O Gol e a Angústia do Goleiro
Nildo Viana
O cantor Belchior, em sua música Divina Comédia Humana, diz: “Estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol”. É o início da música. Também serve para início deste texto, pois nosso objetivo é discutir a angústia do goleiro no momento do gol. O gol, como era título de um antigo programa de TV, “é o grande momento do futebol”. É o grande objetivo do jogo, que perdeu espaço com o defensivismo crescente, mas ainda é o seu meio de vencer, e é o que define o ganhador e o perdedor. O momento do gol é a hora da comemoração de quem marca e de insatisfação para quem leva. E para o goleiro é um momento de insatisfação e outros sentimentos.
O goleiro sente angústia. A angústia é uma emoção[1] marcada por ansiedade provocada por insegurança. O goleiro se sente angustiado no momento do gol pelo significado que este tem para ele. O gol pode ser mais angustiante quando significa a derrota de seu time e menos se significar apenas um “gol de honra” de um time adversário que perde por cinco gols de diferença. A angústia, no entanto, não é provocada apenas pelo gol e pelo seu efeito na partida e possível resultado do jogo e mesmo derrota do time do goleiro. Claro que isso afeta o goleiro, o resultado, a reação dos colegas de equipe, dos dirigentes e da torcida, mas a sua angústia é mais profunda, pois envolve mais elementos. Um deles está ligado à mentalidade burguesa, dominante em nossa sociedade. Esta mentalidade tem como uma de suas características a competição. Ela é competitiva (Viana, 2008; Wright Mills, 1970) e por isso o gol significa a derrota, a perda da competição. Qual goleiro não sonhou em passar um campeonato inteiro sem levar nenhum gol? Seria a vitória na competição social e esportiva. Qual goleiro não quer ser considerado o melhor do ano ou ser convocado para seleção nacional? O gol, por mais insignificante que seja, é um obstáculo neste caminho. E quanto mais importante e significativo na competição esportiva, mais angustiante se torna.
Mas o gol é angustiante para o goleiro por outro motivo. Além da competição esportiva, forma específica de competição social (Viana, 2010), há as conseqüências do gol. Muitos gols levados podem significar derrota na competição social em geral, tal como se tornar reserva, não ter aumento de salário, não ter as câmeras voltadas para ele, conflitos ou perdas amorosas (as beldades vem e vão de acordo com a ascensão ou queda do jogador[2]), fim de carreira ou marginalização. Isto pode significar o fracasso de uma carreira para os iniciantes ou a passagem da glória ao desprestígio e/ou da abundância à escassez. Assim, se para os torcedores o que está em jogo é algo pequeno, mesmo que significativo, com as devidas diferenças pessoais, o que está em jogo para o goleiro é sua vida, pelo menos para a maioria que vive da profissão e não tem outra perspectiva. E sua situação é ainda mais delicada que a dos demais jogadores, dirigentes, etc. Assim, o torcedor chamar o goleiro de “frangueiro” e dizer que “engoliu um frango” é algo risível ou uma descarga de descontentamento momentâneo para o torcedor, mas para o goleiro é sentido e recebido de forma bem diferente, é algo angustiante.
A imprensa é outro agente que julga o goleiro (e não só ele, mas é dele que tratamos, já que é o foco do presente texto) e, tal como torcedores, observa não um ser humano com seus dilemas e situação social e psíquica e sim um “jogador”, sem vida, sem história, sem família, sem sentimentos, enfim, uma “coisa”. Essa coisificação faz parte do processo social da sociedade capitalista e é reforçada pela competição social que perpassa todas as relações sociais, sendo elemento constituinte da sociabilidade capitalista, e também a mente dos indivíduos, sendo uma das características da mentalidade burguesa.
A angústia do goleiro é, portanto, uma reação ao gol, ao jogo e às relações sociais que estão dentro e fora dele. E, parafraseando Belchior, “desse jeito o goleiro não vai ser feliz direito”. O goleiro bem sucedido, aquele que, por exemplo, ganha altos salários e/ou chega até a seleção brasileira, sofre menos, tem menos angústia. Isso aumenta com o passar dos anos, pois o jogador de futebol, como assume a forma-mercadoria, uma mercadoria viva que se troca no mercado, tem um “tempo de vida útil”. O “tempo de vida útil” da mercadoria goleiro é mais amplo do que dos outros jogadores, devido ao fato de que fica no gol ao invés de ter que correr pelo campo, porém, tal como nos outros casos, o fim da carreira se aproxima cada vez mais e a angústia é reforçada nesse momento, principalmente porque o brilho diminui, e todo o resto (salário, “amizades”, prestígio, etc.). Não é difícil ficar mais angustiado do que o goleiro na hora do gol, mas é improvável ter tantas situações angustiantes como alguns goleiros.
Referências:
VIANA, Nildo. Notas Sobre o Significado Político do Futebol. Revista Espaço Acadêmico. Vol. 10, nº 111, agosto de 2010. Disponível em: http://informecritica.blogspot.com/2011/02/notas-sobre-o-significado-politico-do.html
VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo, Escuta, 2008.
WRIGHT MILLS, C. Poder e Política. Rio de Janeiro, Zahar, 1970.
VIANA, Nildo. Futebol, Competição e Corrupção em Rudo e Cursi. Disponível em: http://cinemamanifestacaosocial.blogspot.com/2011/03/futebol-competicao-e-corrupcao-em-rudo.html acessado em 08/03/2011
[1] Existem, obviamente, várias concepções de angústia, desde as psicanalíticas (que não são consensuais, basta ver a diferença entre Freud e Lacan) passando pelas psicológicas, existencialistas até chegar às representações cotidianas. Aqui utilizamos o termo no sentido acima referido, que entra em contradição, por exemplo, com a concepção lacaniana.
[2] Isso é expresso sob a forma de ficção no filme Rudo e Cursi (Carlos Cuarón, EUA/México, 2008), embora não seja com o goleiro e sim com o artilheiro (Viana, 2011).
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