O Reformismo de Gramsci
(Notas Sobre Gramsci, 06)
Nildo Viana
A obra de Gramsci possui várias interpretações e a cada uma delas temos uma determinada apropriação de sua obra, direcionando-a para as concepções de quem faz a apropriação. Assim, temos Gramsci revolucionário, leninista, social-democrata, idealista, materialista, etc. A posição política de Gramsci é, no fundo, ofuscada por este conjunto de interpretações/apropriações. Somando a isso o caráter fragmentário e contraditório de suas colocações, há uma dificuldade de identificar qual é sua verdadeira posição política. Porém, saindo do pântano das interpretações e uma leitura rigorosa de sua obra, apesar de seu caráter fragmentário, é possível reconstituir a posição política de Gramsci. É o que buscamos fazer aqui.
A questão fundamental que perpassa a obra de Gramsci é a conquista da hegemonia pelo Partido-Príncipe, o partido maquiavélico-gramsciano. A hegemonia é a direção moral e intelectual e ela pertence à classe dominante, a burguesia. A missão do partido maquiavélico-gramsciano é realizar uma reforma intelectual e moral visando conquistar a hegemonia e produzir um novo Estado. Assim, é preciso ultrapassar a fase econômico-corporativa (sindical), chegando à fase da hegemonia na sociedade civil e, finalmente, a fase estatal (Gramsci, 1987). Apesar de algumas alterações nesta abordagem geral, essa é a estratégia gramsciana.
Porém, esta estratégia tem uma variação, que se revela na diferença entre oriente e ocidente. Para o oriente, a estratégia de conquista do poder estatal é diferente, é a guerra de movimento, tal como efetivada por Lênin. No caso do ocidente, se aplica a guerra de posição, na qual o partido maquiavélico-gramsciano vai cercando o Estado (sociedade política) através da sociedade civil e conquistando a hegemonia, para depois se apoderar do aparato estatal (Gramsci, 1988).
Aqui reside a chave para a compreensão da concepção política de Gramsci, o reformismo. Segundo Perry Anderson:
“No caso de Gramsci, as inadequações da fórmula da ‘guerra de posição’ tinham uma clara relação com as ambigüidades de sua análise do poder de classe da burguesia. Gramsci, como vimos, igualava a ‘guerra de posição’ à ‘hegemonia civil’. Assim, exatamente como a sua utilização da hegemonia tendia a implicar sobre a cultura e o consentimento, a ideia de uma guerra de posição tendia a implicar que o trabalho revolucionário de um sentido marxista era essencialmente o da conversão ideológica da classe operária – daí a sua identificação com a frente única, cujo objetivo era ganhar a maioria do proletariado ocidental para a Terceira Internacional. Nos dois casos, o papel da coerção – repressão da parte do Estado burguês e da insurreição da parte da classe operária – tendem a desaparecer. A fraqueza da estratégia de Gramsci é simétrica à de sua sociologia” (Anderson, 1986, p. 72).
Deixando de lado os equívocos costumeiros de Perry Anderson (expresso, neste caso, seu leninismo insurrecionalista), ele acerta ao colocar que, para Gramsci, a revolução não está presente em sua concepção (não se trata de insurreição, a proposta de Lênin, e sim de revolução, a proposta de Marx e Gramsci não propõe nenhuma das duas coisas).
Porém, Gramsci teve um antecessor bastante ilustre: nada mais nada menos que Karl Kautsky, o maior ideólogo da social-democracia da primeira metade do século 20. Segundo Perry Anderson, este havia proposto a “estratégia do esgotamento”, palavra retirada da doutrina militar de Delbrück, em oposição à “estratégia da derrocada”, que seriam termos equivalentes à “guerra de posição” e “guerra de movimento”. Anderson complementa colocando o contexto do debate com Rosa Luxemburgo no qual Kautsky utiliza e justifica tal concepção de guerra de esgotamento:
“Foi Kautsky quem deu o próximo passo no sentido de introduzir os conceitos militares de Delbrück – sem precisar suas fontes – em um debate político sobre as perspectivas estratégicas da luta proletária contra o capitalismo. O momento mesmo de sua intervenção foi muito importante. Pois foi no sentido de refutar a exigência de Rosa Luxemburgo para a adoção de greves militantes de massa, durante a campanha do SPD pela democratização do sistema eleitoral neofeudal prussiano, que Kautsky contrapôs a necessidade de uma ‘guerra de esgotamento’ mais prudente pelo proletariado alemão contra o seu inimigo de classe, sem incorrer nos riscos inerentes às greves de massa. A introdução da teoria das duas estratégias – de esgotamento e de derrocada – foi assim o que cristalizou as razões da cisão decisiva no seio do marxismo ortodoxo na Alemanha antes da Primeira Guerra Mundial” (Anderson, 1986, p. 89).
Anderson acrescenta que isto não é apenas semelhança formal, pois Kautsky também justifica sua posição através de uma diferença regional, equivalente a de Gramsci sobre oriente e ocidente, e pensava que, por estar na Europa ocidental, a sua estratégia seria conquistar a maioria no parlamento através de uma série de campanhas eleitorais, o que não poderia ocorrer na Rússia Czarista por não haver regime democrático. O debate chegou até a Rússia e Lênin, um kautskista, tomou partido da posição de Kautsky.
Em síntese, apesar de algumas imprecisões e contradições aparentes, Gramsci concebe uma concepção política essencialmente reformista, o que é reforçado por suas considerações sobre eleições, governo, direito, ou seja, em nenhum momento se coloca a questão da ruptura revolucionária e em todo o momento o que se vê são considerações sobre organizações, ações, práticas, voltadas para a sociedade capitalista, para a conquista da hegemonia, sem ruptura. Assim, apesar das interpretações que buscam unir o “jovem Gramsci” e o “Gramsci da maturidade” para lhe dar maior radicalidade e um caráter revolucionário (inclusive se esquecendo que o “jovem Gramsci” não era tão revolucionário assim) para sua obra, o que é uma deformação muito mais do que uma interpretação correta, o maquiavélico pensador italiano era um reformista.
Referências:
ANDERSON, Perry. As Antinomias de Gramsci. In: ANDERSON, Perry. A Estratégia Revolucionária na Atualidade. São Paulo, Joruês, 1986.
GRAMSCI, Antonio. A Concepção Dialética da História. 6ª edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988.
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, A Política e o Estado Moderno. 6ª edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988.
Se lhe entendi bem, seu argumento é que Gramsci é reformista e com semelhanças com kautskismo.
ResponderExcluirPois bem, e o apoio de Gramsci à Revolução Russa? E ao leninismo? Sim, não para a Europa, para a Rússia atrasada. Nesse caso, ele é reformista na Europa e revolucionário na Rússia?
O que seria, então, a revolução para Marx, se é diferente do que propõe Gramsci e também Lênin?
Prezado anônimo,
ResponderExcluirSim, o argument é esse mesmo. Gramsci é reformista e com posições semelhantes a de Kautsky.
O apoio de Gramsci ao bolchevismo e ao golpe de estado leninista não faz dele um revolucionário, pois o que distingue um reformista de um revolucionário são suas concepções políticas e sua estratégia. Um reformista pode, muito bem, apoiar o leninismo e a suposta "revolução bolchevique". Isso não altera nada, inclusive a evolução de diversas posições ditas "leninistas" para o reformismo é algo relativamente comum. A distinção entre ocidente e oriente é o que justifica adotar uma posição reformista e manter apoio a uma outra concepção e estratégia, o que é uma forma de conseguir apoio para ter a "hegemomia". Assim, pode-se dizer que ele é reformista e justifica uma estratégia reformista na Europa e uma estratégia supostamente revolucionária na Rússia, sendo que a posição dele é a primeira, a segunda é apenas uma exceção devido ao atraso do oriente.
A revolução para Marx é social, ou seja, a transformação do conjunto das relações de produção e das relações sociais em sua totalidade e não apenas uma "revolução política", tomada do poder estatal, que é a concepção leninista. Marx propõe a Autoemancipação do proletariado e transformação radical da totalidade das relações sociais, produzindo a "livre associação dos produtores", a autogestão, enquanto que Lênin e Gramsci pensa na conquista do poder estatal, um pensando numa via insurrecional e outro pensando numa via reformista, através da reforma intelectual e moral que gera a hegemonia e a conquista do poder estatal. Marx é bem diferente de ambos.
Mas professor. O que o sr. Chama de Reforma?
ResponderExcluirTalvez não tanto quanto Rosa Luxemburgo, Gramsci não via com bons olhos o reformismo da social-democracia. Se não me falha a memória o próprio Gramsci critica esse oportunismo social-democrata no Cadernos do Cárcere.
Prezado "Brasileiro",
ResponderExcluirNa discussão política, os termos assumem distintos significados. A idéia de reforma significa a não alteração da essência de algo, muda a forma, não o conteúdo. No sentido político, reforma é o que não aponta para a transformação total das relações sociais e sim mudança de forma, e o reformismo postula reformas graduais para chegar ao socialismo, numa posição que pensa ser possível a transformação por partes, enquanto que a concepção revolucionária (e marxista) é a de que a transformação é total e simultânea. A primeira gera um capitalismo reformado a partir de mudanças pontuais e o segundo gera a revolução social, total e simultânea.
Apesar de discordar da análise - Gramsci é um Marxista Revolucionário autêntico - concordo que Gramsci tenha limitações. Como ex-gramsciano que se tornou um comunista de esquerda nunca abandonei minha heterodoxia, por isso critico a postura de postular todos os teóricos de outras correntes como pseudomarxista, não tenho medo de aceitar as contribuições de autores de qualquer tendência, de qualquer fonte, marxista ou não. E Gramsci possui muitas contribuições e muitas limitações.
ResponderExcluirCritico sua noção de que o Estado proletário seja uma coisa que necessite ser fundada, para Marx ditadura do proletário é somente a própria revolução, sem mais nem menos. Crítico a noção de que o partido deva dirigir o movimento dos trabalhadores. Como defende Pannekoek e Rosa Luxemburgo o partido deve antes de tudo defender o projeto comunista na classe, deve promover a luta de classes, restringir-se a luta "espiritual" (nas palkavras de Pannekoek), mas o movimento dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores, deve permanecer autonomo em relação aos partidos e movimentos que disputam seus projetos e posições no interior da classe. Como Gramsci não expressa claramente sua visão sobre a sociedade comunista prezumo que seja idêntica a de Lênin, um verdadeiro capitalismo de Estado. Aqui nos diostanciamos novamente. Mas Gramsci nos traz grandes contribuições.
Gramsci mostra-nos que o sindicato limita a consciencia de classe limitando-se a luta das categorias por melhores salários, é um verdadeiro aparelho ideológico burguês. Que o partido operário é um partido que distingue-se dos partidos burgueses não apenas pelos fins a atingitr, mas pela forma e pelo conteúdo. Gramsci ensina que não há revolução sem um processo de autoconsciencia da classe, sem enfrentamento de todas as ideias, normas e padrões culturais e simbólicos produzidos pela burguesia. Neste sentido, antes da revolução é necessário não apenas lutar economicamente e políticamente contra a burguesia, mas contra a cultura burguesa e seus efeitos sobre a classe. A revolução é um momento de luta contra estética, contra os valores e padrões dominantes e que constrói um novo homem, uma nova cultura, uma nova artes, novos valores sexualidade etc. Aquie está sua grande contribuição. o proletáriado não luta apenas contra a Estrutura capitalista, mas também, contra sua superestrutura, não apenas por uma nova Estrutura Socialista, mas por uma nova superestrutura socialista. Parte dela nasce naturalmente na transição econômica, mas a outra deselvolve-se como projeto da classe.
Gabriel, você confunde as coisas... em primeiro lugar, eu nunca afirmei em lugar algum que existe algo como "estado proletário"... de onde tirou isso? Quanto ao partido, quem foi que defendeu partido aqui?? Não leu o texto e não conhece minhas posições? Pannekoek só defendeu partido na primeira época de seu pensamento, de forma crítica, mas quando se tornou comunista de conselhos recusou totalmente a ideia de formar partido e afirmou que eles são contrarrevolucionários... A suposta contribuição de Gramsci já tinha sido feita em parte por Marx e depois por diversos outros, inclusive depois de Gramsci e sem conhecer sua obra. Além disso, eu não escrevi em lugar algum que "nada do que disse Gramsci presta"... não coloco isso nem em relação a alguns ideólogos burgueses e para quem lê meus textos sabe que até trabalho com algumas ideias de Gramsci, o que não me impede de criticá-lo e analisar sua relação com o marxismo, justamente por ele não ser um marxista e sim um pseudomarxista. Quanto ao considerar os ideólogos como pseudomarxistas (de "outras correntes"), você não entendeu por ter uma concepção dogmática de marxismo, que parecer ser fidelidade ao pensamento de Marx... A minha definição e concepção de marxismo é extraída de Karl Korsch: expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado, ou seja, se um pensador expressa tal perspectiva (que já está em Marx, e daí o nome remeter a ele, mas não por idolatria a este indivíduo) é marxista, se não expressa, não é marxista. Se ele defende capitalismo de Estado como vc mesmo colocou, então obviamente não é marxista.
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ResponderExcluirMuito bom para nosso dia a dia.
ResponderExcluirGrato!!!
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