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domingo, 28 de fevereiro de 2021

BOLSONARO E A ARTE DE GOVERNAR

 



BOLSONARO E A ARTE DE GOVERNAR

 

Nildo Viana*

 

Governar é uma arte. Desde Maquiavel já deveríamos saber disso. E disso os governantes deveriam saber muito mais. Contudo, ainda não criaram cursos de maquiavelismo nas universidades brasileiras e parece que há, em terras brasileiras, uma total incompreensão do que significa governar. No Brasil, país no qual o bobo da corte foi coroado rei, parte dos súditos esbravejam esquecendo que eles também são responsáveis por essa situação. Vamos efetivar uma breve análise do governo Bolsonaro e sua relação com a arte de governar a partir da percepção de suas ações em dois anos de governo.

A arte de governar pressupõe governantes com sabedoria, pelo menos nessa área. Um governante sábio nessa área, quando é um ignorante nas outras áreas, se cerca de pessoas sábias. Quando um governante é ignorante na arte de governar, se cerca de pessoas como ele. O caos é o resultado mais provável. O Governo Bolsonaro é um governo que tem como base social os setores mais conservadores da sociedade. A concepção política que melhor descreve os adeptos desse governo é o conservantismo[1]. E o conservantismo é bastante pobre intelectualmente e, no Brasil, é paupérrimo. Isso não impede que alguns insights surjam no seu interior, especialmente para identificar problemas no inimigo. O Presidente Bolsonaro podia ter sido sábio e se cercado de pessoas com competência técnica para governar, mas isso não seria possível, mesmo se ele quisesse, pois não tinha quadros intelectuais para tal[2]. Os intelectuais conservantistas são poucos e débeis. Aliás, uma das bases sociais do governo Bolsonaro são os intelectuais fracassados, que mesmo tendo conseguido uma formação ritual (diplomas) não tiveram a mínima formação estrutural (real, ou seja, algum domínio da especialidade para a qual se formaram). Assim, não seria possível criar um quadro técnico e administrativo competente com intelectuais fracassados. Esses intelectuais fracassados são, além de tudo, ressentidos. Eles são ressentidos por não terem conseguido se inserir nas universidades, especialmente na era dos governos petistas. Assim, a união de despreparo com ressentimento produz falta de clareza, terreno propício para o desenvolvimento de ideias mirabolantes.

A arte de governar pressupõe uma equipe de governo que tenha domínio dela. Ora, como já colocamos, os intelectuais fracassados em torno do Governo Bolsonaro não fornecem um quadro técnico-administrativo competente para realizar um governo razoável. Bolsonaro tentou, no início, atrair alguns que são considerados melhores e que poderiam lhe dar suporte, como Sérgio Moro e Paulo Guedes. Não são dois grandes “representantes da sabedoria”, mas, tendo em vista o resto do grupo, eram realmente os mais “preparados”. Talvez seja possível encontrar mais um ou outro nos escalões inferiores. No entanto, a burocracia governamental era, no conjunto, extremamente despreparada[3]. O governo não conseguiu segurar Sérgio Moro por muito tempo e Paulo Guedes, que foi chamado pelo governo não por sua competência e sim por sua proximidade com Bolsonaro –  unindo interesses pessoais de um e interesses pessoais-eleitorais de outro – e por ser um neoliberal convicto, o que o então candidato a presidente precisava para diminuir a sua rejeição em setores da burguesia à sua candidatura. Paulo Guedes, porém, não só é fraco para ser um Ministro da Economia, como ainda não tem força interna para conseguir efetivar suas medidas neoliberais e por isso foi perdendo espaço com o passar do tempo e já está se transformando numa figura decorativa do governo.

Resta o próprio Jair Bolsonaro. É um indivíduo mediano, influenciado pelo conservantismo, mas que não renuncia ao oportunismo para permanecer no governo, e que é um político de pouco preparo para o poder executivo. Além de não ser circunspecto, uma característica que deve ter todo governante[4], demonstra não saber a arte de governar e não ter competência técnica em nenhum domínio. O seu jeito espalhafatoso, a sua falta de formação intelectual, o seu apego ao conservantismo, entre outras características, o faz ser possivelmente o mais despreparado presidente que o Brasil já teve. Existiram outros, mas pelo menos a equipe de governo “salvava o dia” ou pelo menos “diminuíam o desastre”. O novo presidente é movido pela certeza dos ignorantes e esta é extremamente prejudicial por ser uma força mobilizadora mais influente do que a convicção racional e, ao mesmo tempo, mais distante da realidade. O caso da posição do governo diante da pandemia do coronavírus mostra bem isso.

Assim, a conclusão final e óbvia é a de que o Governo Bolsonaro não domina a arte de governar. Eis a grande conclusão da qual a maioria não consegue ultrapassar. Basta a frase “mesmo assim ele governa” para ver que há algo mais profundo a ser discutido. Não sabe governar, mas continua governando. E aí onde podemos avançar na reflexão sobre o governo Bolsonaro. A questão fundamental é: como um governo incompetente, que não domina os elementos básicos da arte de governar, e que não tem partido forte e estruturado e bases sociais sólidas e organizadas (especialmente se notarmos que grande parte dos apoiadores iniciais já abandonou o barco furado), continua governando?

A resposta para isto remete para questões mais amplas, como, por exemplo, a função do governo e os interesses que dominam a sociedade, bem como a força da oposição e as alternativas existentes, além do contexto histórico e social. A função do governo, na sociedade moderna, é reproduzir as relações de produção capitalistas e os interesses da classe capitalista. Esse é o interesse da classe dominante, que domina não apenas no âmbito econômico, mas também no cultural e político. Sem a vontade da classe dominante, dificilmente um governo cai. E, para a classe dominante entrar numa aventura de trocar o governo antes do fim do mandato, é preciso que a situação esteja insuportável ou que a pressão popular esteja muito ameaçadora, além da necessidade de ter alternativa para colocar no seu lugar e manter a ordem.

O governo Bolsonaro cumpre, de forma medíocre e com pouca competência, a sua função. Ele tem alguns setores da burguesia que se opõem a ele, mas outros setores estão omissos e alguns apoiam. A situação, para o capital, não é boa, mas ainda não chegou a ser insuportável e o governo vem tomando medidas para lhe agradar (tais como as reformas retrógradas, que começaram com o Governo Dilma e se ampliaram com o Governo Temer e tiveram continuidade relativa no atual governo). É melhor deixar como está do que entrar numa aventura que poderá gerar algo indesejável. Assim, a situação não é insuportável, não existe pressão popular contra o governo (existem os oposicionistas barulhentos, mas sem maior força de mobilização e apoio popular, e os apoiadores fanáticos, o que equilibra a balança). Além disso, não há nenhuma alternativa no horizonte. Uma alternativa, nesse caso, seria uma figura popular e representante dos interesses do capital. Lula não aparece como opção depois dos problemas que culminaram como o impeachment do governo Dilma, sem falar no medo de “revanchismo” por parte de alguns setores. Ciro Gomes não faz profissão de fé neoliberal, que é o que ainda domina a cabeça da maior parte da burguesia, bem como não existem outros nomes de peso. É mais fácil seguir uma rota tranquila, tal como se viu nas últimas eleições, no qual a polarização diminuiu e os indesejados (progressistas e conservantistas) não foram os que tiveram mais votos, abrindo assim a possibilidade para ser criar uma alternativa até as próximas eleições presidenciais.

Os diversos governos podem exercer sua função com  maior ou menor competência, com bons resultados ou resultados medíocres. O elemento fundamental é conseguir efetivar sua função. Se isso é feito com pouca competência e resultados medíocres, pode ser trocado. Porém, para ser trocado é preciso ter uma oposição ou um setor dela que tenha condições de substituir e fazer o que o atual governo não faz. Isso está em falta no mercado político brasileiro. Não existem, atualmente, políticos ou partidos que consigam fazer uma oposição adequada e eficaz, ou convencer de que seria muito melhor.

A última possibilidade seria uma pressão popular que amedrontasse a classe dominante e a fizesse bradar contra o governo e a favor do impeachment ou outra atitude que resultasse no fim desse governo. Isso é um tanto quanto difícil, pois, por um lado, as condições nas quais Bolsonaro foi eleito estão inalteradas e, por outro, a oposição se mostra incompetente na “arte da emulação”. A polarização entre antiprogressistas (especialmente antipetistas) e progressistas (petistas e aliados e outros setores não tão aliados assim) continua, bem como a polarização moral. A divisão da sociedade nesses dois lados continua, embora rachaduras ocorram em ambos os lados e os extremos perderam força, tal como se vê na última eleição. As condições econômicas não melhoraram, mas a pandemia gerou um bom pretexto (e realmente provocou efeitos negativos, inclusive a nível mundial) para justificar isso. As demais condições, com a baixa politização da população, continuam as mesmas.

O que poderia gerar uma pressão popular seria uma alteração nas condições, com a situação econômica piorando muito, e/ou um movimento oposicionista que conseguisse convencer setores chave da sociedade e a maioria da população da necessidade de mudança de governo. Porém, inexiste tal movimento oposicionista. Os setores conservadores da sociedade, outros representantes da burguesia, não têm força, ânimo e nem interesse em um confronto com o governo, com poucas exceções. Os setores progressistas, vinculados majoritariamente aos interesses da burocracia e da intelectualidade, estão na mesma situação de um caçador que se encontra num “mato sem cachorro”. Uma parte deles faz o jogo do governo. Se é realmente um jogo, o que seria até inteligente, ou apenas disparates conservantistas, não é o mais importante. O que importa é que o efeito de entrar nas polêmicas promovidas pela burocracia governamental é reforçar as bases de apoio do governo. Isso pode ser visto na insistência dos progressistas na polarização moralista. A disputa entre moralismo conservador, em sua versão conservantista, e moralismo progressista, em sua versão subjetivista, acaba envolvendo a oposição e esta, com sua incompetência, não percebeu que tal polarização lhe foi útil, mas agora lhe é prejudicial. A única estratégia inteligente seria o abandono do moralismo progressista subjetivista[5]. Mas, visando a agradar uma parte do seu público, tais como alguns setores de ativistas dos movimentos sociais e outros setores da sociedade, mantém o discurso no mesmo sentido, reforçando a polarização, que, por sua vez, reforça o governo ao manter outros setores da sociedade apegados a ele para salvá-los das peripécias do moralismo subjetivista.

Alguns até tentam apelar para a “arte da emulação”, mas não sabem onde o galo canta. Daí a tentativa de manter o discurso do “fascismo do Governo Bolsonaro” e gerar um suposto “antifascismo”, que rende emocionadas frases nas redes sociais virtuais e nada mais. A maioria da população não sabe o que é o fascismo – e nem se importa com isso – e assim a “frente antifascista” converte apenas os já convertidos. Seria preciso entender melhor a arte da emulação para saber que “frente antifascista” só funciona como pólo aglutinador em situações bem específicas, bem como, no contexto brasileiro atual, só consegue reforçar a hegemonia petista no interior do bloco progressista. Isso gera um resultado fraco para os petistas e um enfraquecimento geral do bloco progressista, tal como se vê nos resultados das últimas eleições[6]. A falta de compreensão da realidade contemporânea e brasileira ao lado da falta de leitura, reflexão, criatividade e de quadros intelectuais dedicados e preparados nos partidos e organizações, aponta para a incapacidade de fazer frente ao inimigo. Inclusive, em alguns, falta até clareza dos objetivos e, por conseguinte, dos meios necessários para tal. O objetivo aparentemente comum é ser contra o Governo Bolsonaro, mas há uma disputa interna pela hegemonia e o mais forte concorrente é a pior opção, bem como os seus concorrentes imitadores não são grande alternativa. O bloco progressista brasileiro está órfão de líderes, organizações e ideias. Só restou o eleitoralismo pobre de uns e o ativismo virtual ineficaz de outros.

Não há luz no fim do túnel? O bloco dominante não se move contra Bolsonaro e não tem interesses para fazer isso, a não ser alguns setores. Para estes, um impulso só poderia surgir se viesse dos Estados Unidos com seu novo presidente, o que é pouco provável, já que este parece ser um pouco mais competente do que o que temos aqui e não vai gerar problemas desnecessários. O mais provável são algumas alfinetadas discursivas e uma ou outra ação pontual. O bloco progressista não só “perdeu o bonde da história”, como também “o caminho para casa”, ou seja, não só se desligou da história a longo prazo ao cair no encanto de modismos e eleitoralismos, como nem sabe mais voltar para sua própria moradia, perdendo sua “identidade”, para usar termo da moda. O bloco progressista brasileiro é cada vez menos progressista e cada vez mais americanizado[7]. O bloco revolucionário, que teve seu grande momento em 2013, foi pulverizado e grande parte pegou carona na carroça errante do bloco progressista e agora vive a seu reboque. O que restou de posição realmente revolucionária e sem ambiguidades são pequenos núcleos. Estes são fortes intelectualmente, mas sem grande força de mobilização na atual conjuntura. Para que reconquiste o espaço perdido novamente seria necessário a superação de ambiguidades de diversos setores do bloco revolucionário, aumentando sua força quantitativa, e um ressurgimento das lutas dos trabalhadores, que por vezes parece se esboçar, mas que não se efetivou ainda e pandemia do coronavírus tende a represar por algum tempo.

Diante desse quadro nada positivo, ainda temos a renúncia dos intelectuais. Uns renunciaram ao seu significado, muito anunciado e pouco praticado, de senso crítico da sociedade, outros abandonaram o seu disfarce da “neutralidade”. O abandono do senso crítico significa o afastamento da reflexão sobre a sociedade, a política, a cultura, indo além das representações cotidianas, das posições político-partidárias, dos modismos, dos interesses imediatos. Hipoteticamente, caberia aos intelectuais, por sua profissão e formação, serem os responsáveis por uma reflexão mais ampla e fidedigna da realidade, deixando suas paixões e interesses imediatos de lado ao pensar a sociedade brasileira e seus dilemas. Por outro lado, o abandono do discurso da “neutralidade” acaba comprometendo as produções intelectuais, pois elas se transformaram, cada vez mais, em depoimentos apaixonados (e recheados de equívocos e falta de senso de realidade) contra o governo, sem buscar compreendê-lo mais profundamente e o contexto social mais amplo. O discurso de políticos, partidos e ativistas é uma coisa, pois seu objetivo é convencer e mobilizar. Quando os intelectuais apenas reproduzem isso, desarmam esses mesmos políticos, partidos e ativistas, pois os deixam acreditar em suas ilusões e fantasias, que, por mais mobilizadores que sejam, são ineficazes. Os intelectuais que aderem apaixonadamente a uma posição política e passa a servir apenas à mobilização, deixando de lado a reflexão, o senso crítico, a eficácia e os objetivos, não ajuda a realizar a superação da situação indesejada, apenas reforçam a caminhada do rebanho rumo ao abismo.

Por fim, podemos dizer que os dois anos do Governo Bolsonaro mostraram a situação dramática da sociedade brasileira, que convive com os dilemas gerais contemporâneos da sociedade burguesa e, ao mesmo tempo, se afunda num reino de ignorância de todos os lados e que assume as mais variadas formas. A situação do Brasil é a mesma do resto do mundo, embora existam especificidades e graus diferenciados. Vivemos em um mundo em que a luz do sol se apagou, mas a vida continua, não se sabe como. A escuridão gera errantes que não sabem onde estão e para onde vão. Assim, é possível a explosão de revoltas que poderão tanto gerar uma nova sociedade, especialmente se a partir delas se abra espaço para um desenvolvimento da consciência, ou uma nova selvageria, com ditaduras e extermínios em massa. A responsabilidade individual se manifesta nesse momento: vamos arriscar o futuro da humanidade em favor de interesses pessoais e imediatistas, ou então a favor de crenças, fantasias e ilusões, ou, ainda, pelo individualismo, hedonismo e egoísmo, ou então vamos pensar mais globalmente e de forma humanista apontar para entender o problema e buscar resolvê-lo? O governo Bolsonaro é apenas um sintoma. É preciso ir além do sintoma – e entender que podemos ser parte dele – para curar a doença. Anular o sintoma não significa derrotar a doença. O desafio político atual posto pelo Governo Bolsonaro é entender de qual doença ele é sintoma e assim combatê-la e evitar novos sintomas e agravamento da doença. A luz no fim do túnel só existirá se a maioria da população reavaliar a recusa da razão e da teoria e retornarmos ao processo de reflexão crítica, pois a ignorância subjetivista, seja ela progressista ou conservantista, apenas nos aproxima do abismo.

 



* Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás.

[1] A base social do conservantismo, na sociedade brasileira atual, é formada por setores religiosos mais conservadores, setores da burguesia nacional, intelectuais fracassados querendo espaço ou revanche, moralistas conservadores. O conservantismo é uma das formas de manifestação do conservadorismo, um fenômeno bem mais amplo e geral na sociedade moderna. Sobre governo Bolsonaro e o conservantismo, cf. https://informecritica.blogspot.com/2019/05/para-aonde-vai-o-governo-bolsonaro.html

[2] A única alternativa seria importar quadros de outros partidos e setores da sociedade, tal como os governos petistas fizeram, mas o estreito horizonte do conservantismo dificulta isso no caso do governo Bolsonaro.

[3] Tanto que os primeiros meses de governo foram marcados por ações retificadas, uma parte por ser inconstitucional, o que não deixa de ser risível. Outro exemplo disso foram as trocas de ministérios rápidas e ministros e outros membros da equipe com currículos falsos, o que não deixa de ser burlesco.

[4] E isso é mais embaraçoso no plano das relações internacionais, tal como se viu em várias oportunidades, com o presidente ou sua equipe (inclusive filhos e ministros) gerando problemas com vários países.

[6] A derrota do progressismo nas últimas eleições só não foi percebida por alguns intelectuais bitolados, que fizeram muitos malabarismos discursivos, tal como incluir o PSDB na “esquerda”. Não reconhecer a derrota é o melhor caminho para continuar perdendo.


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