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terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Antonio Gramsci e Rodolfo Mondolfo - Um Debate em Torno do Marxismo na Itália


Antonio Gramsci e Rodolfo Mondolfo
Um Debate em Torno do Marxismo na Itália

Nildo Viana*

“A divisão entre dirigentes e dirigidos, entre elite e massa, se faz assim, muito mais grave que tudo quanto noutras passagens de suas obras Gramsci parece disposto a admitir”.
Rodolfo Mondolfo
O pensamento social italiano produziu alguns pensadores que ultrapassaram as fronteiras deste país e se tornaram autores conhecidos mundialmente. O jornalista Antonio Gramsci (1891-1937) e o filósofo Rodolfo Mondolfo (1877-1976) são dois exemplos. O primeiro, conhecido por suas obras políticas e o segundo por suas obras filosóficas, especialmente sobre a filosofia antiga e alemã. Porém, o que poucos sabem é o debate intelectual entre ambos. O nosso objetivo é resgatar o debate entre estes dois autores que gira em torno do marxismo na Itália, colocando duas vertentes e duas concepções distintas de marxismo.
No debate se colocam frente a frente duas concepções de marxismo e comunismo. A concepção gramsciana, que num primeiro momento foi um leninismo radical influenciado pela força histórica dos conselhos operários na Rússia e outros países, e, num segundo momento, um semileninismo de tendência reformista, que vê uma identidade entre leninismo e marxismo e entre regime bolchevique e socialismo. A posição gramsciana tem muito pouco a ver com o marxismo e isso se observa nas discrepâncias metodológicas, políticas, etc., principalmente no seu segundo momento.
A concepção de Mondolfo já é mais próxima do marxismo e por isso ele revela uma concepção distinta, embora com alguns equívocos, da concepção gramsciana. Mondolfo reconhece o marxismo como um humanismo e possui uma posição metodológica muito mais próxima de Marx do que Gramsci. O humanismo de Mondolfo o faz colocar a liberdade como um elemento fundamental do socialismo e esse deve significar a abolição da alienação:
“É preciso destacar com toda a evidência que merece a estreita vinculação que existe entre a aproximação efetuada por Zinoviev e os problemas que os escritos juvenis de Marx colocavam nas raízes de todas as aspirações e exigências socialistas: o problema do trabalho alienado e do homem alienado, o problema da superação desta alienação. O socialismo se encontra situado nas antípodas de todo alienação do homem e do trabalho; aonde existe semelhante alienação, em troca, deve falar-se de capitalismo, que é justamente a negação do homem e sua humanidade (Unmenschlichkeit, segundo expressão de Marx e Engels); negação que o socialismo quer superar (aufheben) na negação da negação” (Mondolfo, 1968, p. 263).
Assim, o humanismo de Rodolfo Mondolfo – e que significa um conjunto de concepções, valores, etc. – permitiu que ele tivesse uma postura crítica diante do leninismo e do capitalismo estatal russo. O humanismo é um dos principais antídotos contra as mais variadas formas de fetichismo (do partido, da mercadoria ou qualquer outro) e está na base do pensamento marxista. Assim, Gramsci e Mondolfo eram dois contemporâneos que tinham algumas concepções semelhantes mas discordavam em questões fundamentais e nosso foco serão estes pontos de divergência.
Gramsci apresenta juízos bastante fortes e injustos sobre Mondolfo. Ainda em um texto de juventude, em 1919, ele diz que o amor pela revolução do “professor” Mondolfo “é amor gramatical”:
Ele pergunta e fica enfadado com as respostas. Pergunta: Marx? E lhe respondem: Lênin. E isso, pobres de nós, não é científico, não pode satisfazer a sensibilidade filológica do erudito e do arqueólogo. Então, com uma enternecedora seriedade catedrática, Mondolfo, reprova, reprova, reprova: zero em gramática, zero em ciência comparada, zero em práticas de magistério (Gramsci, 1988a, p. 57).
Aqui se percebe que Mondolfo distingue Marx de Lênin, o que a sensibilidade gramsciana domesticada pelo culto das autoridades não pode aceitar. Gramsci continua:
Sabemos que a seriedade professoral não é mais que aparência de seriedade: é pedantismo, filisteísmo e, frequentemente, incompreensão absoluta. Mondolfo realiza um processo sobre as intenções e atribui aos comunistas russos intenções que não tiveram nunca ou que não têm nenhum valor histórico real. O fato essencial da revolução russa é a instauração de um novo tipo de Estado: o Estado dos Conselhos. A isto tem que atender a crítica histórica. Tudo o mais é contingência condicionada pela vida política internacional, a qual significa para a revolução russa bloqueio econômico, guerra em frentes de milhões de quilômetros contra os invasores, guerra interna contra os sabotadores. Pequenezas para Mondolfo, que não a toma em conta, absolutamente. E quer que lhe dê precisão gramatical um Estado obrigado a utilizar todo seu poder e todos seus meios para subsistir, para consolidar sua existência fundindo-se com a revolução internacional (Gramsci, 1988a, p. 57)[1].
O resto do artigo de Gramsci é uma defesa da Revolução Russa, em torno de um conto de Gorki comentado por Mondolfo. Porém, Gramsci voltará a ter oportunidade de citar Mondolfo. Aqui fica bem claro a defesa do capitalismo estatal russo nascente por Gramsci, com as justificativas tradicionais que serão utilizadas até os dias de hoje para a burocratização e instauração de um regime ditatorial. Em outra oportunidade ele comenta o livro de Mondolfo, O Materialismo Histórico em Engels (Mondolfo, 1956). Gramsci destacava que Marx e Engels são pessoas distintas e que não se pode tomar um pelo outro. Reconhecendo as diferenças e individualidades, não se pode tomar Marx por Engels. Depois de colocar a posição de Sorel, segundo a qual a capacidade teórica e o pensamento original de Engels era escasso, comenta o livro de Mondolfo positivamente. Ao comentar que é necessária uma investigação sistemática sobre as relações intelectuais entre Marx e Engels, afirma:
“Na realidade, uma investigação sistemática deste gênero (com exceção do livro de Mondolfo) jamais foi realizada no mundo da cultura; aliás, as exposições do segundo [Engels – NV], algumas relativamente sistemáticas, são colocadas agora em primeiro plano, como fonte autêntica ou, até mesmo, como a única fonte autêntica. Por isso, o volume de Mondolfo parece ser muito útil, pelo menos graças a diretriz que traça” (Gramsci, 1987, p. 99).
Porém, logo adiante Gramsci retoma seu ataque a Mondolfo ao dizer que, como discípulo de Labriola, ele não forneceu um desenvolvimento coerente às suas obras (que é um desenvolvimento, diga-se de passagem, muito mais oriundo de uma atribuição de Gramsci do que Labriola, pois “transformar a interpretação da história” em “filosofia geral” é uma concepção do primeiro, que atribui ao segundo). Numa nota de rodapé mostra o seu repúdio a Mondolfo:
“Mondolfo, ao que parece, jamais abandonou inteiramente o ponto de vista fundamental do positivismo, como discípulo de Roberto Ardigó. O livro do seguidor de Mondolfo, Diambrini Palazzi (publicado com um prefácio de Mondolfo), sobre a Filosofia de Antonio Labriola, é um documento da pobreza de conceitos e diretrizes do ensino universitário do próprio Mondolfo” (Gramsci, 1987, p. 102).
A referência a Mondolfo, para quem não conhece suas obras, apresenta um juízo severo e que poderia ser verdadeiro. Para quem leu apenas Gramsci, esta vai ser a única impressão de Mondolfo. Porém, para quem conhece pelo menos parte da obra de Mondolfo, sabe que ele é muito mais profundo que o próprio Gramsci, ou seja, está muito além do próprio crítico. Porém, a afirmação mostra um forte desdém, além da falta de fundamentação, o que é comum em Gramsci (não definiu o positivismo e nem demonstrou onde este estaria presente na obra de Mondolfo). Além de possíveis razões pessoais e políticas que não sabemos[2], há uma razão de ordem valorativa. A primeira crítica de Gramsci acima mostra que sua divergência era em torno do juízo sobre Lênin. Mondolfo apresenta uma análise crítica de Lênin e da revolução russa e Gramsci defendia ambos. A defesa gramsciana era baseada, em parte, na ignorância do que ocorria na Rússia (e era comum isso e por isso muitos marxistas que depois se tornaram antileninistas, bem como anarquistas, apoiaram inicialmente o bolchevismo), o que é visto por sua ideia de que se formou um “estado de conselhos”, ou seja, os sovietes (conselhos operários) seriam a base da nova sociedade russa, o que ele reafirma em vários outros textos da época.
Outro equívoco, bastante comum na Europa daquela época (o escrito de Gramsci é de 1919), era considerar Lênin como o grande teórico dos conselhos operários, ao invés do que realmente era, um grande ideólogo do partido de vanguarda e da burocracia. No fundo, o que se formou na Rússia foi um regime burocrático comandado pelo capitalismo estatal e defendido por Lênin. Assim, Mondolfo tinha maiores conhecimentos dos acontecimentos na Rússia e da obra de Lênin do que Gramsci[3].
Porém, Gramsci poderia ter superado isso com o passar do tempo e com maiores informações da Rússia que foi conseguindo com o passar do tempo, inclusive através de suas idas até lá e sua participação na III Internacional, a Internacional Bolchevique. No entanto, não foi isso que ocorreu e Gramsci acabou defendendo o regime capitalista estatal russo mesmo na época do comando ditatorial de Stálin. A segunda crítica citada anteriormente data da primeira metade da década de 1930. Ele inicia com um reconhecimento dos méritos de Mondolfo, mas termina com a mesma depreciação de mais de dez anos anteriores.
Porém, não deixa de ser curioso que a segunda crítica de Gramsci ocorre no interior de uma seqüência na qual a primeira referência a Mondolfo ocorre numa nota sobre “questão de método”, no qual discutia como realizar leituras de determinados autores e dava algumas sugestões, inclusive interessantes e corretas, embora incompletas, nesse sentido. Ele diz, entre outras coisas, o seguinte:
“Entre as obras de determinado pensador, ademais, deve-se distinguir entre as que ele concluiu e publicou e as que permaneceram inéditas, porque incompletas, e publicadas por algum amigo ou discípulo, não sem revisões, modificações, cortes, etc., ou seja, não sem uma ativa intervenção do editor” (Gramsci, 1987, p. 96).
Pois bem, a avaliação de Mondolfo na segunda crítica, além de uma acusação não fundamentada de suposto positivismo, afirma que o livro do seguidor Palazzi ao qual ele apenas escreveu o prefácio, é um “documento da pobreza de conceitos e diretrizes do ensino universitário do próprio Mondolfo” (Gramsci, cdh, p. 102). A incoerência de Gramsci é visível, já que anteriormente havia reconhecido uma distinção entre Marx e Engels e que se deve tomar as obras de um autor na qual ele publica mais do que as demais e depois não aplica o mesmo procedimento para analisar Mondolfo, que sendo “discípulo” de Ardigó não escaparia do positivismo e se um ex-aluno escreve uma obra pobre, isso manifesta a pobreza do professor... Assim, usa dois pesos e duas medidas. Ele julga um pelo outro e o seu conselho como forma de leitura dizia o contrário, inclusive até mesmo no caso de mera organização das obras do autor ao invés de obra própria do “discípulo”. A contradição de Gramsci mostra somente a falta de seriedade intelectual ao tratar de Mondolfo. O reconhecimento parcial ao tratar de sua obra sobre Engels logo é substituído pelo desprezo. E tal reconhecimento inicial foi provocado pela proximidade das posições de Mondolfo, ao separar Marx de Engels, mas que não se manteve devido as fortes divergências entre ambos.
Obviamente que a crítica a Mondolfo sempre esteve ligada a questões teóricas e políticas em torno do marxismo. A posição de Mondolfo era de crítica ao leninismo. Isto não cessaria de ocorrer nas obras posteriores, inclusive em seu livro Materialismo Histórico, Bolchevismo e Ditadura (1962) e sua avaliação da URSS como “capitalismo de Estado”. Ou seja, o vínculo de Gramsci com Lênin e o capitalismo estatal é provavelmente a grande motivação da forma agressiva como ataca Mondolfo.
Mondolfo em um texto de 1919 – comentado por Gramsci, tal como citamos anteriormente – faz uma comparação entre o reformista Arturo Labriola[4] e partidários do bolchevismo na Itália, os membros do Partido Socialista Italiano. Ele diz que Labriola busca afirmar a identidade entre marxismo e leninismo, afirmando que os conservadores buscam separar um do outro para evitar “o veneno de Lênin”. Mondolfo diz que não são apenas os conservadores, mas também os bolchevistas italianas e cita, como exemplo, um artigo publicado no Jornal do Partido Socialista, Avanti! Intitulado A Revolução Contra o Capital (apesar de não colocar, o texto é de Gramsci), que significa uma revolução contra a obra de Marx, O Capital. Mondolfo argumenta que há uma diferença na concepção e na práxis das duas tendências (marxismo e leninismo)[5]. Mondolfo recorda a tese marxista de que é necessário o desenvolvimento das forças produtivas para que o comunismo possa suceder o capitalismo e essa condição não existia na Rússia[6]. Mondolfo questiona:
“Que há de tudo isto, – repito – que é a essência do marxismo, na práxis leninista? A economia capitalista na Rússia havia acaso alcançado o pleno desenvolvimento das forças produtivas que era capaz de gerar? Lênin poderia, portanto, começar na Rússia – como escreve Arturo Labriola – a era socialista? A pergunta se divide aqui em duas: 1) se o regime leninista pode chamar-se socialista, e em que medida, e 2) se, na medida em que tal nome pode ser dado, apresenta maiores probabilidades de êxito e de propagação do exemplo, ou, em troca, de quebra e descrédito da ideia socialista, devido a imaturidade da experiência” (Mondolfo, 1968, p. 12-13).
Mondolfo coloca que, no campo, o que ocorreu foi a distribuição de terras, o que nada tem de socialista. A ação leninista se restringiria, então, às cidades e indústrias, que, no entanto, dependem do campo e nesta a produção não consegue alcançar alto nível e o governo leninista gasta dois ou três para obter um. A experiência leninista, portanto, significa muito pouco para a causa socialista. Outro problema identificado por Mondolfo é o incentivo que Lênin ofereceu ao capital estrangeiro em terras russas. O socialismo implica em liberdade:
“Socialismo significa abolição da divisão das classes e da sujeição econômica do homem pelo homem; a tal título representa a mais radical e completa reivindicação de liberdade. Porém, o conceito de liberdade que reivindica não é puramente negativo (supressão de todo resíduo de escravidão do homem pelo homem); é eminentemente positivo (conquista das condições pelas quais o homem pode sentir-ser verdadeiramente livre)” (Mondolfo, 1968, p. 29).
Os decretos e leis instituídas pelo regime bolchevique mostram o caminho para o capitalismo de Estado e não o socialismo. Nesse sentido, Mondolfo nega que o leninismo seja marxismo e que o regime bolchevique seja socialista. Com grande perspicácia Mondolfo distingue o “mito de Lênin” do “Lênin real”, sendo que até hoje muitos não sabem que a imagem do chefe do Partido Bolchevique na Europa até os anos 1920 era muito mais mitológica do que real, ele era visto como “teórico dos conselhos” e grande incentivados dos sovietes, sendo que, na verdade, ele buscou apenas se apoiar nos mesmos para chegar ao poder estatal e uma vez no poder realizou um conjunto de ações para retirar a força dos conselhos operários. Esse “mito de Lênin” era provocado, obviamente, por várias determinações. Uma delas é a pouca informação sobre o que realmente acontecia na Rússia e sobre Lênin. A tradução das obras de Lênin vai ocorrer, mais sistematicamente e em quantidade elevada, após esse período. Segundo Mondolfo, “é possível que Lênin não foi sem sequer num primeiro momento o leninista que seus defensores nos apresentam” (Mondolfo, 1968, p. 35).  Assim, Mondolfo entrava em antagonismo com Gramsci, uma das razões das críticas gramcianas a ele.
Mondolfo, por sua vez, escreveu sobre Gramsci, mas só tivemos acesso a uma obra na qual faz referência direta a Gramsci (Mondolfo, 1956; Mondolfo, 1967)[7]. Ele cita o trabalho de Mateucci que coloca Labriola, Gramsci e Mondolfo numa mesma linha crítica do “marxismo dogmático”. Mondolfo faz algumas considerações sobre o pensamento gramsciano e afirma que existe certa razão em compreender que há uma relação entre os três autores, e reconhece alguns méritos de Gramsci, mas mostra que existem diferenças que não podem ser esquecidas. Mondolfo faz todo um caminho para dizer que Gramsci possui elementos democráticos em seu pensamento, tal como a “exigência da discussão e compreensão dos adversários”, que o situaria “nos antípodas da teoria e a prática do bolchevismo russo” (Mondolfo, 1967, p. 333), entre outros aspectos, mas, ao mesmo tempo, mostra “as contradições de Gramsci”, pois nele convive democratismo e dogmatismo autoritário de partido. A concepção de partido aponta para a sua primazia e papel dirigente sobre as massas, que deveriam manter “fidelidade” ao partido, compreendê-lo como “divindade” e “imperativo categórico”, usando termo kantiano (Mondolfo, 1967)[8]. A democracia é superada pelo dogmatismo:
“É evidente a gravidade destas afirmações, em virtude das quais, Gramsci (como observa também Mateucci, pag. 74), ‘chega a converter-se em partidário das teses de Stálin e de Jdanov, que colocaram o Partido no centro da vida do homem em todos os aspectos, e lhe dão um valor e um poder absolutos’. Fundados nestes princípios, o Partido, moderno Leviatã, se impõe com toda a rigidez de seus dogmas, exige de todo o povo e de cada indivíduo a mais completa submissão e ortodoxia, e condena desapiedadamente toda heresia e a todo defensor ou sequaz dela. Produz-se, assim, essa situação que Gramsci reprovava noutra parte, situação na qual já não é possível nem lícita a divergência ou a discussão: toda dissenção intelectual se converte em culpa moral e em ato criminal; ‘um acusado e um procurador fiscal, que pela obrigação de seu oficio, tem de demonstrar que o acusado é culpado e que merece ser retirado de circulação’ (pag. 21)” (Mondolfo, 1967, p. 336).
O que está dito acima se assemelha bastante com o “processo” movido por Gramsci contra o próprio Mondolfo por não aceitar o leninismo. Processo que, como vimos, resultou na acusação e condenação de Mondolfo por discordar dos cânones do Partido. A citação de Gramsci de 1919, cuja motivação era a relação entre Marx e Lênin e a análise da Revolução Russa, que Mondolfo fez a crítica e apontou para a formação do capitalismo estatal, mostra esse tipo de procedimento já presente no “jovem Gramsci”. Em sua obra O Humanismo de Marx, Mondolfo mostrou o vínculo entre bolchevismo e capitalismo de Estado, mostrando, em seu ensaio Significados e Ensinamentos da Revolução Russa (Mondolfo, 1968), de 1923, que não foram “desvios do leninismo” como mais tarde irá qualificar Raya Dunavskaya (Mondolfo, 1967, p. 295) e sim sua própria característica.
A análise de Mondolfo do papel fundamental do partido no pensamento de Gramsci e seu dogmatismo autoritário, pode parecer, para os não-leitores ou mau-leitores de Gramsci, um exagero. Porém, Mondolfo usa exatamente as mesmas palavras de Gramsci: divindade, imperativo categórico:
“O moderno Príncipe [isto é, o partido - NV], desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, na medida em que o seu desenvolvimento significa de fato que cada ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso; mas só na medida em que tem como ponto de referência o próprio moderno Príncipe e serve para acentuar o seu poder, ou contrastá-lo. O Príncipe toma lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma laicização completa de toda a vida e de todas as relações de costume” (Gramsci, 1988b, p. 9).
Mondolfo mostra, por fim, o vínculo entre a concepção gramsciana e o capitalismo estatal russo:
“A experiência histórica confirma as predições que Gramsci fazia deste modo implicitamente: a ditadura bolchevista devia criar e desenvolver um capitalismo de Estado, de que nem sequer alheia a prática do trabalho forçado: e, por isso o auto-estranhamento do trabalhador está bem longe de achar-se superado. E esta condição mantém, precisamente, a necessidade da ditadura com todos os seus métodos repressivos e de coação cuja aplicação, se bem que possa ter oscilações, como aquela entre a NEP e a desapiedada destruição dos Kulaki; representa sempre, contudo, em sua linha geral, uma cisão profunda entre a elite ditatorial e a massa submetida ao seu domínio. Cisão na qual a obrigação de ‘fidelidade e disciplina’, de submissão ao moderno Príncipe como à divindade ou ao imperativo categórico, não só no pertinente às relações do trabalho e à esfera da produção, mas também ao pensamento, à ciência, onde o dever da ortodoxia implica a perseguição e a repressão desapiedada de todas as heresias” (Mondolfo, 1967, p, 343).
É neste sentido que Mondolfo observa o vínculo entre Gramsci com o jacobinismo, o leninismo e o stalinismo. Ele encerra sua análise da seguinte forma:
“Estes são os pontos nos quais, em nome de Marx nos voltamos contra as teses de Gramsci conformes com a teoria e a prática bolcheviques; mas, ao mesmo tempo, devemos reconhecer lealmente que há um Gramsci profundamente marxista que se subleva conosco contra o Gramsci leninista e stalinista, e que nos oferece as argumentações e os meios para uma refutação, cuja eficácia provém precisamente do fato de ser uma auto-refutação” (Mondolfo, 1967, p. 343).
Assim, o juízo de Gramsci sobre Mondolfo é exagerado e injusto, enquanto que o de Mondolfo sobre Gramsci é muito mais ameno e justo. Inclusive, Mondolfo poderia ter utilizado em sua crítica a defesa aberta que Gramsci fez de Stálin e do capitalismo estatal russo. Porém, a interpretação de Mondolfo a respeito de Gramsci, devido algumas semelhanças de concepção, inclusive o que justificou seu texto, oriundo da comparação estabelecida por Nicolau Mateucci, e acatada por ele parcialmente, acaba sendo exageradamente benevolente.
É necessário, em primeiro lugar, colocar que Antonio Labriola foi um dos mais importantes pensadores italianos no que se refere ao estudo do marxismo (Labriola, 1979). A sua compreensão do marxismo era muito superior a de Gramsci (Viana, 2010). Claro que ele era bem anterior, inclusive trocava correspondência com Engels, e, em que pese isso, conseguiu realizar uma interpretação de Marx de grande profundidade e por isso inspirou Mondolfo e foi reconhecido por Korsch e vários outros. Porém, a apreciação gramsciana de Labriola e o que Gramsci retirou de sua obra é algo limitado e que acaba sendo justamente o que acusou em Mondolfo, a falta de um desenvolvimento coerente. Isso em parte se deve ao fato da influência de Benedetto Croce sobre Gramsci[9], que, com grande probabilidade, também interferiu em sua leitura de Labriola. De qualquer forma, o que interessa é mostrar que entre Labriola e Gramsci há uma diferença fundamental e o que o último assimila do primeiro é bem limitado, ao contrário de Mondolfo, que consegue muito bem perceber a diferença entre as ideias de Marx e de Lênin, o que, sem dúvida, teve como contribuição a obra do pensador italiano, distinta do positivismo da social-democracia alemã e russa.  
Assim, o debate em torno do marxismo na Itália entre Mondolfo e Gramsci revela aspectos interessantes que revelam a dificuldade da teoria marxista nesse país. O marxismo italiano teve em Labriola o seu primeiro grande representante e, posteriormente, Mondolfo. Amadeo Bordiga se aproximou do marxismo, principalmente na análise do capitalismo e na fase em que passou a definir a Rússia como um capitalismo de Estado, mas sua ideia de partido-seita lhe afastava da concepção marxista, bem como seu economicismo. No entanto, em Mondolfo e Labriola é justamente uma análise do capitalismo que se encontra ausente, o que traz alguns problemas, principalmente no caso de Mondolfo e sua análise da URSS, na qual o capitalismo de Estado é assim definido derivado mais do trabalho alienado (num sentido que tem proximidade com a concepção de Marx, mas que acaba se tornando mais abstrato).
Essa discussão aponta para a necessidade de um estudo mais amplo sobre a história do marxismo na Itália. É necessário uma reavaliação crítica do pensamento de Antonio Gramsci, inclusive para mostrar o distanciamento dele em relação ao marxismo. O resgate do pensamento de Antonio Labriola é outra necessidade, principalmente por sua contribuição para discutir o materialismo histórico. Da mesma forma, Rodolfo Mondolfo também precisa ser resgatado no sentido de observar suas contribuições e análises. Uma história do marxismo na Itália é fundamental e poderia revelar as dificuldades do seu desenvolvimento neste país, as determinações desse processo e inclusive a razão que a emergência dos conselhos de fábrica não gerou uma tendência revolucionária e radical como ocorreu na Rússia – tal como o grupo operário de Miasnikov (Viana, 2007) e Alemanha (os comunistas de conselhos). A análise das determinações da história do marxismo italiano é um programa de pesquisa fundamental e ainda está por ser feito e isto remeteria não apenas para o estudo dos autores e suas ideias, mas das organizações políticas, da peculiaridade do capitalismo italiano e seu proletariado, etc. O presente texto é apenas um pontapé inicial que terá desdobramentos em outras análises do marxismo na Itália.
O debate entre Mondolfo e Gramsci também serve para alertar para a existência do vínculo deste pensador com o jacobinismo e dogmatismo. E, numa concepção dogmática como a de Gramsci,
... Não há lugar para um proletariado que se possa fazer herdeiro da filosofia, nem para a formação de uma sociedade na qual o livre desenvolvimento de cada um seja condição para o livre desenvolvimento de todos. Só há lugar para um rebanho de ovelhas obedientes ao bastão do pastor e ao latido de seus cães, que segue o caminho assinalado, ainda quando mude com a mudança do pastor ou de sua arbitrária vontade (Mondolfo, 1968, p. 336).
Assim, o debate entre Gramsci e Mondolfo revela duas perspectivas antagônicas que expressam classes antagônicas. O debate intelectual entre Gramsci e Mondolfo é expressão de uma luta de classes existente de fato e o primeiro se posiciona do lado das classes auxiliares da burguesia (burocracia e intelectualidade), ansiosas para dirigir o proletariado e conquistar o poder estatal se tornando classe dominante, enquanto que Mondolfo, apesar de suas contradições e posições problemática, está próximo do proletariado, que, como colocou Marx inúmeras vezes, é o portador da emancipação humana, da realização prática do humanismo, defendido por Mondolfo. Assim, a crítica de Mondolfo a Gramsci revela justamente o pensador pouco conhecido devido a produção de um pensador fictício em substituição ao intelectual real que ele foi. Neste sentido, e mesmo sem analisar sob este prisma, revela a perspectiva de classe de Gramsci a partir do momento que explicitou a sua posição política jacobina. Ao fazer isso, Mondolfo mostra a distancia entre Gramsci e o marxismo. Assim, o debate entre os dois pensadores italianos é fundamental para compreender a história do marxismo na Itália.
Referências

Gramsci, Antonio. A Concepção Dialética da História. 6ª edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1987.
Gramsci, Antonio. Leninismo y Marxismo de Rodolfo Mondolfo. In: Gramsci, Antonio. Antologia. 11ª edição, Siglo Vienteuno, 1988b.
Gramsci, Antonio. Maquiavel, A Política e o Estado Moderno. 6ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.
Labriola, Antonio. La Concepción Materialista de la História. Madrid, Editorial 7, 1979.
Mondolfo, Rodolfo. Bolchevismo y Capitalismo de Estado. Estudios sobre la Revolución Rusa. Ediciones Libera, 1968.
Mondolfo, Rodolfo. El Materialismo Histórico em F. Engels y Otros Ensayos. Buenos Aires, Raigal, 1956.
Mondolfo, Rodolfo. Estudos Sobre Marx. São Paulo, Mestre Jou, 1967.
Mondolfo, Rodolfo. Materialismo Histórico, Bolchevismo y Dictadura. Buenos Aires, Ediciones Nuevas, 1962.
Viana, Nildo. A Esquerda Dissidente e a Revolução Russa. In: Maciel, David; Maia, Cláudio; Lemos, Antônio Henrique. (Org.). A Revolução Russa – Processos, Personagens e Influências. Goiânia: CEPEC, 2007.
Viana, Nildo. A Importância de Antônio Labriola para o Materialismo Histórico. Revista Enfrentamento. Ano 05, num. 09, jan./jul. 2010.




* Sociólogo e filósofo.
[1] Gramsci mostra aqui seu equívoco em pensar em um “estado de conselhos”, não percebendo que conselhos operários e estado são antagônicos. Esse tipo de equívoco é reproduzido por determinadas alas do trotskismo que buscam se aproximar da ideia de autogestão.
[2] Mondolfo deu aula na Universidade de Turim, até 1914, época em que Gramsci vivia lá e também pertenceu ao mesmo partido deste. Sem dúvida, uma das razões da antipatia de Gramsci em relação a Mondolfo está em suas teses, tal como a distinção entre marxismo e leninismo e a atribuição de um caráter capitalista ao regime bolchevique. Porém, mais importante que isso, no campo pessoal, é a referência de Mondolfo ao texto de Gramsci sobre a revolução bolchevique, que comentaremos adiante.
[3] Mondolfo usa como material informativo sobre a Rússia um vasto material retirada tanto da imprensa burguesa quanto bolchevista (da Rússia e da Itália), bem como outras fontes de informação, inclusive os contos de Gorki, que segundo as próprias palavras desse escritor, “parece um conto mas é fato provado” (apud. Mondolfo, 1968).
[4] Não confundir com o pensador marxista Antonio Labriola, pois em comum só possuem o sobrenome. Arturo Labriola passou de uma posição mais radical, sindicalista revolucionária, para uma posição socialdemocrata.
[5] Mondolfo cai no equívoco de concordar com a afirmação de Arturo Labriola para sustentar a identidade entre marxismo e leninismo, que seriam três pontos: a organização dos trabalhadores em partido, a conquista do poder estatal e uso deste para abolir as classes, sendo que nenhum destes pontos se encontra em Marx, a não ser que se entenda por “partido” a auto-organização da classe  e os demais aspectos não possuem, nem forçando a interpretação, existência em seu pensamento. Mondolfo afirma que, apesar disso existir no marxismo e no leninismo, é preciso analisar o primeiro por sua totalidade, o que remete a outras concepções e sua práxis.
[6] Este é outro problema da análise de Mondolfo, ao exagerar o papel das forças produtivas no processo revolucionário e atribuir isso a Marx.
[7] Mondolfo escreveu o ensaio “Em Torno de Gramsci e da Filosofia da Práxis”, que é parte de sua obra “Estudos Sobre Marx”, segundo título da versão portuguesa e que na versão espanhola ganhou o título de “Marx y el Marxismo”. Esse mesmo ensaio aparece como apêndice na edição de 1957 de seu livro sobre El Materialismo Histórico de Engels. A sua primeira publicação ocorreu na Revista Critica Sociale, em 1955. Portanto, a citação acima se refere ao mesmo texto, só que publicado em duas obras.
[8] O imperativo categórico, na ética kantiana, é expressão da máxima que o agir do indivíduo deve ser entendida como lei universal a ser seguida por todos.
[9] Croce preparou uma edição italiana do livro fundamental de Labriola, Ensaios Sobre a Concepção Materialista da História.

Artigo publicado originalmente em: Revista Enfrentamento. Ano 07, num. 10, jan./jun. 2012.

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