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terça-feira, 1 de março de 2011

Cultura, Tradição e Memória - A Juventude entre a Permanência e a Ruptura

Cultura, Tradição e Memória
A Juventude entre a Permanência e a Ruptura

Nildo Viana


Os conceitos são termos complexos que exigem uma análise aprofundada para expressar seu significado. Os termos possuem múltiplos significados, dependendo da época e de que os usam. O termo cultura possui inúmeras definições, tal como tradição e memória. Assim, o primeiro ponto a destacar no presente texto é o seu objetivo: esclarecer os conceitos de cultura, tradição e memória e, após isto, relacioná-los com o processo de permanência e ruptura em sua conexão com a juventude. Isto tudo será feito a partir de um determinado ponto de vista, de determinado referencial teórico-metodológico, que julgamos mais adequado, mas que alertamos que não é o único, alerta que os doutrinadores nunca fazem.

Entre as centenas de definições de cultura, preferimos a de que ela é o conjunto das produções intelectuais da humanidade. Logo, ao contrário de outras definições, não colocamos a “cultura material” como parte do conceito, nem a idéia de que cultura é a “alta cultura”, a cultura das elites. Todos os seres humanos produzem cultura, isto é, produzem idéias, saberes, concepções, etc., e, por conseguinte, não é privilégio de ninguém. Por conseguinte, não existe ninguém que não tenha cultura. Quando se diz isso, se quer dizer, na melhor das hipóteses, de que determinada pessoa não possui cultura erudita ou escolar e, na pior, que é ignorante, o que revela apenas uma visão preconceituosa, pois todos os seres humanos ignoram milhares de fatos, idéias, etc. e se julga mal aqueles que não em acesso aquilo que temos. A idéia de que os costumes, cultura material, etc., significam cultura, ao lado das produções intelectuais, serve para esvaziar o conceito, pois se tudo é cultura, ela perde a possibilidade de esclarecer os fenômenos sociais.

A partir de nossa definição de cultura, que delimita o conceito, tornando-o restrito ao mundo das produções intelectuais, representações mentais, podemos ainda ver que possui enorme abrangência. A religião, a moral, a filosofia, a ciência, as obras literárias, as representações cotidianas (vulgo “senso comum”), etc., são manifestações culturais. No entanto, a cultura não é algo estático, vive em constantes mudanças. Entender estas mudanças requer compreender o seu processo histórico de formação, suas divisões, etc. A cultura é constituída socialmente e ela mesma é um fenômeno social. Ela não é produzida a partir do nada e sim a partir das relações sociais concretas. A cultura camponesa tem sua base no modo de vida camponês, tal como a moderna cultura urbana tem sua base no modo de vida moderno e assim sucessivamente.

Durante o desenvolvimento histórico da humanidade ocorreu inúmeras mudanças culturais, que sempre acompanharam as mudanças sociais. As grandes mudanças sociais, a passagem de uma forma de sociedade para outra (a passagem da sociedade feudal para a capitalista, ou da escravista para a feudal, por exemplo) promoveram grandes mudanças culturais. No entanto, no interior de uma mesma forma de sociedade (feudal, escravista, tributária, etc.) também ocorrem mudanças culturais. Porém, nada se compara ao ritmo de velocidade das mudanças culturais na sociedade moderna. Para se compreender a velocidade das mudanças culturais na sociedade moderna é preciso compreender esta sociedade e suas características próprias e essenciais.

A sociedade capitalista moderna é radicalmente diferente das sociedades que lhe antecedeu. É por isso que muitos sociólogos e outros especialistas opuseram as chamadas “sociedades tradicionais” à chamada “sociedade moderna”, tal como Durkheim, W. W. Rostow, entre outros. A oposição entre tradição e modernidade foi se consolidando e assim surgiram os adeptos da modernidade e os defensores da tradição. A época na qual esta oposição entre tradição e modernidade ficou mais visível foi durante o período no qual se desenvolveu o processo da Revolução Francesa. Os primeiros defensores do tradicionalismo foram os representantes intelectuais e populares do regime feudal, defendendo a moral, a religião, a família. Os chamados “pensadores conservadores”, como Burke, De Maistre, entre outros, foram os seus principais porta-vozes. Do outro lado, os representantes intelectuais e populares da modernidade, do regime capitalista, da burguesia, saíram em defesa da laicidade, da razão, da autonomia do indivíduo. Estas concepções antagônicas são constituídas socialmente e ligadas aos interesses de classes sociais e não produções arbitrárias. Assim, a tradição está sempre ligada à relações sociais determinadas, também tradicionais, de caráter pré-capitalista, ou, como ocorre posteriormente, não-capitalista. Com a emergência e hegemonia do modo de produção capitalista, as relações sociais tradicionais são solapadas e destruídas paulatinamente e junto com ela a cultura que lhe corresponde.

A vitórias das revoluções burguesas não ocorreram na mesma época nos diversos países. A Revolução Burguesa na Rússia só ocorreu no início do século 20 e a brasileira em 1930. Após as revoluções burguesas, ainda permanecem resquícios de relações de produção pré-capitalistas – que acabam sendo totalmente destruídas – e surgem relações de produção não-capitalistas que herdam a cultura tradicional, por ser mais compatível com suas relações sociais e com a herança cultural recebida via família. Estas relações de produção não-capitalistas são a base de relações sociais tradicionais, herdeiras de relações de produção pré-capitalistas.

Esta permanência cultural coloca a discussão sobre as relações entre tradição e modernidade em um contexto diferente. Por isso devemos esclarecer o conceito de tradição. Este conceito também possui diferentes definições, embora não tanto quanto o conceito de cultura. Iremos apresentar a definição que julgamos mais adequada. Este conceito expressa o conjunto de idéias, hábitos, costumes de uma determinada população que é transmitida de uma geração para outra, sendo que seu conteúdo é caracterizado por uma forte ligação com o passado, a afetividade, relações familiares, sendo que em algumas sociedades assumem o caráter de uma convicção, possuindo um forte caráter mobilizador. A tradição é, assim, tanto do ponto de vista da cultura quanto dos costumes, conservadora (o que não quer dizer que o seja necessariamente do ponto de vista político), pois ela visa transmitir e, por conseguinte, conservar, determinados costumes, crenças, idéias, etc.

Nas sociedades pré-capitalistas, as tradições eram mais fortes, generalizadas e resistentes. Na sociedade moderna, elas são cada vez mais fracas, restritas a grupos e menos resistentes. A oposição entre tradicao e modernidade deixou de ter caráter predominantemente temporal (sociedades tradicionais X sociedade moderna) e ganhou um caráter predominantemente espacial (sociedade rural X sociedade urbana). A ascensão do modo de produção capitalista é marcada pelo processo de industrialização e urbanização, tornando a cidade o centro da produção de mercadorias e de cultura. A produção cultural no capitalismo assume um processo homólogo ao da produção de mercadorias: concentração e centralização. A cultura, enquanto o conjunto das producoes intelectuais, continua sendo produto do conjunto da população. No entanto, a produção cultural das classes exploradas e da maioria da população não é mais totalmente espontanea e sim influenciada pelos meios oligopolistas de comunicação (Rádio, TV, Cinema, Jornais, etc.) e pela escola. A população urbana é atingida de forma muito mais abrangente por este processo do que a população rural, embora isto ocorra de forma cada vez mais intensa. A população rural, devido as relações sociais persistentes, embora também perdendo cada vez mais espaço, e menor influência dos meios oligopolistas de comunicação, é mais ligada à tradicao do que a população urbana.

A sociedade moderna corrói, cada vez mais, a tradicao. Nesta sociedade, como já dizia Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”, “tudo que é sagrado, é profanado”. A sociedade capitalista é marcada por uma nova dinâmica do desenvolvimento temporal. Nas sociedades pré-capitalistas e na vida camponesa e rural em geral, temos uma percepcao do desenvolvimento temporal como se este fosse mais lento. Na sociedade capitalista, o desenvolvimento temporal aparece como extremamente acelarado. Esta é uma diferença na percepcao e não na realidade concreta. Esta diferença de percepcao é produzida pelos diferenciados modos de vida. O ritmo de vida extremamente acelerado da sociedade moderna promove uma percepcao de aceleramento do tempo. O relógio é um dos símbolos mais importantes da sociedade moderna, pois o tempo é fundamental para a sociedade capitalista, já que é o tempo que está ligado ao processo de produção de riquezas, é ele que determina o valor da mercadoria. O tempo de trabalho é o que define o quantum de exploração, o trabalho excedente. É por isso que ele é controlado no processo de produção, na fábrica, e é por isso que ele se generaliza a todas as instituições da sociedade moderna (escola, escritórios, etc.) e assim as pessoas não possuem domínio sobre suas atividades e, por conseguinte, sobre o tempo gasto nelas. O dia de descanso, tal como o domingo, parece mais longo.

A tradição acaba sendo uma certa persistência da memória social. Se a população rural valora e reproduz seus costumes, crenças, idéias, etc., a população urbana, moderna, valora a mudança, a velocidade, a transformação. A memória social da população rural está mais ligada ao “tempo lento”, ao ritmo da natureza, às tradições, enquanto que a memória social da população urbana, sob o ritmo do capitalismo, está mais ligada às novidades, às mudanças, à tecnologia. A memória social, assim como a individual, é seletiva e tem como principais determinações em seu processo seletivo os valores, sentimentos, concepções dos indivíduos, bem como a pressão social e a associação de idéias, embora com menos força.

A memória social se distingue da tradição pelo motivo de que ela recupera as lembranças do passado em geral e não apenas aquelas que são herdadas de gerações anteriores. No entanto, existe uma relação entre memória social e tradicao. Esta relação se revela no caso da população rural (ou, em períodos históricos anteriores, no conjunto da população das sociedades chamadas “tradicionais”) cuja memória social é fortemente marcada pela tradição, que veicula valores, sentimentos, etc., presentes e reproduzidas por esta populacao. A memória social da população urbana é marcada por outros valores, sentimentos, etc., tal como a valoração da tecnologia, do novo, do que é sofisticado (e, portanto, inovação), para colocar um exemplo contrário. A base disto está na própria dinâmica do modo de produção capitalista e de sua necessidade de reprodução ampliada do mercado consumidor, que faz com que exista um acelerado desenvolvimento de mercadorias culturais, tecnológicas, etc., e cuja expressão mais conhecida é a moda, substituída sucessivamente e em várias esferas da vida (roupa, produtos eletrônicos, ideologias acadêmicas, cinema, arte, etc.). A partir do pós-segunda guerra mundial isto se aprofundou e depois dos anos 80 a descartabilidade se torna uma características da atual fase do desenvolvimento capitalista.

No entanto, a memória social pode abarcar toda a população de uma determinada sociedade ou classes ou grupos sociais no seu interior. Da mesma forma, a seleção das lembranças no interior dela é diferente em grupos sociais diferentes, embora possa haver elementos comuns na memória social da totalidade da população.

A relação da juventude com a cultura, a tradicao e a memória social é bastante complexa. O conceito de juventude (bem como o construto “adolescência”, de caráter psicologista ou biologista) é expressão de um grupo social que surge na sociedade moderna. A palavra juventude surgiu antes da sociedade moderna, mas com significado bem diferente. Na sociedade capitalista, não apenas o conceito de juventude aparece mas o próprio grupo social que denominamos juventude surge nesta sociedade. Aliás, é exatamente devido ao surgimento deste grupo social que possibilita o surgimento do conceito de juventude, um grupo etário. Nas sociedades simples (“pré-históricas”, “indígenas”) não existe idéia de juventude, pois a criança, depois do rito de passagem, passa imediatamente para o mundo adulto. Nas sociedades de classes pré-capitalistas também não existia um grupo etário intermediário entre as crianças e os adultos. É somente na sociedade capitalista que existe tal grupo etário.

Por qual motivo surge tal grupo etário? Não é, como algumas ideologias (psicologia, biologia, medicina, etc.), devido a faixa etária, a constituição biológica ou qualquer outro motivo de origem natural, seja de caráter biológico, psíquico ou cronológico. Se assim fosse, existiria juventude em todas as sociedades e já observamos sua inexistência em sociedades não-capitalistas. O motivo da existência da juventude na sociedade moderna é social. A juventude é constituída socialmente. A sociedade capitalista produziu, em indivíduos a partir de certa idade (que é variável dependendo da época, classe social, etc.) um conjunto de características comuns que nos permitem considerar um grupo social. Este grupo social é formado por aqueles indivíduos que estão em processo de ressocialização, isto é, estão submetidos a um processo de socialização secundária (a socialização primária ocorre durante a infância) através principalmente da escola, mas também da família, comunidade, meios oligopolistas de comunicação. O objetivo desta ressocialização é preparar o jovem para sua inserção no mercado de trabalho e para as responsabilidades sociais (civis, familiares, etc.). Isto cria um conjunto de características para as pessoas deste grupo etário e estas características comuns são utilizadas pelo mercado capitalista, que passa a produzir um conjunto de mercadorias específicas para tal grupo, criando um mercado consumidor específico.

No entanto, a juventude não é passiva. Embora seja constituída socialmente, e se submeta a este processo social de ressocialização, ela também resiste, através da recusa da escola (dentro ou fora), das ações e organizações juvenis, através da luta política, etc. Também é verdade que o Estado, os meios oligopolistas de comunicação, além das ideologias científicas e mercado capitalista, realizam sua interpretação desta resistência para descaracterizá-la ou utilizá-la em seu proveito. É assim que surge as ideologias da “rebeldia sem causa”, e modismos culturais para o mercado consumidor composto por “rebeldes”, etc. Mas tanto a resistência quanto a contra-resistência se dão num processo social concreto, no qual a hegemonia acaba sendo de quem detém o poder, mas existem brechas e possibilidades no interior desta luta social.

Devido a idade, cronologicamente falando, e a ideologia da juventude enquanto “futuro” e adequada/adaptada ao mundo da novidade, das modas, etc., este grupo etário tende a assumir determinada relação com o mundo da cultura, incluindo a tradicao e a memória. A juventude, ao entrar em confronto com as relações sociais existentes (escola, família), já que elas buscam prepará-la de forma repressiva para relações sociais repressivas, tende a negar as tradições, identificadas com os pais, as autoridades, as instituições existentes. Assim, de acordo com os valores atribuídos e constituídos socialmente pela juventude, a tradição é algo a ser negada, embora exista também aspectos das tradições que ela busca preservar. Isto ocorre devido a dois fatores principais: a) as diferenças no interior da própria juventude e b) o resgate de concepções que servem para as lutas juvenis contemporâneas.

A juventude, enquanto grupo etário, possui vários elementos comuns que a caracteriza, mas também possui várias divisoes no seu interior, oriundas das divisão social do trabalho a nível da sociedade em geral. A divisão de classes sociais é o aspecto mais importante e fundamental nesse processo, atingindo o modo de vida dos jovens, criando diferenças importantes entre os indivíduos deste grupo etário. As diferenças regionais, religiosas, culturais, espaciais, também influenciam e geram especificidades em diversos segmentos da juventude. A juventude camponesa ou rural em geral, tende, pelo seu próprio modo de vida, a ter uma relação com a tradicao que é diferente da juventude operária e burguesa, ambas urbanas e pouco apegadas as tradicoes populares e rurais, embora mantenham uma relação um pouco diferente com as tradicoes das elites, valoradas socialmente.

A juventude, assim como todos os demais grupos sociais, também se inspira no passado e nas tradições e memória social para resgatar aquilo que lhe interessa na atualidade, tal como hoje se vê no interesse de vários grupos juvenis por Rock and Roll, Raul Seixas, contra-cultura, anarquismo, etc.

A memória social da juventude abarca um número de lembranças menor do que a dos adultos, mas, no entanto, resgata e seleciona aquilo que em sua época de criança assume um sentido e significado atual. O que no período da infancia não tinha muito significado mas foi vivenciado, pode ser resgatado e valorado, ou aquilo que foi vivido de uma forma, pode ser resgatado sob outra forma.

A memória social da juventude rural está muito mais ligada às tradicoes populares, sendo, pois, um mundo mais próximo, embora também em renovação e este grupo etário tende a ser um dos mais importantes incentivadores dessa renovação. A memória social da juventude urbana, por sua vez, está mais ligada aos meios oligopolistas de comunicação, ao modismo, à novidade.

Neste sentido, abordar a cultura juvenil pressupõe compreender as diferenças sociais no interior da juventude e a hegemonia exercida pelos meios oligopolistas de comunicação. Na cultura juvenil está presente a cultura geral da sociedade, mas também sua cultura específica e assim se mescla tradição e modernidade, o novo e o velho, o passado, o presente e o futuro. A cultura juvenil é uma subdivisão da cultura de determinada sociedade e uma determinada visão desta. Na cultura juvenil existe uma memória social seletiva, fundada nos valores, sentimentos, etc. da juventude e isto é perpassado por uma divisão, pois se manifesta de forma diferenciada dependendo de qual classe, região, país, religião, etc., este segmento está inserido.

Desta forma, o mais interessante seja discutir a posição da juventude diante da cultura em geral e daí analisar a questão da permanência e da ruptura. Existem duas tendências político-culturais na sociedade moderna que contribuem para pensar a questão da permanência e da ruptura no plano cultural (e não só nele, mas é o que aqui iremos enfatizar). Uma se caracteriza pelo apego ao passado, às tradições, aos sentimentos. Esta é a tendência do romantismo. A outra se caracteriza pela apologia do novo, do futuro, do progreesso. Esta é a tendência iluminista. Estas duas concepções se encontram tanto no mundo da arte e da cultura em geral quanto da ciência, da filosofia e das representações cotidianas.

A visão romântica do mundo pretende congelar o tempo, conservar as tradições, as relações sociais tradicionais, condenam o progresso, o novo, etc. A recusa do novo é uma das características secundárias desta visão. O romantismo é predominantemente conservador, mas possui um potencial crítico, que é quando entra em choque com as ideologias do progresso e as apologias da sociedade capitalista. A visão iluminista, por sua vez, busca superar as tradições, o passado e fazer a apologia do novo, do progresso, da tecnologia, símbolo da inovação. A condenação do “ultrapassado”, do antigo, é uma característica secundária desta visão. O iluminismo é progressista, mas em sua visão de progresso e não possui um grande potencial crítico em relação ao desenvolvimento social contemporaneo, ficando mais ao nivel da apologia.

Estas tendências acabam influenciando a juventude, sendo que esta, em sua maioria, tende a se alinhar com a visão iluminista e apenas alguns de seus segmentos se aproximam do romantismo. Elas também influenciam as concepções científicas, filosóficas, artísticas, etc., na sociedade em geral. No entanto, em uma análise teórica da cultura é preciso superar tanto uma quanto a outra. Uma análise teórica da cultura não é neutra, passiva, e sim engajada em determinada mentalidade e perspectiva. Ela é portadora de valores e sentimentos, mas, no entanto, faz a reflexão, problematização, questionamento dos seus próprios valores e sentimentos, inclusive buscando observar o seu processo de constituição social. Desta forma, uma análise teórica (ao contrário da ideológica) é crítica. Uma análise teórica da cultura (e do romantismo e do iluminismo) busca revelar suas bases sociais, os interesses, valores, sentimentos, por detrás dela. Ao invés de ser marcada pela neutralidade de valores, é caracterizada por apresentar valores explícitos e refletidos, e por descartar determinados valores a partir de sua compreensão. No entanto, isto depende da escala de valores do indivíduo que faz a análise, pois se a verdade for um valor mais importante para ele do que os sentimentos agradáveis de recordações infantis, então a opção poderá ser tomada de forma consciente. O que a análise teórica permite é, ao invés do indivíduo estar submerso no mundo da cultura de forma acrítica, espontânea, como um peixe n’agua,  ele portar uma consciência e capacidade crítica do seu mundo cultural, do qual ele emerge.

Assim, a tradição deve ser observada não como algo “dado”, “estático”, “congelado”, mas algo em constante mudança, convivendo com a permanência. A tradição não pode ser um valor fundamental, pois suas bases sociais são predominantemente conservadoras, embora existam aspectos nelas que são portadoras do novo, da crítica, e de negação da sociedade existente, moderna, capitalista. As relações sociais tradicionais trazem em si alguns elementos desvalorados pela sociedade moderna justamente por entrar em contradição com ela. As formas de solidariedade, a ausência da tendência acumulativa/aquisitiva (e, portanto, consumista) que por vezes são encontradas na população rural é um exemplo. No entanto, também elementos de autoritarismo, conservadorismo, etc., podem ser encontrado no mesmo espaço. Por isso, as tradicoes populares devem ser objeto não de apologia ou recusa total mas sim de resgate dos seus elementos críticos, potencialmente contestadores da sociedade moderna e de crítica de seus elementos conservadores. As tradicoes populares devem ser compreendidas como manifestações da consciência contraditória, tal como colocaram o psicanalista Wilhelm Reich e o pensador político Antonio Gramsci.

A modernidade, com a qual a maior parte da juventude se identifica, por sua vez, faz apologia da sociedade moderna e vê a constante mutação, a inovação permanente, dentro dos quadros restritos do capitalismo. Embora alguns setores da juventude consigam ir além da ideologia moderna e suas manifestações culturais, isto é mais a exceção. O pensamento moderno e sua manifestação nas representações cotidianas também possui contradições, elementos conservadores e contestadores e é preciso saber identificar suas contradicoes e o que pode ser resgatado. Obviamente que isto não pode ser feito nem do ponto de vista do tradicionalismo nem do ponto de vista do modernismo, e sim de um terceiro ponto de vista, que rompa com ambos a partir de uma teoria da sociedade moderna.

A juventude não sendo um todo homogêneo, pode se aliar a uma destas tendências. Pode fazer o culto do passado e das tradições ou do futuro, do progresso e suas ilusões, ou então pode realizar a crítica da sociedade existente e de suas posições e opções, abrindo caminho para o que o filósofo Ernst Bloch denominou “consciência antecipadora”, isto é, a visão do “ainda-não-existente”, a utopia, base valorativa e sentimental para uma efetiva ruptura com o mundo atual e para a “crítica desapiedada do existente” (Marx).

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Resumo: Abstract:
O termo cultura possui inúmeras definições, tal como tradição e memória. Assim, o primeiro ponto a destacar no presente texto é o seu objetivo: esclarecer os conceitos de cultura, tradição e memória e, após isto, relacioná-los com o processo de permanência e ruptura em sua conexão com a juventude. The term culture has many definitions, such as tradition and memory. So the first point to emphasize in this text is its goal: to clarify the concepts of culture, tradition and memory, and after that, relate them to the process of stay and break its connection with youth.
Palavras-chave: Cultura, Tradição, Memória, Juventude, Transformação Key-words: Culture, Tradition, Memory, Youth Transformation
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Artigo originalmente publicado em:
VIANA, Nildo. Cultura, Tradição e Memória: A Juventude entre Permanência e a Ruptura. Rev. da Faculdade Estácio de Sá. Goiânia SESES - GO VOL. 01, Nº 02, 10-19, Set. 2009/Dez. 2009

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