Sala de Aula Virtual e Relações de Poder
Nildo Viana
O desenvolvimento tecnológico, especialmente da Internet, vem propiciando novas formas de Educação à Distância. Sem dúvida, isto não é produzido apenas devido ao desenvolvimento tecnológico, pois existem interesses, incluindo a política neoliberal que visa diminuir os gastos com tudo, inclusive com a política educacional e vê na EAD uma possibilidade de poupança de recursos, mas sem a base tecnológica ela não se realizaria. A EAD baseada no correio tradicional vem sendo substituída pela EAD fundada nos mecanismos da Internet. É neste contexto que surgem as “salas de aula virtuais”, ou, como se preferem chamá-las, “plataformas” e “softwares”. A visão crítica da educação escolar deve abordar esta nova modalidade, que vem sendo dominada pela visão tecnicista e/ou conservadora, e este é o objetivo do presente trabalho, fornecer uma breve contribuição ao estudo da EAD contemporânea em sua expressão virtual a partir de uma perspectiva crítica.
A EAD via Internet vem ocorrendo principalmente através do uso de plataformas e softwares educativos que reproduzem o ambiente escolar presencial através de um ambiente escolar virtual. Além do fato de que tais programas são produzidos geralmente por técnicos em informática e não por educadores (Kenski, 2003), existe o problema mais grave que reside na concepção de educação por detrás desta produção de recursos tecnológicos para EAD. A concepção e valores por detrás da produção destes recursos tecnológicos apontam para a reprodução da educação escolar com todas as suas características voltadas para o controle do saber e não seu desenvolvimento. É por isso que estes recursos tecnológicos (plataformas, softwares) buscam reproduzir fielmente uma sala de aula real. Cria-se, assim, a sala de aula virtual, nas mais variadas versões. Temos, por exemplo, o TelEduc, O WebCT, o E-Saber, entre inúmeras outras. Isto sem falar nas salas virtuais utilizadas por instituições educacionais privadas, que possuem uma qualidade inferior e utilizam mecanismos menos democráticos e mais controladores devido ao objetivo de conseguir lucros acima de qualquer outra coisa (assim, a “avaliação” se limita a questões de “múltiplas escolhas”, um único professor se torna responsável por diversas disciplinas para poupar recursos, entre outros mecanismos que expressam a diferença entre o ensino estatal e privado).
A sala de aula virtual, criada à imagem e semelhança da sala de aula real, reproduz a dinâmica e relações de poder típicas da educação escolar presencial. Se na sala de aula real existe o controle de presença, nas salas virtuais também, através do recurso que permite ao professor (e técnicos) saber o número de conexões, bem como o seu tempo de duração. Estas informações são gravadas e acessíveis aos professores e técnicos. Na sala de aula real, há o controle da participação, na sala de aula virtual também: num caso, temos seminários, perguntas, incentivos, etc., e no outro temos Chat, fórum, etc. Na sala de aula real, temos a avaliação realizada pelo professor, na virtual também... no curso presencial temos a matéria, os textos, no virtual também... Da parte dos alunos, além da “participação controlada” na sala de aula, temos “a vida fora da sala”, na qual os alunos podem conversar sem medo, discordar do professor, ler bibliografia diferente, pesquisar, etc. Na sala virtual, também. No entanto, o “saber discente” (já que se fala tanto em saber docente...) nem sempre chega à sala de aula, tanto virtual quanto real.
Tendo em vista esta rede complexa de relações de poder, quem controla o saber, tanto na sala de aula real quanto na virtual, é o professor. Isto não significa, necessariamente, aprendizagem do aluno. Em muito casos há re-produção de discurso ao invés de assimilação. Muitos re-produzem o discurso docente para obterem “sucesso escolar”, outros re-produzem mecanicamente sem ter domínio e reflexão sobre o discurso e poucos assimilam ou se identificam com o discurso e realiza sua re-produção crítica e reflexiva. A “aprendizagem”, no entanto, somente ocorre neste último caso, pois não é um discurso mecânico, da “boca para fora”, mas um desenvolvimento da consciência. Assim, quem deveria aprender é o aluno, mas aprender deveria significar algo mais que re-produção mecânica e deve significar algo mais do que “aprender qualquer coisa” para ser aprendizagem significativa.
A EAD deve ser avaliada a partir de uma perspectiva crítica da educação escolar, da qual ela é a mais nova versão. A escola presencial é substituída pela escola virtual. No entanto, se a perspectiva crítica da educação escolar vem se desenvolvendo desde o surgimento da escola moderna, o mesmo não vem ocorrendo com sua versão virtual. É por isto que temos hoje certo “consenso” em torno da EAD, pois geralmente quem aborda esta modalidade são aqueles que trabalham com ela e isto promove uma grande parte da produção intelectual sobre ela de caráter apologista e poucos são aqueles que fazem uma reflexão mais aprofundada e mais raro ainda aqueles que fazem uma abordagem crítica, pois grande parte dos que a negam viram as costas para ela e resmungam ou então, por não trabalhar com ela, apenas possuem uma visão geral sem maior aprofundamento na análise.
Um destes elementos que se apresentam como “consenso” reside na idéia de que na EAD “o aluno faz o seu currículo”. Por qual motivo no EAD o aluno “faz o seu currículo”? Eu diria que, partindo da contribuição de autores como Bourdieu e Passeron (1982), Sarup (1980), entre outros, o que temos na escola é o chamado “conhecimento escolar”, que é um “arbitrário cultural” (Bourdieu e Passeron, 1982; Viana, 2002), imposto pelos grupos e classes dominantes aos estudantes. Estas teses apontam para a idéia de que o saber escolar é um saber específico e é imposto ao conjunto dos estudantes. Este saber produz sua própria linguagem, a começar pela expressão “currículo”. Nesta perspectiva, dizer que o “aluno faz seu próprio currículo” significa apenas dizer que ele introjetou o conhecimento escolar e o reproduz. Como diz o sociólogo Durkheim, “toda a educação consiste num esforço contínuo para impor às crianças maneiras de ver, de sentir e de agir às quais elas não chegariam espontaneamente, – observação que salta aos olhos todas as vezes que os fatos são encarados tais como são e tais quais sempre foram. Desde os primeiros anos de vida, são as crianças forçadas a comer, beber, dormir em horas regulares; são constrangidas a terem hábitos higiênicos, a serem calmas e obedientes; mais tarde, obrigamo-las a aprender a pensar nos demais, a respeitar usos e conveniências, forçamo-las ao trabalho, etc., etc. Se, com o tempo, esta coerção deixa de ser sentida, é porque pouco a pouco dá lugar a hábitos, a tendências internas que a tornam inútil, mas que não a substituem senão porque dela derivam” (Durkheim, 1974, p.5).
Alguns argumentam que a “democracia” do ensino virtual se encontra na possibilidade do aluno de passar de um link para outro, ser multifocal, etc. Mas assim como a democracia, que, como já colocava Schumpeter (Viana, 2003), segue o modelo mercantil, a democracia virtual também segue este modelo. A democracia do aluno virtual é idêntica a do consumidor em um supermercado. Ao entrarmos num supermercado temos um mundo de mercadorias para escolher. Passamos pelas prateleiras e escolhemos aquilo que nos agrada e vamos enchendo o nosso carrinho. Porém, esta visão idílica do supermercado parte de um “consumidor abstrato”, supostamente livre, que faria escolhas supostamente livres. Assim se apaga as determinações do fenômeno: o consumidor concreto possui um determinado poder aquisitivo que não lhe permite comprar tudo o que quer, tanto no que se refere à quantidade quanto à qualidade. Enquanto alguns compram bolachas Mabel, outros compram as melhores marcas, mais caras. A disposição das mercadorias no supermercado não é neutra e influencia o consumidor. Perto dos caixas se colocam revistas e balinhas, pois incentiva as crianças a pedirem as balas e os adultos, por estarem esperando em fila, folhearem as revistas. Existe também a atração das promoções, etc. O consumidor livre depois de uma análise minuciosa, já não aparece mais como tão livre. Portanto, retomando a questão do aluno e da Internet, temos que pensar não em um aluno abstrato e sim num aluno concreto, que é portador de um determinado capital cultural, valores, poder aquisitivo, com maior ou menor senso crítico, mais ou menos influenciável, com maior ou menor domínio da tecnologia, etc. A Internet também não é neutra, existem sites com toda uma infra-estrutura e atrativos e existem os que apresentam apenas os recursos básicos. É possível argumentar: ela é democrática, pois existem sites de todas as cores, gostos, temas, posições políticas; inclusive nazistas, liberais, democratas, comunistas, anarquistas, esquerdistas? Tal como num supermercado, que tem todo o tipo de mercadoria... mas que são de formas diferentes, com preços diferentes, com atrativos diferentes, com divulgação diferente, etc. Por exemplo, existem sites anarquistas, mas em sua maioria em provedores gratuitos, com espaço de memória delimitados, que fica fora do ar, que pode sofrer censura... etc. A Internet reproduz a desigualdade social e sua hierarquia. É por isso que a maioria da população está excluída dela. Aqueles que estão presentes na Internet manifestam-se de acordo com sua posição social, reproduzindo no mundo virtual a desigualdade do mundo real.
Isto é reforçado pela reprodução nos ambientes virtuais de educação escolar das mesmas características da sala de aula. O grande desafio não está em reproduzir um ambiente virtual à imagem e semelhança do ambiente real e sim criar um novo ambiente, a partir dos novos recursos tecnológicos existentes e de uma concepção pedagógica e política crítica. É claro que o professor possui alguma margem de liberdade mesmo nestes ambientes, bem como o aluno, mas o ideal seria buscar elaborar uma reflexão crítica sobre a EAD. Isto se torna necessário, pois ela só poderá avançar se colocarmos seus problemas, seus limites, bem como suas possibilidades e potencialidades. A EAD reproduz problemas do ensino presencial e não percepção disto pode ser um obstáculo para seu desenvolvimento. A reflexão crítica sobre a EAD, no entanto, não quer dizer sua simples recusa, mas sim a necessidade de aprofundar a discussão sobre ela e assim perceber as potencialidades que ela traz em si, e buscar desenvolver as possibilidades emancipatórias ao invés das reprodutoras da sociedade atual. Isto inclui o repensar das tecnologias utilizadas e a busca de novas ferramentas que ao invés de criar salas de aulas virtuais com suas características centralizadoras e verticais estariam voltadas para a auto-educação e criando um ambiente fundado em características descentralizadoras e horizontais. Assim como a EAD traz em si a reprodução dos aspectos impositivos e conservadores do ensino presencial, também traz consigo as contradições e possibilidades de mudanças, aproveitamento de brechas e realização de ações transformadoras no seu interior. Além disso, ela possui diferenças que podem ser trabalhadas no sentido emancipador e a criação tecnológica alternativa pode ser um passo fundamental para uma educação à distância libertária.
Referências Bibliográficas
BOURDIEU, Pierre e PASSERON, J-C. A Reprodução. Elementos para uma Teoria do Sistema de Ensino. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982.
DURKHEIM, Emile. As Regras do Método Sociológico. 6ª edição, São Paulo, Nacional, 1974.
KENSKI, V. M. Tecnologias e Ensino Presencial e a Distância. 2ª edição, São Paulo, Papirus, 2003.
SARUP, M. Marxismo e Educação. Rio de Janeiro, Zahar, 1980.
VIANA, Nildo. Escola e Violência. In: VIANA, Nildo e VIEIRA, Renato (orgs.). Educação, Cultura e Sociedade. Goiânia, Edições Germinal, 2002.
VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Sala de Aula Virtual e Relações de Poder. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico, Maringá/PR, v. 4, n. 41, 2004.
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