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sábado, 30 de abril de 2011

O Verdadeiro Significado do Primeiro de Maio

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O VERDADEIRO SIGNIFICADO DO PRIMEIRO DE MAIO


Nildo Viana

O significado do dia primeiro de maio é marcado por uma luta na qual sua ressignificação se tornou hegemônica e hoje esta data expressa, na verdade, o que muitos chamam o “dia do trabalho”. Poucos sabem a origem e significado original (e verdadeiro) do primeiro de maio e por isso um breve resgate histórico e análise do seu significado é útil na atualidade.

As origens do primeiro de maio remete a uma manifestação de trabalhadores nos Estados Unidos, em 1886, na cidade de Chicago, na qual se reivindicava a redução da jornada de trabalho para 8 horas e resultou na “Revolta da Haymarket” (o palco dos acontecimentos do dia 04 de maio, dia da revolta, foi Haymarket Square, em Chicago). Uma série de manifestações se iniciaram no dia primeiro de maio, quando estourou uma greve com mais de 200 mil participantes e houve uma participação massiva da população na manifestação deste dia e que foi marcada por confrontos com a polícia e morte de manifestantes no dia 03 de maio. No dia seguinte, em outra manifestação, uma bomba estourou e alguns policiais morreram e em represália os policiais atiraram em manifestantes e onze destes morreram. Os organizadores da manifestação, oito trabalhadores anarquistas, foram presos e responsabilizados pela bomba, sendo condenados à pena de morte (um se suicidou, quatro foram executados e apenas três foram inocentados. O julgamento foi considerado ilegítimo e todos foram inocentados e passaram a ser denominados “Mártires de Chicago”[1].

Em 1889, a chamada Segunda Internacional, acatou proposta de Raymond Lavignec de convocar uma manifestação anual dos trabalhadores e foi decidido que tal manifestação ocorreria no dia primeiro de maio, em referência às manifestações de Chicago. Diversas outras manifestações e conflitos ocorreram nesta data, em vários países. Em abril de 1919, o dia primeiro de maio passou a ser feriado na França, a partir de decisão do parlamento francês e o mesmo ocorre no capitalismo da Estado da Rússia em 1920. Esta data acabou sendo considerada feriado em um grande número de países. Os Estados Unidos, por razões óbvias, não adotou essa data e declarou feriado e dia do trabalho a primeira segunda-feira de setembro.

A história mostra que o primeiro de maio foi inicialmente um dia de lutas espontâneas dos trabalhadores e, com o passar do tempo, foi apropriado por governos e instituições (Segunda Internacional, centrais sindicais) e assim perdeu o seu caráter de luta, de enfrentamento com o capital e de exigência de melhorias e mudanças na vida dos trabalhadores. Em muitos casos, é apenas o '”dia do trabalho” e o que não se diz é que se trata do trabalho alienado, ou seja, o trabalho heterogerido e por isso fundado na exploração e descontentamento. “O trabalhador foge do trabalho como o diabo foge da cruz” (Marx) [2]. 

Assim, nada mais natural que a classe dominante, capitalista, e suas classes auxiliares, incluindo a burocracia sindical, os governos, etc., queiram comemorar o “dia do trabalho” e apagar da memória dos trabalhadores o seu significado original e verdadeiro, a luta contra o trabalho alienado, contra o capital que gera o trabalho alienado, contra o Estado que mantém com seu aparato repressivo tanto trabalho alienado quanto o capital, duas faces da mesma moeda.

É por isso que hoje as Centrais Sindicais, grandes organizações burocráticas, “comemoram” o dia primeiro de maio com festa e ao lado dos governantes. A burocracia sindical de variadas centrais sindicais criaram agora o “primeiro de maio unificado”, que ocorrerá na Avenida Marquês de São Vicente, em São Paulo. Isso significa tão-somente a unificação das burocracias sindicais e lado a lado estarão CGTB (Central Geral dos Trabalhadores do Brasil), Força Sindical, CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil), NCST (Nova Central Sindical dos Trabalhadores) e UGT (União Geral dos Trabalhadores).

A “comemoração” será feita com apresentações de música sertaneja e MPB, ou seja, circo sem pão para os trabalhadores, com músicas que reproduzem os valores e cultura dominantes, e com “grande infraestrutura montada, com a instalação de telões, banheiros químicos e agentes de segurança”, ou seja, muito dinheiro e controle. Os agentes de segurança irão proteger os burocratas sindicais dos trabalhadores. O Estado tem a polícia, as centrais sindicais possuem “agentes de segurança”. Está confirmada a participação da presidente Dilma Rousseff, e burocracia sindical e burocracia estatal estarão de braços dados, comemorando a miséria, alienação e exploração dos trabalhadores.

Porém, outros primeiros de maio virão e com eles a reapropriação do dia e do seu significado pelos trabalhadores, e que anunciam não apenas um dia de luta, mas milhares e cujo resultado seja a autoemancipação proletária e, por conseguinte, a emancipação humana.

Notas:

1 – Sobre isso, cf. MELLA, Ricardo. Primeiro de Maio Dia de Luto e Luta: a Tragédia de Chicago. Rio de Janeiro, Achiamé, 2005.

2 – MARX, Karl. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. In: FROMM, E. O Conceito Marxista do Homem. 8a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1983. 

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Mesa Redonda: A Questão do Transporte Coletivo na Sociedade Capitalista


Mesa Redonda:
A Questão do Transporte Coletivo na Sociedade Capitalista

A alguns anos a prefeitura de Goiânia e o governo estadual vêm realizando sucessivos aumentos nas tarifas de ônibus em contraste com a situação do sistema publico de transporte coletivo que claramente vem sendo sucessivamente precarizado. Tal situação não está desconectada da realidade acadêmica, ou o que dá no mesmo, a realidade acadêmica está intimamente relacionada com a realidade social que produz tal situação. Por isso o GPDS (grupo de pesquisa dialética e sociedade) realiza a mesa redonda "A questão do transporte coletivo na sociedade capitalista", com os professores Nildo Viana  (UFG) e Marcos Ataídes (UEG), no dia 5/5 (quinta-feira) às 10:00 horas na sala de evento 29, piso inferior ex-FCHF.

Obs: A participação no evento obterá certificado de 2 hrs de atividade acdêmica.

Promoção:

GPDS – Grupo de Pesquisa Dialética e Sociedade/UFG.


sexta-feira, 29 de abril de 2011

Formação Intelectual, Representações Cotidianas e Pensamento Complexo


Formação Intelectual, Representações Cotidianas e Pensamento Complexo
Nildo Viana

O debate em torno da formação intelectual, especialmente no nível do ensino superior, nos coloca vários problemas a serem discutidos, principalmente as dificuldades de assimilação do pensamento complexo e o predomínio das representações cotidianas nas universidades. A hipótese que apresentaremos aqui é a de que uma forma específica de representações cotidianas predomina nas universidades, a que chamaremos representações mescladas, geradas por uma formação que denominamos ritual (Viana, 2005).
As representações cotidianas são as diversas formas de manifestação do saber popular, da cultura popular e o pensamento complexo são as formas complexas de consciência, tal como a teologia, a ciência, a filosofia (Viana, 2006). As representações cotidianas podem ser “traduzidas” pelo pensamento complexo, tal Marx coloca a respeito da economia política que traduz as concepções cotidianas dos agentes do processo de produção para uma linguagem científica (Marx, 1988). Assim, as representações cotidianas tornam-se ideologias ou teorias. O processo inverso também pode ocorrer, isto é, o pensamento complexo (ideologias, teorias) também pode ser traduzido pelas representações cotidianas, ocorrendo, neste caso, sua simplificação, o que lhe faz perder sua complexidade, tal como coloca Moscovici em seu texto sobre a recepção da psicanálise (Moscovici, 1977). No primeiro caso temos um processo de sistematização (das representações cotidianas) e no segundo um processo de desarticulação (do pensamento complexo).
A formação intelectual dos cientistas deveria significar que o profissional passaria do universo das representações cotidianas para o do pensamento complexo. Sendo assim, eles deveriam ser portadores de um pensamento complexo. Porém, isto nem sempre ocorre, ou melhor, raramente ocorre. É justamente isto que iremos discutir no presente texto.
Todas as ciências humanas possuem uma dualidade. Há sempre uma corrente positivista e uma corrente crítica. É neste sentido que se pode falar em geografia crítica, sociologia crítica, etc. (Viana, 2000). Desta forma, a concepção positivista é uma sistematização das representações cotidianas ilusórias, ou, como diz Marx, uma “tradução” delas. A diferença entre ambas está no fato de que o positivismo é um saber sistemático. Neste sentido, há uma correspondência entre positivismo e representações cotidianas ilusórias e há, entre elas, uma confirmação recíproca. No entanto, aqui estamos ainda no caso apontado por Marx, uma sistematização ou uma tradução das representações cotidianas ilusórias pelo pensamento complexo.
No entanto, se o processo de aquisição do pensamento complexo é realizado apenas parcialmente, aí temos é uma mescla entre representações cotidianas e pensamento complexo. Isto significa que o profissional em questão não tem domínio do pensamento complexo, possui apenas fragmentos, elementos formais ou de linguagem, sobre tal pensamento.
A possibilidade da constituição de representações mescladas ocorre na formação intelectual dos cientistas e filósofos. Assim, é preciso discutir o tipo de formação intelectual do profissional em questão. A formação escolar não é homogênea e nem todos concluem seu curso superior com o domínio do metier de sua disciplina. As determinações deste fenômeno são várias, incluindo desde a instituição em que ocorreu a formação, quais as condições do estudante, qual seu capital cultural anterior ao ingresso nela, a realidade educacional do país, as políticas educacionais, a estrutura das universidades, a formação docente, o grau de engajamento do estudante, etc. Assim, podemos considerar a existência de dois tipos de formação, a ritual, que significa a conclusão de um curso, com seus diplomas e ritos, e a estrutural, que além do processo formal/ritual, abrange o domínio mais amplo da disciplina. Isto quer dizer que nem sempre as pessoas que concluem um curso superior e se tornam aptas legalmente a exercerem uma profissão científica, possuem uma formação estrutural. A formação ritual significa a titulação e um restrito acesso ao saber científico de sua área.
Assim, o processo de constituição de representações mescladas tem como condição de possibilidade a formação ritual, que permite a simultânea simplificação do saber científico e tradução das representações cotidianas em linguagem científica, onde o peso de cada um, se há predomínio do saber científico ou das representações cotidianas, depende do indivíduo em questão. No entanto, como não há, neste caso, o domínio do pensamento complexo, então as representações mescladas são apenas uma forma de manifestação das representações cotidianas, embora diferente formalmente e com elementos fragmentários e superficiais de pensamento complexo.
Mas a característica específica deste processo é revelada no fato de que as idéias originadas das representações cotidianas só permanecem quando coincidem com as do pensamento científico e vice-versa, ou seja, nas representações mescladas somente o conteúdo coincidente das duas formas de consciência continua existindo. Mas, pode-se dizer, no processo de assimilação do pensamento científico pelas representações cotidianas e vice-versa, isto também ocorre.
A diferença reside na forma como isto ocorre: nas representações mescladas há predomínio formal das representações cotidianas, isto é, o conteúdo coincidente entre as duas formas de consciência permanece mas sob a dinâmica do saber cotidiano, o que significa que submetido ao processo de simplificação, naturalização e regularidade e, principalmente, comandado pelo núcleo das representações cotidianas. Assim, a convicção assume o papel fundamental e o saber científico fica presente formalmente, enquanto conceitos dispersos, idéias científicas naturalizadas, etc. O próprio saber científico se torna, assim, parte da convicção, pois lhe fornece legitimação, mas perde sua complexidade e passa a fornecer explicações simples.
Assim, partindo da idéia de Young (1982) a respeito das estratificações sociais do saber, podemos acrescentar a existência de uma estratificação social no processo de formação. Neste caso não se trata da existência de estratos de saber comandados por uma hierarquia e sim de estratos de complexidade no processo de aquisição-formação-transmissão nos saberes científicos. Nós podemos esboçar uma tipologia de saberes científicos: a) o saber científico fundador, clássico; b) o saber científico estruturante, inovador; c) o saber científico vulgar; d) o saber científico ritual, formal, um não-saber científico que se afirma científico.
O saber científico fundador ou clássico, é aquele que traz a marca de uma nova ciência, que produz novos horizontes teóricos ou científicos, “descobre continentes”, tal como coloca Althusser (1991). Este é caso do pensamento de Marx, Freud, entre outros, sendo que, tal como coloca Althusser, um descortinou o “continente história” e o outro o “continente do inconsciente”. Tal tipo de saber científico se assemelha ao que Kneller denominou “teorizadores”, embora sem o psicologismo de sua abordagem:
“De um modo geral, os teorizadores são pensadores afoitos com um impulso irrefreável para desafiar e contestar idéias aceitas. (...). São, de um modo geral, extremamente inventivos, produzindo uma hipótese atrás de outra. Einstein explorou todos os domínios da Física, abrindo novos caminhos em mecânica, eletromagnetismo, teoria quântica, gravitação e no campo unificado. (...) A tendência dos teorizadores é para se comprometerem profundamente com suas idéias, defendendo-as muitas vezes com agressividade. (...). Mas, que promovam ou não suas idéias, os teorizadores têm usualmente grande confiança nelas, uma confiança que ajuda a resistir à oposição com que o pensamento original tão freqüentemente se defronta” (Kneller, 1980, p. 156-157).
O saber científico estruturante ou inovador é aquele que traz novas teses, conceitos, etc., que são integrados no patrimônio teórico ou científico da humanidade, mas que partem de uma ciência já formada, de um paradigma já constituído, tal como é o caso dos seguidores de Marx e Freud que fizeram inovações, estruturaram teorias a partir dos fundamentos lançados por estes pensadores, um desenvolvimento do saber. Este é o caso de Korsch, que deu prosseguimento à teoria de Marx, e Melanie Klein, continuadora de Freud, para citar dois exemplos. Há também aqueles que fazem uma reviravolta e criam uma dissidência no interior de um saber clássico, tal como no caso de Gramsci, em relação ao pensamento de Marx, e Jung, no que se refere ao pensamento de Freud, seja se dizendo ortodoxo, como no primeiro caso, ou não, como no segundo.
Este é um saber referenciado mas não cristalizado, estagnado. O saber inovador é aquele que produz pesquisas, aplica teorias a casos empíricos, desenvolvendo teorias derivadas de uma teoria maior, ou desenvolvendo pesquisas empíricas, reformulando a partir de pesquisas concretas uma determinada concepção ou confirmando-as. O saber inovador pode ser mais empírico ou mais teórico, ou ambos. É por isso que a abordagem de Kneller sobre os “intermediários” e “empiristas” coincide com nossa tipologia do saber inovador, pois ambos se encaixa aqui.
“Os empiristas são usualmente metódicos e meticulosos. Suas energias são absorvidas na observação, experimentação e mensuração dos fenômenos com extrema precisão” (Kneller, 1980, p. 157).
“Finalmente, existem cientistas que são competentes em ambas as formas de trabalho. Os intermediários podem pensar ousadamente mas, por via de regra, preferem trabalhar dentro de uma tradição estabelecida. Rutheford e Fermi são notáveis exemplos. Rutheford era primordialmente um experimentalista. Fermi foi um teórico. Ambos pensavam ousadamente mas não especulativamente. Um exemplo algo diferente é o físico de origem austríaca Paul Ehrensfest, mais um crítico do que um experimentalista” (Kneller, 1980, p. 158).
Aqui devemos abrir um parêntesis para dizer que a concepção de Kneller é psicologista por derivar as características dos indivíduos enquadrados em sua tipologia a partir tão-somente de sua personalidade, sendo que existem diversas outras determinações para que tal ocorra. Existem, por exemplo, o local de formação do indivíduo em questão, as influências, o processo histórico de vida, as modas científicas da época, a tradição nacional (os ingleses, por exemplo, tem uma tradição empiricista mais forte, enquanto que os franceses possuem uma tradição teoricista mais arraigada).
O saber científico vulgar é aquele que não é fundador e nem inovador, que não avança, ou seja, apenas reproduz o saber já instituído. Aqui temos um conjunto de profissionais que apenas reproduzem o saber estabelecido, raramente fazendo pesquisas, publicando, produzindo resultados, sejam empíricos, teóricos ou ambos. São aqueles que se dedicam exclusivamente à atividade docente, o que alguns chamariam de “transmissão do saber”.
Por fim temos o saber científico desqualificado, que é, na verdade, um não-saber científico, que se caracteriza por possuir alguns elementos do pensamento complexo mesclados com representações cotidianas. Este é possibilitado pela dificuldade de apreensão do saber científico reforçado por condições específicas, concretas, sociais. São aqueles que realizam apenas uma formação ritual.
Assim, as representações mescladas são possíveis devido a esta formação ritual e, no caso em que elas reproduzem representações cotidianas ilusórias, isto ocorre graças não só a esta formação mas também ao positivismo enquanto concepção daqueles que produzem tais representações, além da formação anterior do indivíduo em questão, o que remete aos seus valores, concepções, etc.
Por fim, podemos colocar que este saber científico formal é condição de possibilidade das representações mescladas. Trata-se de uma forma de representação que não é igual à tradução das representações cotidianas em pensamento sistemático (saber inovador) – tal como Marx colocava – ou sua reprodução (saber vulgar) e nem é equivalente às representações cotidianas que traduzem o saber sistemático e realizam sua simplificação – tal como na tese de Moscovici. 
Desta forma, observamos que a condição de possibilidade das representações mescladas se encontra na formação ritual. Quanto ao seu conteúdo, ele pode ser ilusório, desde que seu fundamento seja o positivismo, ou crítico, quando o seu fundamento é o pensamento complexo crítico, mas será, neste caso, devido as características das representações cotidianas, sob a forma dogmática e manifesta através de fórmulas simples, o que facilita a veiculação de concepções fetichistas e deterministas. A fonte das representações mescladas é a formação ritual e esta é gerada por um conjunto de determinações sociais que fizemos uma breve alusão aqui e cujo estudo mais aprofundado requer pretendemos realizar em outra oportunidade.

Referências

ALTHUSSER, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. 3a edição, Rio de Janeiro, Graal, 1991.
KNELLER, George F. A Ciência como Atividade Humana. Rio de Janeiro/São Paulo, Zahar/Edusp, 1980.
MARX, Karl. O Capital. Vol. 1, 3ª  edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
MOSCOVICI, Serge. A Representação Social da Psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar, 1977.
Viana, Nildo. Formação Ritual e Universidade. Jornal A Página. Ano 14, No 150, Novembro de 2005. http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=4223 acessado em 04 de novembro de 2005.
Viana, Nildo. Senso Comum, Representações Sociais e Representações Cotidianas (no prelo). 2006.
VIANA, Nildo. Sobre as Ciências Sociais. Estudos – Revista da Universidade Católica de Goiás. Vol. 27, no 04, out./dez.2000.
YOUNG, Michael. Uma abordagem do Estudo dos programas enquanto fenômenos do conhecimento socialmente organizado. In: GRACIO & STORR, S. Sociologia da Educação II. Lisboa, Horizonte, 1982.
___________________________
Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Formação Intelectual, Representações Cotidianas e Pensamento Complexo. Educacao & Mudanca (Unievangélica), v. 2, p. 1-7, 2010.

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quinta-feira, 28 de abril de 2011

A Vida nas Cidades - Meio Ambiente e Qualidade de Vida


A Vida nas Cidades
Meio Ambiente e Qualidade de Vida
Nildo Viana*

A vida nas cidades no mundo contemporâneo é apenas um breve capítulo da história da humanidade e atinge atualmente a maioria da população mundial. O modo de vida urbano sofreu uma grande ampliação e não cessa de ocupar novos espaços. Neste processo, uma das questões mais importantes é perceber as mudanças sociais e ambientais produzidas e seus efeitos sobre a qualidade de vida da população.
As cidades são produtos de um longo processo histórico e assumiram formas diferentes em sociedades diferentes. As cidades-Estado do escravismo antigo – tal como Atenas e Esparta, na Grécia Antiga, ou Roma, durante o império romano, alguns exemplos desta época histórica – são bastante diferentes das cidades modernas ou dos vilarejos que deram origem a elas. Na sociedade feudal, durante o período medieval, as cidades sofreram um refluxo e a vida rural passou a predominar e ofuscar a vida urbana. A crise do feudalismo e a expansão comercial abriram uma nova época para o florescimento das cidades e o capitalismo, com seu contínuo processo de expansão, criou uma sociedade que muitos qualificam de “urbana”.
Esta sociedade urbana criou um tipo de cidade diferente das formas anteriormente existentes. Isto promoveu uma grande alteração na qualidade de vida e na relação do ser humano com o meio ambiente. A cidade é caracterizada por um intenso e extenso controle do ser humano sobre o meio ambiente (Viana, 2002). No espaço rural, temos um controle ameno sobre o meio ambiente e no espaço urbano um controle rígido. Desta forma, o espaço urbano, a cidade, se distingue do espaço rural, e na sociedade moderna, devido a primazia da produção industrial, a urbanização se tornou um processo rápido, intensivo e cada vez mais ampliado.
A relação entre ser humano e meio ambiente é complexa. O ser humano transforma o meio ambiente e ao fazê-lo, transforma a si mesmo, tal como colocou Marx. Os seres humanos, através da associação, se relacionam com o meio ambiente e o transforma. O geógrafo E. Reclus já colocava isto:
“À medida que os povos se desenvolveram em inteligência e em liberdade, à medida que compreenderam melhor a ação destas forças que os arrastam, souberam reagir sobre o mundo exterior, cuja influência havia recebido passivamente; foram se apropriando gradativamente do solo e, tornados pela força da associação verdadeiros agentes geológicos, transformaram de várias maneiras a superfície dos continentes, mudaram a economia das águas correntes, modificaram até mesmo os climas, deslocaram fauna e flora” (Reclus, 1985).
Os seres humanos passam a exercer uma ação cada vez mais intensa sobre o meio ambiente. Eles realizam uma transformação ambiental, interferindo e mudando a natureza, e também deles mesmos e de suas relações. Este processo se tornou mais intensivo na sociedade moderna e mais ainda nas cidades. O processo de urbanização, marcado pela expansão da população urbana e das cidades, é um processo que faz a sociedade se tornar cada vez mais urbana. A população citadina se torna cada vez maior, e a população rural cada vez menor. A população urbana, na atualidade, é bem maior do que a população rural, embora o inverso já tenha sido verdadeiro, inclusive nas origens da sociedade moderna.
Este processo é oriundo das mudanças sociais na esfera da produção. O modo de produção capitalista é urbano por natureza. O seu caráter expansionista e universalizante expressa uma constante ampliação da urbanização.
“O processo de urbanização atravessa três estágios: o do vilarejo, o da cidade e o das aglomerações. Cada um desses tamanhos tem sua estrutura própria e cada tipo de estrutura só é válida dentro de certos limites de tamanho. Ao nível do vilarejo, a estrutura permanece reduzida à existência de um pequeno núcleo (praça, cruzamento de vias, igreja, prefeitura) e de uma trama residencial (residências ou chácaras). Ao nível urbano, o centro que serve de núcleo único para a trama urbana torna-se insuficiente. Surgem núcleos secundários ao redor dos quais gravitam bairros que correspondem a diferenciações no interior da cidade. Ao nível da aglomeração, a capacidade coordenadora do centro e seu poder de atração sobre os núcleos secundários tornam-se insuficientes. Vários centros, correspondendo cada um deles a uma unidade urbana, passam a ligar-se por um laço de natureza federal” (Boudeville, 1973).
Assim, quanto mais desenvolvido o processo de urbanização, maior é o controle sobre o meio ambiente. A passagem do vilarejo para a cidade é expressão disto, bem como a formação das grandes cidades, das metrópoles. As chamadas regiões metropolitanas cobrem extensos espaços físicos e concentram uma enorme população. A região metropolitana de Tóquio agrupa em torno de 30 milhões de habitantes, a cidade do México quase 23 milhões e a quinta maior região metropolitana do mundo é São Paulo, que possui em torno de 21 milhões.
O problema ambiental e a qualidade de vida são questões intimamente relacionadas com a concentração urbana. A qualidade de vida é atingida pela deterioração ambiental e pela concentração e densidade populacional. A questão da população é fundamental. Não se trata de colocar que o problema reside no crescimento populacional, mas sim na concentração populacional nas grandes cidades. Podemos dizer que quanto maior é a concentração populacional, mais baixa é a qualidade de vida. O sociólogo americano Louis Wirth já definia a cidade justamente pela grande população e pela densidade populacional. No entanto, o tamanho e a concentração da população serve apenas para efeitos classicatórios, com uma boa dose de arbitrariedade (dependendo do tamanho populacional que o classificador utiliza, uma cidade pode ser considerada pequena ou grande). No entanto, a cidade é um lugar que concentra a população e nas grandes metrópoles, com intensa concentração populacional, se cria inúmeros problemas que atingem a qualidade de vida.
O crescimento populacional de uma cidade é derivado do crescimento vegetativo e imigratório. O crescimento vegetativo depende da relação entre taxa de natalidade, taxa de mortalidade e taxa de nupcialidade enquanto que o crescimento imigratório depende do processo de imigração. Neste último caso, o crescimento populacional existe do ponto de vista da cidade, país, continente que recebe os imigrantes, isto é, expressa um deslocamento populacional, no qual ocorre uma mudança de local de moradia por parte dos imigrantes.
O crescimento vegetativo da população depende de uma série de determinações sociais. Os valores e a cultura podem – direta ou indiretamente – incentivar uma alta taxa de natalidade ou o seu contrário. O desenvolvimento da medicina e as melhorias nas condições de vida também podem criar condições favoráveis ao crescimento quantitativo, pois podem prolongar a idade média de vida. A diminuição da taxa de mortalidade também deve ser levada em conta.. A taxa de nupcialidade também interfere, bem como a idade média na qual ocorre o casamento. Estes e outros elementos influenciam o crescimento vegetativo. O crescimento vegetativo de um pequeno vilarejo com 1 000 habitantes é radicalmente diferente do que ocorre em uma cidade como Goiânia, com mais de um milhão de habitantes (e a região metropolitana em torno de dois milhões de habitantes), ou Rio de Janeiro, com mais de 6 milhões de habitantes (e a região metropolitana em torno de 12 milhões de habitantes). Se a taxa de natalidade é de 10 por 1 000 habitantes por ano, temos um crescimento populacional anual de 10 pessoas no vilarejo, 10 mil em Goiânia e 60 mil no Rio de Janeiro. Claro que isto depende de muitas outras determinações, tal como a taxa de mortalidade, mas o exemplo hipotético apenas mostra a disparidade entre as cidades que, quanto mais populosa, maior é o crescimento vegetativo absoluto da população.
O motivo do crescimento imigratório para as cidades está ligado à concentração da propriedade fundiária (expulsando as pessoas do campo para a cidade, tal como aconteceu com a Inglaterra na época da Revolução Industrial e no Brasil recente, que é algo permanente na história do capitalismo mas que tem momentos em que isso ocorre com maior intensidade, dependendo da época e lugar). O livro de Friedrich Engels, A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, demonstra detalhadamente as condições precárias de vida dos trabalhadores na época da Revolução Industrial inglesa. O processo de industrialização está indissoluvelmente ligado ao processo de urbanização e ambos provocam efeitos no crescimento populacional e no meio ambiente, tal como veremos adiante.
Outro motivo é a concentração e centralização das atividades comerciais, administrativas e dos serviços de saúde, educação, entre outros. As cidades são centros de atração devido a possibilidade de emprego, acesso a tecnologia e serviços sociais, etc. A concentração e centralização de capital produz também um efeito atrativo grande, inclusive na esfera da cultura tanto no que se refere ao processo de produção (as grandes gravadoras, editoras, galerias, universidades, estão nas grandes cidades) quanto de consumo (museus, teatros, cinemas, etc.). A industrialização, que no período de surgimento e grande parte de sua história, foi um dos maiores incentivadores do crescimento populacional citadino.
A concentração populacional atinge a qualidade de vida em vários aspectos. Uma delas é a questão das grandes distâncias provocadas pelo crescimento horizontal (expansão do solo urbano) e divisão espacial (local de moradia, local de trabalho, local de consumo, local de estudo, etc.), que cria o problema da locomoção no interior da cidade. A população precisa se locomover até o local de trabalho, de moradia, de estudo, de consumo e este processo de locomoção cria o problema da estrutura viária da cidade, do transporte coletivo e do tráfego. Quanto maior a população, maior o uso de carros, transporte coletivo, poluição sonora e atmosférica, ansiedade de motoristas e pedestres, tempo gasto no transporte, etc. Nas grandes cidades, principalmente com o fenômeno da conurbação, isto é, a criação de coligação de duas ou mais cidades numa mesma área urbana, esse processo é ainda mais intensivo e extensivo.
Outro elemento prejudicial para a qualidade de vida, provocado pela concentração populacional, é o crescimento vertical das cidades. Quando o crescimento horizontal se torna muito extenso, o crescimento vertical passa a ser ampliado de forma cada vez mais extensa. A construção de grandes edifícios promove uma separação dos indivíduos em relação ao meio ambiente, o espaço de vivência nos apartamentos é, na maioria dos casos, extremamente restrito, e isto também gera o isolamento e esvaziamento das relações sociais de vizinhança.
O arquiteto Kevin Lynch apresenta sua posição sobre quais são os efeitos desagradáveis da cidade sobre os seres humanos: o ruído onipresente, a atmosfera desconfortável, afetação da percepção sensível pela indiferenciação, a ilegibilidade da linguagem da cidade, a rigidez, a inacessibilidade sensível. Alguns aspectos colocados por Linch são questionáveis, mas outros não. A questão do ruído e da atmosfera é inquestionável. “a cidade é por demais quente, por demais ruidosa, por demais contundente; o ar é desagradável. Muito freqüentemente, as sensações que experimentamos vão além dos nossos limites de conforto e mesmo de tolerância” (Lynch, 1973).
A deterioração da qualidade de vida, no entanto, está diretamente ligada ao problema da degradação ambiental. O problema da degradação ambiental, no entanto, ultrapassa os marcos do espaço urbano, atingindo o espaço rural e todas as esferas da vida social na sociedade moderna. A destruição ambiental é gerada pela própria dinâmica da produção capitalista. O modo de produção capitalista se caracteriza pela produção de mercadorias realizada através da extração de mais-valor. Assim, a produção capitalista visa o lucro e ao adquiri-lo o reinveste na produção para adquirir ainda mais lucro. Esta é a lógica da acumulação capitalista e é por isso que o capitalismo só pode existir em constante expansão. Depois de nascer na Europa, o capitalismo se expande para todo o globo terrestre. Este processo é marcado por um aumento cada vez mais da produção e, por conseguinte, do uso dos recursos naturais. Isto gera uma produção crescente de meios de produção e bens de consumo promovendo uma necessidade de uma constante ampliação do mercado consumidor. A reprodução ampliada do capital gera a necessidade de reprodução ampliada do mercado consumidor.
Este último ponto atinge diretamente as grandes cidades e, em menor grau, as demais. A produção de automóveis e a acessibilidade cada vez maior a eles criam um conjunto de problemas sociais e ambientais, tal como a saturação da estrutura viária, a poluição provocada pelos automóveis (dióxido de carbono, CFC-12, monóxido de carbono, óxido de nitrogênio, hidrocarbonetos, chumbo), que é responsável por mortes e doenças respiratórias, isto sem falar nos efeitos chamados “globais”, tal como as teses sobre sua responsabilidade no que se refere ao “efeito estufa”.
As estratégias para aumentar o mercado consumidor são fundadas em criação de necessidades fabricadas, aumentar a capacidade aquisitiva dos indivíduos, a obsolescência planejadas das mercadorias e os produtos descartáveis. Isto tudo gera uma produção de mercadorias que se transformam, após o uso, em lixo. Os resíduos domésticos sólidos é um dos principais geradores de problemas ambientais nas grandes cidades, pois com o consumismo crescente, também há a crescente produção de refugos domésticos (Senent, 1979). Isto sem falar que a tecnologia química produz novos materiais cuja resistência à decomposição é muito mais intensa (Laborit, 1990) Este acaba se tornando um dos mais sérios problemas ambientais nas grandes cidades, além dos depósitos de lixo, o despejo indevido, promovem casos de doenças, enchentes, entre outros efeitos.
Algumas medidas paliativas são tomadas e minimizam um pouco o efeito negativo da produção gigantesca de lixo urbano. Entre tais medidas temos a reciclagem de lixo, o planejamento estatal de coleta e armazenagem de lixo (com maior ou menor eficácia, dependendo da cidade) e a educação ambiental, apresentada por muitos como elemento fundamental para resolver esta problemática, que é apenas mais um paliativo de efeito bastante restrito no contexto global do problema.
A poluição industrial (as refinarias, fábricas de pasta de papel, siderurgia, etc.) e outras formas de poluição, tal como a emissão em grande quantidade de compostos orgânicos voláteis (provocada pela indústria, automóveis, uso de solventes de cola e tinta, desodorantes, lavanderias, óleo de cozinha, plástico, etc.) criam diversos problemas de saúde (desde problemas respiratórios até, segundo algumas teses, o câncer), além da queima de objetos plásticos entre outros, produzem uma degradação ambiental que gera problemas de saúde e perda da qualidade de vida.
A degradação ambiental, assim, deteriora a qualidade de vida nas grandes cidades sob as mais variadas formas. No entanto, o impacto da degradação ambiental não é o mesmo para toda a população. No caso da poluição, ela é de dois tipos: a poluição provocada pela pobreza, “causada pela ausência de saneamento e condições decentes de vida e trabalho”, cuja origem se encontra principalmente em dejetos orgânicos e sujeira; e a poluição provocada pela opulência, “causada pelas modernas atividades industriais e do setor terciário urbano, tendo como agentes básicos os dejetos químicos e o lixo acumulado pelo consumo/desperdicio das elites” (Pádua e Lago, 1985, p. 79). As erosões, as enchentes, entre outros processos que expressam a degradação ambiental, atinge principalmente a população das periferias e mais pobres.
A poluição hídrica (das águas) é bastante comum nas grandes cidades. Ela ocorre principalmente devido ao lançamento de esgoto (residencial e industrial), sem o devido tratamento. Outras formas de poluição (do solo, atmosférica, sonora, térmica) atingem a população urbana, deteriorando a qualidade de vida e atingem, inicialmente e principalmente, as classes sociais desprivilegiadas.
Os setores privilegiados da população são menos atingidos por este processo e buscam alternativas que são possíveis devido ao seu poder aquisitivo. “Os ricos fogem dos centros da cidade, cada vez mais irrespiráveis”; “os subúrbios se estendem desmesuradamente, e já se pode calcular a data em que a Europa ocidental, se se prolongar o ritmo dos aumentos atuais, será inteiramente coberta de cidades, de subúrbios e de residências secundárias” (Dumont, 1975,  p. 67). Este texto foi escrito na década de 70, mas a partir da década de 80 começaram a surgir os “condomínios horizontais”, que são acessíveis a famílias de alta renda, mas que, com seu desenvolvimento nos últimos anos, já possuem versões não somente para os ricos, mas para os setores da população de renda intermediária.
Desta forma, temos um quadro geral da vida nas cidades contemporâneas, que, desde o início da sociedade moderna, marca uma deterioração crescente da qualidade de vida, seja devido a concentração populacional, seja devido a degradação ambiental, sendo que estes dois processos são interligados e ambos gerados pelo modelo de desenvolvimento capitalista. A melhoria na qualidade de vida nos grandes centros urbanos depende de transformações sociais radicais e globais, pois somente assim surgiria um novo tipo de cidade. Desde as propostas que apontam para um “novo estilo de vida” (Schumacher, 1983) até propostas de reorganização da sociedade de forma global (Lago e Pádua, 1984), entre diversas outras propostas intermediárias, sem falar nas propostas paliativas, o problema ecológico e urbano continua existindo e necessitando de solução. A grande questão está além da própria cidade, sendo produto do modelo de desenvolvimento da sociedade capitalista. Isto faz necessário ir além das propostas de mudanças paliativas (que também podem e devem ser executadas, mas não exclusivamente) que geralmente atuam sobre o efeito e nunca sobre a causa, e chegar a mudanças sociais profundas.



Para Ler mais:

Boudeville, J. Os Espaços Econômicos. Lisboa, Europa-América, 1973.
Cavalcanti, Lana S. (org.). Geografia da Cidade. Goiânia, Alternativa, 2001.
Corrêa, Roberto L. O Espaço Urbano. São Paulo, Ática, 1995.
Dumont, René. A Utopia ou a Morte. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975.
Dupuy, Jean-Pierre. Introdução à Crítica da Ecologia Política. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980.
Engels, Friedrich. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. São Paulo, Global, 1987.
Laborit, Henri. O Homem e a Cidade. Lisboa, Europa-América, 1990.
Lago, A.  & Pádua, J. A. O Que é Ecologia?. 2ª edição, São Paulo, Brasiliense, 1985.
Lefebvre, H. A Revolução Urbana. Belo Horizonte, 1999.
Lefebvre, H. O Direito à Cidade. São Paulo, Moraes, 1991.
Lynch, Kevin. A Cidade como Meio Ambiente. In: Davis, K. et al. Cidades – A Urbanização da Humanidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1972.
Reclus, Elisée. A Natureza da Geografia. In: Andrade, M. C. (org.). Elisée Reclus. São Paulo, Ática, 1985.
Schumacher, E. F. O Negócio é ser Pequeno. Rio de Janeiro, Zahar, 1983.
Senent, J. A Poluição. Rio de Janeiro, Salvat, 1979.
Soja, Edward. Geografias Pós-Modernas. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997.
Souza, Ailton & Vieira, R. A. Poluição, Alienação e Ideologia. Rio de Janeiro, Achiamé, 1984.
Viana, Nildo. Violência Urbana – A Cidade Como Espaço Gerador de Violência. Goiânia, Edições Germinal, 2002.
Wirth, L. O Urbanismo como Modo de Vida. In: Velho, O. G. (org.). O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.


Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. A Vida nas Cidades. Sociologia, Ciência e Vida, v. 01, p. 06-13, 2007.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

As Origens da Música Negra Norte-Americana



As Origens da Música Negra Norte-Americana

Nildo Viana

A música negra norte-americana possui um longo processo histórico de constituição, marcado por mudanças de estilo, temas, etc. A sua origem só pode ser explicada a partir de uma percepção histórica de seu engendramento que ultrapassa a história puramente musical, isto é, é preciso, para entender a história da música, compreender suas determinações, o que remete à história da sociedade que a engendra.

Desta forma, compreender o processo de formação da música negra norte-americana nos remete ao estudo da sociedade norte-americana. A sociedade norte-americana nasce sob o signo da escravidão. O modo de produção escravista colonial instaura um processo de exploração e degradação humana dos negros africanos transferidos para este país. O escravo negro é aquele que não se encontra na mesma situação do operário inglês da época, pois este último possuía a força de trabalho para vender, enquanto que o primeiro nada possuía, mas, ao contrário, era possuído, como se fosse um mero meio de produção.

Assim, o escravo negro foi desumanizado e, neste processo, buscou lutar contra a sua desumanização. As canções de trabalho, inicialmente reprimidas, posteriormente apropriadas pelos senhores de escravos, era um refúgio imaginário do trabalho pesado, sendo, simultaneamente, sua aceitação e negação, expressando o fardo do trabalho escravo e buscando diminuí-lo. Manifestava, portanto, uma consciência de classe contraditória, representações cotidianas contraditórias de sua realidade marcada pela exploração e dominação.

A classe senhorial, após a desconfiança, passou a incentivar e controlar as canções de trabalho, pois encontrou nesta a possibilidade da continuidade do trabalho, do aumento de produtividade. A escravidão engendrou a música negra e a situação pós-escravidão caracterizou sua forma mais desenvolvida, o Blues, bem como a “música espiritual” e o Gospel Music.

O Blues apresentava os temas oriundos da vida cotidiana do pós-escravo, livre da classe senhorial, mas preso na sociedade capitalista, constrangido ao desemprego, ao racismo, à opressão. Assim, o blues apresenta como temas recorrentes a bebida, o amor, entre outros. Mas um mesmo grupo social pode fornecer respostas diferentes para a mesma situação, e assim surge a música espiritual, da qual irá derivar o Gospel Music.

Assim, a música negra norte-americana tem sua origem na escravidão negra e na passagem do escravismo colonial ao capitalismo, marcando seu surgimento e primeiras formas de aparecimento, que, com o desenvolvimento da sociedade capitalista, assumirá novas formas, influenciando e sendo influenciada pela música branca, bem como numa relação constante de apropriação e re-apropriação de sua produção, onde as idéias dominantes e o capital comunicacional terão um papel fundamental.
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Este texto é um resumo de artigo com o mesmo nome e foi apresentado em:

terça-feira, 26 de abril de 2011

Linguagem, Poder e Relações Internacionais


Linguagem, Poder e Relações Internacionais
                                                                                                  
                                                                                                                                              Nildo Viana

As relações entre poder e linguagem já foram abordadas por muitos autores e expressam uma preocupação com a questão cultural na sociedade moderna. A linguagem não é neutra e nem está acima das lutas sociais, mas, ao contrário, é perpassada por estas lutas, é expressão delas e toma parte nelas. Um conjunto de pensadores contribuiu, de uma forma ou de outra, para pensar as relações entre linguagem e poder, tal como Foucault (1996); Bakhtin (1990); Fromm (1979); entre outros. No entanto, os aspectos envolvidos no interior da relação linguagem e poder são muitos e nem todos foram enfatizados. Assim, Foucault focaliza a questão da censura no discurso; Bakhtin analisa a luta de classes em torno dos signos; Fromm observa a existência de um filtro social do discurso; e assim por diante. A nossa pretensão, no presente texto, é abordar a questão da linguagem e poder relacionada com as relações internacionais, bem como apontar para uma perspectiva de superação da dominação lingüística. Isto significa que iremos enfatizar as relações lingüísticas entre os Estados-Nações e entre estes e determinadas etnias e não a relação de etnias entre si, embora possamos lançar mão de comparações que possam ser esclarecedoras. Isto significa também uma delimitação temporal, isto é, iremos abordar as relações lingüísticas a partir da emergência dos Estados-Nações, ou seja, do capitalismo, e não em períodos históricos anteriores.



Desenvolvimento Capitalista e Dominação Lingüística


Partiremos aqui de uma periodização do processo de desenvolvimento do capitalismo mundial e das relações lingüísticas que lhes são correspondentes. Para isso, a contribuição de Calvet (2004) é fundamental. Calvet parte de uma discussão sobre glotofagia para discutir as relações lingüísticas instauradas a partir do processo de colonização. O capitalismo nasce a partir da acumulação primitiva de capital, no qual o capital industrial é incipiente mas tem sua supremacia garantida pela supremacia do capital comercial (Marx, 1988; Viana, 2003). O chamado “sistema colonial” abre um processo de exploração internacional que marca um início de um processo constante e ininterrupto de reconversão capitalista. Os países capitalistas imperialistas subordinam os demais países e produzem modos de produção subordinados que vão, paulatinamente, se constituindo enquanto modo de produção capitalista subordinado. Este é o caso do escravismo colonial (vigente no Brasil e Estados Unidos), que era um modo de produção subordinado que foi substituído por um capitalismo igualmente subordinado. A partir da implantação do capitalismo nos países subordinados, o seu desenvolvimento passa a seguir a lógica da subordinação . Assim, o processo de desenvolvimento capitalista segue uma dinâmica espontânea, marcada pela reprodução do processo de produção e reprodução do capital que gera a acumulação de capital, bem como conseqüências e necessidades derivadas (reprodução ampliada do capital, reprodução ampliada do mercado consumidor, tendência declinante da taxa de lucro, desenvolvimento tecnológico, etc.), e que é abalada pelas lutas de classes, na qual o movimento operário cria obstáculos para este desenvolvimento espontâneo, proporcionando novas contradições e abrindo espaço para possíveis revoluções e rupturas, o que gera uma rearticulação do modo de produção capitalista. Assim, a história do capitalismo é marcada pela sucessão de regimes de acumulação que significam não somente mudanças no processo de produção como também na esfera estatal e nas relações internacionais. Aqui focalizaremos apenas as mudanças nas relações internacionais e deixaremos de lado, na medida do possível, as demais mutações nos regimes de acumulação.

O primeiro estágio das relações internacionais com a emergência do capitalismo é o colonialismo, durante a acumulação primitiva de capital, e este é substituído pelo neocolonialismo, já no regime de acumulação extensivo (que entra em crise no século 19) e, posteriormente, que se vê suplantado pelo imperialismo financeiro do regime de acumulação intensivo (até início do século 20) e, posteriormente, pelo regime intensivo-extensivo (em declínio a partir da década de 60) que é acompanhado pelo imperialismo oligopolista e, por último, pelo regime de acumulação integral, o regime atual, iniciado na década de 80 do século 20, e que institui um neoimperialismo (Viana, 2003; Viana, 2004). Este processo de mudança nas relações internacionais não ocorre apenas na esfera da produção e reprodução do capital, mas também nas demais esferas da vida social, incluindo a cultura e, mais especificamente, a linguagem.

Como bem observou Calvet, o colonialismo reproduz nas colônias a divisão de classes sociais e cria fenômenos “secundários” pouco analisados pelos pensadores que se dedicaram ao estudo do imperialismo (Lênin, Bukhárin). E neste processo se incluem as relações lingüísticas. A subordinação social é acompanhada por uma subordinação lingüística. Esta, como coloca Calvet, se inicia com o “direito de nomear”. Os contatos entre colonizadores e colonizados é marcado pelo preconceito étnico e por ideologias justificadoras da “inferioridade” dos colonizados. Os colonizadores manifestam um menosprezo pela cultura autóctone e isto se revela na questão dos nomes atribuídos aos colonizados.

Em primeiro lugar, há um desprezo pela autodenominação dos colonizados, que são simplesmente ignorados. Em segundo lugar, eles são nomeados arbitrariamente. Os habitantes do Brasil foram chamados índios, devido ao fato dos portugueses pensarem que haviam chegado nas Índias, embora esta denominação não fosse nem dos nativos brasileiros e nem dos “indianos”... A origem do nome da República dos Camarões também é reveladora. Calvet coloca que os primeiros navegadores portugueses denominaram o Rio Wuri como “Rio dos Camarões”, isto porque os marinheiros viram camarões neste rio. Assim, este nome passou a designar a região: Camerones, em espanhol; Cameroons, em inglês; Kamerum, em alemão; e Cameroun, em francês. Assim, continua Calvet, os Kotoko, os Bamilekê, os Fang, os Fali e os Duala são chamados de “camaroneses”. Outro exemplo citado por este autor no que se refere ao direito de nomear se encontra na origem da palavra “canibal”, que significa hoje “antropofagia”, o hábito de comer carne humana. Este termo surge pela primeira vez no Diário de Navegação de Cristóvão Colombo que une a palavra caribe e a informação de que os caribes comem carne humana, criando a expressão “canibal”. Assim, Calvet cita um dicionário etimológico francês que explica que “cannibale” é um empréstimo do espanhol “canibal”, que tem sua origem em “caribal”, que vem do Caribe, palavra cuja origem se encontra na língua dos caribes. Assim, o sentido original da palavra se perde e autodenominação é substituída por uma heterodenominação que se torna pejorativa e acaba sendo generalizada para outros povos colonizados, agora todos denominados “canibais”...

O direito de nomear significa que a autodenominação nativa é subjugada pela hetero-denominação. Assim, o Um define o Outro, como já dizia Simone de Beauvoir (1978) ao se referir às relações homem-mulher. A mulher se define pela definição do homem; da mesma forma, o colonizado se define pela definição do colonizador. Este processo de dominação lingüística é um elemento para diminuir a resistência dos colonizados.

Isto ocorre no período do colonialismo. A mutação lingüística se inicia quando os colonizadores com suas forças militares e administrativas, acompanhados por comerciantes, se implantam na região colonizada e logo realizam a cooptação de setores nativos, realizando uma aliança que beneficia a ambos e significa a exploração e dominação da população nativa. Estes setores nativos cooptados são os primeiros a adquirirem a língua do colonizador. Os grupos sociais intelectualizados – no sentido profissional do termo – também acabam adotando a língua do invasor. Assim, como coloca Calvet, a língua dominante, a do colonizador, é adotada pelos nativos próximos ou representantes do poder ou por aqueles que são constrangidos a se relacionar com ele. Estes grupos aliados e privilegiados de nativos possuem um bilingüismo que entra em contradição com o monolingüismo da maioria absoluta da população nativa.

Etnocídio e Glotofagia


Os colonizadores não conhecem o idioma do colonizado e por isso impõem o seu aos interlocutores locais. A administração local utiliza o idioma do colonizador, bem como as instituições implantadas (tribunais, escolas, etc.). A possibilidade de acesso a tais instituições também se faz via idioma dominante. Segundo Calvet, “no plano lingüístico, o colonialismo institui pois um campo de exclusão de duplo gatilho: exclusão duma língua (a língua dominada) das esferas do poder, exclusão dos falantes desta língua (dos que não aprenderam a língua dominante) dessas mesmas esferas” (2004, p. 04). Os colonizadores promovem um processo de seleção lingüística através de decretos, ações políticas, sistema escolar. Este é o primeiro estágio do que Calvet denomina glotofagia. No entanto, este processo de destruição de línguas (idiomas) acompanha um fenômeno mais amplo que é o etnocídio, isto é, a destruição de toda uma etnia, tal como alguns antropólogos denominaram (Auzias, 1978). Assim, consideramos que o etnocídio é um conceito mais amplo, que engloba a “glotofagia” e permite compreender que este processo de destruição de línguas não ocorre apenas na esfera lingüística mas em todas as esferas, pois o idioma nativo está ligado às relações sociais (tribais ou quaisquer outras) e uma vez estas relações desaparecendo ou sendo paulatinamente englobadas por outras, acabam tendo dificuldade em servir de meio de comunicação e por isso a resistência lingüística é uma empreitada com poucas chances de sucesso.

Assim, o primeiro estágio da glotofagia se caracteriza pelo fato da classe dominante local, aliada e subordinada à classe dominante do país colonizador, passa a utilizar o idioma do colonizador juntamente com o nativo, enquanto que a população em geral continua falando apenas o idioma nativo. Há, no primeiro caso, um bilingüismo e, no segundo, um monolingüismo. No segundo estágio há um avanço da glotofagia, no qual a população urbana acaba sendo englobada pelo bilingüismo, abandonando o monolingüismo do idioma nativo, restando apenas a população rural como praticante deste. A classe dominante local abandona o idioma nativo (indo do bilingüismo ao monolingüismo, adotando exclusivamente o idioma dominante) e a população urbana passa do monolingüismo nativo para o bilingüismo (englobando o idioma dominante) e a população rural continua no monolingüismo (restrito ao idioma nativo). Isto é produto do avanço do capitalismo que, com sua expansão e instauração de relações de produção capitalistas nas cidades, constrange a população urbana (determinadas classes sociais, além da dominante e as suas classes auxiliares, incluindo o proletariado nascente, etc.) a adquirir o idioma dominante .

A próxima fronteira a ser rompida pela expansão capitalista é o campo, o último reduto do monolingüismo nativo. A dinâmica capitalista não demora muito a romper esta fronteira, pois a subordinação das relações de produção não-capitalistas (camponesas) ao capitalismo, bem como implantação de relações de produção capitalistas, provoca a morte final do monolingüismo e a efetivação da glotofagia. As relações de produção capitalistas invadem o campo ou o subordinam, fazem da população rural dependente e subordinada à cidade, onde se encontra as relações de produção capitalistas, as indústrias, o centro administrativo, os meios oligopolistas de comunicação, as escolas. Como diz Calvet, o idioma dominante está ligado às formas mais “modernas” de produção enquanto que o idioma nativo está mais ligado às formas tradicionais. Neste último estágio, o idioma nativo é, segundo Calvet, definitivamente digerido pelo idioma dominante. Assim, Calvet expõe resumidamente o processo de glotofagia: “a língua dominante impõe-se segundo um esquema que passa pelas classes dirigentes, posteriormente pela população das cidades e, finalmente, pelo campo, e este processo apresenta-se acompanhado de bilingüismos sucessivos, ali onde a língua dominada resiste. Porém, a desaparição de uma língua (a glotofagia triunfante), ou o seu contrário, dependem de numerosos fatores não lingüísticos, em particular das possibilidades de resistência do povo que fala esta língua” (2004, p. 09).

O bilingüismo vai se desenvolvendo mas não harmonicamente, pois ele é, no caso dos países colonizados, marcado pela diglossia. O bilingüismo era considerado pelos lingüistas um fenômeno individual (um indivíduo que fala duas línguas) mas quando Ferguson elabora o conceito de diglossia ela ganha um caráter social. A diglossia ocorre quando duas formas lingüísticas (dois idiomas) coexistem numa mesma comunidade, caracterizando uma variedade alta e uma variedade baixa, sendo que a primeira manifesta a forma reproduzida nas instituições administrativas, escolares, intelectuais e a segunda na vida cotidiana (cf. Calvet, 2002; Martinet, 1975). Assim, o bilingüismo, neste caso, possui uma repartição social de usos e revela o predomínio idiomático do idioma dominante. Este é o primeiro passo para a implantação de um novo monolingüismo, agora fundado no idioma dominante e não mais no idioma nativo. Assim, o processo evolutivo da glotofagia ocorre da seguinte forma: monolingüismo do idioma nativo ? bilingüismo ? diglossia ? monolingüismo do idioma colonizador. O bilingüismo assume uma forte importância, nascendo na classe dominante local e se espalhando pelas classes exploradas e mudando para uma forma fundada na diglossia.

Estas relações são típicas das situações na qual existem os dominadores e os dominados e é por isso que Calvet cita casos de sociedades pré-capitalistas (o Império Romano e a expansão do Latim, a relação da Inglaterra e País de Gales, por exemplo) mas a situação é diferente com a emergência do capitalismo. Em primeiro lugar, as relações são mais complexas e isto pode ser exemplificado pela não existência de apenas um centro lingüístico e sim um centro hegemônico mundial com diversos concorrentes. Os países colonizadores nomeiam de forma pejorativa os colonizados (Calvet, 2004; Carboni e Maestri, 2003), devido às relações de poder instauradas, mas não o fazem com os países que não são seus subordinados. Calvet cita o exemplo da língua francesa que nomeia de forma pejorativa os países colonizados mas não os outros países colonizadores, e por isso as palavras que expressam estes países não são muito distantes dos termos originais: russe (ruski); anglais (english), italien (italiano). Espagnol (español). Em segundo lugar, este processo é irreversível devido a expansão capitalista e suas formas de realização: a glotofagia é um processo que acompanha o desenvolvimento capitalista e este possui um caráter universalista e expansionista realizado a partir dos Estados-Nações que se industrializaram pioneiramente, o que significa que o processo de colonização produziu um conjunto de idiomas que se tornaram mundialmente dominantes e se realizou – e continua realizando – a glotofagia de diversos idiomas. Isto vai gerar uma disputa mundial pela hegemonia lingüística a nível mundial entre os países imperialistas, o que será discutido mais adiante.

Este processo de mutação idiomática se relaciona com o processo de expansão capitalista e as mudanças nos regimes de acumulação. O colonialismo marca a primeira fase da glotofagia, no qual a administração colonial encontra aliados nativos que se tornam os reprodutores do idioma dominante. A passagem do colonialismo para o neocolonialismo expressa uma alteração nas relações entre colonizadores e colonizados, pois a limitação e posteriormente o fim da escravidão e entrada da Inglaterra na disputa colonial marca o processo de formação de mercado consumidor e força de trabalho no continente africano e outras regiões (incluindo o Brasil), o que amplia o processo de glotofagia, reforçando a população urbana contra a rural. A exportação de mercadorias assume papel fundamental neste período e isto influi nas relações internas nas colônias, que precisam fomentar seu mercado consumidor, o que significa uma expansão da urbanização e fim da escravidão no novo mundo. Com o imperialismo financeiro temos os investimentos massivos na infra-estrutura e expansão das relações de produção capitalistas e sua expansão nos países que já haviam iniciado anteriormente o seu processo de industrialização. Isso gera o capitalismo subordinado em alguns países, embora haja variações de acordo com cada país e também não significa que os modos de produção não-capitalistas tenham deixado de existir mas sim que se tornam subjugados às relações de produção capitalistas. A fase seguinte, do imperialismo oligopolista, já significa uma ampliação do capitalismo subordinado, invadindo as demais esferas da vida social e promovendo a abolição de relações de produção não-capitalistas. A produção no campo passa a ser dominada pela produção urbana, capitalista, instaurando o bilingüismo, em muitos casos fundado na diglossia. Este processo é mais rápido em alguns países, mais lento em outros, dependendo do conjunto das relações sociais concretas, mas expressando uma tendência geral e ligada ao processo de desenvolvimento capitalista. As línguas nativas que ainda resistem enfrentam hoje não somente uma intensificação da ação glotofágica expressa nas novas tecnologias de comunicação e na expansão da hegemonia norte-americana e, secundariamente, de outros países imperialistas.

Este processo, no entanto, ocorre de forma diferenciada em países diferentes. Além dos processos de resistência a glotofagia, que, ligados a diversas determinações (incluindo a religião), os países que tiveram um etnocídio que exterminou a maior parte da população nativa tiveram uma glotofagia mais rápida. No caso do Brasil, por exemplo, as línguas indígenas foram destruídas, em grande parte, com a destruição das sociedades indígenas. A população indígena acabou sendo isolada em algumas áreas e os contatos iam, paulatinamente, destruindo suas manifestações lingüísticas, bem como sua cultura como um todo. O idioma dominante no Brasil foi o português, pois a população indígena foi excluída do processo de organização do Estado-Nação neste país, embora algumas influências e manifestações lingüísticas tenham sobrevivido e incorporado ao “português brasileiro”, que engloba também as línguas africanas que vieram junto com a população negra escravizada. A glotofagia, no caso brasileiro, foi muito mais rápida e eficaz, bem como a instauração das relações de produção capitalistas no Brasil, em comparação com os países africanos. A resistência lingüística em muitos casos é frágil, em outros é simplesmente inexistente, em alguns é forte e consegue manter a língua nativa ou as suas manifestações diferenciadas, mas este último caso é mais raro e depende de uma série de determinações que dependem de cada caso concreto.


Hegemonia Lingüística e Imperialismo Cultural


Com o processo de desenvolvimento capitalista e a expansão dos meios oligopolistas de comunicação, temos uma nova disputa lingüística internacional, agora entre os idiomas dominantes. Cada país colonizador impôs seu idioma aos países colonizados e isto foi mantido mesmo após a chamada “descolonização”. Assim, as colônias francesas reproduziam a língua francesa, as colônias portuguesas a língua portuguesa, e assim por diante. Isto produziu uma competição interimperialista no nível lingüístico, embora de forma amena e nem sempre com tanta ferocidade como ocorria nas outras esferas. As potências colonizadoras de capitalismo mais frágil, como foi o caso de Portugal, conseguiu implantar a língua portuguesa em várias colônias (Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, etc.), mas a influência mundial desta língua nunca foi grande, não ultrapassando as fronteiras dos países que a tornaram sua língua oficial.

A hegemonia lingüística mundial passou do francês para a língua inglesa. O desenvolvimento capitalista a partir do século 18 marca a hegemonia do inglês, pois a Inglaterra foi durante muito tempo a grande potência capitalista mundial e foi substituída por sua ex-colônia, os Estados Unidos, também de língua inglesa. Os mais fortes concorrentes lingüísticos (francês, russo, etc.) não conseguiram suplantar tal hegemonia. Na atualidade, com o neoimperialismo e o processo de ampliação da dominação norte-americana no mundo, ela fica ainda mais forte. Esta é uma outra face da dominação lingüística internacional, que marca a relação entre linguagem, poder e relações internacionais. Assim, junto com a dominação imperialista temos a dominação lingüística, pois no capitalismo subordinado se aprende inglês nas escolas, mas nos EUA e Inglaterra não se aprende espanhol, português, etc., no sistema escolar.

O imperialismo cultural é parte componente do processo de exploração internacional, tanto do ponto de vista mercantil quanto do ponto de vista exclusivamente cultural. A dominação cultural cria mercadorias culturais (filmes, livros, obras de arte, músicas, etc.) que são vendidas e reproduzem o processo de transferência de mais-valor dos países capitalistas subordinados para os países imperialistas, principalmente os Estados Unidos. A produção cultural, artística e científica é concentrada nos países imperialistas e devido ao processo de colonização cultural, a autonomia intelectual, artística, é restrita nos países de capitalismo subordinado, ficando restrita às fronteiras nacionais, com poucas exceções. Os modismos da indústria cultural invadem o capitalismo subordinado e faz fortunas (e isto vale até mesmo para a produção científica, principalmente – mas não unicamente – na área de ciências humanas). O lucro é certo, bem como o seu possuidor, as empresas oligopolistas transnacionais. Mas também a supremacia cultural é certa, e assim temos a reprodução de valores, idéias, do capitalismo imperialista, o que reforça sua dominação, pois passa a ser introjetada e reproduzida pelos dominados.

No plano lingüístico, isto se reproduz de forma ampliada. Além do sistema escolar reproduzir a hegemonia lingüística mundial, temos também os meios oligopolistas de comunicação e toda a produção de mercadorias culturais que chegam aos países subordinados com a língua hegemônica, made in USA. Daí as expressões lingüísticas inglesas se tornarem objetos de reprodução em gírias, brincadeiras, mesclas, e assim se cria mais uma fonte de reprodução da hegemonia lingüística inglesa. Além disso, se os “grandes” cientistas, artistas, intelectuais em geral, escrevem em inglês (ou, em menor grau, francês, italiano, alemão, espanhol) então o domínio destas línguas se torna uma “necessidade”. O ensino obrigatório da língua inglesa nas escolas brasileiras é apenas a face popular e introdutória de todo este processo. Assim, nas publicações científicas brasileiras, as revistas acadêmicas, há, geralmente, a exigência do resumo em português e do abstract em inglês; nos processos de seleção para mestrado e doutorado temos novamente a exigência de domínio desta língua e no último caso de uma outra (geralmente se coloca como opção o alemão, o francês e o italiano e, em casos mais raros, a língua mais próxima, o espanhol, desvalorizada por razões óbvias: está abaixo na hierarquia mundial...). Isto tudo quer dizer que a colonização cultural é mais intensiva nos meios intelectualizados, bem como a hegemonia lingüística. Na atualidade é reconhecida a hegemonia lingüística inglesa, bem como seus efeitos:

“O imperialismo do inglês é um seguro meio de poder em vários níveis. Há muito tempo as multinacionais vêm privilegiando o inglês em suas relações com as sucursais e entre elas. É sem dúvida uma necessidade, mas também um meio de fazer passar, dessa maneira, todo um conjunto de informações que modelam, que estruturam os espíritos e as coletividades. O imperialismo da cultura anglo-saxônica é, antes de tudo, um imperialismo da língua inglesa, como foi o caso do francês” (Raffestin, 1993, p. 117).

Todo este processo encontra algumas resistências, tal como colocaremos a partir de agora. Assim, surgem propostas de adoção de uma nova língua que não seja o inglês, algo que não passa de fantasia, pois qualquer outra língua representará outro país e apenas se reforçará um país imperialista em detrimento de outro, o que só seria possível, também, com a mudança nas relações concretas na esfera da produção e reprodução do capital. A recuperação de línguas nativas também não teria sentido, pois seria o mesmo que defender, como Policarpo Quaresma, personagem de Lima Barreto (1988), a volta do uso do tupi-guarani. No entanto, estas propostas parecem esquecer a existência de uma possibilidade alternativa já desde o início do século 20, da qual trataremos a seguir.


Esperanto: Alternativa Libertária


No entanto, existem razões mais profundas para defendermos a instauração do esperanto como “segunda língua” de todos os países, se tornando uma língua universal , convivendo com os idiomas existentes. Como o esperanto não é o idioma dominante (e nem oficial) em nenhum país do mundo então ele não expressa a supremacia de um idioma sobre outro. Assim, o idioma não seria um elemento na reprodução das relações de poder a nível internacional. Aliás, ele permitiria uma maior autonomia na produção cultural. A produção ideológica e a influência norte-americana, bem como a dos demais países imperialistas, tem como uma de suas bases o mercado editorial e a dinâmica mercantil. Obras teoricamente importantes produzidas em países capitalistas subordinados não ultrapassam suas fronteiras, pois o mercado editorial seleciona o que irá traduzir e como os idiomas destes países não são aprendidos em outros países (como o inglês, por exemplo) então apenas uma nacionalidade tem acesso a tal obra. Um teórico africano dificilmente terá sua obra conhecida nos demais países além do próprio. O mesmo se pode dizer dos de outros países subordinados, numa ordem hierárquica. Os autores que escrevem em língua portuguesa estão em nítida desvantagem em relação aqueles que escrevem em francês e principalmente em relação àqueles que escrevem em inglês. A comunicação internacional foi facilitada pela expansão da Internet. Milhões de pessoas têm acesso à rede mundial de computadores e falando as mais distintas línguas. O esperanto, neste caso, seria fundamental, pois permitiria uma comunicação entre indivíduos de qualquer país e de qualquer idioma .

Desta forma, o esperanto passa a ser não somente uma proposta mais racional como também libertária e é por isso que, apesar da racionalidade superior da proposta de adoção do esperanto como segunda língua em todos os países do mundo desde sua criação em 1887, ela nunca foi colocada em prática e os organismos internacionais até dizem acatar a idéia mas nunca a concretizam. Existem muitos interesses contrários ao esperanto e por isso os esforços dos seus partidários permitiram uma certa divulgação mas nunca a sua expansão através do sistema oficial. Mesmo quando é aprovado o seu ensino nas escolas, tal como ocorreu no Brasil em 1938, a sua efetivação não ocorre. Os “esperantistas”, tal como são conhecidos os adeptos do esperanto, em muitos casos, aumentam mas não conseguem impor uma propaganda massiva, conquistas concretas, a não ser os encontros nacionais e internacionais. No entanto, se existe uma luta e existem derrotas, isto não quer dizer que não se deve lutar, pois isto significaria uma derrota antecipada. A luta contra a dominação lingüística, da qual a luta pela implantação do esperanto como segunda língua em todos os países é uma parte, deve continuar e avançar. Assim, devemos substituir a língua enquanto forma de dominação pela língua enquanto forma de libertação.
O esperanto é uma língua considerada “artificial”, pois não foi produto coletivo de uma determinada sociedade e sim de um indivíduo. O seu criador, L. L. Zamenhof, tentou criar uma alternativa à “torre de babel” existente no mundo, publicando em 1887 sua obra no qual apresentava a nova língua . Os defensores do uso do esperanto apresentam vários argumentos em seu favor: a facilidade em aprender esta língua (possui apenas 16 regras gramaticais), o fato de ser uma língua “neutra”, a facilidade na comunicação mundial com sua adoção como segunda língua de todos os países, aboliria a necessidade de um indivíduo aprender várias línguas, a poupança de recursos que deixariam de ser gastos com traduções, etc (Zamenhof, 1988; Zamenhof, 1993; Santiago, 1986).

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Artigo publicado originalmente em:

VIANA, Nildo . Linguagem, Poder e Relações Internacionais. Humanidades em Foco, Goiânia-GO, v. 2, n. 4, p. 10-19, 2004.

Republicado em:

VIANA, Nildo . Linguagem, Discurso e Poder - Ensaios sobre Linguagem e Sociedade. 1. ed. Pará de Minas - MG: Virtualbooks, 2009. 101 p.