MAO
TSE-TUNG: DIALÉTICA OU ESTRATÉGIA DO PCC?
Nildo Viana
O
pensamento de Mao Tse-Tung, em especial seus textos Sobre a Contradição e Sobre a
Prática, é saudado por muitos como “a mais importante contribuição teórica
ao marxismo-leninismo até o momento. São duas obras fundamentais da História da
Filosofia. E da História” (Moderno,
1979, p. 9). De onde surgiu este dogmatismo? Na verdade, a própria obra de Mao
Tse-Tung reflete o doutrinarismo. O doutrinarismo de Mao Tse-Tung se expressa, por exemplo, na sua
linguagem. Ela possui algumas características tal como a) o argumento de
autoridade; b) normativismo: c) utilização recorrente de adjetivos pejorativos;
d) apelação para um dogma ao invés de exame e fundamentação das afirmações; e)
afirmações categóricas a respeito da sua interpretação de uma concepção de
mundo ou dos que dizem concordarem com ela; f) repetição; g) reificação.
Antes
de analisar sua “dialética”, faremos uma análise de alguns aspectos do seu
discurso de Mao Tse-Tung, no que diz respeito a esta questão, para fundamentar
a afirmação acima colocada. O argumento de autoridade é utilizado por Mao
Tse-Tung não só para confirmar idéias particulares, mas também justificar a
totalidade do discurso. A citação de um autor não é realizada para se dizer que
ele pensa desta ou daquela forma, seja para criticar ou para concordar, mas sim
para avalizar o que foi ou será dito por Mao Tse-Tung, deixando entrever que se
fulano disse, está dito, e é verdade. Vejamos alguns exemplos:
“Diz Lênin: ‘no
sentido adequado, a dialética é o estudo da contradição na essência mesma das
coisas” (p. 17)[1].
“Tratando a
questão do emprego da dialética no estudo dos fenômenos objetivos, Marx e
Engels, também Lênin e Stálin, sempre indicaram que é preciso se precaver de
todo subjetivismo e de toda arbitrariedade...” (p. 40).
“A análise de
Stálin é para nós um modelo do conhecimento do caráter específico e da
universalidade da contradição, assim como de sua recíproca ligação” (p. 40).
Estas
afirmações não são analisadas, aprofundadas ou fundamentadas. São tidas como
algo “dado”, algo que não tem que ser posto em questão. É como se bastasse a
afirmação de uma autoridade para se comprovar a veracidade da afirmação, ou
seja, se Marx, Engels, Lênin e Stálin, os “quatro clássicos do marxismo”,
disseram, então é verdade. Não se coloca em questão a comparação destas
afirmações com a realidade concreta, pois tal se tornou desnecessário. Também
não se coloca em evidência a diferença entre as autoridades citadas, pois a
interpretação que a última autoridade deu é verdadeira e, portanto, corresponde
ao que todos os outros disseram.
O
normativismo pode ser demonstrado em algumas afirmações:
“Os comunistas
chineses devem assimilar esse
método...” (p. 03).
“Devemos sempre nos lembrar das palavras
de Lênin...” (p. 40).
“Tal é a lei geral e imprescindível do
universo” (p. 43).
“Tal é o caminho já percorrido pela União
Soviética, e que todos os outros países seguirão
inevitavelmente” (p. 45).
“Devemos reconhecer a ação de retorno do
espiritual sobre o material” (p. 47).
“Tal é o processo de conhecimento que
todo homem segue dentro da realidade...” (p. 73).
“Se se quer
conhecer a teoria e os métodos da revolução é
preciso tomar parte da revolução” (p. 73).
“É inevitável
que tais pessoas tropecem...” (p. 76).
“O
marxismo-leninismo é uma ciência que todos os revolucionários devem estudar e artistas e escritores
não são exceção à regra” (p. 95).
“Trabalhar para
os líderes é exatamente trabalhar pelas massas, porque é somente por intermédio deles que se as pode educar e orientar”
(p. 106).
Muitas
outras citações poderiam se acrescentadas, mas seria improfícuo. O número
excessivamente elevado de vezes que Mao repete as expressões “devemos”, “é
preciso”, “tal é”, etc., demonstra o seu normativismo, bastante próximo ao de
Stálin. Sem dúvida, quando se trata de uma análise direta das lutas sociais por
parte de alguém engajado, o uso destas expressões é normal. Ocorre, porém, que
em certos autores ela se torna exagerada, tal como no caso de Mao. Além disto,
os textos citados de Mao não focalizavam as lutas sociais e sim a
“contradição”, a “prática”, “a arte e a literatura”.
A
utilização recorrente de adjetivos pejorativos é outra característica dos escritos
de Mao Tse-Tung. Constantemente, ele se refere aos “dogmáticos”, aos “oportunistas
de direita e de esquerda”, entre outros, sem nomeá-los concretamente (quem são
estes dogmáticos?) para que o leitor possa conferir por si mesmo e ver se a posição
que Mao diz ser deles o é realmente e como eles fundamentam suas posições. O
método de rotulação, inaugurado por Lênin, significa dizer que alguém é
dogmático, mas não fundamentar tal afirmação (ele é dogmático em que? Onde?
Como?). Isto sem falar em expressões menos cavalheirescas, do tipo, “ridículo”,
mas que, sem dúvida, possui uma eficácia política junto aos incautos. Tal
procedimento é mais típico e usual em Lênin, mas Mao, às vezes, escorrega pelo
caminho de seu mestre.
A apelação para um dogma significa que existe
um ponto de partida inquestionado e inquestionável, ou seja, um “absoluto” que
nunca é posto em questão, e daí se deduz o resto. O dogma maoísta é a chamada
“lei da contradição”, que mais à frente refutaremos. Tudo é contraditório, a
lei da contradição está em tudo. Mao até tenta explicar o que é a contradição,
mas nunca questiona porque ela existe
e de onde ela vem. Da mesma forma, um
deísta nunca diz por que deus existe e de onde ele veio. Neste sentido, as
idéias de Mao Tse-Tung são dogmáticas e uma das características do maoísmo é o
dogmatismo.
O
doutrinarismo de Mao Tse-Tung também se revela nas suas afirmações categóricas
de sua interpretação de uma concepção de mundo e dos que dizem representá-la. A
sua concepção de mundo é isto e aquilo, assim como as demais concepções, e tais
afirmações nem sempre são fundamentadas.
Outro
elemento que comprova o doutrinarismo de Mao é a repetição excessiva. Na
verdade, Mao busca repetidamente afirmar a mesma coisa do principio ao fim de
seu texto. Parece mais uma lição de tabuada, onde o fundamental é decorar
através do “eterno retorno do mesmo”, ou seja, da repetição.
Um
último elemento que demonstra o doutrinarismo dogmático de Mao Tse-Tung se
encontra na reificação da dialética. A dialética (ou sua “lei da contradição”)
aparece como algo autônomo e independente do ser humano, o seu criador. A
dialética está na natureza, no universo, em tudo. Ela possui leis e manifesta a
essência do universo. Os seres humanos não a produziram, pois ela existe na
natureza. Desta forma, a dialética deixa de ser um método para se tornar um
deus que dirige a natureza, a sociedade, etc., ou, em outras palavras, um
fetiche.
Mas
a obra de Mao Tse-Tung não é doutrinária por qualquer razão. Existe um motivo
para que Mao transforme a dialética num dogma. Qual é este motivo? Ao
respondermos a esta questão, responderemos à questão da origem da concepção
maoísta da dialética.
Para
Mao Tse-Tung, “a lei da contradição
inerente às coisas, aos fenômenos, ou a lei da unidade dos contrários, é a lei
fundamental da dialética” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 17). Mao opõe esta
concepção de mundo à concepção metafísica, que considera o mundo como algo
imutável ou, quando reconhece a mudança, cai no “evolucionismo vulgar”, que
considera a mudança como resultado de causas externas e se caracterizando por
um mero aumento ou diminuição quantitativos. Mao Tse-Tung não cita nenhum pensador
que defenda tal posição e assim observamos uma generalização abstrata e
metafísica que precisa ser explicada. Voltaremos a isto mais adiante.
Na
verdade, segundo Mao, as duas concepções de mundo possuem uma característica
fundamental: a metafísica vê imutabilidade em tudo e a dialética vê contradição
em tudo. Seria difícil descobrir uma contradição numa pedra ou a imutabilidade
na natureza, ou seja, são duas concepções metafísicas, pois tanto uma quanto a
outra se apresentam como universais e presentes em tudo, sem levar em
consideração a especificidade de cada ser e de sua posição no universo.
A
metafísica vê a mudança como resultado de causas externas e a dialética vê a
mudança como resultado de suas contradições internas Mao Tse-Tung acrescenta:
“A
dialética materialista exclui as causas externas? De forma alguma. Ela
considera que as causas externas constituem a circunstância das mudanças, que
as causas internas disso são a base, que as causas externas operam por
intermédio das causas internas. O ovo que recebeu uma quantidade apropriada de
calor se transforma em pinto, mas o calor não pode transformar uma pedra em
pinto por que suas bases são diferentes” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 17).
O
grande problema de Mao se encontra no fato de erigir as “contradições internas”
em principio universal de mudança em todos os seres. O exemplo do ovo e da
pedra não é muito convincente, pois, se trocarmos a causa externa de calor por
frio, podemos dizer que o frio congela tanto o ovo quanto a pedra. Tal exemplo
de Mao pode demonstrar apenas que uma mesma ação externa pode provocar efeitos
diferentes em seres diferentes, mas não que a “causa interna” é a base da
mudança e que isto se aplica a todos os seres.
A
contradição está em tudo e acompanha o processo de desenvolvimento do início ao
fim. Essa contradição é, segundo Mao, objetiva, está no mundo, nas coisas. Segundo
ele,
“Convém
considerar qualquer diferença em nossos conceitos como o reflexo de contradições
objetivas. A reflexão das contradições objetivas no pensamento subjetivo forma
o movimento contraditório dos conceitos, estimula o desenvolvimento das idéias
e resolve ininterruptamente os problemas que se colocam ao pensamento humano”
(Mao Tse-Tung, 1979, p. 25).
Tal
concepção, sem dúvida, é uma retomada da ideologia leninista do reflexo.
Trata-se de uma consciência coisificada. O mundo passa a ser tomada como coisas
objetivas, exteriores e independentes dos seres humanos. A consciência humana
é, desta forma, mero reflexo da “realidade objetiva” e, se existe divergências
entre os seres humanos na forma de conceber esta realidade, isto é fruto do
caráter contraditório desta. A consciência não seria ativa e sim passiva.
Mao
Tse-Tung afirma, contra Deborine e sua escola, que a contradição está presente
no processo de desenvolvimento do início ao fim. Deborine diz que no início não
existe contradição, mas apenas diferenças. Para Mao, isto é desconhecer a
existência de contradições específicas em objetos específicos, pois cada tipo
de formação social, cada forma de pensamento, possui suas contradições
específicas e também uma essência específica.
Mao
demonstra estar submetido à ideologia burguesa da divisão intelectual do
trabalho: “a delimitação das diversas
ciências fundamentam-se precisamente sobre as contradições específicas contidas
nos respectivos objetos que estudam” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 28). De onde
surge tal concordância entre Mao e a ideologia burguesa? Surge da ausência das
categorias de totalidade e determinação fundamental, fundamentais para o método
dialético (Viana, 2007a), pois com esta ausência torna-se possível “isolar”
aspectos da realidade e, tal como “faz” aqueles que o próprio Mao criticou, os
“metafísicos”, justificar a existência de diferentes ciências para analisar
diferentes aspectos da realidade.
Para
Mao Tse-Tung, o conhecimento humano parte do específico ao geral e do geral ao
específico[2].
Segundo ele, é preciso estudar não só as contradições específicas de um
fenômeno como também como elas se manifestam em cada etapa do seu desenvolvimento.
Toda forma de movimento é “qualitativamente” diferente. Para Mao, as contradições
qualitativamente diferentes só podem ser resolvidas por métodos qualitativamente
diferentes. Mao Tse-Tung vai mais longe ainda:
“Dentro
de um processo de complexo desenvolvimento de uma coisa ou de um fenômeno,
existe toda uma série de contradições: uma delas é necessariamente a
contradição fundamental, cuja existência e desenvolvimento determinam a
existência e o desenvolvimento de outras contradições, ou agem sobre elas” (Mao
Tse-Tung, 1979, p. 43).
Assim,
a contradição fundamental se transforma em secundária e vice-versa. Mas entre
os contrários não existe apenas luta, pois também há unidade. Afinal de contas,
segundo Mao, os aspectos contraditórios não podem existir um sem ou outro. Um é
condição de existência de outro. Sem vida não há morte e vice-versa. Além
disso, um aspecto tende a se tornar o seu contrário mudando sua posição. Isto é
o que ocorre na relação burguesia/proletariado, onde o primeiro assume a
posição de classe dominante e o segundo de classe dominada e após a revolução
tal situação se inverte, pois o proletariado passa a ser classe dominante e a
burguesia classe dominada[3].
Tal alteração de posição, no entanto, só ocorre sob determinadas condições.
Desta forma, existe a guerra e a pedra e é só dentro dessas condições marcadas
pela identidade que pode haver esta alteração.
Todo
fenômeno possui, em seu movimento, dois estados: um de repouso relativo e outro
de mudança evidente. No primeiro caso, há apenas mudanças quantitativas. No
segundo caso, ao contrário, com o acúmulo das mudanças quantitativas oriundas
do primeiro caso, realiza-se uma mudança qualitativa.
Esta
idéia de que mudanças quantitativas se acumulam até provocar uma mudança
qualitativa não tem a menor fundamentação. No plano social, isto não ocorre
necessariamente. Além disso, seria necessário explicitar o que se entende por
“qualidade”, “qualitativo”, “salto qualitativo”, etc.
O
próximo passo de Mao Tse-Tung é apresentar a sua conhecida distinção entre
contradição antagônica e contradição não-antagônica. Para Mao, o antagonismo
não é a única forma de luta dos contrários. Geralmente, o antagonismo leva a
uma transformação qualitativa, uma ruptura, uma revolução. Segundo as próprias
palavras de Mao Tse-Tung:
“As
contradições e a luta são universais, absolutas, mas os métodos para
resolvê-las, vale dizer, as formas de luta, variam segundo o caráter destas
contradições: certas contradições trazem o caráter de um antagonismo declarado,
outras não. Seguindo o desenvolvimento concreto das coisas e dos fenômenos
certas contradições originariamente não antagonistas evoluem para contradições
antagonistas, ao passo que outras originariamente antagonistas evoluem para
contradições não antagonistas” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 56).
De
onde vem o conhecimento humano? Segundo Mao, vem da prática. O conhecimento
resulta da prática social. Para Mao, a atividade de produção dos homens é a
própria base de sua atividade prática e ela determina todas as outras atividades.
Esta engloba, além das atividades de produção, a luta de classes, a vida
política, as atividades científicas e artísticas. Dentre estas outras
atividades, a luta de classes realiza uma enorme influência sobre o processo de
desenvolvimento do “conhecimento humano”. Foi somente com o surgimento do
proletariado e da grande indústria é “que os homens puderam atingir uma
completa compreensão histórica do desenvolvimento da sociedade e transforma
esse conhecimento em uma ciência, a ciência marxista” (Mao Tse-Tung, 1979, p.
67).
A
prática social é o critério de verdade. Para os homens compreenderem o mundo,
devem fazer com que suas idéias correspondam às “leis do mundo exterior objetivo”.
Mao Tse-Tung coloca que a teoria “marxista” do conhecimento possui duas
características particulares: o seu caráter de classe, serve ao proletariado, o
seu caráter prático, pois a teoria depende da prática, se fundamenta nela e
serve a ela.
O
processo de conhecimento atravessa três etapas: a) a etapa da percepção sensível,
onde se vê apenas os dados aparentes das coisas, os seus aspectos isolados e
sua conexão externa, nesta etapa os homens não podem elaborar conceitos e nem
podem tirar conclusões lógicas; b) a etapa do conhecimento racional, onde há
uma mudança qualitativa, pois aí se atinge o conceito e as conclusões lógicas;
e c) o conhecimento racional volta-se para a prática revolucionária para
dirigi-la.
O
conhecimento sensível e o conhecimento racional estão unidos sobre a base da
prática. É preciso, para haver um conhecimento da sociedade capitalista, que
tal sociedade exista, pois caso contrário tal conhecimento é impossível por não
haver uma prática correspondente. Segundo Mao,
“Para
conhecer diretamente tal fenômeno ou tal conjunto de fenômenos, é preciso
participar pessoalmente na luta prática que visa a transformar a realidade, em
transformar tal fenômeno ou tal conjunto de fenômenos, porque esse é o único
meio de entrar em contato com eles enquanto aparências; da mesma maneira, esse
é o único meio de descobrir a essência daquele fenômeno ou daquele conjunto de
fenômenos e compreendê-los” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 71-72).
Os
conhecimentos autênticos, segundo ele, surgem da experiência imediata. entretanto,
a maior parte dos conhecimentos adquiridos pelos homens possui como fonte
experiências indiretas, tal como no caso de países estrangeiros ou dos séculos
passados. Mao afirma que
“Essa
é a razão pela qual os conhecimentos de um homem compõe-se unicamente de duas
partes: os dados da experiência direta e os dados da experiência indireta. E
aquilo que para mim é experiência indireta continua a ser para outros
experiência direta” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 73).
Esta
experiência direta dos outros produz um conhecimento que, se respondeu a exigência
de “abstração científica”, reflete cientificamente a realidade objetiva e por
isto é equivalente, para nós, a experiência direta. Poderíamos abrir um parêntesis
aqui para dizer que o difícil é saber quando os estrangeiros, os antepassados,
ou seja, aqueles que tiveram esta “experiência direta”, fizeram “abstração
científica” e Mao Tse-Tung nunca diz qual é o critério para se descobrir isto.
O
mais importante, porém, não é apenas compreender o mundo objetivo e explicá-lo
e sim transformá-lo. Mao diz que:
“O
conhecimento começa com a prática. Quando se adquiriu conhecimento teórico pela
prática, deve-se ainda retornar à prática. O papel ativo do conhecimento não se
exprime somente no salto ativo do conhecimento sensível para o conhecimento
racional, mas, além disso, o que é mais importante, deve exprimir-se no salto
do conhecimento racional para a prática revolucionária” (Mao Tse-Tung, 1979, p.
78).
Portanto,
essas são as concepções de Mao Tse-Tung a respeito da dialética. Os principais
elementos desta concepção podem ser resumidos nos seguintes pontos: a) a lei da
contradição é universal e está em tudo; b) a contradição acompanha o processo
de desenvolvimento do inicio ao fim; c) em cada objeto específico existe uma
contradição específica; d) estas contradições se manifestam de forma diferente
em cada etapa do movimento; e) existe uma contradição fundamental que determina
a existência das demais contradições (secundárias); f) em determinada situação
pode ocorrer uma inversão de posições entre os aspectos contraditórios
existentes tanto na contradição principal quanto nas contradições secundárias,
mudando, assim, o aspecto principal da contradição; g) existem duas formas de
contradição: a antagônica e a não-antagônica; h) o conhecimento decorre da
prática social; i) a compreensão do mundo pressupõe a correspondência entre as
idéias e as “leis do mundo exterior objetivo”; j) o critério da verdade é a
prática; l) o conhecimento atravessa três etapas: o conhecimento sensível, o conhecimento
racional e o conhecimento aplicado; e m) o conhecimento possui um caráter de
classe e um caráter prático, pois a teoria depende, se fundamenta e serve da
prática.
Neste
momento, estamos em condições de compreender por que Mao erige a dialética em
um dogma, reificando-a. Qual o motivo em distinguir entre contradição
antagônica e contradição não-antagônica ao invés de distinguir entre contradição
e não-contradição? Por que sustentar a existência de contradição em tudo? De
onde vem esta vontade de salvar o dogma? De vem esta metafísica
pseudodialética? A resposta é a seguinte: vem
da vontade de justificar a estratégia política do Partido Comunista Chinês.
A estruturação da dialética por Mao Tse-Tung surge das necessidades práticas do
PCC e por isso a dialética de Mao e a estratégia do PCC possuem estruturas
homólogas. Uma vez criada à imagem da estratégia do PCC, a “dialética” maoísta
passa a ser aplicável a tudo, inclusive a própria estratégia do PCC, que é
reforçada por sua correspondência com a dialética.
Se
a contradição está em tudo, então estará presente também no PCC. Entretanto,
esta não é a “contradição principal” e nem sequer é uma “contradição
antagônica”. Se existe contradição no PCC, isto se deve ao fato de que as
idéias são reflexos da realidade objetiva contraditória e por isso também são
contraditórias. A superação disto só pode acontecer com a correspondência das idéias
com a realidade objetiva e isto só pode ocorrer apelando-se para a dialética, o
conhecimento racional.
Assim,
se justifica as contradições no interior do PCC e mantém-se a unidade do
partido e, ainda, esta explicação apresentando-se como verdadeira tende a ser
convincente e assim conquistar para o seu defensor a hegemonia no interior do
partido. Desta forma, conclui-se que as contradições no interior do PCC não são
contradições de classe ou derivadas delas, e sim contradições específicas.
Compreendendo a lei da contradição se observa isto e ao aplicá-la a realidade,
a revolução, passa-se a andar no caminho justo.
É
o próprio Mao Tse-Tung que fala do exemplo das contradições do PCC e quase
todos os seus exemplos para justificar e confirmar a dialética são retirados da
estratégia do PCC. A dialética é verdadeira e é confirmada pela estratégia do
PCC e esta, por sua vez, é justa e confirmada pela dialética... mas, sob o
pretexto de confirmar a dialética, o que Mao confirma mesmo é a estratégia do
PCC. Portanto, cria-se uma unidade entre a dialética e a estratégia do PCC e
por isso ambos se confirmam reciprocamente e devem ser defendidos
dogmaticamente. A motivação da transformação da dialética em dogma por Mao
Tse-Tung vem da necessidade de justificar a estratégia do PCC.
Vamos
ver agora cada elemento da concepção de dialética em Mao Tse-Tung e compará-la
com sua utilidade para justificar a estratégia do PCC. Comecemos pela lei da
contradição universal. Para Mao,
“Segundo
o ponto de vista da dialética materialista, as mudanças da natureza são
devidas, principalmente, ao desenvolvimento de suas contradições internas.
Aquelas que ocorrem na sociedade originam-se sobretudo do desenvolvimento das
contradições situadas no interior da sociedade, isto é, das contradições entre
as forças produtivas e relações de produção, entre as classes, entre o novo e o
antigo. O desenvolvimento dessas contradições faz avançar a sociedade, motiva a
substituição da velha sociedade pela nova” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 21).
Tal
concepção de que a contradição está em tudo e que provoca mudanças qualitativas
vem para justificar a necessidade de revolução social. Isto era ainda mais
necessário ao se observar que a china era um país de desenvolvimento histórico
lento, proporcionado pelo modo de produção tributário, e que possuía toda uma
tradição cultural que apresentava uma visão estática do mundo, tal como o
confucionismo. O mesmo valor justificativo possui a idéia de que a contradição
acompanha o processo de desenvolvimento do início ao fim. O motivo é bem
simples: à visão estática do mundo deve-se contrapor uma visão dinâmica. É por
isso que Mao Tse-Tung gasta páginas de seu livro contrapondo as duas concepções
de mundo que segundo ele existem: a metafísica e a dialética.
A
idéia de cada objeto específico possui uma contradição específica vem para
justificar e amenizar as contradições que ocorrem no interior do partido[4] e
das massas (entre campesinato e proletariado, por exemplo), o que é necessário
para se manter a unidade e assim ser mais eficaz na luta contra quem detém o
poder. A tese de que estas contradições
se manifestam de forma diferente vem para justificar alianças, e o mesmo vale
para a idéia acima colocada, e rompimentos. Outra função desta tese é colocar
em evidencia a possibilidade de uma contradição antagônica se tornar
não-antagônica e vice-versa, haver alteração na contradição principal ou inversão
em seu aspecto principal, etc., as quais possuem funções análogas. Por isso,
afirma ele, as contradições qualitativamente diferentes devem ser resolvidas
por “métodos qualitativamente diferentes”. Quais são estes métodos? No caso da
contradição entre burguesia e proletariado é a revolução socialista, no caso da
contradição entre massas populares e sistema feudal é a revolução democrática,
no caso da contradição entre agressão imperialista e forcas nacionais é a união
nacional entre as classes para combater as forças externas. Aqui se vê a
justificativa das constantes alianças com o Kuomintang, força nacionalista
burguesa, que o PCC fez em diferentes oportunidades[5].
A
afirmação de que existe uma contradição principal e contradições secundárias
vem para justificar, também, as alianças e rompimentos, e ainda, que é
necessário se subordinar a contradição principal a alguma outra contradição secundária
dependendo da conjuntura. Tal como Mao colocou: “quando o imperialismo lança
uma guerra de agressão contra um tal país, as diversas classes desse país, com
exceção de um pequeno número de traidores da nação, podem se unir
temporariamente numa guerra nacional contra o imperialismo. A contradição entre
o imperialismo e o país considerado torna-se então a contradição principal, e
todas as contradições entre as diversas classes no interior do país (aí
compreendida a contradição entre o sistema feudal e as massas populares, que
era a principal), passam temporariamente para o segundo plano e para uma
posição subordinada” e acrescenta “tal é o caso da China na Guerra do Ópio de
1840, a Guerra sino-japonesa de 1894, a Guerra dos Yihotouan em 1900, e a atual guerra sino-japonesa”, onde se
viu a aliança entre o PCC e o
Kuomintang.
A
tese de que é possível haver uma inversão de posições entre os aspectos contraditórios
existentes vem para justificar a contra-revolução burocrática na Rússia e a
ideologia leninista-stalinista, assim como sua repetição histórica para a
China. O proletariado, no exemplo de Mao, se torna classe dominante e a burguesia
passa a ser a classe dominada, e isto significa que a dominação permanece e o
“proletariado” irá dominar a “classe burguesa” através do PCC, ou seja, como
ocorreu de fato posteriormente pela burocracia partidária que se fundiu com a
burocracia estatal e declarou sua ditadura como sendo a “ditadura do
proletariado”, inclusive sobre o próprio proletariado. Tal justificativa era
necessária, pois o auxílio russo em caso de interferência estrangeira era indispensável
para a China, bem como o seu auxílio sócio-econômico. A aliança entre China e
Rússia precisava ser reforçada pela aliança ideológica entre estes países. É
por isto que Mao cita várias vezes os “quatro clássicos do marxismo”: Marx,
Engels, Lênin e Stálin.
A
distinção entre contradição antagônica e não-antagônica também vem para justificar
a estratégia do PCC:
“Enquanto
as classes existirem, as contradições, as idéias verdadeiras, e as idéias
falsas serão o reflexo das contradições de classes. No início, ou em certas
questões, essas contradições podem não se manifestar logo em seguida como
antagonistas, mas com o desenvolvimento da luta de classes elas podem vir a ser
antagonistas. A história do P. C. da URSS mostra-nos que as contradições entre
as concepções verdadeiras de Lênin e Stálin, e as concepções falsas de Trotski,
Boukharine e outros, não se manifestavam de início como antagonistas, mas, que
em seguida, se tornaram antagonistas. Casos semelhantes apresentam-se na
história do P. C. Chinês. As contradições entre as concepções verdadeiras de
vários companheiros do P. C. e as concepções falsas de Tchen Tou-sieou, Tchan
Kouo-tao e outros, também não se manifestaram no início sob uma forma
antagonista, mas se tornaram mais tarde. Atualmente, as contradições entre as
concepções verdadeiras e as falsas no seio do P. C. não tomaram uma forma
antagonista, elas não chegaram ao antagonismo caso nossos companheiros saibam
corrigir seus erros. Isso porque o Partido deve, por um lado, dirigir uma séria
luta contra as concepções falsas, mas, por outro, dar toda a possibilidade aos
que cometeram erros de tomar consciência deles. Nessas circunstancias uma luta
levada às últimas conseqüências é inadequada. Entretanto, se aqueles que cometeram
erros persistirem em sua posição e os agravarem, essas contradições podem se
tornar antagonistas” (Grifos Meus) (Mao Tse-Tung, 1979, p. 57).
As
demais concepções de Mao são produto da sua ideologia do conhecimento. Ela se
caracteriza por subordinar totalmente a teoria à prática e por isso podemos
tratar essas concepções em bloco. A subordinação da teoria à prática ocorre
através do pretexto de criar uma “unidade” entre elas. Isto serve para combater
o que Mao chama de “oportunismo de direita” e “oportunismo de esquerda”[6] e
assim ofuscar a visão do oportunismo maoísta, exemplarmente demonstrado em seu
malabarismo ideológico das contradições (principais, secundárias, de aspecto
principal, de aspectos secundários, antagônicas, não-antagônicas, etc.).
A
idéia de que a ideologia serve a
prática tem um valor explicativo: a ideologia maoísta serve a prática maoísta.
Há uma unidade aí, mas isto apenas quer dizer que Mao Tse-Tung não vê nenhum
papel ativo para a consciência, pois ela é reflexo da realidade objetiva. Ela
só tem valor se servir a prática. Mao Tse-Tung nunca questiona a prática e se
pergunta sobre o que ocorre com a ideologia se ela estiver correspondendo a uma
prática equivocada, pois isto seria equivalente a perguntar sobre sua prática e sua ideologia. Ao tornar a ideologia mera serviçal da prática,
torna-se possível, simultaneamente, reificar a ideologia correspondente a
prática e, desta forma, cair no dogmatismo e no doutrinarismo. É isto que
ocorre com Mao Tse-Tung, pois ele considera sua prática como revolucionária e
assim julga que sua ideologia, que é correspondente a sua prática, também é e assim ambas são justificadas e
reificadas. Para Mao, o lado ativo da consciência, ao contrário de Marx, reside
na sua aplicação prática. Mao Tse-Tung expressa, assim, uma consciência
coisificada que é um elogio da própria consciência coisificada. De qualquer
forma, isto é coerente, pois Mao, como líder do PCC, considera sua prática como
a prática revolucionária. A ideologia
correspondente a ela é, pois, a ideologia considerada por ele como “revolucionária”.
Por
fim, observamos que a estruturação da dialética por Mao Tse-Tung corresponde à
estratégia do PCC, que ela é uma ideologia que corresponde a uma determinada
prática (a do PCC). Neste sentido, Mao Tse-Tung teve o mérito de deformar o
método dialético e transformá-lo na verdade revelada e servir de ideologia da
contra-revolução e do capitalismo de estado chinês.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
Mao Tse-Tung,
Sobre a Contradição. In:
Moderno, J. R. C. (org.). O
Pensamento de Mao Tse-Tung.
Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1979.
Mao Tse-Tung,
Sobre a Prática. In: Moderno, J. R. C. (org.). O Pensamento de Mao Tse-Tung. Rio de
Janeiro, Paz e Terra. 1979.
Moderno, J. R. C. Introdução. In: O Pensamento
de Mao Tse-Tung. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1979.
Viana, Nildo. A Consciência da História. Ensaios Sobre o Materialismo
Histórico-Dialético. Rio de Janeiro, Achiamé, 2007b.
Viana, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. Goiânia, Alternativa, 2007a.
Ensaio publicado originalmente em “O Fim do
Marxismo e outros ensaios. São Paulo: Giz Editorial, 2007.
[1] Todas estas citações são
retiradas dos textos de Mao Tse-Tung. Sobre a Contradição (p. 17-63), Sobre a
Prática (p. 67-86) e Sobre Arte e Literatura (p. 89-124), presentes na
coletânea organizada por Moderno (1979).
[2] Esta concepção parte de uma
separação mecânica entre o específico e o geral e supõe que a consciência faz
uma opção por partir de um ou outro no processo de conhecimento. A consciência
não parte do específico ao geral e do geral ao específico e sim do concreto-dado
(como lhe vem é dado imediatamente) e, por intermédio da análise, busca
apreender suas determinações e assim chegar ao concreto-determinado, ou seja,
pensado, tal como colocou Marx em seu texto sobre o método dialético (Viana,
2007b).
[3]Esta concepção já não tem mais
nada a ver com a teoria marxista da revolução. A revolução significa a abolição
das classes e, portanto nenhuma se torna “dominante” ou “dominada”.
[4] “A oposição e a luta entre
concepções diferentes aparecem constantemente no seio do partido; é o reflexo,
dentro do partido, das contradições de classes e das contradições entre o novo
e o antigo existentes na sociedade. Se não houvesse dentro do partido
contradições e lutas ideológicas para resolver as contradições, a vida do
partido terminaria” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 25).
[5] “Resolver as contradições
diferentes por diferentes métodos é um princípio que os marxistas-leninistas
devem observar rigorosamente” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 30); “o Kuomintang, que
representou um certo papel positivo em determinada etapa da história moderna da
China, transformou-se a partir de 1927 em um partido da contra-revolução
coerente com sua natureza de classe, e com as atraentes promessas do
imperialismo (são algumas circunstancias), mas ele se viu pressionado a se
pronunciar pela resistência ao Japão em razão do agravamento das contradições
sino-japonesas, e da política do front unido aplicada pelo P. C. (são outras
circunstâncias). Entre os contrários se transformando um no outro existe, uma
determinada identidade” (Mao Tse-Tung, 1979, p. 50).
[6] “Acontece freqüentemente,
entretanto, que as idéias sejam mais lentas que a realidade, e isto porque o
conhecimento humano se encontra limitado por um grande número de condições
sociais. Lutamos em nossas fileiras revolucionárias contra os teimosos, cujas
idéias não seguem o ritmo das modificações da situação objetiva, o que, em
história, se manifestou sob a forma do oportunismo de direita. Essas pessoas
não vêem que a luta dos contrários já fez avançar o processo objetivo, ainda em
que seu conhecimento continue no estágio anterior. Essa particularidade é
própria das idéias de todos os teimosos. Suas idéias são separadas da prática
social, não sabem andar na frente do carro da sociedade para governá-la,
somente arrasta atrás, queixando-se de que ele vai muito rápido e tentando
reconduzi-lo para trás ou fazê-lo rodar no sentido contrário”; “somos
igualmente contra os verborosos “de esquerda”. Suas idéias estão além de uma
determinada etapa do desenvolvimento do processo objetivo: uns tomam suas fantasias
por realidade, outros tentam realizar à força, no presente, ideais que somente
são realizáveis no futuro. Suas idéias, separadas da prática atual da maioria
da pessoas e da realidade atual, traduzem-se na ação pelo aventureirismo” (Mao
Tse-Tung, 1979, p. 81). Resta saber se estes últimos podem ser chamados de “oportunistas”.
Como é difícil fazer isto, nesta parte do seu texto Mao não utiliza tal
expressão, o que é expressivo do seu próprio oportunismo ideológico.
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PUBLICADO ORIGINALMENTE EM:
VIANA, Nildo. O Fim do Marxismo. São Paulo: Giz Editorial, 2008.
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