Antonio Gramsci e Rodolfo Mondolfo
Um Debate em Torno do Marxismo na
Itália
Nildo Viana*
“A divisão entre dirigentes e dirigidos, entre elite e massa, se faz
assim, muito mais grave que tudo quanto noutras passagens de suas obras Gramsci
parece disposto a admitir”.
Rodolfo Mondolfo
O pensamento social italiano produziu alguns pensadores que ultrapassaram
as fronteiras deste país e se tornaram autores conhecidos mundialmente. O
jornalista Antonio Gramsci (1891-1937) e o filósofo Rodolfo Mondolfo (1877-1976)
são dois exemplos. O primeiro, conhecido por suas obras políticas e o segundo
por suas obras filosóficas, especialmente sobre a filosofia antiga e alemã.
Porém, o que poucos sabem é o debate intelectual entre ambos. O nosso objetivo
é resgatar o debate entre estes dois autores que gira em torno do marxismo na
Itália, colocando duas vertentes e duas concepções distintas de marxismo.
No debate se colocam frente a frente duas concepções de marxismo e
comunismo. A concepção gramsciana, que num primeiro momento foi um leninismo
radical influenciado pela força histórica dos conselhos operários na Rússia e
outros países, e, num segundo momento, um semileninismo de tendência
reformista, que vê uma identidade entre leninismo e marxismo e entre regime
bolchevique e socialismo. A posição gramsciana tem muito pouco a ver com o
marxismo e isso se observa nas discrepâncias metodológicas, políticas, etc.,
principalmente no seu segundo momento.
A concepção de Mondolfo já é mais próxima do marxismo e por isso ele
revela uma concepção distinta, embora com alguns equívocos, da concepção
gramsciana. Mondolfo reconhece o marxismo como um humanismo e possui uma
posição metodológica muito mais próxima de Marx do que Gramsci. O humanismo de
Mondolfo o faz colocar a liberdade como um elemento fundamental do socialismo e
esse deve significar a abolição da alienação:
“É preciso destacar com toda a evidência que merece a estreita
vinculação que existe entre a aproximação efetuada por Zinoviev e os problemas
que os escritos juvenis de Marx colocavam nas raízes de todas as aspirações e
exigências socialistas: o problema do trabalho alienado e do homem alienado, o
problema da superação desta alienação. O socialismo se encontra situado nas
antípodas de todo alienação do homem e do trabalho; aonde existe semelhante
alienação, em troca, deve falar-se de capitalismo, que é justamente a negação
do homem e sua humanidade (Unmenschlichkeit, segundo expressão de Marx e
Engels); negação que o socialismo quer superar (aufheben) na negação da negação”
(Mondolfo, 1968, p. 263).
Assim, o humanismo de Rodolfo Mondolfo – e que significa um conjunto de
concepções, valores, etc. – permitiu que ele tivesse uma postura crítica diante
do leninismo e do capitalismo estatal russo. O humanismo é um dos principais
antídotos contra as mais variadas formas de fetichismo (do partido, da
mercadoria ou qualquer outro) e está na base do pensamento marxista. Assim,
Gramsci e Mondolfo eram dois contemporâneos que tinham algumas concepções semelhantes
mas discordavam em questões fundamentais e nosso foco serão estes pontos de
divergência.
Gramsci apresenta juízos bastante fortes e injustos sobre Mondolfo. Ainda
em um texto de juventude, em 1919, ele diz que o amor pela revolução do
“professor” Mondolfo “é amor gramatical”:
Ele pergunta e fica enfadado com as respostas. Pergunta: Marx? E lhe
respondem: Lênin. E isso, pobres de nós, não é científico, não pode satisfazer
a sensibilidade filológica do erudito e do arqueólogo. Então, com uma
enternecedora seriedade catedrática, Mondolfo, reprova, reprova, reprova: zero
em gramática, zero em ciência comparada, zero em práticas de magistério
(Gramsci, 1988a, p. 57).
Aqui se percebe que Mondolfo distingue Marx de Lênin, o que a
sensibilidade gramsciana domesticada pelo culto das autoridades não pode
aceitar. Gramsci continua:
Sabemos que a seriedade professoral não é mais que aparência de
seriedade: é pedantismo, filisteísmo e, frequentemente, incompreensão absoluta.
Mondolfo realiza um processo sobre as intenções e atribui aos comunistas russos
intenções que não tiveram nunca ou que não têm nenhum valor histórico real. O
fato essencial da revolução russa é a instauração de um novo tipo de Estado: o
Estado dos Conselhos. A isto tem que atender a crítica histórica. Tudo o mais é
contingência condicionada pela vida política internacional, a qual significa
para a revolução russa bloqueio econômico, guerra em frentes de milhões de
quilômetros contra os invasores, guerra interna contra os sabotadores.
Pequenezas para Mondolfo, que não a toma em conta, absolutamente. E quer que
lhe dê precisão gramatical um Estado obrigado a utilizar todo seu poder e todos
seus meios para subsistir, para consolidar sua existência fundindo-se com a
revolução internacional (Gramsci, 1988a, p. 57)[1].
O resto do artigo de Gramsci é uma defesa da Revolução Russa, em torno de
um conto de Gorki comentado por Mondolfo. Porém, Gramsci voltará a ter
oportunidade de citar Mondolfo. Aqui fica bem claro a defesa do capitalismo
estatal russo nascente por Gramsci, com as justificativas tradicionais que
serão utilizadas até os dias de hoje para a burocratização e instauração de um
regime ditatorial. Em outra oportunidade ele comenta o livro de Mondolfo, O Materialismo Histórico em Engels
(Mondolfo, 1956). Gramsci destacava que Marx e Engels são pessoas distintas e
que não se pode tomar um pelo outro. Reconhecendo as diferenças e
individualidades, não se pode tomar Marx por Engels. Depois de colocar a
posição de Sorel, segundo a qual a capacidade teórica e o pensamento original
de Engels era escasso, comenta o livro de Mondolfo positivamente. Ao comentar
que é necessária uma investigação sistemática sobre as relações intelectuais
entre Marx e Engels, afirma:
“Na realidade, uma investigação sistemática deste gênero (com exceção
do livro de Mondolfo) jamais foi realizada no mundo da cultura; aliás, as exposições
do segundo [Engels – NV], algumas relativamente sistemáticas, são colocadas
agora em primeiro plano, como fonte autêntica ou, até mesmo, como a única fonte
autêntica. Por isso, o volume de Mondolfo parece ser muito útil, pelo menos
graças a diretriz que traça” (Gramsci, 1987, p. 99).
Porém, logo adiante Gramsci retoma seu ataque a Mondolfo ao dizer que,
como discípulo de Labriola, ele não forneceu um desenvolvimento coerente às
suas obras (que é um desenvolvimento, diga-se de passagem, muito mais oriundo
de uma atribuição de Gramsci do que Labriola, pois “transformar a interpretação
da história” em “filosofia geral” é uma concepção do primeiro, que atribui ao
segundo). Numa nota de rodapé mostra o seu repúdio a Mondolfo:
“Mondolfo, ao que parece, jamais abandonou inteiramente o ponto de
vista fundamental do positivismo, como discípulo de Roberto Ardigó. O livro do
seguidor de Mondolfo, Diambrini Palazzi (publicado com um prefácio de
Mondolfo), sobre a Filosofia de Antonio
Labriola, é um documento da pobreza de conceitos e diretrizes do ensino
universitário do próprio Mondolfo” (Gramsci, 1987, p. 102).
A referência a Mondolfo, para quem não conhece suas obras, apresenta um
juízo severo e que poderia ser verdadeiro. Para quem leu apenas Gramsci, esta
vai ser a única impressão de Mondolfo. Porém, para quem conhece pelo menos
parte da obra de Mondolfo, sabe que ele é muito mais profundo que o próprio
Gramsci, ou seja, está muito além do próprio crítico. Porém, a afirmação mostra
um forte desdém, além da falta de fundamentação, o que é comum em Gramsci (não
definiu o positivismo e nem demonstrou onde este estaria presente na obra de
Mondolfo). Além de possíveis razões pessoais e políticas que não sabemos[2],
há uma razão de ordem valorativa. A primeira crítica de Gramsci acima mostra
que sua divergência era em torno do juízo sobre Lênin. Mondolfo apresenta uma
análise crítica de Lênin e da revolução russa e Gramsci defendia ambos. A
defesa gramsciana era baseada, em parte, na ignorância do que ocorria na Rússia
(e era comum isso e por isso muitos marxistas que depois se tornaram
antileninistas, bem como anarquistas, apoiaram inicialmente o bolchevismo), o
que é visto por sua ideia de que se formou um “estado de conselhos”, ou seja,
os sovietes (conselhos operários) seriam a base da nova sociedade russa, o que
ele reafirma em vários outros textos da época.
Outro equívoco, bastante comum na Europa daquela época (o escrito de
Gramsci é de 1919), era considerar Lênin como o grande teórico dos conselhos
operários, ao invés do que realmente era, um grande ideólogo do partido de
vanguarda e da burocracia. No fundo, o que se formou na Rússia foi um regime
burocrático comandado pelo capitalismo estatal e defendido por Lênin. Assim,
Mondolfo tinha maiores conhecimentos dos acontecimentos na Rússia e da obra de
Lênin do que Gramsci[3].
Porém, Gramsci poderia ter superado isso com o passar do tempo e com
maiores informações da Rússia que foi conseguindo com o passar do tempo,
inclusive através de suas idas até lá e sua participação na III Internacional,
a Internacional Bolchevique. No entanto, não foi isso que ocorreu e Gramsci
acabou defendendo o regime capitalista estatal russo mesmo na época do comando
ditatorial de Stálin. A segunda crítica citada anteriormente data da primeira
metade da década de 1930. Ele inicia com um reconhecimento dos méritos de
Mondolfo, mas termina com a mesma depreciação de mais de dez anos anteriores.
Porém, não deixa de ser curioso que a segunda crítica de Gramsci ocorre
no interior de uma seqüência na qual a primeira referência a Mondolfo ocorre
numa nota sobre “questão de método”, no qual discutia como realizar leituras de
determinados autores e dava algumas sugestões, inclusive interessantes e
corretas, embora incompletas, nesse sentido. Ele diz, entre outras coisas, o
seguinte:
“Entre as obras de determinado pensador, ademais, deve-se distinguir
entre as que ele concluiu e publicou e as que permaneceram inéditas, porque
incompletas, e publicadas por algum amigo ou discípulo, não sem revisões, modificações,
cortes, etc., ou seja, não sem uma ativa intervenção do editor” (Gramsci, 1987,
p. 96).
Pois bem, a avaliação de Mondolfo na segunda crítica, além de uma
acusação não fundamentada de suposto positivismo, afirma que o livro do
seguidor Palazzi ao qual ele apenas escreveu o prefácio, é um “documento da
pobreza de conceitos e diretrizes do ensino universitário do próprio Mondolfo”
(Gramsci, cdh, p. 102). A incoerência de Gramsci é visível, já que
anteriormente havia reconhecido uma distinção entre Marx e Engels e que se deve
tomar as obras de um autor na qual ele publica mais do que as demais e depois
não aplica o mesmo procedimento para analisar Mondolfo, que sendo “discípulo”
de Ardigó não escaparia do positivismo e se um ex-aluno escreve uma obra pobre,
isso manifesta a pobreza do professor... Assim, usa dois pesos e duas medidas. Ele
julga um pelo outro e o seu conselho como forma de leitura dizia o contrário,
inclusive até mesmo no caso de mera organização das obras do autor ao invés de
obra própria do “discípulo”. A contradição de Gramsci mostra somente a falta de
seriedade intelectual ao tratar de Mondolfo. O reconhecimento parcial ao tratar
de sua obra sobre Engels logo é substituído pelo desprezo. E tal reconhecimento
inicial foi provocado pela proximidade das posições de Mondolfo, ao separar
Marx de Engels, mas que não se manteve devido as fortes divergências entre
ambos.
Obviamente que a crítica a Mondolfo sempre esteve ligada a questões
teóricas e políticas em torno do marxismo. A posição de Mondolfo era de crítica
ao leninismo. Isto não cessaria de ocorrer nas obras posteriores, inclusive em
seu livro Materialismo Histórico,
Bolchevismo e Ditadura (1962) e sua avaliação da URSS como “capitalismo de
Estado”. Ou seja, o vínculo de Gramsci com Lênin e o capitalismo estatal é
provavelmente a grande motivação da forma agressiva como ataca Mondolfo.
Mondolfo em um texto de 1919 – comentado por Gramsci, tal como citamos
anteriormente – faz uma comparação entre o reformista Arturo Labriola[4]
e partidários do bolchevismo na Itália, os membros do Partido Socialista
Italiano. Ele diz que Labriola busca afirmar a identidade entre marxismo e
leninismo, afirmando que os conservadores buscam separar um do outro para
evitar “o veneno de Lênin”. Mondolfo diz que não são apenas os conservadores,
mas também os bolchevistas italianas e cita, como exemplo, um artigo publicado
no Jornal do Partido Socialista, Avanti! Intitulado A Revolução Contra o Capital (apesar de não colocar, o texto é de
Gramsci), que significa uma revolução contra a obra de Marx, O Capital. Mondolfo argumenta que há uma
diferença na concepção e na práxis das duas tendências (marxismo e leninismo)[5].
Mondolfo recorda a tese marxista de que é necessário o desenvolvimento das
forças produtivas para que o comunismo possa suceder o capitalismo e essa
condição não existia na Rússia[6].
Mondolfo questiona:
“Que há de tudo isto, – repito – que é a essência do marxismo, na
práxis leninista? A economia capitalista na Rússia havia acaso alcançado o
pleno desenvolvimento das forças produtivas que era capaz de gerar? Lênin
poderia, portanto, começar na Rússia – como escreve Arturo Labriola – a era
socialista? A pergunta se divide aqui em duas: 1) se o regime leninista pode
chamar-se socialista, e em que medida, e 2) se, na medida em que tal nome pode
ser dado, apresenta maiores probabilidades de êxito e de propagação do exemplo,
ou, em troca, de quebra e descrédito da ideia socialista, devido a imaturidade
da experiência” (Mondolfo, 1968, p. 12-13).
Mondolfo coloca que, no campo, o que ocorreu foi a distribuição de
terras, o que nada tem de socialista. A ação leninista se restringiria, então,
às cidades e indústrias, que, no entanto, dependem do campo e nesta a produção
não consegue alcançar alto nível e o governo leninista gasta dois ou três para
obter um. A experiência leninista, portanto, significa muito pouco para a causa
socialista. Outro problema identificado por Mondolfo é o incentivo que Lênin
ofereceu ao capital estrangeiro em terras russas. O socialismo implica em
liberdade:
“Socialismo significa abolição da divisão das classes e da sujeição
econômica do homem pelo homem; a tal título representa a mais radical e
completa reivindicação de liberdade. Porém, o conceito de liberdade que
reivindica não é puramente negativo (supressão de todo resíduo de escravidão do
homem pelo homem); é eminentemente positivo (conquista das condições pelas
quais o homem pode sentir-ser verdadeiramente livre)” (Mondolfo, 1968, p. 29).
Os decretos e leis instituídas pelo regime bolchevique mostram o caminho
para o capitalismo de Estado e não o socialismo. Nesse sentido, Mondolfo nega
que o leninismo seja marxismo e que o regime bolchevique seja socialista. Com
grande perspicácia Mondolfo distingue o “mito de Lênin” do “Lênin real”, sendo
que até hoje muitos não sabem que a imagem do chefe do Partido Bolchevique na
Europa até os anos 1920 era muito mais mitológica do que real, ele era visto
como “teórico dos conselhos” e grande incentivados dos sovietes, sendo que, na
verdade, ele buscou apenas se apoiar nos mesmos para chegar ao poder estatal e
uma vez no poder realizou um conjunto de ações para retirar a força dos
conselhos operários. Esse “mito de Lênin” era provocado, obviamente, por várias
determinações. Uma delas é a pouca informação sobre o que realmente acontecia
na Rússia e sobre Lênin. A tradução das obras de Lênin vai ocorrer, mais sistematicamente
e em quantidade elevada, após esse período. Segundo Mondolfo, “é possível que
Lênin não foi sem sequer num primeiro momento o leninista que seus defensores
nos apresentam” (Mondolfo, 1968, p. 35). Assim, Mondolfo entrava em antagonismo com
Gramsci, uma das razões das críticas gramcianas a ele.
Mondolfo, por sua vez, escreveu sobre Gramsci, mas só tivemos acesso a
uma obra na qual faz referência direta a Gramsci (Mondolfo, 1956; Mondolfo,
1967)[7].
Ele cita o trabalho de Mateucci que coloca Labriola, Gramsci e Mondolfo numa
mesma linha crítica do “marxismo dogmático”. Mondolfo faz algumas considerações
sobre o pensamento gramsciano e afirma que existe certa razão em compreender
que há uma relação entre os três autores, e reconhece alguns méritos de
Gramsci, mas mostra que existem diferenças que não podem ser esquecidas.
Mondolfo faz todo um caminho para dizer que Gramsci possui elementos
democráticos em seu pensamento, tal como a “exigência da discussão e
compreensão dos adversários”, que o situaria “nos antípodas da teoria e a
prática do bolchevismo russo” (Mondolfo, 1967, p. 333), entre outros aspectos,
mas, ao mesmo tempo, mostra “as contradições de Gramsci”, pois nele convive
democratismo e dogmatismo autoritário de partido. A concepção de partido aponta
para a sua primazia e papel dirigente sobre as massas, que deveriam manter
“fidelidade” ao partido, compreendê-lo como “divindade” e “imperativo
categórico”, usando termo kantiano (Mondolfo, 1967)[8].
A democracia é superada pelo dogmatismo:
“É evidente a gravidade destas afirmações, em virtude das quais,
Gramsci (como observa também Mateucci, pag. 74), ‘chega a converter-se em
partidário das teses de Stálin e de Jdanov, que colocaram o Partido no centro
da vida do homem em todos os aspectos, e lhe dão um valor e um poder
absolutos’. Fundados nestes princípios, o Partido, moderno Leviatã, se impõe
com toda a rigidez de seus dogmas, exige de todo o povo e de cada indivíduo a
mais completa submissão e ortodoxia, e condena desapiedadamente toda heresia e
a todo defensor ou sequaz dela. Produz-se, assim, essa situação que Gramsci
reprovava noutra parte, situação na qual já não é possível nem lícita a
divergência ou a discussão: toda dissenção intelectual se converte em culpa
moral e em ato criminal; ‘um acusado e um procurador fiscal, que pela obrigação
de seu oficio, tem de demonstrar que o acusado é culpado e que merece ser
retirado de circulação’ (pag. 21)” (Mondolfo, 1967, p. 336).
O que está dito acima se assemelha bastante com o “processo” movido por
Gramsci contra o próprio Mondolfo por não aceitar o leninismo. Processo que,
como vimos, resultou na acusação e condenação de Mondolfo por discordar dos
cânones do Partido. A citação de Gramsci de 1919, cuja motivação era a relação
entre Marx e Lênin e a análise da Revolução Russa, que Mondolfo fez a crítica e
apontou para a formação do capitalismo estatal, mostra esse tipo de
procedimento já presente no “jovem Gramsci”. Em sua obra O Humanismo de Marx, Mondolfo mostrou o vínculo entre bolchevismo e
capitalismo de Estado, mostrando, em seu ensaio Significados e Ensinamentos da Revolução Russa (Mondolfo, 1968), de
1923, que não foram “desvios do leninismo” como mais tarde irá qualificar Raya
Dunavskaya (Mondolfo, 1967, p. 295) e sim sua própria característica.
A análise de Mondolfo do papel fundamental do partido no pensamento de
Gramsci e seu dogmatismo autoritário, pode parecer, para os não-leitores ou
mau-leitores de Gramsci, um exagero. Porém, Mondolfo usa exatamente as mesmas
palavras de Gramsci: divindade, imperativo categórico:
“O moderno Príncipe [isto é, o partido - NV], desenvolvendo-se,
subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, na medida em que o
seu desenvolvimento significa de fato que cada ato é concebido como útil ou
prejudicial, como virtuoso ou criminoso; mas só na medida em que tem como ponto
de referência o próprio moderno Príncipe e serve para acentuar o seu poder, ou
contrastá-lo. O Príncipe toma lugar, nas consciências, da divindade ou do
imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma
laicização completa de toda a vida e de todas as relações de costume” (Gramsci,
1988b, p. 9).
Mondolfo mostra, por fim, o vínculo entre a concepção gramsciana e o
capitalismo estatal russo:
“A experiência histórica confirma as predições que Gramsci fazia deste
modo implicitamente: a ditadura bolchevista devia criar e desenvolver um
capitalismo de Estado, de que nem sequer alheia a prática do trabalho forçado:
e, por isso o auto-estranhamento do trabalhador está bem longe de achar-se
superado. E esta condição mantém, precisamente, a necessidade da ditadura com
todos os seus métodos repressivos e de coação cuja aplicação, se bem que possa
ter oscilações, como aquela entre a NEP e a desapiedada destruição dos Kulaki;
representa sempre, contudo, em sua linha geral, uma cisão profunda entre a
elite ditatorial e a massa submetida ao seu domínio. Cisão na qual a obrigação
de ‘fidelidade e disciplina’, de submissão ao moderno Príncipe como à divindade
ou ao imperativo categórico, não só no pertinente às relações do trabalho e à
esfera da produção, mas também ao pensamento, à ciência, onde o dever da
ortodoxia implica a perseguição e a repressão desapiedada de todas as heresias”
(Mondolfo, 1967, p, 343).
É neste sentido que Mondolfo observa o vínculo entre Gramsci com o
jacobinismo, o leninismo e o stalinismo. Ele encerra sua análise da seguinte
forma:
“Estes são os pontos nos quais, em nome de Marx nos voltamos contra as
teses de Gramsci conformes com a teoria e a prática bolcheviques; mas, ao mesmo
tempo, devemos reconhecer lealmente que há um Gramsci profundamente marxista
que se subleva conosco contra o Gramsci leninista e stalinista, e que nos
oferece as argumentações e os meios para uma refutação, cuja eficácia provém
precisamente do fato de ser uma auto-refutação” (Mondolfo, 1967, p. 343).
Assim, o juízo de Gramsci sobre Mondolfo é exagerado e injusto, enquanto
que o de Mondolfo sobre Gramsci é muito mais ameno e justo. Inclusive, Mondolfo
poderia ter utilizado em sua crítica a defesa aberta que Gramsci fez de Stálin
e do capitalismo estatal russo. Porém, a interpretação de Mondolfo a respeito
de Gramsci, devido algumas semelhanças de concepção, inclusive o que justificou
seu texto, oriundo da comparação estabelecida por Nicolau Mateucci, e acatada
por ele parcialmente, acaba sendo exageradamente benevolente.
É necessário, em primeiro lugar, colocar que Antonio Labriola foi um dos
mais importantes pensadores italianos no que se refere ao estudo do marxismo (Labriola,
1979). A sua compreensão do marxismo era muito superior a de Gramsci (Viana,
2010). Claro que ele era bem anterior, inclusive trocava correspondência com
Engels, e, em que pese isso, conseguiu realizar uma interpretação de Marx de
grande profundidade e por isso inspirou Mondolfo e foi reconhecido por Korsch e
vários outros. Porém, a apreciação gramsciana de Labriola e o que Gramsci
retirou de sua obra é algo limitado e que acaba sendo justamente o que acusou
em Mondolfo, a falta de um desenvolvimento coerente. Isso em parte se deve ao
fato da influência de Benedetto Croce sobre Gramsci[9],
que, com grande probabilidade, também interferiu em sua leitura de Labriola. De
qualquer forma, o que interessa é mostrar que entre Labriola e Gramsci há uma
diferença fundamental e o que o último assimila do primeiro é bem limitado, ao
contrário de Mondolfo, que consegue muito bem perceber a diferença entre as
ideias de Marx e de Lênin, o que, sem dúvida, teve como contribuição a obra do
pensador italiano, distinta do positivismo da social-democracia alemã e russa.
Assim, o debate em torno do marxismo na Itália entre Mondolfo e Gramsci
revela aspectos interessantes que revelam a dificuldade da teoria marxista
nesse país. O marxismo italiano teve em Labriola o seu primeiro grande
representante e, posteriormente, Mondolfo. Amadeo Bordiga se aproximou do
marxismo, principalmente na análise do capitalismo e na fase em que passou a
definir a Rússia como um capitalismo de Estado, mas sua ideia de partido-seita
lhe afastava da concepção marxista, bem como seu economicismo. No entanto, em
Mondolfo e Labriola é justamente uma análise do capitalismo que se encontra
ausente, o que traz alguns problemas, principalmente no caso de Mondolfo e sua
análise da URSS, na qual o capitalismo de Estado é assim definido derivado mais
do trabalho alienado (num sentido que tem proximidade com a concepção de Marx,
mas que acaba se tornando mais abstrato).
Essa discussão aponta para a necessidade de um estudo mais amplo sobre a
história do marxismo na Itália. É necessário uma reavaliação crítica do
pensamento de Antonio Gramsci, inclusive para mostrar o distanciamento dele em
relação ao marxismo. O resgate do pensamento de Antonio Labriola é outra
necessidade, principalmente por sua contribuição para discutir o materialismo
histórico. Da mesma forma, Rodolfo Mondolfo também precisa ser resgatado no
sentido de observar suas contribuições e análises. Uma história do marxismo na
Itália é fundamental e poderia revelar as dificuldades do seu desenvolvimento
neste país, as determinações desse processo e inclusive a razão que a
emergência dos conselhos de fábrica não gerou uma tendência revolucionária e
radical como ocorreu na Rússia – tal como o grupo operário de Miasnikov (Viana,
2007) e Alemanha (os comunistas de conselhos). A análise das determinações da
história do marxismo italiano é um programa de pesquisa fundamental e ainda
está por ser feito e isto remeteria não apenas para o estudo dos autores e suas
ideias, mas das organizações políticas, da peculiaridade do capitalismo
italiano e seu proletariado, etc. O presente texto é apenas um pontapé inicial
que terá desdobramentos em outras análises do marxismo na Itália.
O debate entre Mondolfo e Gramsci também serve para alertar para a
existência do vínculo deste pensador com o jacobinismo e dogmatismo. E, numa
concepção dogmática como a de Gramsci,
... Não há lugar para
um proletariado que se possa fazer herdeiro da filosofia, nem para a formação
de uma sociedade na qual o livre desenvolvimento de cada um seja condição para
o livre desenvolvimento de todos. Só há lugar para um rebanho de ovelhas
obedientes ao bastão do pastor e ao latido de seus cães, que segue o caminho
assinalado, ainda quando mude com a mudança do pastor ou de sua arbitrária
vontade (Mondolfo, 1968, p. 336).
Assim, o debate entre Gramsci e Mondolfo revela duas perspectivas
antagônicas que expressam classes antagônicas. O debate intelectual entre
Gramsci e Mondolfo é expressão de uma luta de classes existente de fato e o
primeiro se posiciona do lado das classes auxiliares da burguesia (burocracia e
intelectualidade), ansiosas para dirigir o proletariado e conquistar o poder
estatal se tornando classe dominante, enquanto que Mondolfo, apesar de suas
contradições e posições problemática, está próximo do proletariado, que, como
colocou Marx inúmeras vezes, é o portador da emancipação humana, da realização
prática do humanismo, defendido por Mondolfo. Assim, a crítica de Mondolfo a
Gramsci revela justamente o pensador pouco conhecido devido a produção de um
pensador fictício em substituição ao intelectual real que ele foi. Neste
sentido, e mesmo sem analisar sob este prisma, revela a perspectiva de classe
de Gramsci a partir do momento que explicitou a sua posição política jacobina.
Ao fazer isso, Mondolfo mostra a distancia entre Gramsci e o marxismo. Assim, o
debate entre os dois pensadores italianos é fundamental para compreender a
história do marxismo na Itália.
Referências
Gramsci,
Antonio. A Concepção Dialética da
História. 6ª edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1987.
Gramsci,
Antonio. Leninismo y Marxismo de Rodolfo Mondolfo. In: Gramsci, Antonio. Antologia. 11ª
edição, Siglo Vienteuno, 1988b.
Gramsci,
Antonio. Maquiavel, A Política e o Estado
Moderno. 6ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.
Labriola, Antonio. La Concepción Materialista de la História.
Madrid, Editorial 7, 1979.
Mondolfo,
Rodolfo. Bolchevismo y Capitalismo de Estado.
Estudios sobre la Revolución Rusa. Ediciones Libera, 1968.
Mondolfo,
Rodolfo. El Materialismo Histórico em F.
Engels y Otros Ensayos. Buenos Aires, Raigal, 1956.
Mondolfo,
Rodolfo. Estudos Sobre Marx. São Paulo, Mestre Jou, 1967.
Mondolfo,
Rodolfo. Materialismo Histórico,
Bolchevismo y Dictadura. Buenos Aires, Ediciones Nuevas, 1962.
Viana, Nildo. A
Esquerda Dissidente e a Revolução Russa. In: Maciel, David; Maia,
Cláudio; Lemos, Antônio Henrique.
(Org.). A Revolução Russa – Processos,
Personagens e Influências. Goiânia: CEPEC, 2007.
Viana,
Nildo. A Importância de Antônio Labriola para o Materialismo Histórico.
Revista Enfrentamento. Ano 05, num. 09, jan./jul. 2010.
* Sociólogo e
filósofo.
[1]
Gramsci mostra aqui seu equívoco em pensar em um “estado de conselhos”, não
percebendo que conselhos operários e estado são antagônicos. Esse tipo de
equívoco é reproduzido por determinadas alas do trotskismo que buscam se
aproximar da ideia de autogestão.
[2]
Mondolfo deu aula na Universidade de Turim, até 1914, época em que Gramsci
vivia lá e também pertenceu ao mesmo partido deste. Sem dúvida, uma das razões
da antipatia de Gramsci em relação a Mondolfo está em suas teses, tal como a
distinção entre marxismo e leninismo e a atribuição de um caráter capitalista
ao regime bolchevique. Porém, mais importante que isso, no campo pessoal, é a
referência de Mondolfo ao texto de Gramsci sobre a revolução bolchevique, que
comentaremos adiante.
[3]
Mondolfo usa como material informativo sobre a Rússia um vasto material
retirada tanto da imprensa burguesa quanto bolchevista (da Rússia e da Itália),
bem como outras fontes de informação, inclusive os contos de Gorki, que segundo
as próprias palavras desse escritor, “parece um conto mas é fato provado”
(apud. Mondolfo, 1968).
[4]
Não confundir com o pensador marxista Antonio Labriola, pois em comum só
possuem o sobrenome. Arturo Labriola passou de uma posição mais radical,
sindicalista revolucionária, para uma posição socialdemocrata.
[5]
Mondolfo cai no equívoco de concordar com a afirmação de Arturo Labriola para
sustentar a identidade entre marxismo e leninismo, que seriam três pontos: a
organização dos trabalhadores em partido, a conquista do poder estatal e uso
deste para abolir as classes, sendo que nenhum destes pontos se encontra em
Marx, a não ser que se entenda por “partido” a auto-organização da classe e os demais aspectos não possuem, nem
forçando a interpretação, existência em seu pensamento. Mondolfo afirma que,
apesar disso existir no marxismo e no leninismo, é preciso analisar o primeiro
por sua totalidade, o que remete a outras concepções e sua práxis.
[6]
Este é outro problema da análise de Mondolfo, ao exagerar o papel das forças
produtivas no processo revolucionário e atribuir isso a Marx.
[7]
Mondolfo escreveu o ensaio “Em Torno de
Gramsci e da Filosofia da Práxis”, que é parte de sua obra “Estudos Sobre Marx”, segundo título da
versão portuguesa e que na versão espanhola ganhou o título de “Marx y el Marxismo”. Esse mesmo ensaio
aparece como apêndice na edição de 1957 de seu livro sobre El Materialismo Histórico de Engels. A sua primeira publicação
ocorreu na Revista Critica Sociale, em 1955. Portanto, a citação acima se
refere ao mesmo texto, só que publicado em duas obras.
[8] O
imperativo categórico, na ética kantiana, é expressão da máxima que o agir do
indivíduo deve ser entendida como lei universal a ser seguida por todos.
[9]
Croce preparou uma edição italiana do livro fundamental de Labriola, Ensaios Sobre a Concepção Materialista da
História.
Artigo publicado originalmente em: Revista Enfrentamento. Ano 07, num. 10, jan./jun. 2012.
Artigo publicado originalmente em: Revista Enfrentamento. Ano 07, num. 10, jan./jun. 2012.
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