A “LIBERDADE DE EXPRESSÃO”
NUMA SOCIEDADE SEM LIBERDADE
Nildo
Viana
Sociólogo, Filósofo, Professor da Faculdade de Ciências
Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de
Goiás, Doutor em Sociologia pela UnB (Universidade de Brasília).
A liberdade
de expressão é uma das chamadas “liberdades civis” e um direito humano,
constante da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em seu artigo
11. Toda a discussão sobre “liberdade de expressão”, no entanto, são
representações ilusórias ou ideologias que abstraem a sociedade em que ela
nasce e supostamente se reproduz. A grande questão, que a maioria dos
defensores da liberdade ilimitada de expressão esquece[1],
é a de que vivemos numa sociedade sem liberdade e por isso não existe tal
liberdade específica.
Para
compreender isso é necessário, inicialmente, entender que não é possível pensar
liberdade de expressão abstratamente. Só é necessário defender essa “liberdade”
em determinadas sociedades, nas quais muitos não podem se expressar. O sentido
da defesa da liberdade de expressão é sua inexistência prática. A sua
existência discursiva não altera essa realidade. Inclusive a liberdade de
expressão é relativa, alguns a possuem efetivamente, outros só discursivamente,
o suposto “direito” a ela. Da mesma forma, não basta pensar na liberdade de
expressão sem pensar na liberdade de consentimento. Se alguém fala, outro ouve.
A liberdade de expressão é uma relação social e enquanto tal não é algo
reduzido apenas a quem se manifesta, mas também a quem sofre ou recebe tal
manifestação. A concepção individualista (e neoindividualista) passa por cima
disso e sua matriz liberal atinge até mesmo setores da suposta “esquerda”.
A liberdade
de expressão ilimitada é impossível, pois exigiria a não existência da
liberdade de consentimento. Qual é a importância da liberdade de consentimento?
Antes de tudo é necessário a existência do consentimento sobre algo que me
atinge, inclusive as formas de expressão alheias. Se eu não consenti, então a
expressão não deve me atingir. Ora, se fôssemos defender, como alguns fazem no
caso contrário, a liberdade de consentimento ilimitado, eu controlaria tudo que
os demais quisessem expressar. Porém, ainda estamos num espaço abstrato.
Precisamos ir para um espaço concreto e real, histórico e social, a sociedade
contemporânea, para entendermos melhor a questão da liberdade de expressão.
A liberdade
de expressão é uma criação da sociedade capitalista, da burguesia em sua luta
contra a nobreza. A nobreza não permitia, assim como a igreja, que qualquer discurso
fosse feito. A burguesia, com apoio de outras classes, consegue impor uma nova
realidade, novas ideologias, supostos “novos direitos”. Ela conquistou o
aparato estatal e o usou para seus interesses, censurando e impedindo a
“liberdade de expressão” de milhões. A burguesia usava os meios de comunicação
existentes e posteriormente, com a emergência do capital comunicacional (Rádio,
TV, etc.) conseguiu impor suas concepções, ideologias, produtos artísticos,
etc.
A burguesia
tinha liberdade de expressão e ela estava garantida pelo poder do capital, pela
posse do capital comunicacional e pelo poder estatal. Milhões de pessoas são
constrangidas a ouvir, ver, etc., coisas que não querem. A Voz do Brasil é
obrigatória, a não ser que se desligue o rádio. Os comunicados presidenciais em
Rede Nacional de Rádio e TV também. Mas isso é o mais visível, pois no resto as
concepções dominantes são reproduzidas. Quem detém os meios oligopolistas de
comunicação? Para quem o Estado cede concessão de meios de comunicação? Quem
tem os diplomas e legitimidade para expressar suas opiniões e ser ouvido? Quem
controla as instituições de ensino? Quem controla as grandes instituições
burguesas, igrejas, partidos, institutos e fundações nacionais e internacionais?
As rádios piratas são perseguidas, os indivíduos sem recursos, das classes
exploradas, só podem falar e se expressar para um grupo extremamente restrito e
tendo por base a “expressão” oferecida pelos outros (meios oligopolistas de
comunicação, por exemplo).
Esse caso é mais
grave nas universidades, institutos de pesquisa, pesquisas científicas, etc.
Não é possível haver avanço do saber sem liberdade de expressão e nem limites
para a defesa de teses e pesquisas. Um conselho profissional não deveria ter o
poder de impedir ou ditar o que é a verdade ou não, nem a burocracia
universitária, etc. tal como faz o Conselho Federal de Psicologia, que, em
contradição com toda uma ampla gama de teorias e pesquisas na história da
psicanálise, decreta institucionalmente o que a homossexualidade é, como se
isso fosse seu papel, anulando a liberdade de expressão e pesquisa[2].
Isso tudo
quer dizer que, no fundo, a liberdade de expressão é apenas uma forma de luta,
na qual a classe dominante realiza a imposição de sua liberdade de expressão sobre
a muito menos forte de outros setores e menos ainda das classes exploradas. A
liberdade de expressão numa sociedade marcada pela luta de classes, por
inúmeras divisões sociais e formas de poder e opressão, é uma ilusão. Quem detém o poder, detém a “liberdade
de impor sua expressão” e quem não tem possui poucos espaços (de reduzida
audiência) ou então não tem nenhuma possibilidade de manifestar suas opiniões.
Por outro lado, justamente quem pode impor sua “expressão” é quem tem liberdade
de impor seu consentimento, afinal, é o Estado e seus aparatos repressivos e
coercitivos, a classe dominante, suas ideologias e concepções, junto com seus
meios oligopolistas de comunicação, que pode censurar e decidir o que pode ou
não ser expresso. Aqueles que não possuem, efetivamente, a liberdade de
expressão são os mesmos que não possuem liberdade de consentimento e assim
ouvem o que não querem e não falam o que querem. Eis ao que se reduz a suposta
“liberdade de expressão”.
Então para
que serve tal suposta liberdade? Como instrumento de luta. Serve para a classe
dominante e seus aparatos impor determinada ideologia criadora de um faz de
conta de liberdade que não existe, bem como pode servir para aqueles que estão
sendo constrangidos a se calar poder tentar conseguir falar. O constrangimento
social só não é insuportável porque ele é cotidiano e existe desde a infância e
por isso as pessoas concordam, aceitam ou suportam.
A internet
deve ser censurada? Por quem? Para quem? Com que objetivo? Qual alvo da
censura? Isso é apenas reprodução do que ocorre com a imprensa em geral, com a
diferença de que nela há muito mais espaço para comunicação e, apesar de
reproduzir a sociedade existente, pelo menos permite que muitos deixem de ser
apenas leitores, expectadores, ouvintes, passando a ter um papel ativo, por
mais restrito que seja o seu alcance. Os programas de TV devem ser censurados?
A mesma pergunta aparece. A grande questão é que, no capitalismo, sempre serão
os mesmos que irão censurar e a partir dos seus interesses, cambiáveis ou não,
dependendo do caso.
É por isso
que é necessário pensar a sociedade como um todo para depois observar os casos
particulares. Sem liberdade coletiva e individual, que são complementares, não
há autêntica liberdade de expressão. Para haver liberdade real, seria
necessária uma transformação radical da sociedade, abolindo o poder do capital
e o poder estatal, os dois grandes limitadores de liberdade de expressão e de
consentimento. Numa sociedade livre, a liberdade de expressão será garantida pela
liberdade de consentimento, na qual um expressa até o limite que o outro
permite e vice-versa e isso é feito a partir de um comum acordo de pessoas
civilizadas e que não possuem interesses antagônicos que impedem a
racionalidade de se manifestar. Nessa forma de sociedade, a liberdade de
expressão e a de consentimento se manifestarão autenticamente e da forma mais
ampla que se viu na história da humanidade.
Na sociedade
capitalista, fundada na luta entre classes antagônicas e inúmeros conflitos
derivados, isso já não é tão simples. No entanto, mesmo dentro dessa sociedade,
é possível o comum acordo sobre um critério-limite, fundado na racionalidade.
Este critério-limite pode ser a civilidade[3].
Claro que tal limite sempre poderá, e efetivamente será, ultrapassado por
pessoas com desequilíbrios psíquicos, em situações traumáticas, por quem detém
o poder, etc. Mas aí cabe a intervenção de outros (e qual é este outro é
fundamental, tal como colocaremos adiante). Assim, para aqueles que querem
contribuir com a constituição de uma nova sociedade, fundada na liberdade e
igualdade, então nada mais normal que mesmo em uma luta acirrada contra os seus
opositores, sejam civilizados (o que tem variações, podendo ser mais ou menos
ríspido, etc.), excetuando a situação de guerra civil e risco de vida. Para os
dominantes, isso não faz muita diferença, embora certas práticas e discursos
pouco civilizados acaba lhe dando razão e por isso tal critério não lhe é
totalmente favorável.
Nesse caso, a
civilidade cumpre o papel de forma de mediação entre liberdade de expressão e
liberdade de consentimento. Por exemplo, um ateu tem a liberdade de expressão
para propagar a concepção darwinista de evolução, bem como o religioso a
palavra de Deus e o criacionismo. Os ateus podem criticar a religião, bem como
os religiosos podem criticar os ateus. Os não-deístas podem criticar os ateus
semirreligiosos e vice-versa. Contudo, cada um pode fazer isso tranquilamente
no seu espaço, no qual há liberdade de consentimento, e nos espaços públicos mais
amplos. Mas é muito pouco civilizado um ateu ir a uma Igreja ou manifestação
religiosa fazer isso e mais ainda se o faz de forma escandalosa, tal como
alguns já fizeram, como ficar sem roupa e enfiar uma cruz num lugar pouco
indicado. Da mesma forma, um religioso pode se manifestar livremente em suas
igrejas e outros espaços próprios e nos espaços públicos mais amplos, mas na
sede de um grupo de ateus e, mais ainda, sob forma exagerada (nesse caso não
poderá ser tão escandaloso, pois a religião não permite).
A civilidade,
entretanto, não é suficiente e muito menos ideal para garantir a liberdade de
expressão e a de consentimento. A civilidade é muito frágil, sendo apenas uma
sugestão de comportamento ético, diante de uma sociedade conflituosa e com tantos
problemas, indo desde a prosaica competição social, elemento da sociabilidade
capitalista, até a luta de classes, passando por conflitos derivados de
desequilíbrios psíquicos, mal entendidos, etc. É uma sociedade decadente, com
milhões de pessoas com os mais variados desequilíbrios psíquicos, alguns sendo
graves. A liberdade de expressão deve levar em conta a liberdade de
consentimento.
Nesse
sentido, inclusive para impedir uma explosão de incivilidade, é necessário que
alguns limites sejam colocados para a expressão e isso precisa ter com ponto de
partida não o poder do capital ou do Estado, mas aqueles que são atingidos por
ela. Não cabe ao Estado definir o que deve censurar ou não e sim à população e
esta deve ter a liberdade de consentimento e acesso às informações e formação
para que tome tal decisão de forma esclarecida. Cabe à população então criar
formas de auto-organização e mecanismos para efetivar essa tarefa. E esta
tarefa ainda é mais necessária e urgente para as classes exploradas e o proletariado,
no sentido de constituir seus meios de comunicação, conquistar espaços e
processos para se expressar e permitir que as concepções burguesas não sejam a
única versão da história e da realidade.
O domínio de
classe, a mercantilização das relações sociais, os desequilíbrios psíquicos, a
burocratização, a competição social, são elementos que dificultam a liberdade
de expressão. Por isso, somente uma transformação social radical e total das
relações sociais, pode promover um processo civilizatório e abolir os limites
existentes atualmente para a liberdade de expressão e da liberdade de
consentimento.
Referências
VANEIGEM, Raoul. Nada É Sagrado, Tudo Pode Ser Dito – Reflexões Sobre a Liberdade de
Expressão. São Paulo: Parábola, 2004.
[1] Esse é o caso do situacionista
Vaneigem (2004), que realiza uma análise interessante, tal como a crítica ao
politicamente correto, mas limitada por ser demasiada abstrata.
[2] Claro que uma coisa é contestar a
liberdade de expressão para produções e afirmações discriminatórias,
preconceituosas, etc., mas não para teses e concepções embasadas racionalmente,
mesmo que problemáticas e equivocadas. Freud, Fromm, Reich poderiam ser
censurados hoje por tal conselho, o que não deixa de ser absurdo. A produção
intelectual (desde que civilizada e fundamentada racionalmente) não pode ser
censurada ou controlada por nenhuma instituição, principalmente levando-se em
conta que estamos no capitalismo e há controle do capital e do estado sobre
elas, além de um conjunto de interesses por detrás delas. Nesse caso, a “caça
as bruxas” continua, só mudando quem caça e quem é caçado. A verdade não pode
ser ditada por instituições e nem o que pode ou não ser produzido no âmbito de
uma ciência, filosofia, etc.
[3] Aqui não se trata da concepção
burguesa de civilidade e sim de uma concepção humanista radical, no qual tudo
que serve ao processo de humanização deve ser permitido e tudo que é contrário
deve ser impedido e não mera formalidade (“boa educação” ou “etiqueta”, ou
defesa da sociedade existente). A civilidade, nessa perspectiva, só é rompida
quando o antagonismo, ou quem detém o poder, a ultrapassa. Por exemplo, é
incivilidade matar ou insultar, mas isso só vale quando há reciprocidade, pois
alguém ameaçado de morte e sem outra alternativa pode matar e após ser ofendido
pode ofender. A civilidade é uma relação recíproca e se for ultrapassada
legitima o outro lado a fazer o mesmo e com o atenuante de não ser o
responsável pela quebra da reciprocidade. Assim, se o Estado capitalista
realiza um processo repressivo através da violência policial, um ato
incivilizado, isso legitima a reação e o uso da violência física por parte
daqueles que foram suas vítimas.
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Artigo publicado originalmente em: Revista Posição. Ano 1, Vol. 2, num. 5, jan./mar. 2015.
http://redelp.net/revistas/index.php/rpo/article/view/4viana5/196
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