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sexta-feira, 17 de julho de 2015

MANIFESTAÇÕES POPULARES E LUTAS DE CLASSES


MANIFESTAÇÕES POPULARES E LUTAS DE CLASSES

Nildo Viana

As recentes manifestações populares ganharam um grande espaço nos meios oligopolistas de comunicação, nas conversas cotidianas e em diversos outros locais. Suscitaram diferentes interpretações e análises, como todos os movimentos e mobilizações geralmente fazem. A tarefa de analisar tais manifestações é importante para a sua própria continuidade e reformulação e é feita pelos seus integrantes mais ativos, mas também pelos menos ativos e até por seus adversários e que estão alheios e longe dos acontecimentos. O nosso objetivo é analisar o significado de tais manifestações para a sociedade atual e suas possíveis consequências no processo de luta de classes a partir de agora.
Um primeiro ponto é recordar a historicidade de tais manifestações. Elas emergem como resultado do desenvolvimento capitalista, no qual o regime de acumulação integral (caracterizado pelo neoliberalismo, toyotismo e neoimperialismo) vem se desgastando e encontrando dificuldades crescentes de reprodução. Em outro lugar já desenvolvemos uma análise desse processo e não o repetiremos aqui (VIANA, 2013). O novo regime de acumulação traz em si o processo de intensificação geral da exploração, tal como alguns pesquisadores colocaram (VIANA, 2009; BOURDIEU, 1998; VIANA, 2003). Apesar disso, as ideologias dominantes (neoliberal, pós-estruturalista, etc.) conseguiram produzir um recuo do pensamento crítico-revolucionário que somente a partir dos anos 2000 começou a reemergir com mais força, mas muitas vezes mesclado e domesticado por essas mesmas ideologias. De qualquer forma, o ressurgimento do anarquismo, o avanço de um marxismo antes desconhecido e externo aos partidos políticos (Debord e o situacionismo, comunismo de conselhos, etc.) fez emergir uma cultura contestadora, embora marginal. As lutas sociais também avançaram após a era de conservadorismo e estabilidade fundada na repressão e hegemonia burguesa fortemente estruturada.
No caso brasileiro, as políticas neoliberais foram se consolidando e ganhou a face neopopulista do Partido dos Trabalhadores no governo (primeiro Lula e depois Dilma). A insatisfação se manifestava através de alguns poucos intelectuais críticos, alguns indivíduos militantes, grupos anarquistas, autonomistas e autogestionários, e de forma subterrânea por vários setores da sociedade. Na maioria dos casos, a insatisfação existia, mas não se manifestava. A política institucional (democracia burguesa) foi perdendo cada vez mais legitimidade. O aumento do voto nulo (VIANA, 2010), bem como os votos em branco e abstenções, foi crescendo paulatinamente. O silenciamento da oposição com a vitória do PT – Partido dos Trabalhadores, a grande oposição institucional (ou seja, dentro das regras do jogo) e que movia ilusões, reforçou esse processo. Os seus aparatos (CUT – Central Única dos Trabalhadores; MST – Movimento dos Sem-Terra; sem falar nos sindicatos, movimentos sociais, etc. e sem falar noutros aparatos dominados por seus partidos aliados, como o PCdoB – Partido Comunista do Brasil, especialmente a UNE – União Nacional dos Estudantes) foram domesticados e a oposição de direita nada apontava de novo e alternativo e a suposta “esquerda” além de ultrapassada e fora da realidade, não tinha nenhuma grande força mobilizadora e não servia para inspiração popular, além de não se diferenciar tanto do partido governista. O governo Dilma nasceu ilegítimo, pois foi uma minoria da população que lhe apoiou eleitoralmente (VIANA, 2010). As pesquisas de opinião pública lhe davam uma popularidade falsa e que as manifestações serviram para demonstrar e agora as mesmas pesquisas começam a mostrar a realidade ao invés da farsa.
É nesse contexto de perda de legitimidade da democracia representativa-burguesa e num contexto de diminuição do crescimento econômico, um dos elementos mais propagandeados do governo federal, bem como corrosão do poder aquisitivo dos salários com o aumento da inflação, entre outros aspectos, formam uma situação de descontentamento de amplas parcelas da população. Um dos elementos de insatisfação era o transporte coletivo que, em todo o país, é de má qualidade e tarifas relativamente elevadas. Segundo alguns cálculos, o gasto com tarifas de transporte significava em torno de 27% do salário mínimo.
É neste contexto que emerge as manifestações e protestos por todo o país. Num primeiro momento, pela composição social e reivindicações, tratava-se de manifestações estudantis (universitários e secundaristas), que expressam um dos setores mais avançados politicamente da sociedade brasileira. Através de algumas formas de auto-organização, diversos grupos estudantis, especialmente o MPL – Movimento Passe Livre, faziam reivindicações para os estudantes (o passe livre) e para o restante da população (não aumento do preço da passagem). A ação estatal foi recusar atender a reivindicação e usar a violência estatal contra os manifestantes. O caso do dia 28 de maio em Goiânia, na sequência de outras realizadas, tal como em Porto Alegre, foi aquele no qual a truculência e política de terror de Estado apareceu de forma mais cristalina e geraram protestos e apoio popular, o que foi reforçado por outras manifestações e pelas notícias na grande imprensa e até no exterior. O governo mantinha sua posição de “política de endurecimento”, recusando negociar e afirmando que não voltaria atrás, tal como no caso exemplar de São Paulo, quando o prefeito Fernando Haddad disse que não recuaria. A grande imprensa condenava os protestos e manteve essa posição por algum tempo.
Foi nesse contexto que as manifestações estudantis geraram manifestações populares espontâneas. Ao lado das reivindicações estudantis, diversos outros setores da população passaram a se manifestar e apresentar diversas outras reivindicações. A população nas ruas atingiu grandes proporções e num primeiro momento a grande imprensa condenou e o governo silenciou e, num segundo momento, passaram a aceitar os protestos, mas querendo lhe dar um caráter “pacífico” e de “união nacional”, o que influenciou diversos setores da população, mas não a totalidade. As manifestações estudantis continuaram ocorrendo, às vezes junto com as manifestações populares, às vezes de forma isolada. As manifestações populares explodiram por todo o país, inclusive em pequenas cidades do interior.
Mais recentemente, outros setores da sociedade passaram a se inserir trazendo novas reivindicações, como estrutura urbana, preço de passagens e alguns passaram a defender aumentos salariais, redução da jornada de trabalho, greve geral, entre outras reivindicações tipicamente de trabalhadores. Por outro, os velhos e desgastados partidos de “esquerda” tentaram se aproximar da população, apesar de sua evidente recusa. A imprensa manteve o jogo de apoiar, mas agora contestando os setores mais radicais, acusados de “vandalismo”. O governo federal (bem como parte dos demais) muda sua estratégia e passa a reconhecer a legitimidade dos protestos, mas, tal como a grande imprensa, fazendo questão de distinguir “manifestantes pacíficos” e “vândalos” e posteriormente passa a querer acalmar os ânimos através de promessas e atendimento parcial e moderado de parte das reivindicações. O não aumento dos preços das passagens, a não aprovação da PEC 37, as propostas evasivas de plebiscito e referendo, a transformação da corrupção em crime hediondo e a prisão decretada de um deputado escolhido como “bode expiatório” são alguns dos exemplos dessa nova política.
A luta de classes no Brasil atual
Esse processo todo revela um processo de luta de classes que vem se radicalizando na sociedade brasileira. As manifestações estudantis, o primeiro momento dessa luta, era um processo de reivindicação principalmente de estudantes (de diversas classes sociais) que entrava em confronto com o Estado capitalista, pois a reivindicação básica era a questão do passe livre e questão do preço das passagens, e elementos derivados. O alvo foi a burocracia estatal, pois esta é a responsável pela regulamentação do transporte coletivo e, portanto, a classe capitalista foi atingida apenas indiretamente. Porém, seus interesses estavam em jogo, pois o seu objetivo era aumentar seu lucro com o aumento do preço das passagens, e a luta estudantil era contra tal aumento e ainda outros elementos que também atingiam suas margens de lucro. A burocracia estatal, como sempre, saiu em defesa do capital, e reprimiu violentamente através dos seus aparatos repressivos, os estudantes. Isso abriu uma brecha que deu visibilidade maior para essa luta e a inclusão de outros setores nas manifestações.
As manifestações populares possibilitaram uma ampliação da base social, que era predominantemente estudantil, englobando setores das classes auxiliares da burguesia (burocracia, intelectualidade), trabalhadores (proletários, subalternos, etc.). A composição social dos manifestantes não é homogênea como muitos discursos colocam. Embora se possa dizer que as classes privilegiadas, com exceção da burguesia e da grande burocracia, tenha um grande contingente, muitos trabalhadores e outros setores também estavam presentes. O discurso de que se trata de movimento de “classe média”, termo não marxista e abstrato-metafísico, é equivocado por criar uma homogeneidade onde ela não existe. A suposta “classe média”, definida de forma abstrato-metafísica por nível de renda, é composta, na verdade, por diversas classes sociais, com modos de vida, posição na divisão social do trabalho, interesses, distintos[1]. Da mesma forma, o uso de expressões abstratas e problemáticas como “povo” e “massa” exerce a mesma função de homogeneizar o que é heterogêneo.
O termo “população”, também é abstrato, e o próprio Marx usa tal expressão para discutir o método dialético, colocando que para entender esse termo é preciso reconhecer a sociedade como um todo, a divisão de classes, etc. (MARX, 1983). Como não há apenas uma classe e não há homogeneidade, o termo população, desde que entendido seu caráter heterogêneo e policlassista, é uma alternativa para não cair em termos pejorativos e uniformizantes como “povo” e “massa”, ou, ainda, “classe média”.
A compreensão de quem são os manifestantes, no entanto, deve ir além e entender que o que se tem é um conjunto de indivíduos atomizados, diversas classes enquanto classes determinadas (e não autodeterminadas, ou seja, não expressam claramente os seus interesses e não agem como classe na maioria dos casos), correntes de opinião, e há alguns casos de menor força quantitativa de unificação por questões de raça, sexo, posição político-partidária, etc. Esse grande contingente fez proliferar um conjunto de reivindicações, sendo que algumas se destacaram. A questão da corrupção, da saúde, educação, foram as que mais apareceram, embora sem propostas concretas de resolução, a não ser em pequenos casos pontuais (como a recusa da PEC 37).
O capital comunicacional, principalmente a partir da grande imprensa, se aproveitou disso e, junto com o governo, buscou dividir entre “pacíficos” e “vândalos” e reforçar uma tendência de ressaltar a unidade nacional, destacando nos noticiários a posição contra a violência, as bandeiras do Brasil, hino nacional, etc. No bojo das manifestações, setores mais reacionários e pequenos grupos fascistas emergiram. Os partidos ditos de “esquerda” tentaram se integrar na onda de protestos, mas foram rechaçados pela maior parte dos manifestantes.
Nesse contexto, a compreensão do caráter das manifestações deve ser realizada não apenas com base na composição social, mesmo porque é heterogênea, e sim através da percepção de quais são as principais tendências, ou seja, de quem detém a hegemonia. Se lembrarmos de manifestações mais antigas, como a do “fora Collor”, é perceptível uma forte hegemonia da classe dominante e suas classes auxiliares, tanto por quem impulsionou as mesmas, quanto pelas propostas apresentadas. No caso atual, há uma hegemonia da classe dominante e de suas classes auxiliares, mas que não é tão sólida e nem é em todos os aspectos.
Um dos aspectos em que se nota a inexistência de uma hegemonia burguesa é na questão da política institucional, na qual a recusa dos partidos políticos, a contestação da corrupção, que expressam uma perda de legitimidade do Estado capitalista. É por isso que o medo ronda a burguesia e suas classes auxiliares. Por outro lado, há uma hegemonia não só percebida com as cores que as pessoas usam para se manifestar, que é predominantemente “verde e amarelo”, mas também que a contestação da corrupção é variada, sendo utilizada por determinados partidos e indivíduos para suas disputas partidárias, enquanto que um setor menor aponta a questão do caráter inerente da corrupção no Brasil e ainda outros que não sustentam ilusões com a democracia partidária, mas não possuem propostas concretas e acabam aceitando a solução legalista e ilusória no interior da própria institucionalidade burguesa.
No fundo, o Governo Dilma e o capital comunicacional tenta por todos os modos criar uma opinião pública desfavorável aos elementos mais radicais presentes nas manifestações. Esses núcleos mais radicais são justamente um dos principais responsáveis pelo começo dos protestos, quando eram predominantemente estudantis, e que são reforçados por punks, anarquistas, autogestionários, autonomistas, determinados indivíduos e movimentos sociais mais politizados e contestadores, e que acabam aglutinando alguns outros setores menos organizados, como é o caso de jovens e alguns trabalhadores. A divisão entre “pacíficos” e “vândalos” é a divisão entre os controlados e controláveis, por um lado, e os “incontroláveis” e não controlados, por outro.
O grande medo da burguesia é que esses últimos acabem influenciando os demais e passem a ter hegemonia sobre essa grande contingente. Os setores mais contestadores são aparentemente pequenos. Contudo, tal como um jornal pouco confiável colocou, podem chegar a 5% dos manifestantes. Oras, 5% de 60 mil, como no caso de 20 de junho em Goiânia, ou de 300 mil no Rio de Janeiro, significa 3 e 15 mil pessoas, respectivamente, o que é um contingente considerável e que mostra uma força política enorme. Isso é ainda mais importante se recordarmos que estes setores contestadores tem maior formação política e cultural do que a maioria dos integrantes do grande contingente das manifestações e, portanto, podem disputar a hegemonia e caso consigam se orientar e traçar planos de ação, propaganda e outras formas de luta, poderão duplicar ou triplicar com relativa facilidade e assim aumentar seu peso e, se um contingente grande de pessoas das classes exploradas aderirem às manifestações, o “controle brando” das manifestações pode cair por terra e o risco para o capitalismo se torna enorme. Por isso surge a campanha de governo e grande imprensa contra os “vândalos” e o recuo do primeiro com tentativas de conter as manifestações com promessas, paliativos e pequenas concessões. Esse setor da população também é mais ativo e combativo e por isso tem mais presença nas manifestações. Tendo em vista a grande insatisfação popular, há um risco real destes setores conseguirem aglutinar grande parte da população e por isso o medo da classe dominante é justificado. Contudo, é a luta de classes que determinará o encerramento desse processo. A burocracia sindical e partidária está atrelada, no caso brasileiro, com o governo federal e por isso não oferece resistência e nem alternativa. Os setores mais radicais da burocracia partidária e sindical, dos pequenos partidos de esquerda e pequenos sindicatos, compostos por uma burocracia que se encontra abaixo na hierarquia social da classe burocrática, acabam querendo canalizar as lutas para a democracia burguesa para ganhar espaços eleitorais e políticos, reforçando a tendência conservadora e burguesa, e os intelectuais atrelados a essas frações da burocracia reproduzem o seu discurso. No entanto, a recusa dos partidos pela população e sua impopularidade e falta de capacidade mobilizadora e proximidade com trabalhadores e juventude os fazem ser apenas apêndices da burguesia brasileira.
Luta de Classes, Possibilidades e Tendências
No contexto atual das lutas de classes, há um processo ainda nebuloso e que o resultado ainda está por ser decidido. Existem várias possibilidades de desdobramentos, tanto imediatos quanto em longo prazo. Uma das possibilidades é o refluxo das manifestações e volta à estabilidade, por algum tempo, pois a força demonstrada nas ruas e o conjunto das insatisfações, inclusive com a nova ofensiva da classe dominante e governo após a estabilização devido suas necessidades, é algo que não deixará de existir e por isso novas ondas de protestos tendem a ressurgir, bem como novas formas de luta e organização tendem a se desenvolver, o que significa que a luta de classes no Brasil, pois mais que o resultado seja o pior possível, estará num grau mais avançado a partir de agora. A ação dos meios oligopolistas de comunicação, um setor do capital, e mais influente junto à população, e do Governo Dilma (juntamente com os demais governos) é unir repressão localizada aos grupos mais radicais e politizados com promessas e concessões provisórias, o que tende a desmotivar a continuidade das manifestações por alguns setores da população.
Em curto prazo isso pode surtir efeito. E a retomada da estabilidade e a tentativa de canalizar a insatisfação para os meios institucionais (partidos, democracia burguesa, etc.), no entanto, não apagará da memória da população o movimento recente e nem destruirá os setores mais radicais da população. Além disso, o problema dos obstáculos da acumulação capitalista e do desaceleramento do crescimento econômico e retorno da inflação e outros problemas, tendem a fazer com que o Governo Federal e os demais acabem revendo suas concessões, pois necessita conter os gastos estatais e apoiar o capital na busca de aumento da exploração dos trabalhadores. Por conseguinte, essas concessões não durarão muito tempo e muitas promessas não serão cumpridas, além do fato de que a participação popular, canalizada para os meios institucionais ou sob outras formas, também será rechaçada tão logo o governo sinta que a mobilização da população recuou.
Outra possibilidade é a continuidade das manifestações e seus possíveis resultados. Caso as manifestações continuem, mas não consigam avançar no sentido de colocar reivindicações que manifestem diretamente os interesses das classes exploradas, ela possibilitará uma crise institucional que geraria o foco em reforma política e o surgimento de um novo “salvador da pátria”, numa guinada à direita, mesmo que isso seja apoiado pelos partidos da suposta “esquerda”, tal como já se vê em discursos de alguns intelectuais de tais organizações. A possibilidade da burocracia partidária e sindical ter um papel proeminente está descartada, pois os partidos da suposta “esquerda” são apenas restolhos insignificantes que se comprometem e afastam da população cada vez mais, principalmente dos setores mais politizados e da juventude, devido, nesse caso, às suas práticas, concepções e reprodução da sociabilidade capitalista (corrupção, competição por cargos, burocratismo, etc.). Essa é uma possibilidade de uma alternativa institucional, seja de direita ou de “esquerda” é remota, tendo em vista que a recusa dos partidos é generalizada e que a desilusão com a democracia representativa também, além da força dos setores mais radicais e dos problemas que geraram as manifestações e a não solução dos mesmos, seja qual for a força política que tente canalizar esse processo de luta.
Uma terceira possibilidade, ainda dentro do contexto de que haverá continuidade das manifestações, é a revolução social. A revolução proletária é sempre uma possibilidade dentro da sociedade capitalista. Contudo, é preciso distinguir entre possibilidade existente e possibilidade tendencial. Podemos dizer que “Uma possibilidade existente é aquela que existe, isto é, é algo possível, mas sua probabilidade depende da concretização de outras possibilidades” (VIANA, 2005). Antes das manifestações já existia a possibilidade de uma revolução proletária no Brasil. Assim como grande parte das tentativas de revolução proletária na história da sociedade moderna não foi previstas e surpreenderam, pois é um processo subterrâneo e latente, ela sempre pode emergir sem ninguém prever. No atual caso brasileiro, ela deixa de ser uma possibilidade existente para ser uma possibilidade tendencial. Podemos dizer que “uma possibilidade tendencial é aquela que não só existe, mas existem forças e elementos que apontam para sua efetivação, tendo uma probabilidade maior de se efetivar, pois o curso dos acontecimentos aponta para sua realização” (VIANA, 2005). Antes das manifestações não havia forças e elementos que apontavam para sua concretização, agora existem e se manifestam, reforçando sua possibilidade, tornando-a uma tendência.
Se essa tendência irá se concretizar, isso irá depender das lutas de classes e nesse processo as forças políticas anticapitalistas, especialmente anarquistas, autogestionários e grupos e indivíduos com posições semelhantes, tem um papel importante, no sentido de reforçar e buscar atrair o proletariado e outros setores da população para a ação direta e enfrentamento com o capital e o Estado. Obviamente que outras ações de outros setores poderão, involuntariamente, contribuir com esse processo. Da mesma forma, por sua própria dinâmica e percepção dos protestos, o proletariado e outros setores das classes desprivilegiadas podem entrar na luta. Isso não só mudaria a composição social aumentando o número de trabalhadores participantes como aumentaria a possibilidade de reivindicações voltadas para as necessidades deles e o desencadeamento de outras formas de luta e organização, tal como greves e conselhos. Isso, sem dúvida, não significa que ocorrerá imediatamente, mesmo porque, mesmo se as reivindicações forem salariais e outras de interesse dos trabalhadores, ainda haveria um período de confronto e correlação de forças que poderia se prolongar por algum tempo e ao esgotar sua estratégia repressiva os governos poderiam recuar e tentar diminuir o ímpeto questionador com promessas e pequenas melhorias. O processo, no entanto, ganharia um caráter de classe, pois seria um confronto não apenas com o governo, mas também com a classe capitalista, já que mexe com o lucro, expressando interesses antagônicos.
Em síntese, existem três possibilidades de desdobramento das atuais lutas de classes no Brasil. A primeira e a terceira são as mais prováveis e fortes, sendo que a segunda é mais remota, bem como mais distante ainda é uma variante dela anunciada por conservadores visando evitar uma maior radicalização, que seria o retorno de um regime ditatorial, abstraindo todas as mudanças históricas e atual correlação de forças. No fundo, a possibilidade do retorno à estabilidade ou de radicalização são as mais fortes e a luta está girando em torno disso.
Para reforçar a tendência de radicalização, o que fortalece a possibilidade de uma revolução proletária, é preciso um conjunto de ações, propaganda, lutas, no sentido de incentivar a auto-organização dos trabalhadores e da população em geral e também para que as reivindicações deixem de ser generalistas e moralistas, passando a tratar de questões reais da vida dos trabalhadores no Brasil. A correlação de forças entre população e governo alterou e por isso as demandas dos trabalhadores, podem e devem ser colocadas neste momento. Contudo, isso dependerá de vários aspectos e cabe às forças anticapitalistas passarem do imediatismo e ativismo para lutas mais refletidas e partindo de uma estratégia revolucionária que saiba articular questões imediatas e em longo prazo, reivindicações concretas e que podem ser atendidas com outras mais difíceis de serem aceitas e articuladas com um projeto de uma nova sociedade, fundada na autogestão social. Nesse caso, a juventude tem também um papel importante nesse processo e deve articular suas próprias demandas e necessidades com a dos trabalhadores. As reivindicações imediatas e concretas podem girar em torno da questão salarial, da redução do tempo para aposentadoria (que foi aumentada no bojo das reformas neoliberais), contra a precarização do trabalho, contra o desemprego e a favor da redução da jornada de trabalho.
Ao lado disso, uma ofensiva contra as políticas neoliberais é algo necessário. É o caso da educação, onde é possível articular melhor os interesses da juventude e dos trabalhadores, tal como retomando as exigências realizadas nas últimas greves de professores (nos municípios, estados da federação e nível federal, tal como nas universidades), com apoio de estudantes e técnicos, e que não foram atendidas. Inclusive esse é um ponto fundamental, pois algumas universidades estaduais estão em greve. Da mesma forma, a questão da saúde e sua precarização devem ser incluídas. Por fim, a questão da corrupção deve ser abordada, tanto no sentido de demonstrar que se trata de algo inerente ao capitalismo e que não é o caso de trocar de corruptos e sim questionar o sistema partidário e democracia burguesa representativa e apontar para necessidade de auto-organização da população, fiscalização e poder de pressão e ação sobre o Estado e governos.
Ao lado disso, é necessário buscar novas formas de luta e organização, e o apelo para o desencadeamento de um amplo movimento grevista, que naturalmente geram os comitês de greve, forma de auto-organização dos trabalhadores nestes momentos, bem como articulação e criação de organizações nos locais de moradia, estudo e trabalho. Essas formas de luta e auto-organização podem reforçar e ser reforçada pelas manifestações populares e estudantis.
Essas reivindicações e ações, bem como com formas de luta e organização, reforçam a tendência revolucionária. É o caminho a ser seguido. Mas antes de encerrar, é necessário alertar que as manifestações não podem ser o elemento fundamental e principal das lutas de classes. Elas devem ser entendidas como meios, um entre outros, para avançar na auto-organização do proletariado e outros setores da população, mas que em si não promovem nenhuma transformação social se não atingir o processo de produção, ou seja, as unidades de produção, as relações de produção capitalistas e ficam sem rumo se não colocar a questão da transformação social total que pressupõe abolição do capital e do Estado. As manifestações, assim como tais reinvindicações, são apenas meio para se fortalecer as lutas, auto-organização, consciência revolucionária, e tornar a tendência para a concretização de uma revolução social mais próxima. A sua derrota, caso ocorra, será parcial, pois mesmo que fique no atual estágio, já colocou as lutas de classes no Brasil num patamar superior e se qualquer avanço agora apenas contribui para ir mais longe nesse processo e caso surja a possibilidade ou tentativa de revolução proletária na atualidade, é um passo gigantesco para sua concretização, mesmo sendo derrotada. Como já dizia Marx:
“As revoluções proletárias, como as do século XIX, criticam-se constantemente a si próprias, interrompem-se constantemente na sua própria marcha, voltam ao que parecia terminado, para começar de novo, troçam profunda e cruelmente das suas hesitações dos lados fracos e da mesquinhez das suas primeiras tentativas, parece que apenas derrubam o seu adversário para que este tire terra de novas forças e volte a levantar-se mais gigantesco frente a elas, retrocedem constantemente perante a indeterminada enormidade dos seus próprios fins” (MARX, 1986).
Por conseguinte, essas lutas podem gerar um mundo novo, a emancipação humana. Se não se concretizarem, abrem novas possibilidades e anunciam que o futuro virá e cada vez mais a humanidade fica mais próxima de romper com seus grilhões e conquistar a liberdade e emancipação total, construindo uma sociedade radicalmente diferente.
Referências
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos. Táticas para Enfrentar a Invasão Neoliberal. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2a edição, São Paulo, Martins Fontes, 1983.

MARX, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas a Kugelmann. 5a edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

VIANA, Nildo. Adorno: Educação e Emancipação. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação, Brasília-DF, v. 02, n.04, 2005.

VIANA, Nildo. A Minoria Elege Dilma Roussef e a Ilegitimidade Continua. Disponível em: http://informecritica.blogspot.com.br/2010/11/minoria-elege-dilma-roussef-e.html Acessado em 01 de novembro de 2010.

VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.

VIANA, Nildo. Da ocupação das ruas à ocupação da vida: uma análise das manifestações populares no Brasil atual. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.3, n 1, 20 de junho de 2013. Disponível em: http://www.cadernoterritorial.com/news/da-ocupa%C3%A7%C3%A3o-das-ruas-%C3%A0-ocupa%C3%A7%C3%A3o-da-vida%3A-uma-analise-das-manifesta%C3%A7%C3%B5es-populares-no-brasil-atual-nildo-viana/

VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo, Idéias e Letras, 2009.
Artigo publicado originalmente em:

Disponível em: http://enfrentamento.net/





[1] Esse é o caso da intelectualidade, classe auxiliar da burguesia, que presta admiravelmente bem os seus serviços ao capital e governo brasileiro. Basta ver as entrevistas na grande imprensa para se notar. Não se trata apenas dos “lacaios da pena”, os “sicofantas”, para parafrasear Marx em sua crítica aos economistas vulgares, tal como é o caso de Marilena Chauí, mas inclusive outros que estão em partidos que se dizem mais à esquerda e até “revolucionário” e mostram sua preocupação com a “ordem” e “progresso” e a democracia burguesa, condenando, junto com seus aliados, os setores mais radicais da sociedade.

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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Manifestações Populares e Luta de Classes. Revista Enfrentamento. Ano 08, julho de 2013.

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