abordou diversas produções intelectuais e a relação entre tais produções/produtores
e as classes sociais. Contudo, ele raramente usa a palavra “intelectual”[1], e
focalizou sua discussão sobre a questão da ideologia. Isto pode ser explicado
pela época em que ele produziu suas ideias. A sua época era a do início da
consolidação da classe intelectual, e é mais para o fim da sua vida que isso se
cristaliza e a autoimagem dos intelectuais começa a se firmar e esta classe se
autonomiza. Nesse contexto, seria exigir muito para que ele elaborasse uma
teoria ou mesmo apresentasse uma concepção mais ampla da intelectualidade como
classe social.
Antes de passar para
análise da contribuição de Marx para a compreensão da questão dos intelectuais,
é necessário explicitar que aqui não será realizado uma mera descrição e
reprodução das ideias deste pensador e sim uma análise do conjunto da sua obra
visando extrair uma percepção mais profunda de sua concepção a respeito da
intelectualidade. Da mesma forma, fica claro aqui que o nosso foco não é no
signo (palavra) e sim no ser, no significado. Ou seja, não procuramos no texto
de Marx os usos da palavra “intelectual” e sim as referências que ele faz
àquilo que denominamos intelectualidade, a classe intelectual. Por conseguinte,
é necessário definir o que entendemos por este termo.
A intelectualidade é
uma classe social existente na sociedade capitalista composta por indivíduos
que possuem uma atividade fixa, derivada da divisão social do trabalho,
determinada, por sua vez, pelas relações de produção dominantes, pelo modo de
produção dominante. Essa atividade fixa expressa um modo de vida e interesses
comuns, bem como uma oposição comum a outras classes sociais. Essa atividade
fixa geradora de modo de vida, interesses e conflitos com outras classes, é,
fundamentalmente, o processo de produção cultural, o trabalho intelectual.
A intelectualidade é
composta por indivíduos especializados no trabalho intelectual, tais como
cientistas, filósofos, artistas, etc., o que gera um determinado modo de vida
específico desta classe, além de gerar interesses, valores, representações, e,
ainda, conflito com determinadas classes sociais. Ela é uma classe social cuja
função é a produção cultural e cujo papel é auxiliar a classe dominante,
capitalista, no processo de reprodução social. A partir do desenvolvimento
capitalista, torna-se cada vez mais uma classe de trabalhadores improdutivos,
cuja renda ou salário tem sua origem no mais-valor produzido no processo de
produção capitalista. Logo, é uma classe social auxiliar e, nesse caso, sua
autonomia é mais restrita do que no caso de outras classes, embora sempre
busque, como todas as demais, se autonomizar.
Essa concepção não é
tão distinta da de Marx, sendo que a diferença fundamental reside na percepção
do caráter de classe da intelectualidade, apenas vislumbrado por este pensador
em algumas passagens de sua obra. A sua análise crítica da ideologia e dos ideólogos
apenas revela o vínculo entre intelectualidade e burguesia, o que, no entanto,
não foi percebido por ele como classe específica e sim, num primeiro momento,
como parte da burguesia. Em alguns momentos ele coloca de forma mais
independente os “intelectuais de prestígio”, as “capacidades”, os “homens de
saber”, principalmente quando analisa as lutas de classes ou o papel do
intelectual e da ciência na produção capitalista. O seu foco, no entanto, foi
mais nas concepções dos intelectuais e menos em sua posição social e por isso é
necessário reconstituir sua crítica dos ideólogos, sua explicação sobre o que
os produtores de ideias (intelectuais) realmente expressam e o que deveriam
expressar (a concepção do que o intelectual dever ser), pois é nesse campo que
Marx fez contribuições mais diretas ao estudo dessa questão.
Crítica
dos Ideólogos
Um dos elementos
fundamentais da análise de Marx a respeito dos intelectuais é a questão da
ideologia. Marx foi um crítico radical das ideologias e um dos elementos fundamentais
de sua crítica reside na sua recusa de que ela tenha uma realidade própria e
autônoma. As ideologias são produtos sociais e históricos. Isto quer dizer que
são produtos humanos, ou seja, são seres humanos, históricos e sociais, que
produzem as ideologias, bem como as formas de consciência em geral. Por isso
ele diz que a consciência é nada mais nada menos do que o ser (indivíduo,
social e histórico) consciente. Segundo Marx e Engels:
A
produção de ideias, de representações, da consciência, está, de início,
diretamente entrelaçada com a atividade material e como intercambio material
dos homens, como a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o
intercambio espiritual dos homens, aparecem aqui como emanação direta de seu
comportamento material. O mesmo ocorre com a produção espiritual, tal como
aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da
metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações,
de suas ideias, etc., mas os homens reais e ativos, tal como se acham
condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e
pelo intercambio que a ele corresponde até chegar às suas formações mais
amplas. A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o
ser dos homens é o seu processo de vida real. E se, em toda ideologia, os
homens e suas relações aparecem invertidos como numa câmara escura, tal
fenômeno decorre de seu processo histórico de vida, do mesmo modo por que a
inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente
físico” (MARX e ENGELS, 1991, p. 36-37)[2].
Logo, para compreender
a ideologia é necessário entender a época e a sociedade em que ela é produzida,
bem como os seus produtores, os ideólogos[3].
Claro que, para Marx, ao contrário dos seus epígonos, a ideologia é um sistema
de pensamento ilusório, falsa consciência sistematizada. O caráter sistemático
da ideologia é explicado por ela não ser qualquer forma de consciência e por
isso a sua produção é fundamentalmente realizada por aqueles que possuem as
condições materiais para tal, ou seja, aqueles que estão livres do trabalho manual.
A
divisão do trabalho torna-se realmente divisão apenas a partir do momento em
que surge uma divisão entre o trabalho material e o espiritual. A partir deste
momento, a consciência pode realmente imaginar ser algo diferente da
consciência da práxis existente, representar realmente algo sem representar
algo real; desde este instante, a consciência está em condições de emancipar-se
do mundo e entregar-se à criação da teoria, da teologia, da filosofia, da
moral, etc., ‘puras’ (MARX e ENGELS, 1991, p. 45).
Marx coloca que a
primeira forma dos ideólogos teriam sido os sacerdotes. É nesse contexto,
marcado por outras divisões e contradições, tal como a nacional (que Marx
utiliza para explicar a ideologia alemã e suas ideias fora do lugar), emerge as
ideologias, formas fantasmagóricas de pensamento, que “representam realmente
algo sem representar algo real”. A divisão social do trabalho gera uma
atividade fixa e determinada para os indivíduos. Com ela, “fica dada a
possibilidade, mais ainda, a realidade, de que a atividade espiritual e a
material – a fruição e o trabalho, a produção e o consumo – caibam a indivíduos
diferentes” (MARX e ENGELS, 1991, p. 45). Desta forma, a divisão social do
trabalho que separa trabalho manual e intelectual produz indivíduos diferentes
para a produção de bens materiais e para a para a produção de ideias, cultura.
A classe dominante (que
em cada modo de produção é diferente, sendo que no capitalismo é a burguesia)
domina a produção material e, por conseguinte, a produção intelectual. Tal
classe possui não apenas os meios de produção material, mas também os meios de
produção intelectual. Por isso, as ideias dominantes são as ideias da classe
dominante. No entanto, para que isso seja convincente, é necessário que a
ideologia apresenta o interesse particular da classe dominante como interesse
geral da sociedade e separar as ideias dominantes dos indivíduos dominantes e
das relações geradas a cada fase do modo de produção, para concluir que a cada
etapa da história, as ideias sempre dominam. Assim, o processo de abstrair as
bases reais das ideologias (ideólogos, mudanças no modo de produção, etc.)
permite pensar que a história é a história dos grandes homens, das ideias, etc.
Para provar a supremacia das ideias na história, é necessário separar as ideias
dos dominantes dos próprios dominantes para que apareça como a dominação das
ideias na historia; produzir uma hierarquia na dominação das ideias,
estabelecendo uma “conexão mística” entre as ideias sucessivamente dominantes;
e, por fim, transformar o aspecto místico presente nessas ideias através da sua
corporificação numa pessoa ou numa série de pessoas, “os pensadores, os
filósofos, os ideólogos, concebidos como os fabricantes da história, como o
‘conselho dos guardiães’, como os dominantes” (MARX e ENGELS, 1991, p. 77).
Desta forma, entende-se
que a ideologia não surge do cérebro dos indivíduos arbitrariamente e nem que é
produto de sua genialidade ou debilidade. Os seus produtores são os ideólogos e
portanto é preciso entender estes para se entender as ideologias que eles
produzem. No entanto, o próprio Marx coloca que a corporificação das ideias
dominantes nos ideólogos é um truque da classe dominante para manter sua
dominação. A questão é que é preciso discutir quem são estes ideólogos. A
princípio, para Marx, tais ideólogos são indivíduos da classe dominante:
Os
indivíduos que constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas,
também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e
determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o façam em toda
sua extensão e, consequentemente, entre outras coisas, dominem também como
pensadores, como produtores de ideias; que regulem a produção e a distribuição
das ideias de seu tempo e que suas ideias sejam, por isso mesmo, as ideias
dominantes da época (MARX e ENGELS, 1991, p. 72).
Marx afirma que há uma
divisão do trabalho também no interior da classe dominante e que essa se
reproduz no caso da produção de ideologia:
A
divisão do trabalho [...] expressa-se também no seio da classe dominante como
divisão do trabalho espiritual e material, de tal modo que, no interior dessa
classe, uma parte aparece como os pensadores desta classe (seus ideólogos
ativos, conceptivos, que fazem da formação de ilusões desta classe a respeito
de si mesma seu modo principal de subsistência), enquanto que os outros
relacionam-se com estas ideias e ilusões de maneira mais passiva e receptiva,
pois são, na realidade, os membros ativos desta classe e têm pouco tempo para
produzir ideias e ilusões acerca de si próprios (MARX e ENGELS, 1991, p. 73).
Assim, os ideólogos são
indivíduos da classe dominante. No entanto, isso não quer dizer que todo
ideólogo pertence a tal classe. Em outro lugar, por exemplo, Marx cita os
“ideólogos em geral”, juristas e políticos. O ideólogo, nesse contexto, é um
especialista do trabalho intelectual, um indivíduo que se dedica à produção
intelectual, que pode ser um filósofo, jurista, cientista, teólogo, etc. Mas a
classe dominante possui os meios de produção intelectual e cria seus ideólogos
conceptivos, garantindo assim a dominância cultural, fazendo de suas ideias as
ideias dominantes.
Em Marx, nessa obra,
dedicada especialmente à ideologia alemã, há uma certa imprecisão conceitual no
que se refere aos ideólogos. Se por um lado a classe dominante cria seus
próprios ideólogos conceptivos e receptivos, pertencentes à própria classe, não
fica claro a posição dos demais ideólogos, que não pertencem à classe
dominante. Nas suas obras posteriores Marx vai avançar nesse processo de
análise dos ideólogos. Tendo em vista que A
Ideologia Alemã foi escrita em 1845-1846, numa Alemanha de capitalismo retardatário,
e com uma classe intelectual ainda em desenvolvimento e fortemente subordinada
à classe dominante, bem como convivendo com a existência de diversos ideólogos
dessa classe, isso é compreensível[4].
A autonomia da classe
intelectual era muito restrita e isso dificultava sua percepção enquanto classe
social. Além disso, o ideólogo, em Marx, não é a mesma coisa que o intelectual
no sentido oferecido pela sociologia dos intelectuais, ou seja, como camada
social ou classe social especializada. Em alguns textos, Marx começa a apontar
para a percepção de um grupo social especializado e autônomo formado pelos
intelectuais, mas o termo ideólogo é aplicado a todo indivíduo,
independentemente de classe, que produz um sistema de pensamento ilusório, uma
ideologia. Esses, obviamente, naquela época, eram pertencentes principalmente à
classe dominante, devido às condições e meios materiais para produção de
ideologia.
Em outras obras ele
coloca por diversas vezes a figura do intelectual não apenas como ideólogo, ou
seja, produtor de ideologia, mas como indivíduos submetidos à divisão social do
trabalho. Ele cita os cientistas, advogados e médicos como porta-vozes da
classe camponesa e da pequena-burguesia (MARX, 1986a). Aqui ele não só coloca
especialistas no trabalho intelectual desligados da classe dominante, mas
também os unifica ao dizer “em uma palavra as chamadas capacidades” (MARX, 1986a, p. 52). Já em O Capital, ele observa a dicotomia entre os trabalhadores e o
“homem de saber”:
O
homem do saber e o trabalhador produtivo estão amplamente separados um do
outro, e a ciência, em vez de nas mãos do trabalhador aumentar suas próprias
forças produtivas para ele mesmo, colocou-se contra ele em quase toda parte.
(...). O conhecimento torna-se um instrumento capaz de ser separado do trabalho
e oposto a ele (apud. MARX, 1988a, p. 271).
Desta forma, Marx
começa a perceber a posição dos indivíduos especialistas no trabalho
intelectual, mas não os define como uma classe social, apesar de alguns afirmarem
isso. Nesse sentido, Marx contribui com a compreensão dos ideólogos e,
indiretamente, dos intelectuais. Ao mostrar que a produção dos ideólogos é a
ideologia, sistema de pensamento ilusório, já coloca o problema da
intelectualidade, pois é esta que vai, paulatinamente, tomando o lugar dos
ideólogos burgueses e assumindo o seu papel, passando a ser uma classe auxiliar
da burguesia, como o próprio Marx começa a vislumbrar em suas obras
posteriores.
O
Papel dos Intelectuais
Uma das discussões mais
conhecidas no âmbito da filosofia e das ciências humanas é sobre o “papel”,
“missão”, “responsabilidade”, “vocação” do intelectual. Isso se refere tanto à
autoimagem que os intelectuais fazem de si como também ao que alguns julgam que
deveria ser a posição dos intelectuais. Marx, obviamente, não discutiu isso,
pois na sua época isso não estava em questão. A discussão sobre o papel dos
intelectuais começa a ganhar espaço com o chamado “Caso Dreyfus”, em 1894, 11
anos após a sua morte[5].
Contudo, Marx apresenta uma discussão sobre o que efetivamente fazem os
ideólogos e outros pensadores, bem como apresenta o que ele pensa que eles
deveriam fazer. Isso já é uma diferença significativa, pois muitos confundem o
que é um intelectual com o “dever-ser”, ou seja, com o que eles acham que ele
deveria ser. Em Marx não há esta confusão e por isso ele contribui também com
esta discussão.
A discussão sobre os
ideólogos já foi suficiente para esclarecer que os ideólogos são os produtores
de ideologias, sistemas de pensamento ilusórios e, portanto, servem aos
interesses da classe dominante. Porém, nem todos os pensadores (ou, num sentido
mais estrito, os intelectuais) são ideólogos e nem todos expressam os
interesses da classe burguesa. Marx utiliza os termos “representantes
intelectuais e literários” ou “representantes políticos e literários”, bem como
“representantes ideológicos”, “científicos”, “teóricos”, em algumas passagens
para expressar o que esses pensadores são efetivamente. Efetivamente, esses
pensadores, produtores de ideias e representações sobre a realidade, expressam
os interesses de uma ou outra classe social. Segundo Marx, ao discutir o papel
dos representantes democráticos, da socialdemocracia, e pequena-burguesia, a
relação entre classe e seus representantes é a seguinte:
O
que os torna representantes da pequena burguesia é o fato de que sua
mentalidade não ultrapassa os limites que esta não ultrapassa na vida, de que
são consequentemente impelidos, teoricamente, para os mesmos problemas e
soluções para os quais o interesse material e a posição social impelem, na
prática, a pequena burguesia. Esta é, em geral, a relação que existe entre os
representantes políticos e literários de uma classe e a classe que representam
(MARX, 1986b, 18, p. 48).
Desta forma, ao contrário do que os intérpretes
vulgares de Marx pensam, ele não deriva automaticamente os representantes literários
de uma classe do seu pertencimento de classe. Sem dúvida, e como se pode notar
na discussão sobre os ideólogos alemães, a tendência e o mais provável é que o
indivíduo que produz ideias seja representante intelectual de sua classe, mas
isso não é uma “lei”, algo inevitável e inexorável. É possível que um indivíduo
pertencente a uma classe represente literariamente outra e por isso um conjunto
de críticas de autores pouco conhecedores da obra de Marx é sem sentido[6].
Obviamente que, para saber por qual motivo um
determinado pensador não expressa os interesses de sua classe, é necessário
analisar o seu processo histórico de vida, tal como já anunciavam Marx e Engels
(1991) em relação ao processo de compreensão da produção de ideologias. Esses
representantes não ultrapassam os limites instransponíveis da consciência de
sua classe e tais limites são os limites da própria classe na sua vida
material, nos seus interesses. Assim, para Marx, os indivíduos que produzem
cultura, que realizam a produção intelectual (intelectuais ou não), são,
efetivamente, a manifestação dos interesses de classes. Logo, são
representantes (literários, ideológicos ou teóricos) das classes sociais. É
isso que ele afirma no livro A Miséria da
Filosofia: “assim como os economistas são os representantes científicos da
classe burguesa, os socialistas e os comunistas são os teóricos da classe
proletária” (MARX, 1989, p. 118)[7].
Esse é o processo
analítico utilizado por Marx. No entanto, quando ele analisa o caso específico
dos economistas políticos, ele avança para reconhecer as divergências internas
no interior daqueles que não ultrapassam o horizonte burguês. Marx analisa a
economia política colocando três tendências básicas, a clássica, a vulgar e a
eclética. A economia política clássica é a de Adam Smith e David Ricardo, que
atingiram o limite máximo da consciência burguesa e depois são sucedidos pelos
economistas vulgares, tal como Bastiat, que realiza a apologia do capitalismo,
e dos ecléticos, de Stuart Mill, que busca conciliar o inconciliável,
proletariado e burguesia. O processo histórico (e as diferenças nacionais,
quando se refere ao caso alemão) e o avanço da luta de classes promove esse
recuo da economia política e gera os “sicofantas” e “lacaios da pena”, os
economistas vulgares que buscam satisfazer seus interesses próprios se vendendo
para o capital. Os ecléticos, buscando manter a “dignidade professoral da sua
ciência”, tentam, por isso, unir as perspectivas burguesa e proletária[8].
Os produtos desses
ideólogos são ideologias, sob formas distintas, de acordo com suas divisões
internas, contexto nacional e histórico, entre outras determinações. Assim, os
ideólogos da classe dominante[9],
pertencentes ou não a ela, produzem sistemas de pensamento ilusórios, formas
diferenciadas de consciência ilusória e cujo grau de falsidade e veracidade
varia devido ao conjunto de determinações acima aludidas.
No entanto, não existem
apenas representantes ideológicos da classe dominante. Marx refere-se,
explicitamente, tal como colocamos anteriormente, nos “representantes teóricos”
do proletariado, os socialistas e comunistas. Nesse campo, no entanto, ele
também não poupa críticas, pois ele distingue entre várias formas de
“socialismo”, sendo que quanto mais distante estivesse uma concepção de
expressar teoricamente o movimento revolucionário do proletariado, mais forte é
a sua crítica. No início, suas críticas foram endereçadas ao “socialismo
utópico” e, posteriormente, foi estendido as formas de deformação do pensamento
socialista. Isso se deve ao fato de que Marx contextualiza historicamente o
socialismo utópico, sendo este considerado como produto de representantes
literários do proletariado, mas sendo que este estaria ainda em um processo de
formação ainda não completado. Nesse sentido, uma classe social formada de
maneira incipiente gera representantes intelectuais incipientes.
Na seção III do Manifesto Comunista, Marx critica as
várias tendências na “literatura socialista e comunista”. Nesse contexto, ela
aborda os representantes literários através do vínculo entre eles e as classes
sociais que representam. Num primeiro momento, ele aborda o “socialismo
reacionário”, composto por tendências que apontam para um retorno ao
pré-capitalismo. Inicialmente ele crítica os representantes do socialismo
feudal, “meio lamentação, meio escárnio; metade ecos do passado, metade ameaças
ao futuro; às vezes ferindo a burguesia no coração com sua crítica amarga,
mordaz e espirituosa, mas sempre produzindo um efeito cômico, devido à sua
absoluta incapacidade de compreender a marcha da história moderna” (MARX e ENGELS,
1988, p. 89). A sua principal crítica à burguesia é ter criado o proletariado,
a classe revolucionária que pode abolir as classes sociais em geral.
Ele também crítica os
representantes literários da pequena-burguesia, outra fração do socialismo
reacionário, que teria como maior representante Sismonde de Sismondi. Esta
tendência teria analisado “como muita perspicácia as contradições inerentes às
modernas relações de produção”, realizando uma forte crítica à sociedade
burguesa. No entanto, “quanto ao seu conteúdo positivo, tal socialismo ou
deseja restabelecer os antigos meios de produção e de troca”, restaurando “as
antigas relações de propriedade e a antiga sociedade”, ou deseja aprisionar à
força os meios de produção da sociedade moderna, novamente, aos quadros
restritos da sociedade feudal.
Ainda no interior do
socialismo reacionário, Marx aborda os representantes do chamado “socialismo
verdadeiro”, em moda na Alemanha. Ao contrário do caso francês, os
representantes literários dessa tendência eram os “filósofos, semifilósofos e
belos espíritos” que se inspiravam no caso francês, vivendo numa realidade bem
diferente (ou seja, é o que já havia criticado em A Ideologia Alemã, as ideias fora do lugar) e, representando a
pequena burguesia alemã, numa sociedade de capitalismo incipiente, “aparecia
apenas como uma especulação ociosa sobre a verdadeira sociedade, sobre a
realização da essência humana” (MARX e ENGELS, 1988, p. 91).
Se o socialismo
reacionário aglutina os representantes literários da classe feudal decadente,
da pequena-burguesia e do campesinato, os representantes da outra tendência
analisada por Marx, o socialismo conservador, representavam a burguesia, que
buscavam “remediar os males sociais para garantir a existência da sociedade
burguesa”. Eles pertecenm às seguintes categorias “economistas, filantropos,
humanitários, os que pretendem melhorar a situação da classe operária,
organizadores de beneficências, protetores dos animais, fundadores de
sociedades de temperança, reformadores obscuros de toda espécie” (MARX e ENGELS,
1988, p. 94). A concepção de tais representantes literários da burguesia pode
ser assim resumida: “os burgueses socialistas querem as condições de vida da
sociedade moderna sem as lutas e os perigos que delas necessariamente
decorrem”, ou seja, sem a classe revolucionária, o proletariado.
Por fim, Marx aborda os
representantes literários do socialismo e comunismo crítico-utópicos (Babeuf,
Saint-Simon, Fourier, Owen, etc.). Essa literatura acompanhou as primeiras
lutas do proletariado numa sociedade capitalista ainda em desenvolvimento,
faltando-lhe as condições materiais adequadas e por isso seu conteúdo é
“forçosamente reacionário”, “preconiza um ascetismo universal e um grosseiro
igualitarismo” (MARX e ENGELS, 1988, p. 95). Devido ao fato do proletariado
ainda não ter desenvolvido sua força revolucionária,
“Os
inventores desses sistemas reconhecem, sem dúvida, o antagonismo das classes,
assim como a eficácia dos elementos dissolventes da própria sociedade
dominante. Mas não vêem nenhuma atividade histórica autônoma da parte do
proletariado, nenhum movimento político que lhe seja próprio [...]. No lugar da
atividade social precisam colocar sua própria atividade pessoal inventiva; no
lugar das condições históricas de emancipação, condições fantásticas; no lugar
da organização gradual do proletariado em classe, uma organização da sociedade pré-fabricada por eles mesmos. A
futura história do mundo, para eles, resolve-se na propaganda e na realização
prática dos seus planos de sociedade” (MARX e ENGELS, 1988, p. 96).
Eles defendem os
interesses da classe operária mas apenas como “classe que mais sofre”, querem
melhorar a vida de todos na sociedade, até dos mais privilegiados e “não cessam
de apelar indistintamente para toda a sociedade e de preferência para a classe
dominante” (MARX e ENGELS, 1988, p. 96). Porém, os escritos dos representantes
do socialismo utópico possuem elementos críticos: “atacam todas as bases da
sociedade existente. Por isso, forneceram valioso material para o
esclarecimento dos operários” (MARX e ENGELS, 1988, p. 96). As suas proposições
positivas, contudo, possuem um “sentido puramente utópico”. Como expressão de
uma época de um proletariado ainda incipiente, com o de histórico da luta de
classes, perdem importância e seus discípulos que se apegam às suas teses em
outro contexto, de capitalismo desenvolvido, criam seitas reacionárias e caem
nas fileiras do socialismo reacionário ou conservador.
Essa análise de Marx
dos representantes literários do “socialismo” mostra que representam
determinadas classes sociais e que apesar dos nomes (socialismo, comunismo,
etc.) estão perpassados por interesses de distintas classes em luta. Isso
ocorre na filosofia alemã, na economia política inglesa e no socialismo
francês, como em todas as outras manifestações literárias existentes.
Nesse sentido, relacionando
essa análise de Marx com a produção sobre o papel dos intelectuais, se observa
que estes tem seu papel intimamente inserido no conjunto das relações sociais e
por isso representam uma ou outra classe social. O seu papel real, concreto,
existente realmente, é o de expressar as classes sociais e seus interesses, e
os “literatos” representam, no fundo, a classe dominante ou outras classes que
não ultrapassam os limites da perspectiva da sociedade burguesa.
O
que deve ser o intelectual?
Na discussão sobre o
“papel”, “missão”, “vocação”, “responsabilidade” do intelectual, muitos
pensadores confundem o que o intelectual realmente é e o que ele deve ser.
Alguns dizem apenas o que os intelectuais são realmente, outros dizem o que
eles devem ser, enquanto que alguns confundem ambos, tomando um pelo outro,
considerando que o que é deve ser ou o que deve ser é o que é. A abordagem de
Marx que resumimos acima apresenta o que são os representantes literários das
classes sociais, mostrando seu vínculo com determinada perspectiva de classe,
manifestando interesse de uma ou outra classe social. Contudo, Marx não se
limitou a isso. Ele também diz o que tais representantes, próximos da figura do
intelectual, devem ser.
Uma célebre frase dele,
ao abordar o caso dos filósofos, aponta para essa concepção do que o
intelectual deve ser: “os filósofos se
limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é
transformá-lo” (MARX, 1991, p. 14). Nesse sentido, Marx concebe uma unidade
entre pensamento e ação, intelectual e revolucionário.
O conceito de práxis é exatamente esse processo
unitário entre pensamento e ação. Nesse sentido, Marx não faz o elogio da
especialização e muito menos da divisão entre trabalho intelectual e manual.
Pelo contrário, ele era um crítico da especialização e divisão social do
trabalho e propunha a sua abolição. No contexto da sociedade burguesa, a sua
proposta é a práxis revolucionária. É
por isso que Marx reprova Feuerbach, por que “não compreende a importância da atividade
‘revolucionária’, prático-crítica” (MARX, 1991, p. 12). Segundo Marx, o ser
humano é, fundamentalmente, um ser ativo e social, e sua atividade é práxis, ou
seja, é teleológica consciente, ao contrário do trabalho animal (MARX, 1988a) e
isso ocorre através da cooperação (MARX e ENGELS, 1991), por isso o ser humano
é, simultaneamente, um ser ativo e um ser social (MARX, 1983).
Cabe aos indivíduos que
são representantes literários, políticos, de uma classe, efetivar a sua
atividade revolucionária sob a forma teleológica consciente, como práxis
revolucionária, prático-crítica. É nesse sentido que Marx irá afirmar que a
coincidência da transformação das circunstâncias e da autotransformação só pode
ser compreendida como práxis
revolucionária (MARX, apud. LABICA, 1990)[10]. Desta
forma, a posição de Marx sobre o que deve ser o intelectual – no sentido de
produtor de ideias, seja ou não um profissional – é a unidade indissolúvel
entre prática e crítica, visando a transformação social, ou, em síntese,
efetivar uma práxis revolucionária.
Nesse sentido, a teoria
é uma práxis revolucionária, pois ela visa a transformação radical da sociedade
e não é meramente contemplativa, como no materialismo vulgar. O seu alvo é a
realidade concreta e seu objetivo é sua transformação. Não se trata de realizar
a separação entre teoria e realidade. Não existe tal separação na realidade
concreta, pois a teoria é parte, produto e expressão da realidade e se volta
para ela, visando transformá-la. Também não existe tal separação na análise que
esta faz seja da teoria seja da realidade, pois elas são inseparáveis: não é
possível explicar a teoria sem analisar a realidade que lhe produz e nem é
possível compreender a realidade sem a teoria que a explica. E isso não é feito
apenas por “passatempo”, sob a forma coisificada ou contemplativa, e sim sob a
forma ativa, visando entender/explicar para transformar. Nesse processo, o que
ocorre é uma atividade, mental, mas que tem sua origem na realidade e que
analisa a realidade para explicá-la e transformá-la. Ela é teleológica, pois
visa a sua transformação, e é consciente. No entanto, a ação prática se faz
necessária e deve complementar a ação teórica, pois a transformação necessita
da ação. Nesse sentido, a crítica é um dos elementos fundamentais nesse
processo, e engloba a crítica do modo de produção, das ideologias e todo o
conjunto das relações sociais. A crítica fundada na teoria, no entanto, visa
constituir o novo, a nova sociedade, o comunismo: “A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não
para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas para
que rompa com as cadeias e apanhe a flor viva” (Marx, 1968, p. 10).
A ação teórica é
teórico-prática, visa a crítica e superação da sociedade burguesa. Essa ação,
no entanto, não é vista por Marx sob a forma voluntarista, como se bastasse a
ação ou a vontade do indivíduo (ou dos intelectuais ou, ainda, dos
representantes literários do proletariado) para que ocorra a transformação
social. É preciso que tanto a teoria quanto a prática esteja unificadas tendo
por base condições sociais reais, o que remete ao problema do proletariado. O
socialismo utópico era uma expressão incipiente de um movimento operário ainda
em formação e o socialismo científico emerge a partir do proletariado que
avança em seu processo de constituição como classe autodeterminada[11].
Nesse sentido, é necessário, para que a teoria e a crítica que lhe acompanha
assumir a radicalidade necessária, que se parta da perspectiva do proletariado
(MARX, 1988a). Contudo, tal perspectiva é do proletariado como classe
autodeterminada, pois ou ele “é revolucionário ou não é nada” (apud, RUBEL,
1974).
Nesse contexto, os
comunistas, como o próprio Marx, são os representantes teóricos do proletariado
e devem produzir teorias e realizar a crítica da sociedade burguesa partindo de
sua perspectiva. Mas também devem agir, ou seja, devem complementar sua negação
teórica com a negação prática do capitalismo. Segundo Marx, “os comunistas
lutam para alcançar os interesses e objetivos imediatos da classe operária, mas
no movimento presente representam ao mesmo tempo o futuro do movimento” (MARX e
ENGELS, 1988, p. 98). Eles “não tem interesses distintos dos interesses do
conjunto do proletariado”; “representam sempre os interesses do movimento em
seu conjunto” (MARX e ENGELS, 1988, p. 79).
Na
prática, portanto, os comunistas constituem a parte mais resoluta dos partidos
operários de todos os países, a parte que impulsiona sempre mais avante; quanto
à teoria, têm sobre a restante massa do proletariado a vantagem de uma
compreensão das condições, do andamento e dos resultados gerais do movimento
proletário (MARX e ENGELS, 1988, p. 79).
Marx ainda coloca que o
objetivo dos comunistas é a constituição do proletariado como classe autodeterminada[12] e
derrubada da dominação burguesa. Desta forma, o que Marx coloca é que o papel
dos “intelectuais” (profissionais ou não) é, no fundo, expressar teoricamente o
movimento revolucionário do proletariado, realizar a crítica desapiedada do
existente, e lutar pela abolição das relações de produção capitalistas e do
Estado (MARX e ENGELS, 1991). Aqui temos toda uma discussão sobre a práxis
revolucionária, apenas mencionada nas Teses
Sobre Feuerbach.
Essa posição de Marx em
relação aos comunistas, que são os representantes teóricos do proletariado, mostra
qual é o papel que ele atribuiria aos intelectuais no sentido do que eles
deveriam ser. Nas passagens em que ele se aproxima de uma análise mais
direcionada para a classe intelectual, tal como a concebemos, ele reafirma o
que já havia colocado em outras oportunidades. Ao criticar os economistas
políticos como “mercenários”, coloca uma relação extremamente atual que é os
intelectuais se venderem para o capital em troca de dinheiro e privilégios,
algo que se tornou muito mais comum e corriqueiro após as críticas de Marx. Mas
já na sua época ele alertava: “é preciso ganhar dinheiro para viver e escrever,
mas não se deve viver e escrever para ganhar dinheiro” (MARX, apud, Marx e
ENGELS, 1986). Em síntese, essa é a contribuição de Marx para se pensar o papel
dos intelectuais numa perspectiva marxista.
Considerações
Finais
A contribuição de Marx
para se pensar hoje a questão da classe intelectual é importante sob diversos
aspectos. Obviamente que sua teoria do capitalismo, bem como sua teoria das
classes sociais, são fundamentais para compreender tal classe, suas representações,
suas ideologias, sua posição social e política, entre outras coisas, assim como
o método dialético e materialismo histórico. Contudo, nosso objetivo não foi
utilizar as diversas possíveis contribuições de Marx (método dialético,
materialismo histórico, teoria do capitalismo, teoria das classes socais, etc.)
para analisar a classe intelectual ou os intelectuais na sociedade moderna e
sim observar como ele abordou mais diretamente a questão dos intelectuais
apesar do seu foco diferenciado.
O foco de Marx é a
ideologia, os ideólogos, os representantes literários das classes sociais, os
filósofos, os cientistas, entre outros temas, que tem relação direta com a
questão dos intelectuais, mas cujo significado aponta não para uma classe
social (ou posição social), ou seja, não focalizando a condição social dos
intelectuais e sim para um sentido mais geral de “produtores de ideias”,
vinculando as produções intelectuais com a classe social a qual expressam os
interesses.
No entanto, as
reflexões de Marx a esse respeito acabam contribuindo para se pensar alguns dos
aspectos mais discutidos em relação aos intelectuais, tal como enfatizamos
aqui: o papel dos intelectuais e o que deve ser um intelectual. E, nesse caso,
há uma coerência entre o que ele defendeu e o que ele efetivamente fez, ou
seja, Marx, durante sua vida, esteve de acordo com sua ideia de práxis
revolucionária como o modo de ser de um representante teórico do proletariado.
Marx realizou o que ele
propunha: a crítica das ideologias, a crítica da realidade concreta, unidade de
crítica teórica e projeto de transformação social radical, unidade de crítica
teórica e prática revolucionária. Afinal, grande parte de sua obra é uma
crítica das ideologias, desde a filosofia alemã até a economia política, bem
como a sua análise das lutas de classes na França e outros países e sua teoria
do modo de produção capitalista mostra a sua crítica da realidade social
expressa pelo capitalismo. E sua crítica nunca foi a “crítica pela crítica” e
sim para a superação da situação criticada, a transformação revolucionária da
sociedade capitalista. Da mesma forma, o seu vínculo teórico e prático com o
proletariado e sua posição revolucionária, partindo da perspectiva desta classe
como classe autodeterminada e sua luta política, desde a Liga dos Comunistas
até a participação na Associação Internacional dos Trabalhadores, apenas
confirma sua coerência entre o ideal a ser seguido no contexto da sociedade
capitalista e sua ação efetiva.
As contribuições de
Marx para pensar a questão dos intelectuais são muito mais amplas, pois vai além
das referências diretas. Mas, mesmo desconsiderando o método dialético e
materialismo histórico, a teoria das classes e do capitalismo, é importante ver
que nas referências diretas aqui apresentadas existem elementos que podem nos
fazer aprofundar algumas questões referentes aos intelectuais. Por exemplo,
podemos deduzir da discussão de Marx que o papel dos intelectuais, tal como
atribuído por eles mesmos, remete ao problema de qual classe representam.
Assim, quando os intelectuais defendem a suposta “neutralidade valorativa”,
“autonomia da arte” e outras fantasmagorias, revelam os interesses de classe
dos quais são portadores. Estas e outras possibilidades dedutivas apenas
mostram o potencial teórico da obra de Marx e que é contribuição fundamental
para a compreensão da classe intelectual. Para os objetivos do presente texto,
nos limitamos apenas às referências diretas que já são extremamente importantes
para pensar a questão dos intelectuais. Esse é o primeiro passo para novas
iniciativas no sentido de resgatar, em sentido mais amplo, as contribuições de
Marx para a análise daqueles que são os especialistas na produção intelectual.
ABSTRACT: This article analyzes the approach of Marx
on the intellectuals from their own references to them. The goal is to
reconstruct Marx's conception of what they are intellectuals. In this sense,
the article exposes Marx's critique of the ideologues, their conception of the role
of intellectuals and their position before his intellectual duty.
Keywords: Marx, Intellectuals, Ideologues, Ideology,
Revolutionary Praxis
Referências
BOURDIEU,
Pierre. As Regras da Arte. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.
FALCON,
Francisco. O Iluminismo. São Paulo:
Ática, 1986.
FICHTE,
Johann Gottlieb. Sobre a Missão do Erudito. In: BASTOS, Elide Rugai e RÊGO,
Walquíria D. L. Intelectuais e Política.
A Moralidade do Compromisso. São Paulo: Olho D’Agua, 1999.
FORTES, Luiz
Roberto Salinas. O Iluminismo e os Reis
Filósofos. 2a edição, São Paulo: Brasiliense, 1985.
KORSCH, Karl. Marxismo
e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.
LABICA,
Georges. As “Teses Sobre Feuerbach” de
Karl Marx. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
LUKÁCS, G. História
e Consciência de Classe. 2ª Edição, Rio de Janeiro: Elfos, 1989.
MARX, Karl e ENGELS,
Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São
Paulo, Hucitec, 1991.
_____, Karl e _____, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.
Petrópolis, Vozes, 1988.
_____, Karl e _____, Friedrich. Sobre
Literatura e Arte.
São Paulo, Global, 1986.
MARX, Karl. A
Miséria da Filosofia. 2ª Edição, São Paulo, Global, 1989.
_____, Karl. As
Lutas de Classes na França (1848 - 1850). São Paulo, Global, 1986a.
_____,
Karl. Critica de la Filosofia del Derecho
de Hegel. Notas Aclaratórias de Rodolfo Mondolfo. Buenos Aires, Ediciones
Nuevas, 1968.
_____, Karl. Manuscritos
Econômicos e Filosóficos. In: FROMM,
E. O Conceito Marxista do Homem. 8ª
Edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
_____, Karl. O
Capital. Vol 1. 3ª Edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988a.
_____, Karl. O
Dezoito Brumário e Cartas A Kugelman. 5ª Edição, Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986b.
_____,
Karl. Teses Sobre Feuerbach. In: MARX,
Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São
Paulo: Hucitec, 1991.
RUBEL,
Maximilien (org.). Páginas Escogidas de
Marx para uma Ética Socialista. Vol. 2. Buenos Aires: Amorrortu, 1974.
VIANA,
Nildo. A Esfera Artística. Marx,
Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte. Porto Alegre: Zouk, 2007.
_____,
Nildo. Cérebro e Ideologia. Uma
Crítica ao Determinismo Cerebral. Jundiaí: Paco, 2010.
_____, Nildo. O Que
é Marxismo? Rio de Janeiro, Elo, 2008.
[1] Marx usa alguns termos
relacionados, embora nem sempre equivalentes, como “ideólogos”, “representações
intelectuais e literários” de uma determinada classe, “cientistas”,
“filósofos”, “artistas”, entre outros. Em muitas passagens também não usa
produção intelectual e sim “espiritual”, etc. Em algumas passagens usa o termo
“intelectual”, como mostraremos adiante.
[2] Note-se que, aqui, Marx opõe o
material e o ideal não no sentido da matéria física, como certo pseudomarxismo
irá interpretar, e sim no sentido de algo real, prático, existente
concretamente, em contraposição às formas de consciência, representações,
ideal.
[3] Não desenvolveremos aqui a
crítica da ideologia segundo Marx, pois isso demandaria muito mais tempo e
remeteria a diversas obras que apenas mencionamos aqui e seria necessário
aprofundar sua análise, tal como A
Miséria da Filosofia, O Capital, A Sagrada Família, A Ideologia Alemã (de
forma mais completa e englobando o segundo volume), Teorias da Mais-Valia, etc. O nosso foco, aqui, não é a crítica das
ideologias e sim a crítica aos ideólogos. Sobre a crítica à ideologia, algumas
obras já se dedicaram a sintetizar a abordagem de Marx (VIANA, 2010) e por isso
não será necessário realizar isso no presente artigo.
[4] Os ideólogos emergem como indivíduos
que vão se especializando na produção intelectual, mas em muitos casos essa
especialização é ainda incipiente e mesclada com outras atividades e condição
social. É por isso que entre os representantes do iluminismo existiam
burgueses, aristocratas e pessoas mais especializadas no trabalho intelectual.
É com o passar do tempo, a formação de instituições novas, como a universidade
moderna e a instituição das ciências humanas e consolidação das ciências
naturais separadas da filosofia, é que esse processo de especialização se
consolida e fortalece o processo de constituição e consolidação da classe
intelectual, o que ocorre no final do século 19.
[5] A discussão já existia antes,
tal como no texto de Fichte (1999), 100 anos antes, sobre “a missão do erudito”.
Contudo, não é difícil perceber que a obra de Fichte, assim como de outros
antes do século 19, se referia ao “filósofo”, ao “erudito”, e não do
intelectual enquanto membro de uma classe social específica, embora tenha uma
certa relação e seja fonte de inspiração para os sucessores que irão realizar
tal discussão.
[6] Esse é o caso de alguns
historiadores ao discutir o iluminismo e pensam, com toda ingenuidade, de que ao
apresentarem o fato de que alguns filósofos iluministas não eram burgueses,
refutam a teoria marxista (FALCON, 1986; FORTES, 1985). O mesmo vale para o
sociólogo Pierre Bourdieu (1996; VIANA, 2007).
[7] “Cada classe
social cria os seus representantes políticos e literários e estes expressam os
interesses da classe que representam. Podemos dizer que a burguesia e as suas
classes auxiliares criam representantes ideológicos, ou, simplesmente, ideólogos,
que sistematizam as ideias de sua classe elaborando ideologias. O proletariado, por sua vez, produz
representantes teóricos que se encarregam de elaborar a teoria
revolucionária desta classe” (VIANA, 2008, p. 61-62). O uso destes termos foi
abandonado pela tradição pseudomarxista, mas foi utilizada pelo jovem Lukács
(1989) e por Karl Korsch (1977), que usam “representantes ideológicos” e
“filosóficos” (VIANA, 2008).
[8] Aqui podemos notar que os
clássicos, devido a evolução histórica e luta de classes, são superados pelos
novos ideólogos da burguesia, representados, no fundo, por novos tipos de
pensadores, os intelectuais propriamente ditos. Veja que Marx afirma que com a
economia apologética, não se trata mais de saber se algo é verdadeiro ou falso
e sim útil ou não para o capital e revela os interesses dos economistas. Esses
interesses dos “lacaios da pena” e sua “espadacharia mercenária” é o retorno
financeiro, que revela a existência dos intelectuais venais, que se vendem ao
capital e deixam de lado qualquer noção de autonomia ou dignidade da ciência.
Os ecléticos, por sua vez, são mais dignos e tentam se autonomizar como
intelectuais, defendendo a “dignidade da ciência”.
[9] Na época de Marx, as ideologias
das classes auxiliares (burocracia, intelectualidade) da burguesia eram pouco
desenvolvidas e estas classes não tinham se consolidado totalmente e por isso
não era perceptível a existência de ideologias destas classes sociais. De
qualquer forma, a ideologia das classes auxiliares da burguesia, devido sua
própria posição de classe auxiliar, é apenas uma forma de aliança ideológica
com a classe dominante. Apenas as frações mais radicalizadas, as mais marginais
no interior da classe ou da sociedade, é que se autonomizam mais e buscam
realizar discursos e ideologias “revolucionárias”, tal como no caso de Lênin e
do bolchevismo, para citar apenas um exemplo.
[10] Há um problema de tradução do
que ficou conhecido como “Teses Sobre
Feuerbach” e que é de difícil solução, enquanto não se produz uma tradução
portuguesa mais adequada. Aqui utilizamos a leitura do original alemão
disponível na internet e diversas traduções portuguesas, especialmente a que
está em anexo ao livro A Ideologia Alemã
(MARX e ENGELS, 1991) e a que está exposta e comentada por Georges Labica
(1990), sendo esta marcada por diversas observações sobre os termos em alemão,
as traduções e alterações, inclusive as realizadas por Engels na segunda versão
das Teses. Em algumas traduções, práxis
é simplesmente traduzida como “prática”, o que é equivocado, tendo em vista que
Marx usa as duas palavras (práxis e praktische) na versão original alemã,
bem como “autotransformação”, palavra retirada na versão de Engels (LABICA,
1990), é substituída em alguns casos por “alteração de si próprio”. Obviamente
que nenhuma tradução é neutra e é permeada por diversas opções técnicas,
valorativas e de concepção do tradutor, bem como remete ao conhecimento da obra
do autor e por isso existem muitos problemas, que são mais graves no caso de
determinados pensadores, quando estes são mais complexos, polêmicos e
envolvidos em lutas políticas, como é o caso de Marx.
[11] Marx distingue, a partir de
Hegel, classe em-si e classe para-si. A primeira, no caso do proletariado,
seria uma classe determinada pelo capital, ou seja, vivendo no interior do
capitalismo e sofrendo suas determinações, não sendo ainda uma classe
revolucionária, mas potencialmente revolucionária; a segunda é a classe
autodeterminada, ou seja, revolucionária, na qual já criou sua associação para
fazer valer seus interesses de classe, o que significa lutar e superar o
capital.
[12] Muitos não compreendem as
passagens em que Marx afirma “proletariado organizado como partido”, pensando
que se trata de uma organização formal chamada partido político, que nem
existia na época em que escreveu o Manifesto do Partido Comunista e não entendo
que o significado da palavra partido era outro, queria simplesmente dizer de
forma independente, autônoma, auto-organizado como classe social unificada,
para defender seus interesses. Em síntese, como classe autodeterminada.
Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Marx e os Intelectuais. CSOnline - Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF v. 1, n. 16 (7) jun./set. 2013.
http://csonline.ufjf.emnuvens.com.br/csonline/article/view/2655/1627
Nenhum comentário:
Postar um comentário