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domingo, 17 de abril de 2011

CONTRADIÇÕES DO MODO CAPITALISTA DE PRODUÇÃO DE ALIMENTOS


CONTRADIÇÕES DO MODO CAPITALISTA DE PRODUÇÃO DE ALIMENTOS

Nildo Viana*
Resumo: O artigo aborda a mercantilização da produção alimentar no capitalismo, analisando suas conseqüências e contradições. A produção capitalista de alimentos é perpassada por contradições e a principal delas é a produção da fome convivendo com a produção da opulência. A análise demonstra que o problema da fome e da opulência é derivado do processo de produção capitalista de alimentos e outras determinações correlatas. A atual fase do desenvolvimento capitalista promove um crescimento drástico da fome no mundo e, simultaneamente, de excesso alimentar, atingindo populações diferenciadas. A explicação para isso reside no modo de produção capitalista e seu atual regime de acumulação, o integral.
Palavras-Chave: Fome, Opulência, alimentação, capitalismo, acumulação.

Abstract: The article approaches the mercantilização of the alimentary production in the capitalism, analyzing its consequences and contradictions. The capitalist food production is marked by contradictions and the main one of them is the production of the hunger coexisting the production of the opulence. The analysis demonstrates that the problem of the hunger and the opulence is derived from the process of capitalist food production and other corresponding determinations. The current phase of the capitalist development promotes a drastic growth of the hunger in the world and, simultaneously, of alimentary excess, reaching differentiated populations. The explanation for this inhabits in the way of capitalist production and its current regimen of accumulation, the integral.
Key-words: Hunger, Opulence, feeding, capitalism, accumulation.

A questão da produção de alimentos apresenta um conjunto de problemas e interpretações analíticas que envolvem várias questões. Disto deriva sua extrema complexidade. A produção de alimentos é de importância vital para qualquer sociedade, o que, no fundo, é dizer um truísmo, mas muitas vezes esquecido. Sem produção de alimentos, não existe sociedade humana, a não ser num estágio primitivo de caçadores e coletores. Porém, devido ao impacto da ação humana sobre o meio ambiente, é praticamente impossível um retorno a este estágio nos dias de hoje, pois muitos animais foram minguados ou extintos, bem como a devastação da flora e das florestas, e não haveria possibilidade de reprodução natural suficiente para o tamanho da população humana atual.
Nesse sentido, não há como pregar o “retorno às florestas” como fazia o socialista utópico Dom Deschamps e nem considerar o anarco-primitivismo atual uma solução exeqüível, não passando de uma utopia abstrata, para usar conceito de Ernst Bloch (Bicca, 1987). Precisamos analisar o processo de relação entre produção de alimentos e sociedade e a partir daí elaborar uma utopia concreta, ou seja, realizável. O objetivo do presente artigo é analisar o processo de produção capitalista de alimentos e assim compreender como, numa mesma sociedade, milhões passam fome enquanto outros consomem alimentos em excesso.
Capitalismo e Produção de Alimentos
O modo de produção de alimentos muda historicamente. A cada época, o modo de produção de alimentos está intimamente ligado ao processo geral de produção e reprodução da vida material da sociedade humana. Desde que o ser humano passou a dominar o processo de produção de alimentos e abandonou a dependência dos alimentos disponíveis no meio ambiente, e passou a domesticar os animais e plantas e aprender a produzir os alimentos, isto proporcionou avanços que permitiu a humanidade lutar contra a fome e superá-la. Isto, infelizmente, não ocorreu, pois juntamente com este processo, o surgimento da propriedade privada e, na sociedade moderna, a generalização do processo de produção de mercadorias, inviabilizou a abolição total e definitiva da fome.
O modo de produção feudal, dominante durante a chamada “Idade Média”, era um modo de produção fundado principalmente na produção de valores de uso (Sweezy, 1978), no qual o objetivo era a auto-subsistência. As relações de classes, através da exploração do servo pelo senhor feudal, e os problemas ambientais e estágio rudimentar das técnicas de produção, não produziram uma sociedade de abundância alimentar, mas também não produziu milhões de esfomeados impossibilitados de realizar uma das mais básicas necessidades dos seres humanos.
O modo capitalista de produção de alimentos altera toda a estrutura da forma feudal de produção de alimentos. O modo de produção capitalista é um modo de produção de mercadorias fundado na extração do mais-valor, ou seja, no processo de exploração do trabalhador (Marx, 1988; Viana, 2009a). A mercadoria é um valor de uso e, ao mesmo tempo, um valor de troca, que é produto do trabalho humano, cujo processo de produção é marcado pela exploração e o objetivo em sua produção é o lucro. Assim, mercadoria capitalista e exploração são duas faces da mesma moeda. A mercadoria, como valor de troca, não é produzida para o próprio consumo e sim para a venda e esta só se realiza objetivando o lucro, que é a realização da exploração do trabalhador[1].
Se na sociedade feudal, a unidade doméstica era simultaneamente unidade de produção e unidade de consumo, na sociedade capitalista há uma separação e a unidade doméstica se transforma em tão-somente unidade de consumo (Viana, 2000). Desta forma, a produção de alimentos, tal como a produção de bens de consumo em geral, é realizada fora da unidade doméstica e assim é necessário não somente sair dela para produzir, mas também para consumir. Com o processo de divisão social do trabalho, a produção de alimentos se tornou um setor especializado e assim, aqueles que não produzem alimentos, devem usar a mercadoria-dinheiro para conseguir a mercadoria-alimento. Isto terá muitas conseqüências, como veremos adiante, mas o que fica explícito aqui é que o modo de produção capitalista transformou os alimentos em mercadorias e assim a colocou sob a lógica da produção mercantil capitalista.
Porém, a produção capitalista não é apenas transformação de tudo em mercadoria, mas fundamentalmente exploração via extração de mais-valor. A produção de mercadorias capitalistas é apenas um meio para realizar a produção de mais-valor, ou seja, se produz mercadorias para realizar o processo de exploração para com isso adquirir lucro. Os proprietários das empresas capitalistas retiram uma pequena parte do lucro adquirido para gastar com o seu consumo pessoal (de mercadorias em geral e luxuosas em particular) e a maior parte é reinvestida na produção, aumentando assim a quantidade de mercadorias produzidas e principalmente o lucro, que, novamente, será reinvestido, e assim sucessivamente, provocando a reprodução ampliada do capital, a concentração e centralização do mesmo, o que gera o processo de formação de oligopólios, que hoje se tornaram grandes empresas oligopolistas transnacionais (Viana, 2009a).
O modo de produção capitalista de alimentos funciona da mesma forma. Apesar de existir (em alguns países praticamente foi extinto, em outros é reduzido e apenas em alguns países ainda tem relativa importância) o modo de produção camponês, que é um modo de produção subordinado ao capitalismo, ele não é uma saída viável, pois mantém problemas análogos ao da produção capitalista, apesar de ser produção mercantil simples e sua lógica não ser a do lucro, mas não tem, justamente por isso, recursos e condições de produzir alimentos suficientes para atender as necessidades da população mundial. Os camponeses produzem de forma complementar e também submetidos ao processo de exploração efetuado pelo grande capital comercial e bancário (Viana, 2009b).
É por isso que emergiu um poderoso capital oligopolista agroindustrial e internacionalização da produção. A Quaker e a Unilever são algumas das maiores empresas oligopolistas transnacionais da produção alimentar, juntamente com a Nestlé e várias outras. A Quaker, que surgiu nos Estados Unidos no século 19, vai se expandindo mundialmente e ampliando seus negócios, sendo que na década de 1920 implantou subsidiárias em quatro países europeus, na América do Sul, África e Oriente. Amplia suas fábricas em vários países após a Segunda Guerra Mundial e hoje se encontra presente no mundo inteiro através da exportação de seus produtos, investimentos diretos e parcerias com licenciados. A Unilever realiza investimentos diretos em mais de 80 países em todos os continentes e vem crescendo cada vez mais através de inúmeras aquisições, fusões, parcerias e vendas de empresas em escala planetária. Ao lado dessas, outras também atuam e expressam o poder do capital oligopolista transnacional e agroindustrial[2].
Muitos “Consumidores” para Poucos Alimentos: A Fome
Neste contexto, há uma subordinação das necessidades vitais da humanidade ao processo de reprodução do capitalismo e sua busca incessante de lucro. Isto produz duas conseqüências fundamentais convivendo juntas: a opulência e a escassez. O dilema da produção capitalista de alimentos reproduz o processo de desigualdade e exploração de classes e também, outra face desse mesmo processo, exploração e desigualdade de países. A opulência se concentra nas classes privilegiadas de todos os países e de forma mais extensa nos países imperialistas e a escassez se concentra nas classes mais empobrecidas e em maior grau nos países de capitalismo subordinado[3].
Contemporaneamente, há um aumento progressivo da escassez. A instauração de um novo regime de acumulação capitalista, a acumulação integral (Viana, 2009a; Viana, 2003), cujo objetivo maior é combater a tendência declinante da taxa de lucro e aumentar o processo geral de exploração, é o principal responsável por este aumento progressivo. A partir da emergência do neoliberalismo (um dos aspectos constituintes do novo regime de acumulação), que tem como um de seus objetivos fundamentais a diminuição dos gastos estatais, reduziu seus investimentos pela metade entre 1980 e 2004, visando assim colaborar mais intensivamente com o grande capital oligopolista transnacional, o que tem efeitos graves no processo de satisfação da necessidade alimentar por parte da população, aumentando drasticamente a pobreza mundial. O neo-imperialismo atua com força para aumentar a exploração internacional (Viana, 2009) e isto se reproduz no processo de liberalização do comércio que reforça um processo comum na história do capitalismo, a divisão internacional do trabalho e a exploração efetivada nesse contexto que atinge os países cuja produção é menos industrializada. O comércio internacional tem “provocado fome e até inanição” (Madeley, 2003).
“Por exemplo, durante a fome aguda na Irlanda que matou quase um milhão de pessoas em 1846-47, ‘grandes proprietários de terras exportavam alimento para a Grã-Bretanha enquanto camponeses pobres sucumbiam em seu redor’. Troquemos a Irlanda pelos países subdesenvolvidos, os grandes proprietários pelos conglomerados transnacionais e a Grã-Bretanha pelo mundo ocidental e veremos que pouca coisa mudou. Ainda se exporta alimento de países onde a fome mata muita gente” (Madeley, 2003, p. 66).
O Acordo sobre a Agricultura de 1993, no contexto da hegemonia absoluta do neoliberalismo e de acordo com os interesses neo-imperialistas, estabeleceu que “os países não poderão aumentar a sua proteção ao setor agrícola acima do nível que já existia antes de 1993” (Madeley, 2003, p. 69). Isto poderia ser interpretado ingenuamente como apenas a manifestação da doutrina neoliberal que prega o livre-comércio, deixando de lado a diferença entre o caráter do neoliberalismo nos países imperialistas (protecionista) e nos países capitalistas subordinadas (livrecambista) (Viana, 2009a). Quando se entende isso, também fica fácil entender o Acordo e como ele privilegia os países imperialistas: “os países industrializados que já arcavam com altos níveis de proteção podem mantê-los, mas os países em desenvolvimento não podem elevar seus níveis” (Madeley, 2003, p. 69). A análise de Chossudovsky (1999) das causas reais da fome na Somália mostra o mesmo processo, que ocorreu através da intervenção do FMI – Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, que pressionou o governo local para ceder aos ditames do neoliberalismo na década de 1990.
Além disso, determinações conjunturais derivadas do novo regime de acumulação e da dilapidação do meio ambiente e recursos naturais promovem o aumento da escassez de alimentos para a população mundial, tal como a expansão da produção de agrocombustíveis por fornecerem maior lucratividade, juntamente com o aumento do preço do petróleo, que proporcionam o aumento do preço dos alimentos, já que num caso se troca a produção alimentar pela de agrocombustíveis e no outro se torna mais caro o transporte da mercadoria-alimento. A liberalização do comércio, tal como já colocamos, promovida em nome da “globalização”, na verdade, um eufemismo para esconder outra face do novo regime de acumulação, o aumento da exploração internacional, também atinge diretamente a produção alimentar e o preço dos alimentos. Neste contexto e complementarmente, a crise financeira, e o crescimento das exportações, encerram este quadro de aumento dos preços e dificuldades na produção de alimentos. A escassez se torna cada vez mais assustadora, pois se na década de 1960 havia 80 milhões de pessoas passando fome, em 1998 esse número chegou a 860 milhões e em 2008 a 950 milhões.
É claro que é preciso destacar que o problema não é apenas a fome. A fome é o pior estado que um ser humano pode atingir, pois significa que não pode satisfazer uma necessidade básica e de sobrevivência. Porém, o simples acesso aos alimentos não significa muita coisa, pois isso também depende da constituição da alimentação:
“Para começar, a palavra fome já não basta. É que o termo evoca simplesmente a insuficiência da quantidade de alimentos, provocando a subnutrição e a morte pela fome. Trata-se agora de outra coisa. Viemos a saber que não é apenas quando nossa alimentação é insuficiente que estamos ameaçados. Também o estaremos se ela for mal constituída. Nesse último caso, surge uma série de estados de subnutrição. Quando esta subnutrição é grave, pode tornar-se rapidamente mortal: traduz-se por doenças de há muito conhecidas, mas cujas causas permaneciam ignoradas” (Mayer, 1963, p. 4).
A fome continua sendo um tema tabu, como já dizia Josué de Castro (1963). Enquanto muitos estudam e pesquisam sobre “comidas típicas” e coisas parecidas, poucos se aventuram a tratar desta questão que é a mais degradante para um ser humano. Porém, além de observar a quantidade de pessoas esfomeadas no mundo (e outras formas de subnutrição), há menos abordagens ainda que explicam as suas determinações, o que gera a fome coletiva que atinge milhões de pessoas. Os poucos que se dedicam ao assunto ou responsabilizam os indivíduos, ou então a falta de uma reforma agrária, falta de educação ou fornecem outras explicações que nada explicam[4].
Assim, é possível pensar que o problema está na falta de produção ou de capacidade produtiva, o que é um equívoco[5]. A produção é elevada, mas nem todo mundo tem acesso, pois os alimentos são mercadorias e só possuindo a mercadoria-dinheiro é que se pode comprá-la e consumi-la. A questão é que a produção alimentar poderia facilmente ser quadruplicada e resolver o problema da fome mundial em questão de alguns meses.
Porém, ninguém vai produzir alimentos para vender barato ou doar de graça. O aumento excessivo da produção alimentar faria cair os preços e acabar com o lucro e sem este ninguém produz e se produzisse a preços baixíssimos, significaria a falência. Por isso, doar alimentos de graça é algo sem o menor sentido no capitalismo. A única solução seria o Estado comprar os alimentos e doar gratuitamente ou, em certos contextos, vender a preços baixos, mas isso é algo impossível, pois o neoliberalismo surge justamente para diminuir os gastos estatais e resolver seus problemas financeiros e do grande capital. Apenas em casos de governos neopopulistas ocorre um tipo de ação semelhante, mas de forma extremamente precária, insuficiente, marcado por contradições e com objetivos eleitoreiros e de manutenção de determinados partidos e alianças no governo. Assim, fica evidente a contradição entre capitalismo e necessidades humanas vitais.
Muito Alimento para Poucos Consumidores: A Opulência
Esta contradição entre necessidades humanas vitais e capitalismo, no entanto, se manifesta sob outra forma: o do crescimento da opulência em convivência com o crescimento da escassez. A escassez é para determinadas classes sociais e não para todos, e, da mesma forma, a opulência é apenas para as classes privilegiadas[6]. Enquanto milhões de pessoas morrem de fome ou estão abaixo do mínimo calórico necessário, outros se alimentam em demasia, até gerando problema de saúde pública. Em 2006 calcula-se que havia cerca de 300 milhões de pessoas obesas no mundo e 65% da população norte-americana era composta por obesos em 1999[7] (Bianco, 2008).
O processo que alguns denominam “mcdonaldização” ocorre a nível mundial. A expansão dos fast food, é reproduzida através das estratégias capitalistas de reprodução ampliada do mercado consumidor, tal como a propaganda. A produção capitalista de alimentos segue a lógica do aumento da produção visando aumentar a massa de lucro e isto produz a necessidade de aumentar o mercado consumidor. Assim, a propaganda e outras estratégias são utilizadas para aumentar o consumo de alimentos, criando novos nichos de mercado (de alimentos para jovens, tal como o “irreverente” chiclete, por exemplo, na década de 1960, até mercadorias tecnológicas para juventude, cultura mercantil descartável para determinados setores, etc.), inclusive aqueles das pessoas preocupadas com a obesidade, pois o capitalismo cria a miséria e ainda vende e lucra com a suposta solução miserável e lucrativa que apresenta. É neste contexto que surgem novas mercadorias alimentares para gerar novos nichos de mercados, como diversos tipos de mercadorias alimentares: vegetarianas, orgânicas, funcionais.
Neste contexto, há um processo crescente de racionalização e especialização voltado para o consumo alimentar, incluindo o processo de medicalização (Poulain, 2004) e estigmatização dos obesos, que é mais material para produção e consumo de mercadorias, desde remédios, profissionais especializados, publicações, programas de TV (dos “medicinais” aos “humorísticos”) e milhões de outras mercadorias. Uma vez produzida a obesidade, sua estigmatização e medicalização, também se produz problemas psíquicos derivados disso (e, em muitos casos, a compensação psíquica em consumo alimentar, ou seja, um círculo vicioso). E assim temos, para a área de medicina, psicologia e afins, mais um “prato cheio”, se me permitem o trocadilho, de consumidores de serviços-mercadorias[8].
O processo de racionalização é crescente na sociedade moderna. Os estudos de Max Weber (Weber, 1987; Freund, 1987) mostram o processo da expansão capitalista e do processo de racionalização que lhe acompanha. Desta forma, o desenvolvimento de pesquisa, acompanhadas, desenvolvidas e financiadas pelo grande capital do ramo de alimentação (Bianco, 2008), visando criar novas mercadorias vendáveis.
“Max Weber diagnosticava, no início do século 20, o processo de racionalização no âmago da modernidade. George Ritzer procurou reforçar a tese weberiana em seu livro The McDonaldization of Society (1993): enquanto para Weber a burocracia era a representante da racionalização, para Ritzer, os restaurantes fast-food se tornaram emblemáticos de nossa época e seus conceitos tendem a se expandir para outras esferas da sociedade. Aproximando-nos da chamada administração científica, a descrição de Ritzer identifica-se com uma espécie de fordismo alimentar, mais flexível e adaptado às novas condições. As características essenciais apontadas por Ritzer são: eficiência, calculabilidade, previsibilidade (predictability) e controle. Ele reconhece a “filosofia fastfood” como um novo impulso do processo de racionalização que vinha se desenvolvendo pelo menos desde as fábricas e linhas de montagem fordistas e burocratização weberiana” (Bianco, 2008, p.26).
Aliás, não deixa de ser revelador que os EUA são o país de maior “cultura nutricional” e também o de maior obesidade no mundo. Para as mulheres, que vivem sob a ditadura do padrão dominante de beleza e do papel sexual que a sociedade moderna lhe atribui, a ansiedade, bulimia, anorexia, são alguns dos efeitos. Ao lado disso, os alimentos funcionais, tal como os produtos diet, light, zero, etc., aumentam suas vendas e não se questiona os produtos químicos que os compõem e seus efeitos sobre a saúde (e seus supostos resultados ou “benefícios”, nos casos dos alimentos funcionais)[9], conseguindo um novo nicho de mercado composto pelos incautos, principalmente oriundos dos setores intelectualizados da sociedade.
A criação de nichos de mercado provoca uma segmentação e variedade muito maior do que a anteriormente existente:
Argumentamos que a indústria de alimentos finais foi capaz de se adaptar (e mesmo promover) a diferenciação de produto, segmentação de mercado e inovação de produtos de ciclo curto. Ao mesmo tempo, ela assumiu a globalização e enfrentou o setor de varejo com um portfólio de marcas cada vez mais especializadas e de alto nível. Teve, contudo, maior dificuldade em lidar com visões normativas em relação à qualidade dos alimentos, que surgiram da comunidade científica nutricional, de forma cada vez mais autônoma, e que convergiram com as preocupações crescentes acerca da saúde pública. Esses dois corpos de opinião criaram uma forte identificação do alimento com a nutrição e a saúde, o que inicialmente enfrentou a resistência dos médicos e da indústria de alimentos finais. No que concerne à indústria alimentar, esse consenso crescente pode ser resumido na necessidade de menos açúcar, gorduras saturadas, carboidratos e sal, e mais fibras. A oposição inicial, no estilo da indústria de tabaco, foi gradualmente transformada em conformação, assim que se reconheceu que a adoção de menos açúcar, gorduras e sal não ameaçava o perfil de produto industrial existente e, de fato, poderia ser incorporada na estratégia dominante de segmentação de mercado (produtos diet e light). As tecnologias que asseguraram esses objetivos rapidamente se difundiram por toda a indústria, eliminando as vantagens do primeiro inovador. Um processo semelhante ocorreu com a importância atribuída aos suplementos vitamínicos e sua incorporação no modelo nutricional dominante. Leite e outros produtos passaram a ser oferecidos com diferentes níveis de gordura e um leque de aditivos fortificantes.
Os alimentos funcionais entram na estratégia de criação de nicho de mercado, os setores mais intelectualizados da sociedade. Para isso é preciso legitimar e possuir ideologias que reforcem, justifiquem e legitimem o consumo de alimentos funcionais:
Uma nova estratégia surgiu nos anos 1980, com base na inversão do argumento anterior de que nenhum produto individualmente é um produto mau, envolvendo o desenvolvimento de produtos que reivindicavam o status de qualidades especiais para a saúde. De fato, o impacto de adotar produtos de baixo teor de gordura em parte colocou em questão a noção do valor “natural” do produto original, preparando o consumidor para essa mudança radical na estratégia da indústria alimentar. Alimentos funcionais ou nutricêuticos aproximam o alimento da medicina e estabelecem uma ruptura com a revolução nutricional já descrita [...]. A adição de novas qualidades aos alimentos, oferecendo características específicas relacionadas com a saúde, implica um conceito mais radical de inovação de produto baseado em P&D, experimentos clínicos, aprovação regulatória e proteção de patentes. A reivindicação agora é a que certos atributos específicos dos produtos contribuem para diminuir o nível de colesterol, melhorar a função do sistema digestivo, fornecer picos de energia rapidamente, fortalecer os ossos e diminuir o risco de câncer, ataques de coração e outras doenças (Wilkinson, 2002).
Nesse caso, a propaganda é a alma do negócio. No caso dos alimentos funcionais isto não é diferente e como seu público é o mais intelectualizado, então é necessária uma propaganda diferenciada. É por isso que podemos ver numa caixa de leite algo semelhante a uma bula de remédio (Bianco, 2008) e é isso que faz com que as propagandas de alimentos (e creme dental e milhares de outras mercadorias) sejam apresentadas não apenas por pessoas famosas e “bem sucedidas”, de acordo com os valores dominantes da competição e luta pelo sucesso, poder e riqueza (Viana, 2008), mas também por cientistas, médicos, odontólogos, que seriam autoridades científicas que provariam a cientificidade das afirmações. Isso reproduz a ideologia do status superior do saber científico (Alves, 1981), que, como coloca a ideologia dominante seria “neutra”, ao invés de ser, como verdadeiramente é, um saber tão determinado, interessado e marcado por valores quanto qualquer outro (Viana, 2007)[10]. A propaganda é geralmente realizada via meios oligopolistas de comunicação, mas também pode ocorrer por outras formas:
O sucesso dos alimentos funcionais depende do estabelecimento de uma relação discursiva mais interativa com o consumidor. Altus, a joint-venture da Quaker e da Novartis, afirma que apenas lança produtos depois que grupos-alvo e sessões de teste os declararem iguais ou superiores a quaisquer outros no mercado. Neste caso, o exemplo clássico seria a estratégia de venda da Yakult da sua bebida láctea probiótica fermentada. Sessões de degustação, vendas diretas e a sua promoção pelos próprios consumidores, sem o uso de nenhum meio de comunicação de massa, tornaram esse produto um líder de mercado na Europa, criando um novo segmento de mercado e forçando os líderes mundiais, Nestlé e Danone, a uma estratégia de “eu também”. Recentemente, a Nestlé retirou seu LC1, concorrente do Yakult, do mercado inglês, argumentando que a sua estratégia tradicional de publicidade orientada à televisão e aos meios de comunicação não era apropriada para aquele tipo de produto. Essas tradicionais empresas líderes, além de serem tecnologicamente vulneráveis, têm ainda que lidar com mercados que não são criados através de suas estratégias tradicionais de marketing.
Além dos alimentos funcionais, outros também são problemáticos, mas não seria possível tratá-los aqui. A produção de “comida ruim” (malbouffe) promoveu a emergência de protestos e organizações contra a mcdonaldização da alimentação (Bové e Dufour, 2001). Sem dúvida, há muitas implicações no consumo alimentar deste tipo, mas que são geradas pelo processo de produção capitalista de alimentos e seus interesses. O alimento-mercadoria, com os transgênicos, agora podem ser patenteados (Bové e Dufour, 2001) e a produção capitalista é cada vez mais dominante no processo de produção, transformação e distribuição de alimentos, e o processo de mercantilização promove problemas alimentares que atingem a população, seja pela falta, pela má qualidade, pelo excesso, pelos seus componentes.
Considerações Finais Óbvias:
Se o Problema é a Produção Capitalista de Alimentos...
As saídas apresentadas por alguns setores da sociedade, tal como agricultura tradicional e “ecológica” (Via Campesina, ONGs), ou novas políticas estatais, são completamente irrealistas. O que temos aqui é apenas reprodução do dilema básico aludido anteriormente. A ilusão de mudar a agricultura sem mudar a totalidade social, ou seja, no interior do capitalismo, é uma forma de demonstrar desconhecimento do real problema que se encontra no modo capitalista de produção de alimentos, que não pode ser alterado sem haver mudança no conjunto das relações sociais.
Da mesma forma, esperar que políticas estatais possam resolver estes problemas, significa esquecer que o Estado é parte e o principal reprodutor deles. Já demonstramos as ligações entre as políticas neoliberais e a atual situação alimentar mundial. Além disso, o Estado é o grande responsável e incentivador, no Brasil, da produção canavieira e de etanol no cerrado, com todos os custos ambientais e sociais derivados daí, inclusive no processo de produção alimentar, para citar apenas um exemplo. Caberia a ele regularizar a produção de alimentos, inclusive no sentido de impedir que os interesses do grande capital oligopolista transnacional dos alimentos manipulassem a população para vender produtos e deteriorar o padrão alimentar, mas faz justamente o contrário, incentiva e protege esta produção nociva.
A solução é a transformação radical e completa do conjunto das relações sociais, produzindo uma nova forma de produção de bens materiais e alimentos. Isto geraria uma situação na qual a coletividade conseguiria produzir e distribuir os meios de sobrevivência de forma igualitária e sem interesses capitalistas em seu processo. Em outras palavras, somente uma sociedade fundada na autogestão social poderá resolver os graves problemas alimentares existentes e impedir que a humanidade entre em bancarrota.

Referências Bibliográficas

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* Professor da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília.
[1] E isso, custe o que custar. O que interessa é produzir e vender: “há alguns anos, um produto de aparência inofensiva, utilizado como calmante e chamado talidomida, revelou-se, ao ser experimentado, teratogênico, provocando o nascimento de focomelos, em diversos países (crianças com braços atrofiados ou inexistentes)” (Sauvy, 1977, p. 44).
[2] O capitalismo domina a produção, transformação e distribuição dos alimentos (Poulain, 2004).
[3] É essa desigualdade que permite fazer afirmações como esta: “de modo durável, instala-se um sentimento de abundância, e logo de superambundância” (Poulain, 2004, p. 25).
[4] Algumas teses são tão superficiais que não compreendem que, metodologicamente, é impossível explicar a ocorrência de um fenômeno pela não ocorrência de outro fenômeno, tal como explicar a ocorrência da fome pela não ocorrência de uma reforma agrária ou educação, pois, estes fenômenos que não ocorreram, não podem gerar nada, já que o nada não pode gerar algo. Aliás, este tipo de raciocínio é muito utilizado para explicar a violência também. Estes aspectos (reforma agrária e educação), no máximo, poderiam minimizar ou atingir alguns casos típicos de fome, ou seja, atuam sobre algo já constituído. Jonsson (1986) apresenta um quadro interessante sobre explicações de vários especialistas de várias áreas para o fenômeno da fome, mostrando não só os limites da divisão do trabalho intelectual como também como isso constitui determinadas predisposições mentais. Porém, infelizmente, o seu pouco domínio do método dialético e da compreensão do capitalismo o impediu de avançar na explicação da fome.
[5] “Apesar de todas as crises de produção agrícola, o volume total da produção tem acompanhado o crescimento do consumo; ainda assim, grande parte da população continua a sofrer as conseqüências da fome, mesmo havendo recursos e tecnologia compatíveis para a solução do problema, que, logicamente, é muito mais de ordem política que de ordem técnica. A persistência desta situação de fome beneficia com altíssimos lucros os grupos econômicos que usufruem da condição de oligopólio/oligopsônio na comercialização e distribuição de gêneros alimentícios. Esses grupos tudo fazem e tudo farão a fim de evitar que termine o seu privilégio, pois detém razoável parcela de poder econômico e político” (Miranda Neto, 1988, p. 13).
[6] “Contudo, a colocação em evidencia dos efeitos da superabundância alimentar não deve ocultar a emergência de novas formas de precariedade, pois nem todos se beneficiam dela da mesma maneira. O aparecimento de uma nova pobreza no âmago das sociedades de pletora é o sinal mais forte disso e o mais visível” (Poulain, 2004, p. 90). O autor também cita estudos que abordam a “persistência das classes sociais” em contradição com os ideólogos do fim das classes sociais. Claro que existem os ideólogos como Malthus (1996), que irão responsabilizar o crescimento populacional, o que já foi suficientemente refutado por Marx (1985; 1983), apesar de ter outros ideólogos com as mesmas afirmações (Sauvy, 1977).
[7]O relatório do Worldwatch Institute sobre fastfood, publicado em 2006, revela que ‘mais de 300 milhões de pessoas são obesas em todo o mundo e a obesidade atingiu nos últimos anos ‘níveis epidêmicos’’. De acordo com esse estudo, o aumento do consumo de alimentos com grande densidade energética e calórica, como carnes, açúcares e frituras, é um fator que explica o crescimento da obesidade. Deve-se destacar a proliferação dos restaurantes fast-food, que, desde 1980, mais do que triplicaram em todo o mundo. Em muitos desses restaurantes, uma única refeição contém uma quantidade desproporcional – às vezes mais de 100 % – da gordura diária recomendável, com colesterol, sal e açúcar” (Bianco, 2008, p. 14).
[8] A relação entre ansiedade e consumo alimentar excessivo já foi trabalhada por alguns autores, inclusive identificando seu maior índice nas mulheres (Poulain, 2004).
[9]Em pesquisa divulgada por Science Daily, em maio de 2007, são apresentados novos indícios dos efeitos saudáveis contraditórios dos bioflavonóides (componentes naturais de frutas e vegetais). Os bioflavonóides são tidos como a fonte natural mais abundante de antioxidantes na dieta e são ordinariamente considerados bastante benéficos na proteção contra doenças do coração, câncer e outros problemas de saúde. Este estudo mostra, porém, que três classes principais de bioflavonóides interferem nas células de modo a prejudicar o DNA, com potenciais efeitos adversos à saúde. A ingestão em altos níveis entre mulheres grávidas está ligada a formas raras de leucemia infantil” (Bianco, 2008, p. 71). Vários outros casos podem ser conferidos nesta mesma obra.
[10] A propaganda também é realizada via internet. Quem pesquisar no Google os termos “alimentos funcionais” (ou semelhantes), irá ver não somente as respostas dos sites que usam estas palavras, mas também, na coluna direita, nos links patrocinados, um que remete para o site da Beneo e essa breve descrição: “Alimentos que levam o selo BENEO™ estimulam as bactérias boas”.

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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Contradições do Modo de Produção Capitalista de Alimentos. Revista da Faculdade Estácio de Sá de Goiânia SESES - GO, VOL. 01, Nº 04. Set. 2010/Dez. 2010

4 comentários:

  1. ACHEI MUITO INTERESSANTE,E MUITO COMPLETO O SITE.ME AJUDOU MUITO.E É A MAIS PURA VERDADE

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  2. ACHEI MUITO INTERESSANTE,E MUITO COMPLETO O SITE.ME AJUDOU MUITO.E É A MAIS PURA VERDADE

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  3. Suelen, agradeço suas palavras. Abraços!

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