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segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Onde Darwin Errou? Documentário de Nildo Viana

 Assista abaixo o documentário "Onde Darwin Errou?", de Nildo Viana:



Documentário "Onde Darwin Errou?", de Nildo Viana. Ficha Técnica: Título: Onde Darwin Errou? Direção: Nildo Viana Duração: 1:15:08 Ano produção: 2020 Estreia: 27 de dezembro de 2020 Produtora: Edições Redelp/Nildo Viana Gênero: Documentário País de Origem: Brasil Sinopse: Darwin é considerado o fundador da “teoria da evolução”, e é tido por muitos como um cientista que mudou o mundo. Para alguns, ele é praticamente “inquestionável” e é idolatrado por muitos. No entanto, a verdadeira história de Darwin e do darwinismo foi ocultada, com raras exceções. O documentário mostra Darwin como ele realmente é, bem como os problemas contidos em suas ideias, perpassadas por racismo, sexismo e etnismo, e intimamente vinculadas aos interesses da classe capitalista. Da mesma forma, mostra os limites e problemas do darwinismo e sua herança posterior. Em síntese, o documentário aponta para uma síntese de diversas críticas ao darwinismo e diversos outros elementos relacionados. Uma produção de Nildo Viana (http://nildoviana.com) e Edições Redelp (http://edicoesredelp.net). Visite o canal da Edições Redelp: https://www.youtube.com/channel/UCW4NQqy73G3-QfNwu4NwpMg 

domingo, 20 de dezembro de 2020

Onde Darwin Errou? Trailer do documentário

Onde Darwin Errou?

Um documentário de Nildo Viana:




Em breve estará disponível no youtube.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

VIOLÊNCIA E TRABALHO - A inspeção do trabalho e a violência nas relações de trabalho

 

       Explosão em fábrica na China deixa mortos e dezenas de feridos


A inspeção do trabalho e a violência nas relações de trabalho

 

NILDO VIANA

 

 

Pretendemos, no presente artigo, discutir a questão da violência nas relações de trabalho e sua relação com a legislação e, especialmente, com a inspeção do trabalho. O nosso objetivo fundamental é analisar o processo de violência no trabalho e a luta dos trabalhadores por sua abolição tanto na esfera da legislação, ou seja, na criação de leis específicas visando a coibi-la, quanto na esfera da busca de sua aplicação efetiva, isto é, da inspeção do trabalho, enfatizando os obstáculos para sua concretização.

 

O trabalho como forma de violência

 

O trabalho, segundo Marx, é a autoatividade humana pela qual o ser humano humaniza o mundo e realiza suas potencialidades. Mas, ao mesmo tempo, o trabalho é uma forma de negação do ser humano, de sua essência (Marx, 1983a). Isto parece contraditório. No entanto não existe contradição, tendo em vista que Marx distinguia o trabalho como objetivação do trabalho como alienação (Marx, 1983a; Marcuse, 1968; Viana, 1995). O trabalho como objetivação é a auto­atividade humana que possibilita o desenvolvimento das potencialidades do ser humano, enquanto o trabalho como alienação se caracteriza como uma relação social de dominação e exploração.

A partir dessa breve consideração sobre o trabalho, devemos discutir a relação entre trabalho e violência. Esta relação só é possível se levarmos em consideração o trabalho alienado, que é o trabalho envolvido na relação social entre dirigentes e dirigidos que emerge a partir da constituição das sociedades de classes. Mas resta definir o que entendemos por violência. Podemos afirmar que ela é “uma relação social caracterizada pela imposição realizada por um indivíduo ou grupo social a outro indivíduo ou grupo social contra sua vontade ou natureza” (Viana, 1999a, p. 224).

Para Marx, o trabalho alienado é uma atividade não livre, está fundamentado na coerção e domínio de outro homem (Marx, 1983a, p. 98). O trabalho sob esta forma se torna uma punição, uma desumanização. Segundo suas próprias palavras:

 

O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte da sua natureza, e, por conseguinte, ele não se realizar em seu trabalho mas negar a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente suas energias mentais e físicas, mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido. O trabalhador, portanto, só se sente à vontade em seu tempo de folga, enquanto no trabalho se sente contrafeito. Seu trabalho não é voluntário, porém imposto, é trabalho forçado. Ele não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer outras necessidades. Seu caráter alienado é claramente atestado pelo fato de, logo que não haja compulsão física ou outra qualquer, ser evitado como uma praga. O trabalho exteriorizado, trabalho em que o homem aliena a si mesmo, é um trabalho de sacrifício próprio, de mortificação. Por fim, o caráter exteriorizado do trabalho para o trabalhador é demonstrado por não ser o trabalho dele mesmo mas trabalho para outrem, por no trabalho ele não se pertencer a si mesmo mas sim a outra pessoa. (Marx, 1983a, p. 93).

 

Desta forma podemos perceber que o trabalho alienado é, ele mesmo, uma forma de violência. No entanto se isso era visível no caso do trabalho escravo, o mesmo não ocorre com o trabalho assalariado, pois seu caráter violento é ofuscado pelo seu invólucro jurídico de “trabalho livre”. Mas não foi apenas Marx que reconheceu o desprazer que o trabalho alienado provoca, pois Freud (1978), embora sem distinguir entre objetivação e alienação, também iria considerar que ele seria fonte de insatisfação, o que terá implicações importantes que serão desenvolvidas por outros psicanalistas sobre o mal-estar no trabalho.

Assim podemos dizer que as relações de trabalho fundamentadas na alienação constituem uma forma de violência quase imperceptível. Mas este é apenas um aspecto da relação entre trabalho e violência. A violência fundamental constituída pelo próprio processo de trabalho alienado irá gerar diversas outras formas de violência, mais perceptíveis. É o que veremos a seguir.

 

As formas de violência no trabalho

 

O próprio trabalho alienado é uma forma de violência. No entanto o processo de produção capitalista possui uma dinâmica que aponta para a necessidade de aumento de extração de mais-valor, o que vai resultar em conflitos, repressão e resistência, e, quando o capital consegue submeter o trabalho, produz outras formas de violência, mais intensas e por isso mais facilmente perceptíveis.

Quais são estas formas de violência? Elas constituem uma diversidade enorme, podendo-se destacar como exemplos: a) doenças provocadas pelo processo de trabalho; b) acidentes de trabalho; c) trabalho precoce; d) desgaste físico por trabalho penoso; e) problemas psíquicos derivados das relações de trabalho; f) morte provocada pelo processo de trabalho.

As doenças provocadas pelo processo de trabalho podem ser divididas em dois tipos (Mendes, 1995): a) tecnopatias, também chamadas “doenças ocupacionais” ou “profissionais”, que são as provocadas pelo exercício peculiar de uma atividade laboral constante; b) mesopatias, que são as doenças adquiridas através das condições de trabalho.

As tecnopatias são provocadas pela nocividade da matéria manipulada (contato com substâncias químicas). São exemplos de tecnopatias: silicose, benzolismo, saturnismo. As mesopatias, como já foi dito, são provocadas pelas condições de trabalho. Como exemplos de mesopatias podem ser citadas as lesões por esforços repetitivos (LER) e demais doenças geradas pelo ambiente de trabalho (causadas por problemas de temperatura, umidade, ventilação, por ruídos[1] etc.).

Os acidentes de trabalho são aqueles que ocorrem no processo de trabalho (alguns autores acrescentam os ocorridos também no trajeto da casa para o trabalho), e o exemplo mais típico é o que ocorre na construção civil, tal como a queda de cima de um andaime. Tais acidentes são provocados pela falta de segurança e prevenção no processo de trabalho.

O trabalho precoce é o trabalho realizado por menores de dezoito anos e que, devido ao fato de ser realizado por pessoas desta faixa etária (que possuem limitada autonomia social e, por conseguinte, menos condições de resistência e em processo de constituição orgânica), não só as torna vítimas de uma superexploração e exposição a todas as formas de violência colocadas anteriormente, como também as expõe a atividades incompatíveis com sua constituição orgânica, o que tem repercussões na saúde física e mental desses trabalhadores (Viana, 1999b).

O desgaste físico por trabalho penoso ocorre em determinadas atividades laborais, tais como levantamento e transporte de pesos e movimentos difíceis. Tal desgaste é mais freqüente em determinadas ocupações (manutenção de vagões ferroviários, trabalho em empresas navais, por exemplo), mas continuam presentes nas fábricas modernas (Berlinguer, 1983).

Os problemas psíquicos gerados pelo processo de trabalho são os mais variados - stress, doença coronariana, doenças psicossomáticas - e foram objeto de análise por diversos pesquisadores (Garfield, 1983; Dejours, 1988; Schneider, 1977). Tais problemas psíquicos são oriundos das relações de trabalho marcadas pela ansiedade, pelo conflito, pela grande intensidade de trabalho, pelo impedimento de manifestação de atividade onírica etc., constituindo o que Dejours denominou “o sofrimento invisível”.

Por fim, temos a morte provocada pelas relações de trabalho, a mais visível e nefasta forma de violência no trabalho. A morte no trabalho tem como principal causa os acidentes de trabalho fatais. No Brasil, segundo Mendes (1995, p. 203), “nos últimos dez anos morreram, vitimados por acidentes de trabalho, cerca de 50 mil trabalhadores. A incidência anual é de cerca de 20 mortes em cada 100 mil trabalhadores segurados pela Previdência”. Mas há também certas doenças que provocam, a longo prazo, a morte de trabalhadores, tal como câncer.[2]

Após essa descrição das formas de violência nas relações de trabalho torna-se necessária sua explicação. Em primeiro lugar, é preciso explicitar que esse conjunto de violências descrito corresponde ao conceito de violência anteriormente apresentado. Em segundo lugar, é preciso descobrir as razões que provocam essas formas de violência.

Contudo essas duas questões estão entrelaçadas e ao responder­mos uma estaremos respondendo a outra. Como as empresas capitalistas possuem como objetivo fundamental o aumento da extração de mais-­valor, então nada é mais natural do que elas buscarem diminuir, de todas as formas, os custos de produção, aumentar a intensidade do ritmo de trabalho, manter um controle rígido do tempo de trabalho e das atividades laborais, dividir e com isso rotinizar e monotonizar o processo de trabalho etc. A diminuição dos custos de produção inclui evitar gastos com aparelhos e instrumentos de segurança, utilizar de ambiente de trabalho precário, entre outras formas. Berlinguer relaciona isso com os acidentes de trabalho:

 

Uma porcentagem muito alta deve-se a acidentes causados por quedas de andaimes. Trabalha-se em condições de periculosidade excepcional, quase sem equilíbrio, sem qualquer instrumento de proteção. Os operários junto aos fornos muitas vezes têm as luvas estragadas, às vezes calçam os sapatos normais com a inevitável conseqüência de ter os pés cheios de queimaduras. Outra causa de acidentes é a falta de espaço que torna difícil o cumprimento da própria tarefa, não dispondo da necessária liberdade de movimentos. Os ambientes são aproveitados ao máximo e são inadequados: o maquinário é colocado a pouca distância um do outro, muitas vezes em posição errada, não favorecendo a linha de produção. Nessas condições a ventilação é insuficiente: os ambientes se enchem de fumaça, gases, substâncias venenosas. Na maioria dos casos, exatamente pela falta de espaço, os ambientes não são bem divididos entre si, quer dizer, muitas vezes são reunidos por exigência do trabalho. [...] Exatamente pela limitação dos ambientes verificam-se os acidentes mais banais, que seriam facilmente evitados em condições normais: escorregamentos sobre escórias de material, sobre óleo esparramado. Os acidentes mais graves ocorrem nas prensas, nas cortadeiras, nos fornos, com amputações, queimaduras, fraturas. (Berlinguer, 1983, p. 124)

 

Assim, podemos dizer que as formas de violência nas relações de trabalho são o resultado do processo de produção capitalista.[3] A percepção disso é mais fácil em alguns casos, tal como no caso dos acidentes de trabalho, apesar das representações ilusórias que buscam responsabilizar os trabalhadores pela sua ocorrência (Costa, 1981; Cohn et al., 1985).

Quando se coloca que o acidente de trabalho é causado pela falta de equipamento de proteção, por condições próprias do ambiente de trabalho, por defeito na maquinaria etc., apenas se revela a determinação imediata do fenômeno, que realiza uma mediação entre o acidente de trabalho (e não só este, pois abrange todas as formas de violência no trabalho) e o processo de produção capitalista com sua necessidade insaciável de lucro, que é sua determinação fundamental.[4]

O vínculo entre doenças provocadas pelo processo de trabalho, acidentes de trabalho, desgaste físico pelo trabalho penoso e morte no trabalho, por um lado, e acumulação de capital, por outro, é bastante evidente. Os altos índices de ocorrência é que são espantosos, principalmente no Brasil, que é o campeão mundial de acidentes de trabalho e possui altas taxas de incapacitação para o trabalho e morte no trabalho derivadas deles.

A forma de violência mais terrível provocada pelo processo de produção capitalista é a morte causada pelas relações de trabalho. Nesse caso, o trabalhador perde a própria vida para possibilitar a reprodução do capital. Mas não são apenas os acidentes de trabalho que provocam a morte do trabalhador, pois esta é apenas sua face mais visível, por ser imediata. As tecnopatias também podem provocar a morte, que, por não ser imediata, não é ligada diretamente ao trabalho. A exposição excessiva ao asbesto, substância química utilizada na fabricação de mais de 3.000 produtos (Possas, 1981, p. 93), provoca diversas doenças (câncer de pulmão, asbestose, mesotelioma de pleura, entre outros tipos de câncer) que, por sua vez, levam à morte. Podemos citar outro caso:

 

Um outro exemplo de doença profissional sub-registrada nas estatísticas oficiais é a silicose, uma pneumoconiose freqüente nos trabalhadores de minas, nas rochas de granito ou areia, pedreiras, cerâmica etc. As pneumoconioses são lesões pulmonares decorrentes da inalação de partículas sólidas identificadas por sinais radiológicos característicos, com ou sem sinais clínicos evidentes. São lesões progressivas e irreversíveis que se instalam entre 5 e 7 anos de exposição à poeira tóxica da sílica em suspensão, cuja sintomatologia evolui lentamente, em 3 fases: a inicial, pré-clínica, que apresenta apenas sinais radiológicos, é silenciosa e dura alguns anos; a segunda, intermediária, já apresenta sinais clínicos como dispnéia de esforço e tosse seca; e, finalmente, a fase avançada, com agravamento do quadro clínico: dispnéia intensa, sinais esseto-acústicos de bronquite catarral (por vezes com expectoração escura), dores toráxicas continuadas, anorexia, perda de peso e fadiga ao menor esforço. A principal complicação que pode ocorrer é a tuberculose pulmonar, que agrava consideravelmente o prognóstico. A morte, quando ocorre, é devida geralmente a complicações cardiocirculatórias.

 

A mesma lógica da acumulação de capital provoca a utilização do trabalho precoce, que realiza a transformação do sangue infantil em capital (Marx, 1988). A classe capitalista se aproveita da fragilidade do trabalho precoce para extrair um quantum maior de mais-valor (Viana, 1999b).

O desgaste físico provocado pelo trabalho penoso também é decorrente desta lógica de acumulação, pois este poderia ser evitado com a utilização de máquinas e tecnologias; mas não são usadas para não aumentar os custos de produção. Isso ocorre inclusive nos países capitalistas mais avançados tecnologicamente, onde faltam até equipamentos primários, como carrinhos de mão, tal como é o caso da Itália (Berlinguer, 1983).[5]

O sofrimento invisível dos problemas psíquicos derivados do processo de trabalho é resultado da organização capitalista e de suas características, que visam, antes de mais nada, a aumentar a extração de mais-valor, e para isso criam relações de trabalho que são como uma porta para o inferno. Garfield, por exemplo, ressalta a relação entre stress, doença coronariana e trabalho na sociedade capitalista.

 

Relações hierárquicas de trabalho, por exemplo, deslocam o controle da produção dos trabalhadores para os gerentes, reduzindo a solidariedade do trabalhador e com isso incentivam a acumulação e o lucro. Estes aspectos inter-relacionados de alienação-falta de controle sobre o processo de trabalho e perda do produto através da apropriação fornecem um esquema de referência para relacionar stress ocupacional e risco coronariano à natureza do trabalho na sociedade capitalista. Diversos estudos sugerem que a falta de poder do trabalhador sobre o processo de trabalho pode ser um fator de risco coronariano. A linha de montagem tornou-se um símbolo da alienação do trabalhador, pois ela subjuga completamente as atividades do trabalhador às exigências de uma maquinaria cuja marcha é regulada e controlada pela gerência. Obrigado a repetir tarefas cronometradas em um ritmo imposto pela maquinaria, o trabalhador na linha de montagem não tem virtualmente controle sobre o processo imediato de trabalho. Em uma pesquisa relacionando trabalho no ritmo da máquina à doença cardíaca, Kritsikis e colaboradores estudaram 150 homens com angina pectoral em uma população de mais de 4.000 trabalhadores industriais em Berlim. Perceberam que o trabalho na esteira rolante e a tensão psíquica relacionada a tarefas prementes estavam associados com a doença. Frankenhauser e Gardell demonstraram que o trabalho no ritmo da máquina está associado com altos níveis de catecolamina e freqüentes sintomas psicossomáticos e de stress. Esses pesquisadores compararam diversos índices de stress em dois grupos de trabalhadores de serralheria. O grupo de alto-­risco desempenhava trabalhos monótonos, acelerados e de transporte. Em comparação, as tarefas do grupo de controle eram mais variadas, não eram no ritmo da máquina e permitiam aos trabalhadores maior controle sobre a velocidade e ritmo de seu trabalho. A interpretação dos dados apontava que ‘a origem comum dos altos níveis de colamina e da alta freqüência de sintomas psicossomáticos, assim como outros sinais de stress e desajustamen­tos manifestados pelo grupo de alto-risco, estava na natureza monótona, coercitiva, automatizante do seu trabalho’ (Garfield, 1983, p. 163-134).

 

A partir destas colocações fica evidente a compatibilidade entre o conceito de violência apresentado anteriormente e os fenômenos aqui analisados, pois todos eles (desde o trabalho precoce à morte provocada pelo trabalho) constituem o resultado de uma relação social, na qual um grupo social - a classe capitalista - realiza a imposição a outro grupo social - os trabalhadores - contra sua vontade e/ou natureza; resultado ainda de um processo de trabalho fundamentado na dominação e exploração e que provoca problemas psíquicos, doenças, acidentes, incapacitação, desgaste físico, morte etc.

Um dito popular afirma: “Violência gera violência”. Isso em muitos casos é verdade, mas não é menos verdade que violência também gera contraviolência. É sobre isso, ou seja, sobre as formas de resistência dos trabalhadores que iremos tratar agora.

 

A luta dos trabalhadores contra a violência no trabalho

 

A violência imposta aos trabalhadores não é sofrida passivamente. Várias formas de resistência, tanto individual quanto coletiva, foram emergindo historicamente. A luta dos trabalhadores contra a violência nas relações de trabalho se manifestava de forma mais concreta e eficaz através da constituição de uma legislação trabalhista e da inspeção do trabalho.

Embora a legislação trabalhista regularize as relações de trabalho típicas do capitalismo, ela pode interferir no grau de exploração (extração de mais-valor) tendo em vista diminuir ou aumentar este grau, dependendo da correlação de forças.[6] Vários pesquisadores reconheceram a relação entre avanços na legislação trabalhista e ascensão da luta dos trabalhadores (Barros, 1969; Viana, 1999b; Viana, 1999c; Viana,1999d).

O surgimento da legislação trabalhista no Brasil ocorreu com o processo de ascensão das lutas operárias, a partir da segunda metade do século XIX. Haja vista, nesse período, tal como se vê com a expansão de publicações e organizações políticas de caráter socialista e anarquista, o surgimento de associações e sindicatos operários e o desencadeamento do movimento grevista em diversos segmentos de várias regiões do país (Viana, 1999b). Assim surgirão algumas leis trabalhistas, tal como o Decreto n° 979 de 6/1/1903, que permitia a criação de sindicatos e associações cooperativas (Castro Gomes, 1979). Também as primeiras leis coibindo o trabalho precoce são instituídas entre 1891 e 1911. No entanto é com a ascensão do movimento operário a partir do início do século XX que se realiza uma ampliação de leis referentes às relações de trabalho. A greve de 1917 em São Paulo foi o ponto mais alto desse movimento e conseguiu como resultado a promulgação do Decreto n.° 1.596, que regulamentava o trabalho precoce e o trabalho feminino, coibindo sua utilização em serviços noturnos. Outras greves em diversas regiões ocorreram no mesmo período, e a radicalização do movimento operário internacional (Revolução Russa em 1905/1917, Revolução Alemã, Conselhos Operários na Itália etc.) teve repercussão no Brasil e fortaleceu a luta operária local. Isto refletiu também na esfera da legislação trabalhista:

 

Em 1917 foi aprovada pelo Congresso Nacional a instauração da Comissão de Legislação Social; em 1918 foi aprovada a lei sobre acidentes de trabalho; em 1921 a lei de acidentes de trabalho foi decretada pelo Congresso Nacional; em 1925. houve a regulamentação da lei de férias. (Viana, 1999b, p. 115)

 

Entretanto a existência das leis não significa que elas sejam aplicadas efetivamente, tal como colocamos anteriormente. A luta operária pode conseguir a elaboração de leis favoráveis aos trabalhadores, mas a sua aplicação efetiva geralmente necessita de uma nova luta. Podemos tomar como exemplo a lei de férias de 1926, que teve forte oposição da classe capitalista, o que gera a pressão do proletariado para sua efetivação. Isto cria a necessidade da Inspeção do Trabalho. O Conselho Nacional do Trabalho (CNT), criado em 1923 e possuindo caráter meramente consultivo, estando ligado ao Ministério da Agricultura (Dal Rosso, 1997; Blass, 1986), não tinha condições de efetivar a Inspeção do Trabalho. Isto só ocorrerá alguns anos depois, tal como veremos a seguir.

Somente em 1921 é criada a Inspeção do Trabalho, mas restrita ao Distrito Federal (na época, Rio de Janeiro). Ela esteve ligada ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, vinculada ao Serviço de Povoamento dessa Secretaria de Estado até 1930. Esta situação começaria a se alterar na década de 1930, quando se consolidaria a Inspeção do Trabalho no contexto marcado pela emergência do fenômeno populista. A política populista conseguiu integrar as classes exploradas na democracia burguesa e expandir o desenvolvimento capitalista subordinado no Brasil. Contudo isso ocorreu como um processo contraditório, o que apresentou momentos de crise em alternância com momentos de estabilidade. O Estado intervencionista produziu uma infra-estrutura que possibilitava o desenvolvimento do modo de produção capitalista no Brasil. A irrupção dos momentos de crise ocorre em períodos de autonomização das classes exploradas. Essa autonomização acirra as contradições existentes no interior do bloco dominante e isto força a parte mais conservadora deste bloco a se rebelar e implantar o seu domínio exclusivo sobre o Estado. Segundo Dal Rosso (1997, p. 368),

 

No bojo da reforma feita pelo movimento revolucionário de 1930, o governo de Getúlio Vargas cria o Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio, cuja estruturação é regulamentada no ano seguinte. Do novo ministério fará parte o Departamento Nacional do Trabalho, organizado em 1931, e que tem ‘por objetivo promover medidas de previdência social e melhorar as condições gerais do trabalho, sendo[...] subdividido em seções[...] (de) organização, higiene, segurança e Inspeção do Trabalho’ [Decreto n.° 19.671-A de 4/2/1931].

 

A partir de 1932, a Inspeção do Trabalho passa a ser descentralizada com a criação das inspetorias regionais do Ministério do Trabalho. Diversos decretos são promulgados nesse ano com a finalidade de apresentar os objetivos da Inspeção do Trabalho, que se resumem, fundamentalmente, na fiscalização do cumprimento da legislação trabalhista, e não em assegurar o seu cumprimento, tal como nas convenções da OIT. Isto significa a instituição jurídica da Inspeção do Trabalho no Brasil. No entanto para sua efetivação é necessária sua estruturação nos diversos Estados da Federação. A formação do Ministério do Trabalho, a sistematização da legislação trabalhista e a estruturação jurídica da Inspeção do Trabalho nessa época surgem dentro dos objetivos da política populista de permitir uma participação controlada (Vianna, 1978; Dal Rosso, 1997) e modernizar a intervenção estatal sobre a sociedade e, em especial, sobre as relações de trabalho (Segatto, 1987).

Esse é um período de produção de leis e mudanças jurídicas. Após 1930, além da instituição da Inspeção do Trabalho, diversas leis trabalhistas são criadas.[7] Porém, em virtude da ação contrária da classe capitalista, das próprias limitações das leis, da cooptação de segmentos do proletariado e da inexistência de uma inspeção do trabalho eficaz, não se concretiza, na maioria dos casos, a aplicação efetiva dessas leis.

Depois de 1943 - após a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que sistematizou e aperfeiçoou esse conjunto de leis -, é que se tornou mais efetiva a aplicação de alguns aspectos dessa legislação. Mas persistia o caráter controlador da política estatal sobre o movimento operário, e a estruturação da Inspeção do Trabalho só recebeu novo impulso a partir da década de 1950. A única novidade nesse período foi a criação da carreira de inspetor do trabalho em 1944, pelo Decreto-Lei n.° 6.479, de 9/5/1944.

O início da década de 1950 significou um momento de crise do populismo - provocado pela autonomização da classe operária ­que culminou com o golpe de 1954. Segundo Boito Júnior (1984), o movimento grevista de 1953 e a greve dos 300 mil operários significaram a ascensão da luta operária, o que provocou uma crise na política populista do governo Vargas. A crise do populismo e a ascensão do movimento operário promovem um avanço modesto na estruturação da Inspeção do Trabalho, tal como a ratificação da convenção 81 da OIT, em 1957.

O populismo ressurge sob a forma desenvolvimentista-reformista na década de 1960, mas logo entraria em crise, seguindo a mesma dinâmica do período anterior. A autonomização da classe operária (o movimento grevista) e do campesinato (as ligas camponesas), juntamente com a ascensão de alguns movimentos sociais, especialmente o movimento estudantil, gerou novamente uma cisão no bloco dominante e o golpe militar. Porém a derrota do populismo foi acompanhada pela desarticulação do movimento operário, que não conseguiu a hegemonia na situação pós-populista. O populismo foi substituído por um regime militar que promoveu um retrocesso para a Inspeção do Trabalho no Brasil.

Gomes (1988, p. 14) afirma que nesse período se instituiu a supremacia absoluta dos interesses do capital, e assim a ofensiva capitalista proporcionou a

lei de greve (antigreve), o fim da estabilidade, o controle dos sindicatos e arrocho salarial. As leis de interesse dos trabalhadores (duração da jornada, férias, higiene e segurança) foram tornadas inoperantes, na prática. Na época do ‘milagre’, então, tudo isso não passou de ficção jurídica, para enorme número de pessoas.

 

Esta situação somente iria mudar a partir do final da década de 1970, com a nova ascensão do movimento operário (Maroni, 1982; Aguiar, 1982; Löwy, 1980) no Brasil e de outros movimentos sociais e com as mudanças na esfera política institucional derivadas disto (a chamada Nova República). Nesse período a Inspeção do Trabalho sofrerá algumas alterações, embora modestas. A Convenção 81 da OIT é retomada, e a Constituição de 1988 se refere à Inspeção do Trabalho, delegando à União a competência de organizar, manter e executar a Inspeção do Trabalho. Em seguida, houve a criação do Sistema Nacional de Treinamento dos Agentes de Inspeção do Trabalho, o que significou uma medida concreta com o objetivo de estruturar a Inspeção do Trabalho. Outras medidas foram tomadas com esse objetivo no Brasil a partir de 1988; no entanto a Inspeção do Trabalho em nosso país ainda não se compara com a existente nos países europeus.

As mudanças que vêm ocorrendo a partir da hegemonia mundial do neoliberalismo trazem novos problemas e dificuldades para a Inspeção do Trabalho, no Brasil e no mundo inteiro, tal como se vê com a perda de direitos trabalhistas, a desregulamentação das relações de trabalho etc. Isso provoca uma corrosão da legislação trabalhista e, por conseguin­te, das bases da Inspeção do Trabalho. Na atualidade, a situação é desfavorável à Inspeção do Trabalho e somente com uma nova correlação de forças, ou seja, com uma nova ascensão do movimento operário, é que tal situação pode se alterar. Isso tudo confirma nossa tese da relação entre luta dos trabalhadores e violência no trabalho. A ascensão da luta dos trabalhadores provoca avanços na legislação trabalhista e na estruturação da Inspeção do Trabalho.

Se seguirmos Barros (1969), que sugere compararmos a emergência das principais leis trabalhistas com a ascensão do movimento dos trabalhadores, reconheceremos facilmente que, nos momentos em que houve um desencadeamento da luta operária, também houve avanços nas leis de proteção dos trabalhadores e na estruturação da Inspeção do Trabalho. Isto ocorreu principalmente no começo do século XX, início das décadas de 1930, 1940 e - mais moderadamente - 1950, meio da década de 1960, final da década de 1970 e início da década seguinte.

No interior destas leis se encontram medidas e leis contra a violência nas relações de trabalho, descritas anteriormente. As leis que protegem os trabalhadores no caso de acidentes de trabalho, doenças provocadas pelo processo de trabalho, entre outras formas de violência no trabalho, desenvolvem-se no bojo dessas lutas e conquistas dos trabalhadores. Tomando como exemplo apenas as leis sobre acidentes de trabalho, vemos o seguinte quadro: no início do século XX, foi regulada a Lei de Acidentes de Trabalho, através do Decreto n.° 3.724, de 15 de janeiro de 1919; em 1934, surge a segunda lei acidentária, através do Decreto n.° 24.637; a terceira lei acidentária data de 1944. De acordo com Possas (1981, p. 98),

 

Esta legislação passou por uma indiscutível evolução desde a lei pro­mulgada em 1919 até o Decreto-Lei de 10/11/1944, pela progres­siva ampliação dos benefícios aos acidentados, doentes do trabalho e aos seus dependentes.

 

Posteriormente, em 1967, houve outras leis acidentárias, uma primeira, que durou seis meses, e outra, substituta, que corrigia al­guns de seus pressupostos conservadores (como a culpabilidade do trabalhador pelo acidente). Por outro lado, o refluxo do movimento operário provoca retrocessos na esfera da legislação trabalhista, que culminam com a Lei n.° 6.367 de 1976. Vale lembrar que nessa época vigorava o regime militar, e conseqüentemente havia pouca mobilização operária, tal como coloca Possas (1981, p. 99). Segundo a autora, nesse período

 

Os acidentes e doenças do trabalho deixaram, na quase totalidade dos casos, de comportar a reparação correspondente e os benefícios pagos sofreram diminuição apreciável. [...] As ações propostas demoram anos a fio com evidentes prejuízos para o acidentado, o que vem desestimulando a classe trabalhadora a recorrer ao judiciário.

 

Assim, seguindo as indicações sobre ascensão do movimento operário, vemos que só faltou avanço na legislação sobre acidentes de trabalho na década de 1950, mas como tal ascensão nessa década foi muito breve, então isso se torna justificado.

Dessa forma, a violência exercida pela classe capitalista nas relações de trabalho convive com a resistência e luta dos trabalhado­res contra ela.

 

Obstáculos para a abolição da violência nas relações de trabalho

 

Apesar da luta secular dos trabalhadores contra as diversas formas de manifestação da violência nas relações de trabalho, essas não foram abolidas. Nesse sentido, é interessante questionar o que impede a concretização desta abolição. A resposta parece ser evidente: a correlação de forças entre capital e trabalho não aponta para a supremacia dos trabalhadores e, por conseguinte, para uma legislação adequada e uma inspeção eficiente. Tanto o desenvolvimento da legislação trabalhista, quanto a estruturação de uma inspeção do trabalho eficaz dependem da luta dos trabalhadores.

Esta luta, que vem sendo desenvolvida há séculos, só consegue conquistas nos momentos em que a classe trabalhadora se autonomiza e radicaliza o seu movimento, o que faz com que a classe dominante ceda os anéis para não perder os dedos. As lutas dos trabalhadores no Brasil (e não só aqui) conseguiram dar alguns passos no sentido de diminuir a violência nas relações de trabalho, mas de forma modesta, sempre acompanhada por avanços e recuos, dependendo da correlação de forças entre capital e trabalho num determinado momento histórico.

Para efetivar essa abolição é preciso efetivar uma ampliação e melhoria na atual legislação trabalhista, garantindo a prevenção e a punição para os casos concretizados de violência no trabalho. A legislação trabalhista ainda é muito restrita e não consegue abordar todas as formas de violência no trabalho. Isso significa que a atual legislação trabalhista, em razão de sua moderação, é um obstáculo para a efetiva abolição da violência nas relações de trabalho. Isso é mais grave ainda se considerar­mos que ao não abordar todas as formas de violência no trabalho, a legislação trabalhista só atua e permite a atuação da Inspeção do Trabalho sobre as formas ilegais de violência no trabalho.

O fato é que podemos distinguir entre formas legais e ilegais de violência no trabalho. Algumas formas legais se encontram, por exemplo, no caso de certas especificações de trabalho precoce aceitas pela legislação em vigor.

Outro obstáculo se encontra na não-estruturação adequada do serviço de inspeção do trabalho, que, embora tenha tido alguns avanços a partir da Constituição Federal de 1988, ainda não conseguiu se estruturar de forma adequada. A estruturação da Inspeção do Traba­lho pressupõe os meios materiais de realização da inspeção do traba­lho. Esses meios materiais incluem instalações, mobiliário, equipa­mento de escritório, meios de locomoção etc. Além disso, os inspetores devem possuir recursos financeiros para cobrir suas despesas na exe­cução de suas atividades e uma boa remuneração para evitar proble­ma de corrupção - que é, segundo Tragtenberg (apud Costa, 1981, p. 11), um dos fatores que permitem os altos índices de acidentes de trabalho. Outro meio material é a existência de documentação técni­ca, jurídica e informativa, tais como instruções ministeriais, informa­ções técnicas relativas à higiene e segurança, o jornal oficial, docu­mentos de tipo econômico e social, dados estatísticos, revistas especializadas etc.

Sem condições adequadas de trabalho, formação apropriada do corpo dos agentes da inspeção, poderes delegados pelo Estado, instalações adequadas, mobiliário etc., é extremamente difícil a Inspeção do Trabalho assegurar a abolição das formas ilegais de violência no trabalho. Além disso, o próprio corpo de inspetores do trabalho está envolvido nas lutas sociais, e isso é perceptível no caso francês (Viana, 1999c; Dhoquois-­Cohen, 1993) e no caso brasileiro (Viana, 1999b), nos quais se percebem duas posições referentes ao problema do papel da inspeção: uma enfatiza a fiscalização e o aconselhamento, ou seja, o inspetor teria um papel apenas moderador na relação capital-trabalho (o que contraria a própria Convenção 81 da OIT, que aponta a necessidade de a inspeção assegurar o cumprimento da lei); a outra apresenta uma visão da inspeção como tendo um caráter repressivo e possuindo o papel de assegurar o cumprimento da lei, colocando, assim, a Inspeção do Trabalho do lado dos trabalhadores. Sem dúvida, o posicionamento dos agentes é influenciado pelas lutas sociais.

Na atualidade, vivemos um período marcado por uma ofensiva capitalista visando a aumentar a taxa de exploração, e, ao lado disso, pela perda de diversas conquistas dos trabalhadores. Instala-se ainda o desenvolvimento de um processo que reforça a prática de violência nas relações de trabalho (aumento do uso de trabalho precoce, de acidentes de trabalho, de condições precárias de trabalho etc.). Tal como coloca Costa (1981, p. 31), “os índices de acidentes do trabalho apresentam-se como um dos indicadores possíveis do grau de exploração da força de trabalho”, ou seja, o fato de o Brasil ser campeão em acidentes de trabalho apenas demonstra o elevado grau de exploração dos traba­lhadores brasileiros. Vale mencionar que a ofensiva capitalista apre­sentada com o nome de neoliberalismo pretende tão-somente expan­dir e intensificar esse processo de exploração, o que significa, por conseguinte, a tendência ao aumento da violência nas relações de trabalho, sob suas diversas formas.

Desta forma, observamos que o maior obstáculo para a aboli­ção das formas ilegais de violência no trabalho se encontra na ineficá­cia da Inspeção do Trabalho em virtude de sua falta de estruturação. Mas o principal obstáculo para sua abolição em geral (ou seja, inclu­indo suas formas “legais”) se encontra na deficiente legislação traba­lhista; isso tudo é derivado da debilidade atual do movimento operá­rio e dos demais movimentos sociais, que não só não estão ampliando suas conquistas passadas, como estão permitindo à classe capitalista realizar uma ofensiva que lhe retira tais conquistas, o que significa um retrocesso histórico. Nesse sentido, é somente com a ascensão das lutas dos trabalhadores e sua articulação com os movimentos sociais que se pode buscar reverter essa situação, recuperando o que foi perdido e ampliando as conquistas, melhorando também radical­mente a legislação trabalhista (o que significa abolir as formas “le­gais” de violência no trabalho, entre outros avanços) e estruturando um serviço de inspeção do trabalho eficaz. A redução da violência nas relações de trabalho marca o ponto de partida para o posterior questionamento do próprio trabalho como forma de violência, ou seja, do processo de alienação do trabalho.

 

Notas

 



[1] “Nos estaleiros há uma situação estranha: nas construções dos cascos, os soldado­res trabalham junto com os caldeireiros. Ambas as categorias de operários sofrem de distúrbios gravíssimos de audição, tem-se encontrado até 80% de surdos; mas a surdez é considerada doença profissional somente para os caldeireiros e não para os soldadores” (Berlinguer, 1983, p. 124).

[2] “O exemplo mais frisante da relação entre a exposição profissional e o câncer é representado pelo que acontece com os trabalhadores que fabricam e montam um dos produtos industriais de maior projeção deste século: o automóvel. A) os operários que fabricam o bloco do motor são vítimas de silicose, doença pulmonar grave que freqüentemente se acompanha de tuberculose (silicotuberculose). As manifestações da moléstia aparecem nas radiografias quando 40% do pulmão já estão afetados. Além disso, muitos operários escondem seus sintomas, porque afastados por doença só receberiam parte do salário. Há pouco, em Jundiaí, 200 casos foram detectados em operários que iriam ser despedidos e para não sê-lo denunciaram seus sintomas. B) os operários que fabricam os pneus estão sujeitos a leucemia. C) os operários que fabricam o platinado, intoxicados pelo cromo, estão sujeitos a câncer nos seios nasais. O) os operários que fabricam as baterias estão sujeitos à intoxicação pelo chumbo. E) os que fabricam os vidros estão sujeitos a cataratas e doenças pulmonares. F) os que trabalham em refinarias estão sujeitos à intoxicação pelo benzeno e, portanto, a câncer de pele e leucemia. G) os que fabricam os assentos plásticos estão sujeitos à intoxicação por vinilcloreto, causador de câncer do fígado. H) os que fabricam os freios e a embreagem estão sujeitos à asbestose, intoxicação pelo amianto que provoca câncer de pulmão, pleura e peritônio. I) os que trabalham na produção de álcool estão sujeitos à bagaçose (doença do pulmão peculiar aos trabalhadores de cana) e a câncer (por produtos de decomposição do álcool). J) os que trabalham nos postos de gasolina estão sujeitos à intoxicação por benzeno e, portanto, à leucemia” (Landmann, 1984, p. 80-81).

[3] “Os acidentes de trabalho estão intimamente ligados às relações de produção. O pressuposto básico destas é a extração da mais-valia, dentro do processo de pro­dução. Quanto mais intenso for o desgaste da força de trabalho dentro do pro­cesso produtivo, maior tenderá a ser o depauperamento da mesma, ou melhor, o desgaste físico e psíquico do operário. Penso que os acidentes de trabalho refletem um dos ângulos da forma de exploração da força de trabalho. À medida que o processo de produção se caracterize por altas taxas de exploração, péssimas condi­ções de trabalho, salário, etc., ele tende a desgastar a força de trabalho de forma mais ou menos agressiva” (Costa, 1981, p. 31). Veja também: Arouca (1984); Cohn et al. (1985).

[4] A violência, como fenômeno concreto, é o resultado de múltiplas determinações, que, no entanto, apresentam uma determinação fundamental. A discussão sobre as múltiplas determinações e sobre a determinação fundamental é uma das con­tribuições metodológicas mais relevantes de Marx (cf. Marx, 1983b; Viana, 1999e).

[5] “É o caso de um dos setores da Fiat. Acusa-se a falta de carrinhos elétricos e, em alguns casos, também dos de mão, de direções móveis...” (Berlinguer, 1983, p. 106).

[6] A legislação trabalhista é benéfica ao capital, mas também, dentro do contexto capitalista, pode beneficiar os trabalhadores: “o modo capitalista de produção se caracteriza pela formação/destruição da mão-de-obra que utiliza para sua reprodução. Daí a necessidade da intervenção do Estado, em nome dos ‘interes­ses gerais’ que codificam essa exploração através do mecanismo da Legislação do Trabalho. Dessa forma, a mão-de-obra é salva da ‘deterioração’ a que o modo de produção capitalista a condena. Não é preciso dizer que a Legislação Trabalhista não se constitui somente num meio de controle do Estado sobre o proletariado, mas, também é fruto da pressão da mão-de-obra no processo de autodefesa ante o Capital” (Tragrenberg, apud Costa, 1981, p. 11).

[7] Estas leis regulamentavam a jornada de trabalho (8 horas), o trabalho precoce e o feminino, instituíam a carreira profissional de trabalho, as férias anuais remune­radas de 30 dias, a convenção coletiva do trabalho, a aposentadoria por tempo de serviço, o salário mínimo etc.

 

Referências

 

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Artigo publicado originalmente em:

VIANA, Nildo. Inspeção do Trabalho e Violência nas Relações de Trabalho. In: SILVA, José Fernando; LIMA, Ricardo Barbosa; DAL ROSSO, Sadi (Orgs.). Violência e Trabalho no Brasil. 1ed.Goiânia: Cegraf, 2001, p. 133-153.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO EM MAURÍCIO TRAGTENBERG

 


A CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO EM MAURÍCIO TRAGTENBERG

 

Nildo Viana*

 

Resumo: O presente artigo aborda a concepção de educação de Maurício Tragtenberg. O objetivo foi apresentar os principais aspectos de sua produção intelectual sobre o fenômeno educacional. O caminho trilhado foi apresentar, brevemente, um pouco da vida e obra de Maurício Tragtenberg, para depois analisar a sua crítica da educação burocrática e, por fim, sua concepção de autoeducação do proletariado e autogestão pedagógica. O resultado foi a percepção de que Maurício Tragtenberg realiza uma crítica radical da educação burocrática, entendendo que ela (incluindo a escola e a universidade) possui a função de reprodução das relações de produção capitalistas, e se constitui através de uma rede hierárquica de instituições. Ela efetiva isso através do controle burocrático sobre professores e estudantes. A concepção de educação em Tragtenberg também aponta para a necessidade de uma nova educação e ele aponta para isso sob duas formas: a autoeducação do proletariado através de suas lutas e no interior das instituições escolares, através da autogestão pedagógica e formas pedagógicas similares.

 

Abstract: This article addresses the concept of education by Maurício Tragtenberg. The objective was to present the main aspects of his intellectual production on the educational phenomenon. The path followed was to briefly present a little of the life and work of Maurício Tragtenberg, to later analyze his critique of bureaucratic education and, finally, his conception of self-education of the proletariat and pedagogical self-management. The result was the perception that Maurício Tragtenberg carries out a radical critique of bureaucratic education, understanding that it (including the school and the university) has the function of reproducing capitalist production relations, and is constituted through a hierarchical network of institutions. It does this through bureaucratic control over teachers and students. The concept of education in Tragtenberg also points to the need for a new education and he points to this in two ways: the self-education of the proletariat through its struggles and within school institutions, through pedagogical self-management and similar pedagogical forms.

 

 

Maurício Tragtenberg apresentou uma grande contribuição para se pensar criticamente vários temas fundamentais da sociologia e das ciências humanas em geral, bem como temas políticos. Tragtenberg é um dos principais sociólogos brasileiros e ainda merece maiores pesquisas e análises de sua produção intelectual. No presente artigo, objetivamos analisar a sua contribuição específica para análise do fenômeno educacional, um dos temas aos quais ele mais se dedicou. Para realizar esse objetivo, iniciamos com uma apresentação geral do pensamento de Tragtenberg, aspecto importante para compreender seu pensamento educacional, e, após isso, apresentaremos os dois elementos fundamentais de sua análise da educação, a questão da burocracia e a questão da autogestão, para, por último, apresentar nossas reflexões sobre a sua concepção de educação.

O Pensamento de Maurício Tragtenberg

Maurício Tragtenberg, como ele mesmo conta em sua autobiografia, nasceu no interior do Rio Grande do Sul e logo se mudou para São Paulo, cidade na qual teve inúmeros contatos com diversos segmentos sociais que o ajudaram a formar suas primeiras reflexões políticas e sociais: imigrantes de outros países, operários, intelectuais. Um leitor voraz que lhe proporcionou, com o passar do tempo e acúmulo de leituras, uma erudição que será uma de suas marcas como intelectual. Tragtenberg era um autodidata que tardiamente entra na universidade. Tal entrada, inclusive, não se deu pelos meios convencionais da época, ou seja, através de vestibular e sim através da apresentação de uma monografia, item do regimento da Universidade de São Paulo, indicado por Antonio Cândido, intelectual renomado, do qual ele lançou mão. Essa monografia, depois publicada como livro, cujo título é: Planificação: o desafio do século XX (1967), foi sua primeira contribuição intelectual de uma longa série. Após terminar o curso, Tragtenberg começa a carreira de professor e depois de muitas experiências, pois, como ele “especializou-se em ganhar concursos” e, na UNESP, “perder contratos” (TRAGTENBERG, 1988), acabou passando por algumas das grandes universidades brasileiras, tais como a Fundação Getúlio Vargas (FGV), Universidade de Campinas (UNICAMP) e PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), no qual lecionou por décadas. Para compreender a relação entre sua história de vida e sua produção intelectual, no entanto, não basta tais referências, pois seria necessário acrescentar sua passagem por partidos políticos e suas atividades jornalísticas, entre outros aspectos de sua experiência de vida (SOUZA, 2017; TRAGTENBERG, 1999).

No seu processo histórico de vida, Tragtenberg fez inúmeras leituras e se tornou um erudito[1]. A sua erudição gira em torno de um eixo norteador que é a ideia de autogestão. A concepção autogestionária de Maurício Tragtenberg, no entanto, não é obra da casualidade. Sem dúvida, o processo histórico de vida de Tragtenberg foi fundamental para que ele desenvolvesse sua concepção autogestionária, mas isso ocorre num contexto histórico específico e que possibilita tal desenvolvimento. Nesse caso, o Maio de 1968 é um acontecimento histórico decisivo para que a palavra autogestão, e seu significado marxista, ganhasse espaço e se tornasse referência intelectual. As lutas estudantis e operárias na França geraram a retomada da ideia de autogestão num sentido revolucionário e marxista, tal como se observa na obra de Guillerm e Bourdet (1976), bem como em outros autores e diversos grupos políticos nesse país, e acaba se espalhando pelo mundo. Nesse contexto, emerge o marxismo autogestionário, uma continuidade do marxismo de Marx e do comunismo de conselhos, e que tem em Yvon Bourdet um dos seus mais expressivos representantes (VIANA, 2020a).

Podemos dizer que o marxismo autogestionário tem em Maurício Tragtenberg um representante no Brasil. Sem dúvida, isso ocorre, num plano concreto, a partir das peculiaridades e idiossincrasias do indivíduo Maurício Tragtenberg. E por isso é necessário entender quais são as principais fontes de inspiração de Tragtenberg. Podemos dizer que Tragtenberg teve como principais fontes de inspiração o pensamento de Karl Marx, a sociologia de Max Weber, e, em menor grau, um conjunto de pensadores anarquistas, representantes da análise institucional na França (alguns sendo expressão, com certas ambiguidades, do marxismo autogestionário)[2], entre outras.

Tragtenberg extrai da obra de Marx as bases intelectuais do seu pensamento, desde elementos teóricos, como a teoria da luta de classes e elementos da teoria do capitalismo, até sua análise do movimento operário e da revolução proletária. A crítica do capitalismo é algo fundamental, nesse aspecto, bem como a ideia de que “a emancipação da classe operária é obra da própria classe operária” (MARX, 2014). Max Weber traz algumas contribuições ao pensamento de Tragtenberg, com especial destaque para a sua sociologia da burocracia. Esse será um dos temas mais discutidos por Tragtenberg e Weber, ao lado de outros sociólogos, como Selznick (1978); Etzioni (1976), entre outros, serão importantes para sua análise da burocracia. O marxismo que ele denomina “heterodoxo”[3] também tem forte influência no seu pensamento, desde Rosa Luxemburgo até autores como Bordiga, chegando ao comunismo de conselhos, com destaque, entre estes, para Pannekoek, Korsch, Rühle, Gorter. Os pensadores anarquistas também terão um espaço no pensamento de Tragtenberg, desde os clássicos (Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Malatesta) até os posteriores, incluindo os ligados ao que foi denominado “pedagogia libertária”, tal como Francisco Ferrer. Os representantes da análise institucional, tais como Lobrot (1973); Lapassade (1989), Lourau (1975), vão também contribuir com o pensamento de Tragtenberg, não somente na discussão educacional e com a ideia de autogestão pedagógica, mas também com as análises da burocracia, entre outras.

O pensamento de Tragtenberg se orienta em torno de uma análise crítica do capitalismo e de seus fundamentos, com destaque para a crítica da burocracia. O capitalismo, para Tragtenberg, é uma sociedade que gera uma desumanização através da exploração do proletariado (1967). O seu foco, no entanto, é no plano organizacional, especialmente na questão da burocracia. Ele realizou diversos trabalhos de análise e crítica da burocracia, em diversas instâncias da sociedade, com destaque para suas obras Burocracia e Ideologia (TRAGTENBERG, 1985) e Administração, Poder e Ideologia (TRAGTENBERG, 1989a). Tragtenberg analisava a burocracia no interior do processo de trabalho, desde as “harmonias administrativas” de Saint-Simon e Mayo (TRAGTENBERG, 1985), passando pelo taylorismo, até chegar na cogestão e formas contemporâneas de controle burocrático da atividade laboral (TRAGTENBERG, 1989a). Ele também analisava o fenômeno burocrático em suas diversas outras formas de manifestação, como em partidos e sindicatos (TRAGTENBERG, 1989b), no capitalismo estatal (TRAGTENBERG, 1989b; 1988), nas instituições escolares (TRAGTENBERG, 1990).

A crítica da burocracia, no entanto, é acompanhada por um projeto alternativo: a autogestão. O tema da autogestão aparece em diversas obras e em algumas ele aponta para uma reflexão sobre o seu significado:

O problema do socialismo coloca-se ante a existência real da luta de classes entre exploradores e explorados, entre opressores e oprimidos. Socialismo implica auto-organização, associação, autogestão operária. A autogestão não é um objetivo da sociedade capitalista, seja na forma de capitalismo privado, seja na forma livre-concorrencial, monopolista ou estatal. Ela significa que o proletariado e os assalariados em geral gerem por si mesmos suas lutas, através das quais se conscientizem de que podem administrar a produção e criar formas novas de organização do trabalho. Em suma, que podem colocar em prática a ‘democracia operária’. O predomínio da autogestão nos campos econômicos, social e político, manifesta-se sempre que os trabalhadores aparecem como sujeitos revolucionários. São os períodos de ascensão dos movimentos de massas que tomaram forma na Comuna de Paris de 1871, na Revolução Russa de 1917, na Guerra Civil Espanhola de 1936, nas rebeliões de 1918 na Hungria e na criação do sindicato Solidariedade (1978) na Polônia (TRAGTENBERG, 1989b, p. 10).

A questão da autogestão emerge em várias de suas obras, seja como tema principal (TRAGTENBERG, 1989b), seja envolvido em outras discussões (TRAGTENBERG, 1988; 1990). Não é, pois, exagerado dizer que “O sentido da vida e obra de Tragtenberg foi, a nosso ver, a luta pela autogestão” (VIANA, 2008). Assim, o fio condutor da obra de Tragtenberg é a autogestão e isso se reflete em todas as suas obras.

Sem dúvida, a educação foi um dos temas mais abordados por Tragtenberg e por isso vários autores abordaram o seu tratamento da questão educacional (SILVA, 2008; MARQUES, 2016; UHLE, 2001; GANDINI, 2001). O tema da “autogestão pedagógica” é um outro momento no qual a ideia de autogestão aparece e que foi antecedida pelo marxismo autogestionário francês no qual ele se inspira. Assim, a questão da burocracia e da autogestão são os temas fundamentais que estão sempre presentes no seu pensamento. Nesse sentido, Tragtenberg acompanha o desenvolvimento de setores do marxismo, que passaram a se atentar para a questão da burocracia, tal como o marxismo autogestionário francês e o autonomismo – que já havia iniciado, em alguns casos, a discussão sobre essa questão numa perspectiva marxista ou próxima do marxismo – e a questão da autogestão, que emerge com força através de Guillerm e Bourdet, marxistas autogestionários franceses.

Educação, burocracia e reprodução

Depois dessa breve síntese do pensamento de Maurício Tragtenberg, podemos passar para a análise de sua concepção de educação. A abordagem da educação em Tragtenberg é extremamente crítica, seguindo, nesse caso, a tradição de Marx, anarquistas, marxistas autogestionários. A sua análise da educação tem três eixos fundamentais: burocracia, reprodução e transformação. No presente item, vamos nos ater aos dois primeiros eixos, a burocracia e a reprodução, que são complementares.

Tragtenberg aponta a ligação inseparável entre escola e capitalismo através da análise da origem da educação formal:

O capitalismo, no seu processo de desenvolvimento, separou da vida produtiva a criação e a transmissão da cultura, sequestrou o corpo de conhecimentos, cuja origem é social, em instituições privadas ou estatais: daí a emergência da instituição escolar como diferenciada, com a pretensão de monopolizar a aprendizagem e a integração social. O exercício e o controle desse monopólio acadêmico são entregues ao Estado. Assim, o acesso à cultura se identifica com cumprimento de uma legislação, obediência e normas, consumo de algo definido como “ensino” pelos chamados “órgãos competentes” (TRAGTENBERG, 1980, p. 54).

Tragtenberg aborda a questão da função da escola. A função da escola é a reprodução das relações de produção capitalistas. Tragtenberg é explícito nesse sentido ao tratar da escola como “aparelho ideológico”, termo retomado de Althusser, que não é citado, que emerge num determinado estágio de desenvolvimento do modo de produção capitalista. Ela, como todo aparelho ideológico, não cria ideologia, mas a inculca[4]. E ele destaca o caso específico das universidades, pois “a universidade reproduz o modo de produção capitalista dominante não apenas pela ideologia que transmite, mas pelos servos que ela forma” (TRAGTENBERG, 1990, p. p. 13).

Assim, a função da escola é reproduzir o capitalismo. A ideia de reprodução, que foi hegemônica desde os anos 1950 até o final dos anos 1970[5], é retomada por Tragtenberg. Segundo ele:

A escola não cria a divisão em classes, mas contribui para essa divisão e reprodução ampliada. A reprodução ampliada das classes sociais comporta alguns aspectos: a) a reprodução ampliada dos lugares que ocupam os agentes. Estes lugares designam a determinação da estrutura sobre a divisão social do trabalho; b) a reprodução (distribuição) dos próprios agentes entre estes lugares. Aí intervém ativamente na reprodução dos lugares das classes sociais. Há uma reprodução das classes sociais e pela oposição de classes, onde se move a reprodução ampliada da estrutura, inclusive das relações de produção que preside o funcionamento dos aparelhos ideológicos; [...] c) trata-se de uma distribuição primeira dos agentes, ligada à reprodução primeira dos lugares das classes sociais: é ela que designa para este ou aquele aparelho, para esta ou aquela série entre eles, e segundo as etapas e as fases da formação social, o papel respectivo que eles assumem na distribuição dos agentes (TRAGTENBERG, 1990, p. 44).

Tragtenberg vai além dessa constatação e aborda a forma pela qual a escola realiza esse processo de reprodução. A função de reprodução da escola se efetiva através da burocracia. É a burocracia escolar que efetiva o controle da escola e desenvolve a burocratização. A ação burocrática é hierárquica e vai da burocracia ministerial para as demais, até chegar à burocracia escolar. No âmbito de uma universidade ou de uma escola, o controle burocrático é dirigido em relação aos intelectuais/professores e estudantes.

No caso do professor, ele é controlado pelos mecanismos de nomeação na medida em que se exige dele um currículo visível – prova de desempenho como professor, pesquisas realizadas, artigos ou livros publicados –, porém o currículo invisível pode funcionar mais: uma simples opinião de uma eminência parda que pertença ao Serviço de Informações e Segurança que “assessora” reitorias, especialmente nas universidades federais e na Universidade de São Paulo, pode vetar uma contratação proposta e aprovada pelo departamento. É o chamado “currículo invisível” que pode condenar o mestre. O controle do alunado se dá através do sistema de provas e exames, onde é medida a conformidade do aluno aos ditames do Mestre, muito mais do que sua produção e criatividade. A escola funciona, nesse sentido, mais como elemento de domesticação do que como elemento de libertação e autoafirmação. A burocracia universitária e ministerial oprime o mestre. Ele, por sua vez, tende a reproduzir essa opressão sobre o aluno: é a dialética do senhor e escravo de Hegel. O senhor oprime o escravo e ao mesmo tempo é escravizado pela máquina que ajudou a construir (TRAGTENBERG, 1990, p. 148).

Assim, retirando os aspectos mais datados da afirmação de Tragtenberg, ele destaca o controle burocrático dos professores pela burocracia, em suas várias instâncias, e dos estudantes. No caso dos professores, o controle ocorre via currículo invisível e visível[6], gerando o processo de atrelamento do professor para manter o emprego ou seguir na carreira. O controle dos estudantes, por sua vez, ocorre através do processo de sistemas de exames, gerando o atrelamento do estudante para conseguir aprovação.

O sistema de exames é, segundo Tragtenberg, parte da pedagogia burocrática. O sistema de exames, segundo ele, é um “batismo burocrático do saber”, retomando afirmação de Marx (1979). É através dele que a universidade viabiliza o poder sobre os estudantes. É uma pedagogia repressiva que promove a avaliação rígida através do sistema de notas, valoração da aula magistral (ou magna) e troca de informações a respeito dos estudantes por parte dos professores. Porém, o sistema de exames é uma parte desse processo: “o exame é a parte visível da seleção; a invisível é a entrevista, que cumpre as mesmas funções de ‘exclusão’ que possui na empresa em relação ao futuro empregado. Informalmente, docilmente, ela ‘exclui’ o candidato” (TRAGTENBERG, 1990, p. 13).

Os professores estão submetidos ao processo da carreira – e é onde o currículo invisível ganha força –, que, sobre pretexto de “qualificação docente e estímulo ao ensino”, realiza um processo de disciplinamento da força de trabalho docente. Dessa forma, as universidades (o que ocorre também nas escolas de outros níveis, como fundamental e médio, mas sob outras formas) buscam formar força de trabalho para servir ao modo de produção capitalista e assim se torna “aparelho ideológico de inculcação”, gerando um “tipo de saber operacional e acrítico (positivo)”, maneiras de sentir e agir de acordo com a racionalidade do poder, exigência de disciplina, pontualidade e discrição do estudante, futuro burocrata ou intelectual.

Tragtenberg explica esse processo de burocratização escolar com o apoio de autores como Marx, Weber, Selznick, Etzioni e Lobrot, entre outros. Ele trabalha com outros termos que acabam ajudando a compreender outros aspectos da burocracia educacional.

Uma questão da análise que Tragtenberg faz da educação e que passa desapercebido por grande parte dos seus intérpretes é a relação da burocracia com o saber. Geralmente se reconhece o significado da inculcação que Tragtenberg atribui à escola, cuja consciência tem sua origem em Marx (MARX; ENGELS, 1992). Pelo que ficou evidente, até aqui, a burocracia exerce um duplo controle: dos professores e dos estudantes. Por outro lado, esse controle é disciplinar e intelectual. O controle dos professores ocorre via processos burocráticos e o currículo invisível e o controle dos estudantes via sistemas de exames (e também presença, tal como Tragtenberg coloca em outros momentos). O controle intelectual é sobre os professores e destes sobre os estudantes, bem como o controle disciplinar.

A questão é que Tragtenberg relaciona o controle burocrático do saber com a produção e a reprodução do saber. Ele recorda o dito de Bacon: “saber é poder”. As instituições burocráticas, não apenas escolares, são responsáveis pela produção de saber ideológico a serviço do poder. Segundo Tragtenberg,

a instrumentalização do saber é uma das características dominantes na cultura do capitalismo moderno, e é produzida por alguns “aparelhos ideológicos” como, por exemplo, a American Sociogical Association (ASA), a American Political Science Association (APSA) e a American Historical Association (AHA): “elas forneceram especialistas para os setores empresariais e governamentais nos últimos 25 anos” (1990, p. 17).

O vínculo dessas associações com determinados organismos e ao Estado é perceptível, tanto é que, como diz Tragtenberg, elas “gozam de insenção de impostos graças ao servilismo ante o Estado” e outras instituições. Assim, “cobertos pelo ideal de ‘neutralidade ante valores’ a maioria dos acadêmicos universitários vegetam no conforto intelectual agasalhado pelas sinecuras burocráticas e legitimadas ideologicamente pelo apoliticismo”, sendo esta “a ideologia dos que não tem ideologia”, que anda paralelamente “à despreocupação sobre as implicações éticas e políticas do conhecimento (TRAGTENBERG, 1990, p. 18). Desta forma, as universidades e outras instituições educacionais estão articuladas com Fundações, Instituições, Agências, “Multinacionais”.

Assim como o Pentágono encarregava o MIT (Massashussetts Instituto of Tecnology) da produção de bombas e armas bacteriológicas, ocorre a mediação por firmas ou fundações. A automatização dos campões de batalha futuros é elaborada nos campus; nesse esquema, a Universidade da Califórnia se encarrega de atualizar o esboço de sistemas de radar e armas nucleares, a Universidade de Chicago fornece a Pinochet, Milton Friedman e sociólogos, a Universidade de Berkeley fornece aos indonésios economistas como assessores, a Universidade da cidade de Nova Iorque aceitou financiamento do Irã para um programa “cultural e acadêmico” com a finalidade de espionar as atividades de estudantes iranianos nos EUA” (TRAGTENBERG, 1990).

Esse processo aponta para determinações da produção intelectual nas universidades e outras instituições. Esse é o processo de produção, mas existe também um processo complementar, que é a reprodução desse saber a serviço do poder e aqui se torna mais evidente a importância da burocracia universitária e escolar, pois elas são as responsáveis por garantir o controle da produção e reprodução do saber nas instituições escolares.

No âmbito da reprodução, temos a relação entre professor/intelectual e estudante. O professor, com a passagem da universidade pré-moderna (“mandarinal”) para a universidade moderna (“tecnocrática”), deixa de ser “cão de guarda” para se tornar “cão pastor”. A universidade passa a buscar a formação de “fornadas” de “colarinhos brancos” para usinas, escritórios e dependências ministeriais. “É o mito da assessoria, do posto público, que mobiliza o diplomado universitário”. E isso vale até para os chamados “cursos críticos”, pois estes “desempenham a função de um tranquilizante no meio universitário” (TRAGTENBERG, 1990, p. 12).

Nesse contexto, Tragtenberg aponta para a ideia de “delinquência acadêmica”. Esta se opõe ao dito kantiano: “ouse conhecer”. Afinal, “se os estudantes procuram conhecer os espíritos audazes de nossa época, é fora da universidade que vão encontrá-los. A bem da verdade, raramente a audácia caracterizou a profissão acadêmica” (TRAGTENBERG, 1990, p. 13). Uma das doenças características da delinquência acadêmica é a separação entre o fazer e o pensar.

Nesse sentido, a educação serve para a reprodução do capitalismo, em todos os seus níveis. Essa reprodução ocorre via burocratização, que tem suas fontes fora das instituições escolas, nas burocracias das fundações, institutos, ministérios, e acabam chegando às instituições escolares e que, nestas, exercem o controle sobre professores e estudantes.

Educação, Autogestão e Emancipação

Esse quadro, no entanto, parece muito pessimista. Além disso, Tragtenberg, para quem lê o presente artigo apenas até aqui, poderia parecer um “reprodutivista”, ou melhor, um “crítico-reprodutivista”[7]. Porém, não é esta a posição de Tragtenberg e isso fica claro quando ele discorda explicitamente dos crítico-reprodutivistas:

A universidade não pode ser vista no âmbito da ótica funcionalista de Althusser ou Bourdieu, como formadora de ideias e pessoas a ‘serviço de’, mas como parte de uma rede complexa de interações entre os distintos mecanismos da superestrutura (instituições e ideologias, sistema político e realidade cultural) (TRAGTENBERG, 1990, p. 71).

Mas além dessa observação crítica, Tragtenberg traz mais elementos que mostram sua distinção em relação aos crítico-reprodutivistas. O ponto de partida dessa recusa da concepção crítico-reprodutivista é a sua concepção marxista e posição revolucionária. Essa recusa é, obviamente, uma recusa da educação burocrática e que serve ao processo de reprodução. E essa recusa ocorre através de dois processos que vão além da crítica de suas raízes, objetivos e interesses. Ou seja, além da recusa explicitada na crítica da educação burocrática acima apresentada, Tragtenberg aponta duas formas alternativas de educação em contraposição a ela. A primeira é externa às instituições escolares e a segunda é interna a elas.

No plano externo, Tragtenberg retoma a concepção de Marx sobre a autoeducação do proletariado[8]. E Tragtenberg reconhece isso ao colocar que a opção à educação burocrática “é a reafirmação dos princípios educacionais da Associação Internacional dos Trabalhadores, na sua defesa de uma ‘educação integral e igualitária’ como condição da autoemancipação dos trabalhadores e portanto de toda a sociedade” (TRAGTENBERG, 1980, p. 57). A ideia de uma nova educação voltada para a autoemancipação dos trabalhadores remete a uma nova forma para sua efetivação. E é nesse contexto que Tragtenberg aponta algumas características desta nova forma de educação:

Para tal, é necessário contrapor uma educação crítica. Da mesma maneira que o movimento que produz e reproduz o capital leva à produção e ampliação do trabalhador coletivo, na educação, o mesmo movimento que produz a pedagogia burocrática, cria condições para emergência de uma pedagogia antiburocrática fundada na:

Autogestão – supõe a gestão da educação pelos envolvidos no processo educacional; isso significa a devolução do processo de aprendizagem às comunidades onde o indivíduo se desenvolve (bairro, local de trabalho).

Autonomia do indivíduo – o indivíduo não é meio: é fim em si mesmo. No universo das coisas (mercadorias) tudo tem um preço, porém, só o homem tem uma dignidade. Negação total de prêmios ou punições.

Solidariedade – da mesma maneira que o capitalismo cria a competição entre os trabalhadores, para superá-la eles desenvolvem formas de solidariedade – sindicatos, por exemplo. Daí a educação autogestionária fundar-se prioritariamente não na competição e sim na solidariedade, ser uma educação crítica permanente das próprias formas educativas; antiautoritária, preocupando-se em desenvolver as potencialidades de cada um, eis que o indivíduo não vale tanto pelo que sabe quanto pelas pré-condições que tenha para saber mais; seja globalizante, não restrita ao taylorismo intelectual.

Estes objetivos aliam-se à autogestão do ensino, onde tenham poder decisório os envolvidos diretamente com o ensino (alunos, professores, pais); daí a necessidade de as Associações de Bairro participarem do controle desse Centros de Educação (TRAGTENBERG, 1980, p. 57-58).

Essa posição de Tragtenberg é derivada de sua concepção autogestionária e que aponta para a superação do capitalismo. Nesse contexto, a educação burocrática, reprodutora do capitalismo, deve ser combatida e alternativas devem ser produzidas para que ela uma nova forma de educação surja, tal como a autoeducação do proletariado. As experiências nesse sentido revelam a possibilidade de concretização desse processo, pois o saber operário foi “desapropriado” e ele necessita ser reapropriado pela classe operária, tal como ocorreu em algumas experiências históricas.

No plano interno, ou seja, no interior das instituições escolares, Tragtenberg também apresenta uma concepção alternativa, que é uma nova pedagogia. A constatação de Tragtenberg de que a educação moderna, especialmente as universidades, é organizada burocraticamente, cuja função é reproduzir as relações de produção capitalistas, aponta para uma percepção crítica e, ao mesmo tempo, a necessidade de uma alternativa. Tragtenberg observa a existência da contradição no interior da organização burocrática escolar: “a mesma realidade que cria a burocracia cria a oposição à mesma” (TRAGTENBERG, 1990, p. 58). Nesse contexto, Tragtenberg aponta para a contribuição de Lobrot, que, segundo ele, é fundamental:

Lobrot institui o conceito de uma autogestão pedagógica[9] partindo da ideia central de que a aprendizagem significativa se dá por meio de um interesse real. A autogestão pedagógica tem como centro não o programa, o professor, a instituição, mas o aluno. Ela é orientada no atendimento às motivações do aluno, daí sua disponibilidade à aprendizagem significativa. O mesmo se dá com o professor: de “máquina programada” ele passa a gerir com o aluno o programa (TRAGTENBERG, 1990, p. 59).

Além dessa breve referência a Lobrot, Tragtenberg não desenvolveu grandes reflexões ou dedicou obras específicas sobre a autogestão pedagógica. Porém, é nítida a sua proximidade com tal concepção, pelo menos no âmbito de projeto de educação[10], e isso pode ser visto em seus textos sobre a pedagogia libertária de Ferrer e algumas outras passagens. Em seu artigo sobre a Escola Racionalista ou Moderna, demonstra concordância com o pensador espanhol. A pedagogia de Ferrer “preocupava-se em desenvolver no aluno a análise crítica dos juízos, a valorização do pensamento científico, educando integralmente o homem, nos aspectos afetivo e racional”. Nesse contexto, a ideia de educação integral (afetiva e racional) e pensamento crítico é uma das características da “pedagogia libertária” de Ferrer. Ele trazia propostas como “coeducação de ambos os sexos”, “coeducação das classes sociais”, “higiene escolar”, renovação dos professores (inclusive uma “escola racionalista” para professores), fim de “prêmios e castigos”, abolição dos exames, etc.

Desse conjunto de propostas de Ferrer, algumas se encaixavam como luva nas concepções pedagógicas de Tragtenberg, tal como o fim de prêmios e castigos e a abolição do sistema de exames. Além dessa abordagem da pedagogia de Ferrer, Tragtenberg também comentou outros autores que alguns julgam defender uma “pedagogia socialista”, tal como Pistrak (TRAGTENBERG, 2011)[11]. Porém, nesses casos, Tragtenberg reafirma sua posição de crítica da educação burocrática (tal como a referência ao taylorismo por Pistrak) e a defesa dos elementos contestadores (tal como a ideia de Pistrak de “auto-organização das crianças”). A concepção pedagógica de Tragtenberg é, por conseguinte, centrada na ideia de autogestão e cujo objetivo é a emancipação humana.

Em síntese, Tragtenberg apresenta uma concepção de pedagogia alternativa ao que pode ser denominado “pedagogia burocrática”, ligada à educação burocrática. Por conseguinte, sua concepção de educação não apenas efetiva uma crítica da educação e escola burocráticas, incluindo as universidades, como também aponta para a necessidade de autoeducação do proletariado em suas próprias instâncias de luta e para uma renovação pedagógica libertadora.

Considerações finais

A abordagem sobre o pensamento educacional de Maurício Tragtenberg consistiu na busca em resgatar sua produção e seu caráter crítico. Sem dúvida, Tragtenberg retomou e apontou vários problemas da educação burocrática e não isolou este fenômeno, colocando-o como parte de uma “rede complexa de instituições”, bem como apontou para a necessidade de uma nova pedagogia.

Sem dúvida, a sua concepção de educação é crítica e vinculada ao projeto autogestionário, o que é seu ponto forte. Também é possível discordar de alguns elementos pontuais de sua concepção, tal como a ideia de “autogestão pedagógica”. Não se trata de recusar essa proposta pedagógica em si, pois enquanto projeto é o ideal, mas em alguns pontos particulares e a própria ideia de autogestão pedagógica[12]. A autogestão pedagógica de forma generalizada pressupõe a autogestão social. Ela é possível fora das instituições escolares, tal como no caso da autoformação, ou autoeducação, do proletariado.

Porém, para além desses detalhes, a obra de Maurício Tragtenberg sobre educação tem o mérito de mostrar o funcionamento da educação burocrática, seus vínculos com o poder e o capitalismo, numa ampla hierarquia burocrática, bem como os seus efeitos sobre a produção intelectual, sobre os intelectuais (professores e pesquisadores), sobre os estudantes. E deixar claro o pior efeito: a delinquência acadêmica, o conformismo, a reprodução da ideologia e da hegemonia, entre outros elementos. Da mesma forma, a crítica do sistema de exames e do burocratismo escolar é outro elemento importante. A retomada da ideia de Marx da autoeducação do proletariado e o apontamento para a necessidade de uma nova pedagogia, também são outras contribuições importantes de Tragtenberg. Nesse sentido, a concepção de educação de Maurício Tragtenberg deve ser resgatada e reconhecida como uma das mais importantes na contemporaneidade. Com sua obra, ele contribuiu para a consciência de que a escola é um “cemitério de vivos” (Lima Barreto) e a consciência é o pressuposto para a luta e a superação da situação que a gerou e é denunciada por ela.

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* Professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG) e Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB).

[1] A erudição de Maurício Tragtenberg é o que podemos denominar “enciclopédica agregada”, na qual o domínio de uma grande quantidade de obras e autores é acompanhada por um eixo orientador que direciona o processo de leitura num sentido peculiar, que é o do autor/pesquisador. Assim, ela se difere da erudição enciclopédica fragmentária, na qual falta a agregação num eixo orientador e da erudição significativa, que é aquela na qual a erudição é marcada por uma síntese assimiladora que gera novas descobertas e teorias, como foi o caso de Marx.

[2] Esse é o caso de George Lapassade e René Lourau (VIANA, 2020b), autores que destacaram a ideia de “autogestão pedagógica”, que será retomada por Tragtenberg.

[3] Esse termo é um tanto quanto complicado e abarca aqueles que fogem do que Tragtenberg denominou “ortodoxia” (e também assim se autodenominavam), ou seja, a social-democracia e a ortodoxia kautskista e o bolchevismo e a ortodoxia leninista. Ambos os termos são problemáticos, pois ao considerar Kautsky e Lênin como marxistas ortodoxos, acaba considerando-os não apenas marxistas, mas fiéis ao pensamento de Marx, o que ele mesmo denunciava como equivocado. Da mesma forma, considerar Pannekoek, Gorter, etc., como “heterodoxos” significa colocá-los como discordantes do pensamento de Marx, sendo que são muito mais fidedignos do que os demais. Além disso, existem outros problemas com tal terminologia, já analisados em outro lugar (VIANA, 2018) e que por isso nos limitamos a estes aspectos.

[4] “Os aparelhos ideológicos não criam a ideologia; inculcam a ideologia dominante” (TRAGTENBERG, 1990, p. 44).

[5] Sem dúvida, o termo reprodução fez sucesso através das concepções funcionalistas e as adaptações estruturalistas para a sociologia e outras ciências humanas. E isso nem os supostos "marxistas", como Althusser (1989) e Lefebvre (2020) conseguiram escapar, pois o paradigma hegemônico na época era justamente o reprodutivismo (VIANA, 2019), que entra em crise a partir do Maio de 1968, mas ainda persiste até o final dos anos 1970.

[6] Quando Tragtenberg coloca a questão da opinião de alguém do Serviço de Informações e Segurança, está se referindo ao que era comum durante o regime militar e do qual ele mesmo fora vítima. Porém, o currículo invisível continua funcionando através do processo burocrático de coleta de informações sobre os professores, o que é reproduzido, inclusive, por outros professores. Mas além disso, é possível entender o currículo invisível também como um conjunto de relações, saberes, etc., que são os desejados pelas instituições e burocratas e professores/intelectuais que reproduzem esse processo. Em outra passagem, o próprio Tragtenberg já coloca esse termo num sentido mais amplo: “para o professor, há o currículo visível, publicações, conferências, traduções e atividade didática, e há o currículo invisível – esse de posse da chamada ‘informação’ que possui espaço na universidade, onde o destino está em aberto e tudo é possível acontecer”. É através da nomeação, da cooptação dos mais conformistas (nem sempre os mais produtivos) que a burocracia universitária reproduz o canil de professores” (TRAGTENBERG, 1990, p. 13).

[7] Os autores denominados “reprodutivistas” são aqueles que julgam que as instituições, tal como a escola, possuem a função de reprodução e não notam nenhum problema nisso, sendo que é o que elas devem fazer. Os “crítico-reprodutivistas” concordam com a existência da reprodução, mas possuem uma percepção crítica e negativa ao seu respeito. Porém, não apresentam nenhuma alternativa real. Entre os mais famosos crítico-reprodutivistas podemos citar Bourdieu e Passeron (1982), autores do livro A Reprodução.

[8] Marx aborda a autoeducação do proletariado, que se realiza no processo da luta de classes (MARX; ENGELS, 1988). Ela ocorreria no processo amplo de luta de classes, no qual temos, por um lado, a luta operária, que gera relações de solidariedade, mudança de valores e consciência, etc., reforçadas pelas lutas culturais na sociedade e pelo apoio que o bloco revolucionário e outros setores da sociedade (inclusive intelectuais dissidentes que rompem com as ideologias dominantes) que se aliam ao proletariado no sentido de contribuir com esta autoeducação. Assim, a ideia de autoeducação do proletariado de Marx faz parte de sua análise crítica da educação capitalista e forma de perceber a gestação de uma nova cultura que antecipa novas relações sociais, bem como expressa o seu esboço no momento em que se manifesta (VIANA, 2004).

[9] Aqui Tragtenberg comete um equívoco, pois Lobrot não criou o termo “autogestão pedagógica”. A criação desse termo é atribuída à Georges Lapassade, embora haja afirmações segundo a qual ele teria vários “criadores” (“pais”), e, nesse sentido, Lobrot poderia ser um deles. Sobre isso e sobre a disputa sobre quem criou o termo entre os adeptos do Movimento Freinet e os representantes da “pedagogia institucional”, consulte-se a tese de doutorado de Ducrot (2013). Porém, Tragtenberg certamente usou uma linguagem mais coloquial e o “instituir” aí não significa criar, mas “usar”. 

[10] A prática educacional, ou seja, como professor, de Tragtenberg mostra alguns elementos do que se chamou “autogestão pedagógica”, mas também elementos estranhos a ela (SILVA, 2008). De qualquer forma, não é possível pensar a autogestão pedagógica, tal como defendida pelos representantes da análise institucional, em apenas alguns elementos, em parcelas. Porém, as poucas passagens sobre autogestão pedagógica e termos próximos em Tragtenberg nunca foi no sentido de uma adesão às propostas dos representantes da chamada “pedagogia institucional”.

[11] Sobre Pistrak, cf. Golovaty, 2017a; Golovaty, 2017b.

[12] Entre estes pontos particulares há a ideia que ele retoma de Lobrot, o que parece significar sua concordância, de que “ autogestão pedagógica tem como centro não o programa, o professor, a instituição, mas o aluno. Ela é orientada no atendimento às motivações do aluno, daí sua disponibilidade à aprendizagem significativa”. Esse ponto é problemático – e cai no equívoco de todas as pedagogias não-diretivas –, pois se esquece da luta de classes e de que os estudantes, tal como existem hoje, são formados por e para esta sociedade, tal como já colocava Fromm (1981) e, portanto, centrar a educação apenas no aluno, tal como existe hoje, significa não compreender que este vai, espontaneamente, devido as determinações sociais (família, meios oligopolistas de comunicação, grupos juvenis, ideologias, redes sociais, paradigma hegemônica e sua popularização que atinge os indivíduos dessa sociedade) reproduzir elementos problemáticos da sociedade capitalista. É por isso que uma autogestão pedagógica não é possível no interior das escolas – cujo caráter burocrático não deixará de existir dentro da atual sociedade – e por isso o mais adequado é defender a pedagogia autogestionária (VIANA, 2015).

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Publicado originalmente em:

VIANA, Nildo. A Concepção de Educação em Maurício Tragtenberg. In: SILVA, Luzia Batista de Oliveira Silva; Antonio Gilberto Balbino. (Org.). Teoria Crítica e Teorias Críticas Latino-Americanas e Educação. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2020.

(a edição ficou sem a introdução por erro gráfico).