A Invenção do Inimigo Imaginário
Nildo Viana*
As lutas sociais são perpassadas por lutas culturais e, nestas, o real e o racional são muitas vezes abolidos de acordo com os interesses dominantes. A relação entre dominantes e dominados, exploradores e explorados, marca uma determinada relação com o saber. A classe dominante e seus representantes intelectuais nunca podem ultrapassar certos limites em sua consciência. A consciência da dominação, da exploração, dos interesses antagônicos, das lutas emancipatórias e da possibilidade de uma nova sociedade, são uma dificuldade para quem parte da perspectiva da classe dominante. A utopia, a possibilidade de uma nova sociedade, é simplesmente inacessível para quem expressa o ponto de vista da classe dominante. Os “limites intransponíveis da consciência burguesa”, tal como colocou Marx, expressam esta relação na situação concreta da sociedade capitalista. É por isso que, na sociedade moderna, apesar de todo desenvolvimento tecnológico e científico, ainda sobrevivem as mais variadas formas de mitos e mistificações. Este é o caso do que denominamos “inimigo imaginário”, produto das lutas de classes que gera uma ideologia de caráter mítico, embora algumas vezes se dizendo “científico”. No presente texto iremos analisar o que é o inimigo imaginário, sua razão de ser e observação sua manifestação concreta em determinada época.
Antecedentes do Conceito de Inimigo Imaginário
O antecedente mais antigo do conceito de inimigo imaginário é o de “bode expiatório”, utilizado principalmente por psicólogos. No entanto, a fonte deste termo se encontra na narrativa bíblica. Segundo Memmi, que afirma que os antigos: “para conjurar a desgraça, sacrificavam uma vítima expiatória aos deuses. Carregando o infeliz animal com todos os pecados da cidade, reduziam a culpabilidade coletiva” (Memmi, 1993, p. 47). Assim, “imputar os seus erros e dificuldades a outrem, um concorrente, um vizinho, uma minoria interna ou uma outra nação, uma instituição ou natureza, permite suportar melhor uma situação penosa. Atribuir os nossos insucessos, privados ou públicos, desportivos ou profissionais, à deslealdade do adversário desculpa as nossas próprias carências” (Memmi, 1993, p. 47).
Esta é uma versão psicológica e psicologista que temos que descartar, embora tenha elementos verdadeiros que devem ser incluídos numa teoria do inimigo imaginário. A figura do “bode expiatório” é derivada de uma prática religiosa e utilizada indistintamente para analisar tanto o psiquismo individual quanto o coletivo, sem a devida reformulação dos seus pressupostos, fazendo de uma narração fictícia o critério da verdade. As motivações individuais para culpar outros indivíduos ou grupos por seus males não são produtos naturais da “alma humana” e sim um processo constituído socialmente, pela insatisfação das necessidades humanas, pelo sentimento de impotência, pela repressão, etc. Mas esta análise também desvia a atenção da questão central, que não é a mera descrição da existência de “bodes expiatórios” e do contexto psíquico de seu surgimento, mas sim de sua origem social.
A posição de Hannah Arendt é diferente: “a perseguição de grupos impotentes, ou em processo de perder o poder, pode não constituir um espetáculo agradável, mas não decorre apenas da mesquinhez humana” (Arendt, 1975, p. 23). Segundo Arendt, a “teoria” do bode expiatório é passível de diversos questionamentos. Em primeiro lugar, esta “teoria”, “que apresenta os judeus como eterno bode-expiatório não significa que o bode-expiatório poderia também ser qualquer outro grupo? Esta teoria defende a total inocência da vítima” (Arendt, 1975, p. 24). Esta tese afirma não só que “nenhum mal foi cometido mas, também, que nada foi feito pela vítima que a relacionasse com o assunto em questão” (Arendt, 1975, p. 24). Mas, partindo desta teoria para a pesquisa histórica, torna-se possível explicar por qual motivo “determinado bode expiatório se adapta tão bem a este papel”:
“E então o chamado bode-expiatório deixa de ser a vítima inocente a quem o mundo culpa por todos os seus pecados e através do qual deseja escapar ao castigo: torna-se um grupo entre outros grupos, todos igualmente envolvidos nos problemas do mundo. O fato de ter sido ou estar sendo vítima da injustiça e da crueldade não elimina a sua co-responsabilidade” (Arendt, 1975, p. 24).
Hannah Arendt parte para a pesquisa histórica e observa como os judeus foram vítimas do nazismo. Para responder por qual motivo foram os judeus e não outros grupos sociais que potencialmente poderiam ter sido o alvo, Arendt analisa a trajetória dos judeus que, ao conquistar a cidadania na sociedade moderna se afasta das atividades políticas e se organiza em torno das atividades econômicas, promovendo diversos judeus a situação financeira de enriquecimento, o que teria atraído o ressentimento. É neste contexto que ela cunha o termo “inimigo objetivo”:
“O ‘inimigo objetivo’ é aquele grupo que, independentemente de sua conduta, pode, a critério da liderança totalitária, eventualmente discordar da verdade oficial e, por isso, deve ser discriminado, isolado, punido e eliminado. Como todos são potencialmente suspeitos, todas são potencialmente inimigos objetivos. Por esta razão, a escolha, num determinado momento, de um determinado ‘inimigo objetivo’ é sempre ato arbitrário e gratuito que não depende da conduta daqueles que são assim identificados” (Lafer, 1979, p. 48).
Sem dúvida, a interpretação de Lafer é questionável, pois não se trata de “ato arbitrário e gratuito”, mas sim ato gerado por determinado contexto histórico e situação social de um grupo. A concepção de Arendt, embora mais sofisticada do que a tese do “bode expiatório”, é bastante limitada e deficiente. Falta uma conceituação mais clara, expor a origem social da criação de tal “inimigo”, bem como explicitar sua mudança de papel na história.
Sylviana Agacinski apresenta uma discussão sobre o “mito do inimigo” que é interessante para pensarmos a criação do inimigo imaginário. Partindo da obra literária de Franz Kafka, A Muralha, ela realiza uma análise do que denomina “inimigo fantasmático”. Segundo ela, a construção da muralha da China, no conto kafkiano, significa a defesa contra um inimigo:
“A genialidade de Kafka teria sido reunir, na construção de uma formidável defesa contra um inimigo legendário, o motivo de uma construção arcaica sagrada e o de uma despesa guerreira de ordem cultual. A idéia de obra coletiva necessitando uma mobilização total mostra, em certa medida, a vertente técnica do fenômeno nazista e de sua vertente sagrada e cultual, ambos unindo-se na guerra total contra o inimigo (ou outro, o estrangeiro)” (Agacinski, 1991, p. 136).
Agacinski, utilizando principalmente o exemplo dos judeus durante o regime nazista e a oposição na antiga União Soviética, busca mostrar que o inimigo fantasmático sempre aparece mas não mostra a sua razão de ser. Embora tenha uma intuição reveladora, a concepção de inimigo fantasmático de Agacinski padece da abstração metafísica e falta de concreticidade em sua análise, a não ser exemplos esparsos. Além disso, não apresenta nenhuma tese ou teoria que pudesse esclarecer o fenômeno e nem mostra as suas determinações.
Para Uma Teoria do Inimigo Imaginário
O que é o inimigo imaginário? A princípio pode ser definido com um grupo social que é considerado inimigo e que, portanto, deve ser combatido, sob formas variáveis e que não é um verdadeiro inimigo na realidade concreta, por isto ele é “imaginário”. Algumas questões derivadas aparecem e o conceito fica mais claro a partir das respostas a elas. As questões são: quem produz o inimigo imaginário? Quais são os grupos sociais que são ou podem se tornar inimigos imaginários? Em que contexto histórico o inimigo imaginário se torna alvo da coletividade?
A primeira questão é quem inventa o inimigo imaginário. Sem dúvida, se tal inimigo é imaginário, fictício, alguém o inventa. A classe dominante é a principal criadora de inimigos imaginários, mas eles também são criados por classes ascendentes que aspiram a se tornar dominante. Marx descreveu bem o processo pelo qual uma classe ascendente busca criar um inimigo imaginário para chegar ao poder:
“Nenhuma classe da sociedade civil pode desempenhar este papel sem provocar um momento de entusiasmo em si e nas massas, momento durante o qual confraterniza e funde-se com a sociedade em geral, confunde-se com ela, sendo sentida e reconhecida como sua representante geral; momento em que suas exigências da própria sociedade, em que é realmente a cabeça e o coração da sociedade. Somente em nome dos direitos gerais da sociedade pode uma classe especial reivindicar para si a dominação geral. Para a tomada de assalto desta posição emancipadora e, portanto, para a exploração política de todas as esferas da sociedade no interesse de sua própria esfera, não bastam apenas a energia revolucionária e o orgulho espiritual. Para que coincidam a revolução de um povo e a emancipação de uma classe especial da sociedade civil, para que um estamento seja reconhecido como o estamento de toda a sociedade, é necessário, ao contrário, que todas as falhas da sociedade se concentrem numa outra classe, que um determinado estamento seja o estamento do repúdio geral, que seja a soma da limitação geral; é necessário que uma esfera social particular seja considerada como o crime notório de toda a sociedade, de tal modo que a libertação desta esfera apareça como a autolibertação total. Para que um estamento seja par excellence o estamento da libertação, é necessário, inversamente, que outro estamento seja o estamento declarado da subjugação. O significado negativo geral da nobreza e do clero franceses condicionou o significado positivo geral da classe primeiramente delimitadora e contraposta, a burguesia” (Marx, 1978, p. 11).
Desta forma, a classe ascendente concentra o mal na classe dominante para conseguir o apoio das classes exploradas e demais grupos sociais. Sem dúvida, em termos concretos, para as classes exploradas, tanto a classe dominante quanto a classe ascendente são, concretamente, inimigas, mas, no entanto, na ideologia da classe ascendente, apenas a classe dominante é inimiga. Trata-se de um inimigo imaginário, pois o seu par antagônico, o seu verdadeiro inimigo, é a classe ascendente. A classe dominante, enquanto classe decadente, é, de certa forma, inimiga, principalmente de alguns setores da sociedade, mas não é o inimigo a ser combatido, pois, neste contexto, sua derrota nada significará para os setores explorados e oprimidos. Assim, a burguesia assumiu a posição de representante geral do “terceiro estado” e transformou a nobreza e o clero no inimigo imaginário.
O capitalismo é marcado por constantes crises cíclicas. Isto gera insegurança e a necessidade de se buscar uma solução para superar a situação de crise. Cada classe social, grupo social e seus representantes intelectuais produzem teorias ou ideologias para explicar a situação e apresentar a sua solução. A classe revolucionária, no capitalismo, busca, quando atinge o seu nível máximo de auto-organização e consciência revolucionária, a revolução social, enquanto que a classe dominante busca, através de seu sistema repressivo e ideológico, impedir este processo e garantir a reprodução das relações de produção, ou, em outras palavras, a contra-revolução.
Assim, tanto a classe dominante quanto a classe revolucionária se defrontam com um inimigo, que, no primeiro caso, é imaginário (fictício) – pois seu discurso não se volta contra o proletariado, mas sim contra outros grupos sociais, visando desviar a atenção para este suposto inimigo – e, no segundo, real, já que o proletariado deve combater a classe burguesa para transformar as relações de produção. A situação de insegurança criada pela crise faz com que os indivíduos busquem descobrir os “responsáveis” ou as determinações que a gera. A classe dominante busca ocultar a verdadeira razão da crise e seu papel neste processo visando conservar as relações de produção dominantes em crise e que geram a crise, e, para isso, visando desviar a classe revolucionária de seu verdadeiro alvo, cria um inimigo imaginário, que substitui o inimigo real (Viana, 2009a).
Desta forma, a invenção de um inimigo imaginário é uma forma de deslocar o conflito de classe para um outro tipo de conflito (nacional, racial, religioso, etc.). Neste contexto, ocorre um processo de criação de ausência e presença: o inimigo real cria sua ausência e, simultaneamente, a presença de um inimigo imaginário. Este foi o caso que ocorreu com os judeus, na Alemanha nazista; as “bruxas”, na inquisição; os comunistas no golpe de estado de 64 no Brasil; os “inimigos do povo” no capitalismo estatal russo, etc. Esta é a mesma lógica que ocorre quando a classe dominante inventa um inimigo imaginário estrangeiro, já que assim fortalece a identidade nacional quando esta se encontra dilacerada internamente pelos seus conflitos de classes. A estratégia neste caso, tal como ocorreu no caso da Guerra das Malvinas, decretada pelo governo argentino contra a Inglaterra, é transformar a contradição interna em externa e desta forma apagá-la das consciências e substituí-la por uma ilusão mobilizadora. A identidade coletiva perdida é restaurada com a concentração do mal em um inimigo imaginário (Viana, 2009a).
Mas a invenção de um inimigo imaginário também ocorre com freqüência nos regimes ditatoriais, mesmo depois de sua consolidação. Isto se deve ao fato de que um regime ditatorial encontrar oposição e resistência no interior, mesmo após a derrota dos seus inimigos. Este é o caso dos “comunistas” no Brasil durante o regime militar, bem como dos “inimigos do povo”, no capitalismo estatal russo antes de sua derrocada em 1989, entre outros casos. Segundo Lefort,
“A tentativa para assegurar o domínio do espaço social sustenta-se na figuração do inimigo: um inimigo que não poderia apresentar-se como oponente, mas cuja existência é uma afronta para a integridade do corpo social. De resto, o inimigo é muito mais do que a personificação da adversidade ou, como freqüentemente se observa, é muito mais do que o bode expiatório. Em uma sociedade que não tolera a imagem da divisão social interna, que reivindica sua homogeneidade para além de todas as diferenças de fato, o outro como tal adquire os traços fantásticos do destruidor – o outro, seja qual for a maneira de defini-lo, seja qual for o grupo a que esteja atribuído, é o representante do fora” (Lefort,1990, p. 333)[1].
Lefort afirma, baseando-se no exemplo do capitalismo estatal russo, mas que pode ser generalizado para todo regime ditatorial, que neste regime não se pode admitir a divisão social além da estabelecida entre “o povo” e os inimigos, o interior e o exterior. Isto gera o que ele denominou “incessante produção de inimigos”. Assim, não basta apresentar os oponentes reais do regime em inimigos “fantasmáticos”, mas é preciso inventá-los incessantemente. Ou seja, ou se transforma os oponentes em inimigos imaginários, ou, caso estes não existam, é preciso inventar tais inimigos. Mesmo quando a oposição não tem forças ou está derrotada, sem poder de reação, é útil propagandear a existência de um inimigo imaginário, pois isto justifica a repressão, divide os opositores, dificulta a ação proletária.
A destruição de um inimigo imaginário revela sua inutilidade para as classes exploradas, já que não resolve seus problemas e não muda sua situação de classe, e por isto surge a necessidade de criação de novos inimigos imaginários que se tornaram novos alvos em nova situação de acirramentos dos conflitos sociais. Por isso existem, na sociedade capitalista, diversos “inimigos imaginários potenciais”, que podem, em situação de crise, tornarem-se alvos de ataque. Os inimigos imaginários potenciais são aqueles grupos diferenciados já existentes na sociedade (negros, judeus, estrangeiros, imigrantes, comunistas, nordestinos, etc.) (Viana, 2009a). Os inimigos imaginários potenciais se tornam cada vez mais alvo com o processo de crise, acirramento da competição social ou dos conflitos sociais, tornando grupo anteriormente bem vistos em perigosos:
“Em 1935, a maior parte dos americanos caracterizava os japoneses como ‘progressistas’, ‘inteligentes’, e ‘industriosos’. Sete anos mais tarde, esses adjetivos cederam lugar a ‘astutos’ e ‘traiçoeiros’. Quando se precisava de trabalhadores chineses na Califórnia, eles eram ‘frugais’, ‘sóbrios’ e ‘respeitadores da lei’, ao passo que, quando se defendia a lei da exclusão, passaram a ser ‘imundos’, ‘repugnantes’, ‘inassimiláveis’, ‘dominados pelo espírito de clã’ e ‘perigosos’ ” (Kluckhon, 1972, p. 132).
Esta estratégia de inventar e atacar inimigos imaginários serve apenas aos interesses da classe dominante. Do ponto de vista do proletariado, não se trata de destruir um inimigo (real ou imaginário) personificado em indivíduos reais (burgueses, negros, brancos, judeus, católicos, liberais, fascistas, etc.) ou em um indivíduo particular (o presidente da república, o líder do partido fascista, o chefe da igreja conservadora, etc.), pois isto não significa destruir as relações sociais que engendram as classes sociais antagônicas, a exploração, a alienação, etc., e, portanto, o inimigo real que busca conservar estas relações. A destruição de indivíduos que sustentam determinadas relações sociais não significa a destruição de tais relações, pois elas poderão se reproduzir e, assim, produzir novas pessoas para sustentá-las (Viana, 2009a).
A quem interessa criar inimigo imaginário? Tal como já colocamos, dependendo da época histórica, a invenção de um inimigo imaginário pode ser realizada por setores sociais diferentes, uma classe ascendente, a classe dominante, os regimes ditatoriais. A invenção do inimigo imaginário ocorre de forma diferente em épocas diferentes, pelo menos em seus aspectos formais. O inimigo imaginário pode ser interno ou externo, ou ambos. No caso do capitalismo de estado russo, os opositores eram os “inimigos do povo”, “agentes do imperialismo”, “trotskistas”. Neste caso, o inimigo imaginário é externo. No caso argentino da Guerra das Malvinas, os ingleses assumiram este papel. No caso da ditadura militar no Brasil, eles eram simultaneamente internos e externos, pois eram os “comunistas”, adeptos de “ideologias exóticas, estrangeiras”, financiados pelo “ouro de Moscou”. Os neo-nazistas em São Paulo atribuem o papel de inimigo imaginário aos nordestinos e homossexuais, sendo que aqui se pode pensar que são inimigos internos, já que da mesma nacionalidade.
A crença no inimigo imaginário pode ser compartilhada tanto pelos seus inventores quanto por parte da população que nada tem a ver com o seu processo de criação, que o faz por diversos motivos, desde aqueles que o fazem por interesses pessoais[2], passando por aqueles com problemas psíquicos, até chegar às formas coletivas de preconceito arraigadas em setores da população ou por sentimentos coletivos de ódio anteriormente existentes, que, com a invenção do inimigo imaginário, pode extravasar a agressividade reprimida. A invenção do inimigo imaginário é tanto mais eficaz quanto mais o inimigo imaginário potencial tiver elementos culturais que o coloquem como marginal, perigoso, desconhecido. Assim, além de analisar os inventores de inimigos imaginários, é necessário analisar aqueles que potencialmente são inimigos imaginários.
Quem são os potenciais inimigos imaginários? Podemos dizer que são os setores marginais, setores opositores, grupos sociais oprimidos ou diferentes, outros países e nações, outras religiões, etnias, raças, etc. Eles devem possuir como atribuição a culpabilidade, a periculosidade, a inconfidência ou o exotismo.
A idéia de culpabilidade está explícita na tese do “bode expiatório”. A culpa coletiva é reduzida ao bode expiatório. No entanto, não se trata apenas de transferência de culpa, mas sim de uma culpabilidade tida por verdadeira. A população pode responsabilizar determinados grupos sociais (ou indivíduos) pelos seus males. Isto faz com que determinado grupo social possa ser alvo de ideologias que faça dele, através de explicações supostamente racionais, de fundo religioso ou não, os verdadeiros responsáveis pelo que ocorre. Os judeus não são apenas arquitetos da “conspiração judaica”, mas também são comerciantes que concorrem com outros comerciantes, assim como os imigrantes hoje na Europa são considerados por muitos (tal como é divulgado pela ideologia neo-nazista) os responsáveis pelo desemprego dos alemães.
A idéia da periculosidade é derivada da existência de grupos radicais, subversivos, estrangeiros. Qualquer grupo que ameaça os interesses da população ou de setores dela, é visto como perigoso. Os proprietários e aspirantes a proprietários temem os “comunistas”, que ameaçam sua propriedade, ou então os lumpemproletários e outros grupos que podem ameaçar a propriedade; os religiosos de determinada religião temem os seus adversários que podem conquistar as almas que já lhes pertencem, diminuindo o seu rebanho de ovelhas.
A idéia de inconfidência é produto da falta de confiança em determinados grupos sociais, que são principalmente aqueles que não se posicionam politicamente, ou então que possuem concepções pouco acessíveis, tal como seitas, pequenos agrupamentos políticos, etc. O ar misterioso que cerca determinados grupos, tal como a maçonaria, grupos políticos comunistas e anarquistas (em menor escala, mas quando estão na clandestinidade e a propaganda direitista atua, isto se torna mais intenso), os ciganos, etc., é uma forte determinação para transformá-los em grupos que não são tidos como “confiáveis” por grande parte da população. Também é o caso de grupos sociais que foram inimigos no passado e deixaram marcas na memória social da população.
A idéia de exotismo é gerada pelo desconhecimento e pelo medo do desconhecido, que se manifesta nos conflitos nacionais e étnicos. A figura do estrangeiro é o exemplo típico deste caso. Mas junto com esta idéia também aparece a noção de periculosidade e inconfidência. Os estrangeiros, imigrantes, grupos étnicos e nacionais, são os grupos sociais mais comuns neste caso.
Os sentimentos coletivos de medo, ódio, estranhamento, entre outros, são as fontes deste processo. O preconceito – sendo que a generalização afetiva é uma de suas raízes – apontado por Lobrot (1978), também é fonte para a existência de inimigos potenciais. São conflitos sociais latentes que produzem os inimigos potenciais e quando tais conflitos se tornam manifestos, os inimigos imaginários são criados. Por conseguinte, a invenção do inimigo imaginário é produto da classe dominante e seus representantes intelectuais e políticos, mas a sua invenção pressupõe uma base social, um grupo social que possui um potencial expresso por preconceitos e sentimentos coletivos negativos em relação a ele para poder se transformar em inimigo imaginário.
Os Judeus como Inimigo Imaginário: O caso do Nazismo
A Alemanha, assim como a Itália, conseguiu sua unificação de forma tardia. O desenvolvimento capitalista interno ocorreu velozmente. Mas, se a Alemanha conseguiu realizar o seu processo de industrialização e desenvolvimento capitalista rapidamente, ela chegou tarde na cena mundial: a partilha do mundo pelas potências imperialistas já havia sido realizada. A crise não demorou a chegar e a classe operária entrou em cena para desempenhar seu papel revolucionário. A derrota na primeira guerra mundial agravou a situação. Segundo Alcir Lenharo:
“A crise econômica alastrava-se, e a inflação ficava fora de controle: se no fim da guerra a relação marco-dólar era de 4 por 1, no início de 1923 ela desce a 7000 por 1 e descamba, no fim desse ano. A 130 bilhões de marcos por um dólar. Os salários eram então reajustados diariamente, mas sem repor o poder aquisitivo dos trabalhadores, que, junto a aposentados e camadas médias proletarizadas do país, chegaram à beira da miséria. Enquanto isso, empresas como as de exportação, cobertas de crédito e isenção de impostos, acumularam fortunas. Homens de negócios especulavam com o dinheiro barato e acumulavam enormes fortunas” (Lenharo, 1986, p. 20).
Esta situação está ligada à crise do regime de acumulação intensivo (Viana, 2003) e foi acompanhada por duas tentativas de revoluções proletárias nos anos posteriores à primeira guerra mundial. A ascensão do nazismo ocorre nesta situação. A crise e da derrota das tentativas de revoluções proletárias (o que levava a um recuo da classe operária juntamente com a desarticulação das organizações políticas de oposição) abria espaço para a ascensão da extrema-direita representada pelo nazismo. Mas aqui não nos interessa o nazismo como movimento político e sim como ideologia.
O principal fundamento da ideologia nazista é o anti-semitismo. Já existia na Alemanha pré-nazista uma forte cultura anti-semita expressa nas artes, filosofia, etc. O texto apócrifo Protocolos dos Sábios do Sião, que tratava da “conspiração judaica” para dominar o mundo; o texto do Conde Gobineau intitulado A Desigualdade das Raças Humanas; o livro de W. Marr, A Vitória do Judaísmo sobre o Germanismo; H. Chamberlain em sua obra Os Fundamentos do Século Dezenove; o cônego Rohling e o seu livro O Judeu de Talmude, foram, entre outros textos, as bases ideológicas do anti-semitismo que influenciará o nazismo. A idéia do nazismo se baseia na “luta de raças”: de um lado, a “raça ariana”, superior; de outro, a “raça semita”, inferior. Vemos, assim, a atribuição aos judeus de uma suposta “inferioridade racial”. Este seria o pressuposto fundamental do “racismo” nazista. Porém, os “arianos” e “semitas” não são raças e a suposta inferioridade, mesmo se existisse, por si só, não justifica a existência de uma conspiração e o extermínio como solução.
Raul Girardet diz que o mito da conspiração ocorre num clima psicológico e social de incerteza e angústia. Ele apresenta uma função social de explicação. As questões sem resposta são integradas num sistema coerente de explicação, numa lógica inflexível que reduz tudo a uma única causa. Os Protocolos dos Sábios do Sião, por exemplo, enfatizam o perigo tanto da concentração capitalista quanto da revolução proletária e apresenta uma nomenclatura relativamente precisa das mudanças sociais ocorridas no Ocidente. O mito pode oferecer esta função explicativa em proveito dos mais variados grupos sociais. Para Girardet:
“O que permanece constante, o que constitui o caráter essencial de permanência e repetitividade é o estado de inquietação, a situação de crise na qual se encontram esses grupos e esses meios. E é também, não se poderia esquecer, todo o material onírico contido na mensagem mitológica, todo esse fluxo incessante de imagens, de fantasmas e de representações simbólicas que ela carrega consigo” (Girardet,1987, p. 57)
Além disso, o mal é considerado como simples inversão do bem. É aí que, segundo Girardet, se ultrapassa os limites do imaginário puramente político. A ideologia nazista se caracteriza por essa ultrapassar o imaginário político e cair no maniqueísmo da luta entre o bem e o mal. Acontece que a concentração do mal nos judeus se apresenta encoberta por uma “racionalidade naturalista”. Tal racionalidade busca ser um discurso coerente que atribui a um conjunto de pessoas – os judeus – que segundo tal ideologia forma uma “raça” –, o espírito maligno, enquanto que a outra “raça”, a ariana, seria a expressão do “bem”. Mas tal oposição entre o bem e o mal é apresentada como oposição entre “raça superior” e “raça inferior”, sendo que a “maldade” inerente a esta última nunca é explicada. A concentração do mal, nessa ideologia, na “raça semita” nunca está explícita:
“Para o anti-semita, o que faz o judeu é a presença nele da judiaria, princípio judeu análogo ao Flogístico ou à virtude dormitiva do ópio. Não nos iludamos: as explicações pela hereditariedade e pela raça apareceram mais tarde, são como o tênue revestimento científico desta convicção primitiva; muito antes de Mendel e Gobineau, existia o horror ao judeu e os que o experimentavam não poderia explicá-lo senão dizendo, como Montaigne dizia de sua amizade por La Boetie: ‘porque é ele, porque sou eu’. Sem esta virtude metafísica, as atividades atribuídas ao judeu seriam rigorosamente incompreensíveis. De fato, como conceber a obstinada loucura de um rico comerciante judeu que deveria, se fosse razoável, almejar a prosperidade do país onde comercia e que, segundo nos afiançam, se encarniça em arruiná-lo? Como compreender o internacionalismo nefasto de homens cujas famílias, afetos, costumes, interesses, natureza e fonte de suas fortunas deveriam ligá-lo ao destino de um país particular? Os hábeis falam de uma vontade judaica de dominar o mundo: mas ainda aqui, se não possuirmos a chave, as manifestações desta vontade correm o risco de nos parecer ininteligíveis; pois, ora nos apontam atrás do judeu, o capitalismo internacional, o imperialismo dos trustes e dos traficantes de canhões, ora o bolchevismo, com seu punhal entre os dentes, e não se vacila em tornar igualmente responsáveis pelo comunismo os banqueiros israelitas, a quem deveriam horrorizar, e pelo capitalismo imperialista, os judeus miseráveis que povoam a Rue des Rosiers. Mas tudo se esclarece se dispensarmos o judeu de uma conduta racional e conforme com seus interesses, se discernirmos nele, ao contrário, um princípio metafísico que o impele a praticar o mal em todas as circunstâncias, ainda que para tanto deva destruir-se a si mesmo. Este princípio, não resta a menor dúvida, é mágico: de um lado, é uma essência, uma forma substancial, e ao judeu, faça o que fizer, não é dado modificá-la, assim como o fogo não pode impedir-se de arder. E, de outro, como é necessário que se possa odiar os judeus e como não se detesta um tremor de terra ou a filoxera, esta virtude é também liberdade. Só que a liberdade em questão é cuidadosamente limitada: o judeu é livre para praticar o mal, não o bem, pois dispõe de livre arbítrio suficiente apenas para arcar com a plena responsabilidade dos crimes que comete, mas não o bastante para que possa reformar-se. Estranha liberdade que, em vez de preceder a essência, lhe permanece inteiramente submetida, que não passa de uma qualidade irracional e continua sendo, não obstante, liberdade. Só há uma criatura, que eu conheça, tão absolutamente livre e acorrentada ao Mal: é o próprio Espírito do Mal, é Satã. Destarte, o judeu é assimilado ao espírito maligno”. (Sartre, 1986, p. 85).
A raça e o sangue servem de pretexto para os nazistas sustentarem a “superioridade” da “raça ariana”. Esta é uma questão ligada à natureza, à biologia. Mas a inferioridade racial não explica a conspiração e a maldade. A luta entre o bem e o mal demonstra o caráter mítico do discurso nazista. Este é também um discurso ideológico, pois inverte a realidade através de um discurso sistemático e organizado. A contradição entre as classes sociais é ofuscada e substituída pela contradição entre “raças”, que nem sequer existem[3]. Os problemas sociais deixam de ser produtos de determinadas relações sociais em seu desenvolvimento histórico e passam a ser explicados pela “maquinação diabólica” dos judeus e dos “comunistas” entre outros. Segundo Lenharo:
“O fascismo, dirá Horkheimer em 1943, é anti-histórico, exatamente pelo tipo de exaltação que faz do passado; as leis eternas que regem e asseguram a imobilidade do mando dos poderosos. Quando os fascistas dizem “história”, eles, na verdade, estão dizendo o contrário: mitologia” (Lenharo, 1986, p. 85).
Podemos dizer que a ideologia nazista se apresenta sob uma linguagem mítica. Deixando de lado as diversas concepções de mito, definimos este como representações que buscam explicar o mundo que servem para os seus criadores/reprodutores atuar sobre a realidade visando controlá-la e o faz isso através de uma linguagem figurada, sendo que tais representações são tidas como verdadeiras por seus criadores/reprodutores. Os mitos das sociedades simples diferem dos mitos nas sociedades modernas em alguns aspectos, sendo que o principal é que ele passa a ser perpassada pela luta de classes, e, se manifesta como utopia, se for expressão das classes exploradas, ou como ideologia, se for expressão da classe dominante. Esta ideologia busca criar um inimigo imaginário (principalmente os judeus) para deslocar a luta de classes para o campo da luta de “raças” e assim construir uma “unidade nacional” e com isso evitar a transformação social. Esse processo em alguns casos era consciente, tal como deixa claro a afirmação de Hitler sobre a necessidade de reduzir todos os inimigos a um só:
“Em geral, a arte de todos os verdadeiros chefes do povo de todos os tempos consiste em concentrar a atenção do povo em um único adversário, em não deixar dispersar-se... A arte de sugerir ao povo que os inimigos mais diferentes pertençam à mesma categoria é de um grande chefe... É preciso sempre colocar na mesma pilha uma pluralidade de adversários os mais variados” (apud. Agacinski, 1991, p. 136-137).
Esta afirmação poderia colocar em dúvida a estrutura mítica da ideologia nazista, pois o discurso mítico deve ser reconhecido como verdadeiro pelos seus produtores e reprodutores. A afirmação de Hitler apenas deixa claro que o mal está presente nos judeus, comunistas, ciganos, etc., mas que ele deve ser concentrado em um só, que será aquele que englobará, de uma forma ou de outra, todos os outros.
Segundo Erich Fromm, uma parte da população não se converteu à ideologia nazista e nem admirava suas práticas políticas. Entretanto, esta parte da população não resistiu ao domínio nazista e acabou se curvando diante dele. Esta era formada pela classe operária e de parte da burguesia (liberal e católica). A resistência da classe operária, exceto da pequena parte que se opôs permanentemente ao regime nazista, foi modesta e isso é explicado pelos seguintes motivos: a) a resignação interior e o estado de fadiga característico do indivíduo no mundo atual; b) o desânimo provocado pela derrota das tentativas de revoluções proletárias; c) a crise dos partidos políticos ligados à classe operária; d) a necessidade dos indivíduos de fugirem do isolamento e aderirem a um grupo maior e este era, no caso, a Alemanha, a nação. Outra parte da população aderiu e aceitou a ideologia nazista:
“Em contraste com a atitude negativa ou resignada da classe operária e da burguesia liberal e católica, a ideologia nazista foi ardorosamente recebida pelas camadas inferiores da classe média, composta de pequenos negociantes artesãos e empregados de colarinho e gravata” (Fromm, 1981, p. 169).
Segundo Fromm, a classe média inferior foi o grupo social mais afetado economicamente pela crise e pela inflação. Ela ia perdendo, progressivamente, por diversos motivos, o seu prestígio social e seu poder aquisitivo. O seu apoio ao nazismo foi a solução encontrada para livrá-la da humilhação nacional (Tratado de Versalhes) e da crise financeira.
Assim, setores das classes auxiliares da burguesia apoiaram o regime nazista visando obter vantagens para ganhar a competição social com outras classes e frações de classes. Mas o sustentáculo do regime nazista era a grande burguesia industrial alemã e esta detinha o controle da chamada “economia planificada alemã”. Em 1934, o Conselho Econômico Supremo foi nomeado e era composto por Krupp von Bohlen (fabricante de armas), Lark Bosch (Die Trust), Fritz Thissem (aço), Von Siemens (indústria elétrica), A. Vogler (aço) A. Diekn (Potassa) e von Schroeder (banqueiro).
Portanto, a ideologia nazista surgiu das contradições da sociedade alemã e suas conseqüências, tais como a necessidade de expansão imperialista, o sentimento de insegurança de frações das classes auxiliares da burguesia, etc. É a partir deste conjunto de necessidades sociais que surge o nazismo como ideologia da classe dominante e de suas classes auxiliares. A apropriação de elementos da cultura alemã (anti-semitismo, pangermanismo, nacionalismo) pelos nazistas e suas propostas políticas, criaram, conjuntamente, uma identidade (ilusória) entre a população alemã.
Observações Finais
O inimigo imaginário é, portanto, uma invenção derivada da luta de classes, um produto da classe dominante e seus representantes culturais e políticos. No entanto, é possível se afirmar que os grupos ou nações oprimidas, bem como o marxismo, também podem criar inimigos imaginários. Sem dúvida, os países capitalistas subdesenvolvidos podem, através da sua classe dominante ou de seus representantes, criar inimigos imaginários, tal como se revela no anti-americanismo que não parte de uma análise das relações internacionais e das relações de classes que estão na sua base. Determinados países e grupos terroristas concentram o mal no país imperialista e espera que sua destruição seja a solução. Assim, um certo nacionalismo terceiro-mundista pensa sua nação como não sendo dilacerada por conflitos internos e classes antagônicas, ou relegam isto a segundo plano, e coloca no imperialismo o inimigo a ser combatido. No Brasil, até mesmo partidos que se dizem de esquerda, o PCB – Partido Comunista Brasileiro, apresentou a tese de que a luta era contra o imperialismo e o latifúndio, sob o pretexto de realizar uma revolução burguesa que abriria possibilidade para a revolução socialista, jogada para um futuro distante.
Os negros e as mulheres, muitas vezes, também criam generalização e colocam como principal inimigo os brancos e os homens, não percebendo a complexidade das relações sociais por detrás de sua forma de opressão. O grupo social mais visível na relação de opressão para os grupos oprimidos aparece como o inimigo a ser combatido e é por isso que se fala em “dominação branca” e “dominação masculina”. A aparência do fenômeno, aliado ao pensamento mítico, possibilita esta inversão. No entanto, dificilmente esses inimigos imaginários potenciais poderão se transformar em inimigos imaginários a serem combatidos efetivamente. Isto se deve ao fato de que a invenção do inimigo imaginário é produto da classe dominante e a divisão sexual não serve de critério, já que ambos os sexos estão presentes em todas as classes da sociedade e, no caso dos brancos, também é inviável, pois a maior parte da classe dominante é branca, tal como no caso brasileiro e norte-americano.
O caso do marxismo já foi tratado antes por Jean-Paul Sartre:
“Comparemos por um instante a idéia revolucionária da luta de classes com o maniqueísmo anti-semita. Aos olhos do marxista, a luta de classes não constitui de modo algum o combate entre o bem e o mal: trata-se de um conflito de interesses entre grupos humanos. O revolucionário é levado a adotar o ponto de vista do proletariado primeiramente porque esta classe é a sua, depois porque ela é oprimida e porque, sendo de longe a mais numerosa, sua sorte tende a confundir-se com a da humanidade. Enfim, porque as conseqüências de seu triunfo devem necessariamente comportar a supressão das classes. A meta do revolucionário é mudar a organização da sociedade. e para tanto cumpre, sem dúvida, destruir o regime antigo, mas só isto não basta: antes de tudo convém construir uma nova ordem. Se por impossível a classe privilegiada quisesse cooperar na construção socialista e se houvesse provas manifestas de sua boa-fé, não haveria nenhuma razão válida para rechaçá-la. E permanece altamente improvável que ofereça de bom grado tal auxílio aos socialistas, é porque sua situação mesma de classe privilegiada a impede de fazê-lo e não por causa de algum demônio interior que a impelisse, a despeito de si mesma, a praticar o mal. Em todo o caso, frações desta classe, separando-se dela, podem constantemente agregar-se à classe oprimida e tais frações serão julgadas por seus atos, não por sua essência” (Sartre, 1978, p. 28).
Embora possamos discordar de alguns aspectos e detalhes na citação de Sartre (especialmente a questão das frações de classe, pois, na verdade, indivíduos da classe dominante podem mudar de lado, não suas frações), suas afirmações são corretas. O inimigo, no caso da teoria marxista, é expressão de um conjunto de relações sociais e é sua posição nestas relações, que podem ser analisadas e observadas na realidade concreta, e não se trata de destruir fisicamente uma classe social. Como bem colocou Rosa Luxemburgo, o objetivo da revolução proletária não é destruir pessoas e sim mudar as instituições, as relações sociais:
“A revolução proletária não precisa do terror para realizar seus fins, ela odeia e abomina o assassinato. Ela não precisa desses meios de luta porque não combate indivíduos, mas instituições, porque não entra na arena cheia de ilusões ingênuas que, perdidas, levariam a uma vingança sangrenta” (Luxemburgo, 1991, p. 103).
A invenção do inimigo imaginário se fundamenta, na maioria das vezes, no maniqueísmo, mas este é revestido, geralmente, de um disfarce racional. No caso do marxismo, indivíduos que se dizem marxistas podem, derivado de seus sentimentos de ódio, confundir as coisas e considerarem que o que existe é uma luta para destruir a classe dominante, mas isto é derivado de uma idiossincrasia e não da teoria marxista. O ódio aos burgueses é, inclusive, muito suspeito para quem defende a revolução proletária, pois expressa mais problemas psíquicos ou valores/sentimentos contraditórios (muitos podem odiar os burgueses porque querem ser como eles e não conseguem... e encontram no discurso marxista um pretexto para destilar seus sentimentos destrutivos) do que uma análise marxista das classes sociais.
Enfim, a concepção marxista, desde que não seja em suas versões deformadas, seja individualmente ou de forma coletiva (grupos e partidos que se dizem marxistas) não cria inimigos imaginários e sim aponta o inimigo real, a classe dominante e suas classes auxiliares, e vê na transformação social a solução para este problema. Se as classes privilegiadas reagem e buscam impedir a revolução proletária, então a luta – que deixa de ser cultural, no local de produção, etc. – pode gerar o combate físico e tudo que decorre disso, o que é mera conseqüência da situação de classe e dos interesses antagônicos oriundos da posição nas relações de produção e demais relações sociais.
A invenção do inimigo imaginário é uma das mais fortes estratégias do capital para manter sua dominação e reproduzir as relações de produção capitalistas. Os preconceitos existentes no conjunto da população reforçam a possibilidade e a eficácia desta invenção. Assim, a luta cultural contra os preconceitos e contra as ideologias (racistas, xenofóbicas, etc.) faz parte do processo geral da luta pela emancipação humana e deve ser realizada constantemente.
Referências Bibliográficas
Agacinski, S. O Poder do Mito. Filosofia Política. Porto Alegre, L&PM, 1991.
Arendt, H. Anti-Semitismo, Instrumento do Poder. Rio de Janeiro, Documentário, 1975.
Fromm, E. O Medo à Liberdade. 13ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
Girardet, R. Mitos e Mitologias Políticas. São Paulo, Companhia das Letras, 1977.
Kluckhon, Clide. Antropologia: Um Espelho para o Homem. Belo Horizonte, Itatiaia, 1972.
Lafer, C. Hannah Arendt – Pensamento, Persuasão e Poder. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
Lefort, C. As Formas da História. São Paulo, Brasiliense, 1990.
Lenharo, Alcir. Nazismo – O Triunfo da Vontade. São Paulo, Ática, 1986.
Lobrot, M. A Favor ou Contra a Autoridade. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978.
Luxemburgo, Rosa. O Que Quer a Liga Spartacus? In: Luxemburgo, Rosa. A Revolução Russa. Petrópolis, Vozes, 1991.
Marx, K. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução. Revista Temas de Ciências Humanas. No 02, São Paulo, Grijalbo, 1978.
Memmi, Albert. O Racismo. Lisboa, Caminho, 1993.
Sartre, Jean-Paul. Reflexões sobre o Racismo. São Paulo, Difel, 1960.
Viana, N. Capitalismo e Racismo. In: Santos, Cleito P. e Viana, Nildo (orgs.). Capitalismo e Questão Racial. Rio de Janeiro, Corifeu, 2009.
Viana, N. Raça e Etnia. In: Santos, Cleito P. e Viana, Nildo (orgs.). Capitalismo e Questão Racial. Rio de Janeiro, Corifeu, 2009.
Viana, N. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. São Paulo, Escuta, 2008.
Versão com modificações formais do artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Invenção do Inimigo Imaginário. Antítese, Goiânia/CEPEC, v. 4, p. 95-111, 2007.
* Nildo Viana é Professor da UFG – Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB; autor dos livros Introdução à Sociologia (Belo Horizonte, Autêntica, 2006); Estado, Democracia e Cidadania (Rio de Janeiro, Achiamé, 2003); A Dinâmica da Violência Juvenil (Rio de Janeiro, Booklink, 2004); Heróis e Super-Heróis no Mundo dos Quadrinhos (Rio de Janeiro, Achiamé, 2005).
[1] Devemos deixar claro que esta citação não significa concordância com as teses de Lefort, predominantemente conservadoras, apesar de ser um ex-integrante do grupo autonomista Socialismo ou Barbárie.
[2] Uma das bases sociais existentes que permitem a invenção do inimigo imaginário são os preconceitos que se formam a partir da competição social e dos conflitos sociais, elementos constitutivos da sociabilidade capitalista (Viana, 2008; Viana, 2009a).
[3] Não podemos, aqui, discutir o conceito de raça e nem as diversas abordagens a respeito. Nos limitaremos a esclarecer que compreendemos por raça um conjunto de diferenças físicas superficiais que ficam ao nível da fenotipia e não da genotipia e isto não expressa nenhuma diferença substancial e muito menos “superioridade” de uma raça sobre outra. Neste sentido, raça não se confunde com etnia, nação e outros conceitos que geralmente se confunde com ele (Viana, 2009b).
Nenhum comentário:
Postar um comentário