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segunda-feira, 13 de abril de 2020

CAPITALISMO E PANDEMIA

Governo chinês está até "queimando" dinheiro para combater o ...

CAPITALISMO E PANDEMIA

Nildo Viana

A relação entre capitalismo e pandemia é complexa e envolve dois elementos fundamentais. O primeiro elemento é a produção capitalista de pandemias. O segundo elemento é o combate à pandemia no capitalismo. Derivado disso, temos um terceiro elemento, que são as consequências das pandemias na sociedade capitalista. Isso pode ser abordado de forma abstrata, num plano mais teórico, ou pode ser abordado no plano concreto do capitalismo contemporâneo. Abordamos, inicialmente, num plano mais abstrato e depois num plano mais concreto.

O primeiro elemento que é necessário destacar é que o capitalismo produz pandemias. Sem dúvida, antes do capitalismo existiram surtos, epidemias e algo próximo de pandemias[1]. Porém, o capitalismo gera uma mundialização antes inexistente e além disso cria uma divisão internacional do trabalho que gera uma interdependência entre os países e relações internacionais constantes. A ampla circulação de mercadorias é veloz e cria fluxos internacionais dos agentes responsáveis por sua materialização. O desenvolvimento tecnológico, que afeta meios de transportes, e a circulação de mercadorias torna o fluxo internacional de pessoas algo cada vez mais intenso. Por outro lado, as ações estatais e militares também movimentam pessoas internacionalmente, além dos eventos esportivos e artísticos, bem como educação e trabalho que geram mobilização internacional. As mudanças sociais mais recentes permitiram, por sua vez, maior acesso aos voos internacionais, bem como o uso de barcos, transporte terrestre, permitindo uma passagem de um país para outro sob forma mais ampla e rápida. O caso dos atuais enxames de gafanhotos que passam do mundo árabe para o continente africano é apenas um exemplo da possibilidade que o capitalismo permite de passagem de um problema de um país ou região para outro.

Nesse contexto, doenças virais são mais facilmente e mais rapidamente repassadas de um país para outro e quanto mais se desenvolve o capitalismo, isso é mais intenso. Claro que podemos tratar também da origem dos vírus e seus vínculos com o capitalismo. Diversos vírus podem emergir graças a mudanças ambientais e climáticas, provocadas pelo capitalismo. Os vírus também podem surgir através da sua fabricação pelos próprios seres humanos, seja para guerra biológica, seja por interesses farmacêuticos para lucrar com a cura posterior da doença fabricada.
Assim, o capitalismo é um produtor de pandemias, embora isso não apareça imediatamente na consciência das pessoas, pois o imediato é mais visível, enquanto que as mediações/determinações são menos perceptíveis. Um acontecimento é rapidamente perceptível em si, mas o seu processo de constituição, suas determinações, já não são acessadas pela consciência imediatamente, com raras exceções. Um vírus que surge na cidade X remete para a responsabilização desse local e não das condições sociais, ambientais e outras, que permitem sua emergência, bem como transmissão e disseminação.

O segundo elemento que devemos destacar é o combate às pandemias no capitalismo. O capitalismo tende a criar um alto grau de disseminação de doenças virais, devido aos elementos já aludidos, e isso é mais grave quando o modo de transmissão é mais amplo e o grau de transmissibilidade é mais elevado. No caso de alguns vírus, a pandemia pode demorar mais tempo do que no caso de outros, e assim o combate é mais fácil no primeiro caso. Quanto maior é a velocidade de transmissão, maior é sua disseminação. E, nesse caso, piores são as condições para seu combate.

No capitalismo, o combate à uma pandemia ocorre fundamentalmente através do aparato estatal e, secundariamente, através dos serviços de saúde (estatais e privados) e de iniciativas privadas, incluindo o capital farmacêutico, instituições de pesquisa, entre outras. Porém, o Estado não pode priorizar o combate à pandemia, pois está vinculado a outros interesses, pois ele expressa os interesses da classe capitalista. Esse combate só se torna prioridade quando ele aparece como ameaça ao capitalismo, seja no plano meramente econômico, seja no plano das reações populares diante do caos que pode se instalar. E isso é mais grave no atual estágio do capitalismo, comandado pelo regime de acumulação integral, no qual o estado é neoliberal e desestruturou sua coordenação da economia, reduzindo o intervencionismo estatal, privatizando empresas estatais, etc. Assim, o Estado capitalista tem uma capacidade limitada para enfrentar pandemias com alta transmissibilidade e disseminação.

Os serviços de saúde também não são capazes de enfrentar uma pandemia, pois eles funcionam de acordo com a lógica capitalista da oferta e da procura. Os serviços privados de saúde, incluindo planos de saúde, hospitais, clínicas, profissionais, etc., possuem uma oferta que é de acordo com a demanda existente, que é a daqueles que podem pagar ou possuem planos de saúde. A oferta dos serviços privados de saúde gira em torno da demanda efetiva e não da demanda potencial. Por exemplo, dos 100% das pessoas que possuem planos de saúde, podemos dizer que, hipoteticamente, apenas 10 ou 20% o usam simultaneamente. O capital sanitário garante uma oferta equivalente à essa demanda efetiva e não em relação à demanda potencial, que é de 100% dos usuários. A razão disso é óbvia: o capital sanitário visa o lucro e, portanto, gera a oferta relativa à demanda efetiva para poder lucrar e oferecer mais do que isso diminuiria a lucratividade. Ele tem capacidade para ampliar a oferta e pode aumentá-la um pouco, mas ela é limitada e a margem de aumento possível é relativamente pequena, especialmente em curto prazo. Logo, uma pandemia com alto grau de transmissibilidade e disseminação tende a aumentar drasticamente a demanda e isso ocorre sem a capacidade de aumento da oferta na mesma proporção, sendo geralmente muito inferior.

Os serviços estatais de saúde, por sua vez, não visam lucro. No entanto, eles possuem despesas, como a remuneração dos funcionários, instalações, materiais para atendimento, etc. Isso não é gratuito, embora os usuários não paguem diretamente por isso. Os serviços estatais de saúde conseguem seus recursos através das verbas que são repassadas pelo Estado, que transfere parte da renda estatal para eles. A renda estatal, por sua vez, tem sua origem na sociedade e, no fritar dos ovos, do mais-valor global produzido pelo proletariado no conjunto da sociedade e drenada sob a forma de impostos, taxas e outros meios. Porém, o aparato estatal tem inúmeras despesas, desde a burocracia estatal aos diversos aparatos estatais (educação, cultura, infraestrutura, etc.) e por isso os recursos cedidos para o setor de saúde dependem de várias determinações. No capitalismo contemporâneo, com a instauração do neoliberalismo, há a diretriz de diminuir os gastos estatais com políticas de assistência social, tal como saúde e educação. Independentemente disso, os serviços estatais de saúde apresentam uma oferta muito inferior à demanda efetiva, e, por conseguinte, é incapaz de atender a demanda potencial. Tendo em vista que os usuários desses serviços são geralmente indivíduos das classes inferiores, que possuem piores condições de vida, sanitárias, urbanas, o que gera uma maior tendência para problemas de saúde, bem como menor capacidade financeira de buscar serviços privados, a situação é calamitosa. Isso significa pessoas não atendidas e até morte por falta de atendimento dos serviços de saúde. Num momento de pandemia, na qual a demanda efetiva aumenta drasticamente, especialmente no caso já citado de alto grau de transmissibilidade e disseminação, os serviços estatais de saúde se tornam incapazes de atender esse aumento de demanda, bem como, com o passar do tempo, ela fica ainda mais restrita por causa dos gastos de recursos (como remédios, vacinas, etc.), a não ser que o Estado passe a repassar verbas extras para que mantenha um atendimento mínimo.

Sem dúvida, a ação estatal pode ser também preventiva e de contenção. É possível, por exemplo, fechar os aeroportos para evitar a entrada de pessoas contaminadas, bem como outras medidas. As medidas preventivas, quanto mais rápidas ocorrerem, podem ser mais eficazes. Porém, dificilmente um país consegue manter por muito tempo esse tipo de medida, tanto por necessidade econômica como por pressão social. Logo, a sua eficácia depende da velocidade da transmissão e disseminação, sendo mais eficaz se for realizada antecipadamente, o que é difícil devido à resistência de setores da sociedade, especialmente pelo perigo não ser percebido e assim ser um ato aparentemente sem justificativa ou por outras razões, como apego aos interesses imediatos, crenças irracionais, entre outras possibilidades. 

É claro que isso varia de acordo com a época e sociedade. No passado, com o Estado intervencionista, o controle estatal seria mais fácil. Hoje, com o Estado neoliberal, é mais difícil. Antes, a disseminação era um pouco mais lenta, agora é mais rápida. Além disso, os serviços estatais nos países capitalistas imperialistas, mesmo com seu enfraquecimento com a emergência do neoliberalismo, possuem muito mais recursos do que nos países de capitalismo subordinado, para citar apenas um exemplo. No entanto, apesar dessas diferenças, esse é o caso que, com variações de grau e intensidade, ocorre a nível mundial.

Por fim, temos as consequências de todo esse processo. A primeira consequência que podemos observar é quem é mais atingido pela pandemia. No início do processo, são indivíduos das classes superiores os mais atingidos. No atual caso do coronavírus, por exemplo, isso é perceptível, tal como se vê no caso da comitiva do Presidente Jair Bolsonaro ou a cantora Preta Gil, que estiveram entre os primeiros casos de contágio. Uma vez que o vírus chega no país, ele começa a ser transmitido localmente. Os indivíduos das classes superiores repassam o vírus para outros da mesma classe e também para indivíduos das classes inferiores, como trabalhadoras domésticas, funcionários de lojas e empresas, etc. Quando a transmissão se torna local, tende a se expandir para as classes inferiores. Essas, devido suas condições financeiras, ambientais, sanitárias, entre outras, são mais frágeis diante de uma pandemia. E isso é mais grave ainda no caso dos trabalhadores, pois grande parte deles não são dispensados ou não podem deixar de trabalhar. Logo, ficam mais expostos às doenças contagiosas.

As ações estatais visando conter o avanço da disseminação, tal como paralisação de trabalho e outras atividades sociais, bem com fechamento de comércio e serviços, tende a gerar problemas econômicos e quando chega ao ponto de atingir o abastecimento, pode gerar fome, revoltas e outros processos que são de difícil previsão, mas que pode incluir disseminação do vírus. Mesmo que isso não aconteça, o consumo e a produção tendem a ser atingidos, com maior ou menor gravidade dependendo da ação estatal e do contexto mais geral, o que tende a gerar, mesmo após o fim da pandemia, grave crise econômica e outras que podem lhe acompanhar.

Assim, a fome, o desemprego, a morte de infectados, são algumas das consequências mais a curto prazo de uma pandemia de altas proporções, e, a médio prazo, uma grave crise econômica que pode gerar muitos problemas sociais e atingir drasticamente as classes inferiores, aumentando a lumpemproletarização e o empobrecimento, bem como atingido as classes trabalhadoras com a necessidade de um maior grau de exploração para a retomada da acumulação capitalista.

Em síntese, o capitalismo incentiva a produção de pandemias e, ao mesmo tempo, não tem capacidade de contê-las quando elas são mais graves, o que pode ser intensificado por ações governamentais lentas ou incompetentes, ou, ainda, por existência de um aparato estatal de pouca força intervencionista, como é o caso do atual estado neoliberal.

Num nível mais abstrato de análise, essa é a situação. Passando para uma maior concreticidade, tal como o caso do coronavírus, temos uma situação bem específica e algumas consequências e tendenciais. Ainda não se sabe adequadamente (e de forma confiável) a origem desse vírus, bem como ainda não há uma explicação de suas características específicas (alto grau de transmissibilidade e disseminação, para além da questão social, tal como a mundialização e fluxo intenso de pessoas, mercadorias, etc.)[2]. Porém, a pandemia se concretizou e as ações estatais foram, em muitos casos, relativamente rápidas e fortes, o que foi surpreendente e que ocorria por acesso a informações que a maioria da população não possui (e inclusive algumas talvez ainda não reveladas). A princípio, as medidas estatais relativamente rápidas e voltadas para prevenção e contenção, tem como justificativa a incapacidade dos serviços de saúde de atender uma demanda crescente e inesperada, o que é verdade, mas não parece ser toda a verdade. De qualquer forma, a pandemia é uma realidade e as ações governamentais, que variam de país para país e mesmo numa mesma nação com o passar do tempo, foram relativamente rápidas e geralmente voltadas para a contenção. O coronavírus se apresentou como uma ameaça e por isso as medidas estatais foram tomadas.

Um elemento importante é que o coronavírus provocou ações não liberais de governos neoliberais. A intervenção estatal ampliada, o aumento dos gastos estatais, entre outras iniciativas, mostram uma ação estatal contra os ditames do neoliberalismo hegemônico. As chamadas medidas de contenção, no entanto, promovem várias críticas e isso tem sua razão de ser: são não liberais e, além disso, atingem o processo de produção e distribuição de mercadorias, que, em curto prazo, pode ser aceitável, mas sua extensão no tempo vai se tornando, para o capital, cada vez menos sustentável, bem como atinge os pequenos proprietários, trabalhadores autônomos, etc., e tende a gerar falências, desemprego, diminuição do consumo, etc. Essa é uma das razões para que muitos se coloquem contra as políticas de contenção via reclusão doméstica, ou “isolamento social”.

O dilema do capitalismo contemporâneo a partir da expansão do coronavírus é: ou se busca a contenção gerando uma grave crise econômica posterior ou não se contém e se gera uma grave crise sanitária imediatamente. A política de contenção adia a crise, embora com o passar do tempo se aproxima cada vez mais dela. Ela adia a crise sanitária, mas se aproxima da crise econômica se se prolongar muito. A política de não-contenção deixa a crise sanitária se instalar e tenta, através disso, deixar as consequências nefastas atingirem apenas os indivíduos do chamado “grupo de risco” e classes inferiores, tentando manter a “normalidade” do processo de produção e distribuição capitalistas. Assim tenta evitar a crise econômica[3]. Se a política de contenção conseguir um sucesso relativamente mais rápido, a crise econômica posterior poderá ser mais amena, mas não é isso que parece ocorrer, pois o coronavírus parece ser mais perigoso do que se pensa e o abandono das políticas de contenção podem significar o seu retorno[4], sendo necessário retomar tais políticas e numa situação ainda mais difícil.

No entanto, as consequências da pandemia no atual contexto do capitalismo contemporâneo apontam para algumas tendências principais. As ações governamentais já contrariam as diretrizes neoliberais e as consequências econômicas de tais medidas e da pandemia, tendem a gerar uma crise do regime de acumulação integral. Esse regime de acumulação já se encontrava em desestabilização e já apontava para uma tendência no sentido de entrar em crise. Contudo, a crise agora é uma tendência ainda mais poderosa e quase inevitável, pois os gastos estatais com as políticas adotadas vão gerar uma dívida pública superior, bem como ainda serão necessárias, quer se queira ou não, a sua continuidade, e a inflação, depois de sua contenção monetarista por um bom tempo, tende a voltar com força. Ao lado disso, o desemprego, falências, e outras consequências, que podem variar em magnitude de país para país, ocorrerá inevitavelmente, sendo que o que se pode especular é sobre sua intensidade e gravidade.

Assim, o cenário pós-epidemia aponta para uma forte tendência para a crise do regime de acumulação integral que, por sua vez, pode gerar uma crise do capitalismo. Se isso já estava no horizonte, agora se torna ainda mais provável e próximo. A passagem de uma crise do regime de acumulação para uma crise do capitalismo é tendencial, tal como ocorreu na crise do regime de acumulação conjugado no final dos anos 1960. Assim, as políticas estatais pós-pandemia poderão seguir o sentido de mais neoliberalismo, o que tende ao suicídio político de governos, ou uma retomada do intervencionismo estatal, seja sob a forma de um keynesianismo autoritário, ou outra forma estatizante e que combine intervencionismo estatal na economia para salvar empresas capitalistas e alto grau de repressão para evitar acirramento das lutas de classes[5].

Uma das tendências, portanto, é a crise do neoliberalismo. Essa forma estatal se mostra questionada pelas ações governamentais distintas das diretrizes do neoliberalismo durante as políticas de contenção do coronavírus, e o caos econômico que virá posteriormente demandará sua continuidade, sendo uma nova necessidade do capital e, por conseguinte, nova tarefa política e econômica da burguesia e do aparato estatal. Desta forma, os governos neoliberais ou liberal-conservantistas devem mudar suas políticas ou serem substituídos[6]. A ideologia neoliberal e as diversas concepções liberais deverão se enfraquecer. Assim, a tendência é um maior intervencionismo estatal na economia, bem como maior repressão social. Esse último aspecto deve ser fortalecido pela intensificação das lutas de classes. As greves selvagens que já emergiram apontam justamente para uma maior tendência de acirramento das lutas sociais e as consequências gerais na população, como aumento ainda maior do desemprego, dificuldades financeiras, crescimento da pobreza, tendem a generalizar o descontentamento social e manifestações, protestos, greves, etc.

Além do neoliberalismo, outros aspectos do regime de acumulação integral tendem a ser atingidos, como as relações de trabalho, no qual o capital tenderá aumentar a taxa de exploração (e o aumento do desemprego e oferta de força de trabalho podem contribuir com esse processo) e acirrar a busca de aumento de mais-valor absoluto, bem como as relações internacionais tendem a se alterar, não só por propostas nacionalistas que se fortalecerão (inclusive devido ao trauma e a uma certa paranoia que surgirão pós-pandemia), mas por medidas concretas no geral e tentativa de aumento da exploração internacional do bloco imperialista em relação ao bloco subordinado. O modo de produção capitalista será atingido pela situação pós-pandemia e a solução do capital é sempre aumentar a exploração, interna (do proletariado em cada país) e externa (dos países imperialistas sobre os países subordinados, o que significa aumento ainda maior da exploração dos trabalhadores destes últimos).

Outra tendência é a crise do paradigma subjetivista. O subjetivismo e seus derivados, como o individualismo, valoração do “sujeito” e da “subjetividade”, são correspondentes ao regime de acumulação integral e ao neoliberalismo. Uma situação na qual a estatização e intervencionismo estatal tendem a aumentar, suas bases sociais tendem a ser corroídas. A tendência ao estatismo significa uma tendência ao objetivismo e ao holismo, o que é oposto ao subjetivismo e individualismo. As concepções republicanas, nacionalistas, fascistas, social-democratas, entre outras, todas holistas, tendem a ganhar espaço e a alteração mais provável das políticas estatais também apontam para isso. A própria experiência gerada pela pandemia, apesar dos discursos imaginários e irrealistas de alguns, tende a corroer as bases sociais do subjetivismo, pois não somente as políticas de contenção significaram maior presença estatal e menos espaço para o individualismo e suas fantasmagorias, como também os discursos identitários e de grupos perdem o sentido diante da situação coletiva que atingiu a toda a população.

Assim, a tendência é o recuo das ideologias subjetivistas, incluindo a “política de identidades” e sua força nos movimentos sociais, e foco nas questões sociais, aumentando o espaço para os movimentos sociais populares e o movimento operário e de trabalhadores em geral[7]. Por mais que muitos insistam nos discursos subjetivistas, sobre identidades e “minorias”, que já se encontravam caminhando para o esgotamento, o seu espaço tende a se diluir drasticamente. Os setores que possuem uma percepção mais lenta das mutações culturais vão, com o passar do tempo, se adaptando às novas concepções hegemônicas, que, doravante, tendem a ser fundadas no objetivismo e holismo[8].

O mais provável é que a crise do regime de acumulação integral vai gerar um momento de transição, na qual alguns ainda vão insistir em saídas neoliberais e muitos vão buscar alternativas e o estatismo será a principal característica e o retorno ao keynesianismo e outras concepções semelhantes será a tendência mais forte. Em outras palavras, a classe dominante buscará uma saída e um novo regime de acumulação. As dificuldades nesse sentido são evidentes, inclusive por pressupor aumento ainda mais intenso da taxa de exploração. Sem dúvida, ainda restam como saída, nos países imperialistas, o fascismo e a guerra. Por outro lado, a tendência ao fortalecimento das lutas operárias e sociais em geral, é outro elemento que vai pesar na balança e promover uma tendência distinta e humanizadora, que é a transformação radical e total das relações sociais. O retorno da luta do proletariado e demais trabalhadores que tendem a se aglutinar ao seu redor, gera uma outra tendência que é transformar a crise do regime de acumulação em crise do capitalismo. A emergência de novas tentativas de revoluções proletárias pode ocorrer com o desdobramento dessas lutas. E, assim, do caos pode emergir uma nova sociedade. A tendência à barbárie convive com a tendência à autogestão generalizada, a sociedade autogerida.

Assim, no plano das tendências, o capitalismo pós-pandemia não será o mesmo, não só pela pandemia, mas principalmente por suas consequências econômicas. E as classes inferiores tendem a sofrer na pele as consequências e tentativas de recuperação do capitalismo pós-pandemia. O acirramento das lutas de classes e a radicalização da luta operária e das lutas sociais em geral é uma tendência poderosa, ao lado de outras. E novamente a possibilidade de transformação social radical e total se coloca no horizonte. E por isso devemos trabalhar no sentido de fortalecer essa tendência ao invés de cruzar os braços e não combater a outra tendência, um capitalismo ainda mais cruel, inclusive com tendência à regimes ditatoriais, empobrecimento populacional e guerras.

Referências

CLARKE, John. Coronavírus, clima e capital: a irracionalidade destrutiva do capitalismo. In: Mutatis Mutandis. Disponível em: https://revolucio2080.blogspot.com/2020/03/coronavirus-clima-e-capital.html

VIANA, Nildo. Hegemonia Burguesa e Renovações Hegemônicas. Curitiba: CRV, 2019.


Notas:




[1] O surto ocorre quando a disseminação de uma doença atinge repentinamente determinada região, como um bairro ou uma cidade. Uma epidemia ocorre quando a quantidade de casos é extensa em atinge diversas regiões (cidades, estados, etc.). A pandemia, por sua vez, ocorre quando uma doença se espalha e avança por várias regiões, se generalizando, atingindo, tendencialmente ou concretamente, todos os países e continentes. Algumas doenças não podem gerar pandemia, pois para esta existir teria que haver condições ambientais similares em todos os lugares atingidos (o que, no nosso planeta, é algo que somente a ação humana poderia gerar, tais como uma guerra nuclear generalizada ou poluição generalizada) ou serem contagiosas, passando de ser humano para ser humano. As doenças contagiosas são diferentes e algumas tem maior facilidade e capacidade de contágio, gerando, portanto, uma maior potencialidade para a formação de pandemia. Assim, a dengue pode gerar epidemia, mas não pandemia, pois ela é transmitida por um mosquito e esse dificilmente consegue se instalar em todos os lugares, devido às diferenças climáticas, ambientais, etc. A gripe, em suas várias formas, por exemplo, tem potencial pandêmico maior, por serem contagiosas, e mais especialmente em suas formas mais agressivas.

[2] Sem dúvida, para as pessoas crédulas e que confiam nas informações oficiais e “autoridades científicas” (com suas divergências e distintos graus de confiabilidade), não parece haver nenhuma dúvida e tudo estar suficientemente explicado. Porém, o que aqui questionamos é a confiabilidade de tais informações e análises, por mais que venham de supostos cientistas, renomados ou reconhecidos, e instituições (como a OMS – Organização Mundial de Saúde), pois os interesses por detrás destas instituições e os limites do saber científico vulgar dificilmente poderia confiança nos seus discursos.

[3] As duas crises, sanitária e econômica, estão entrelaçadas, mas o foco de alguns é a primeira e a de outros é a segunda, sendo que uma tende a gerar a outra posteriormente.

[4] Isso pode ser visto em notícias que apontam para a preocupação com isso, embora haja questões complementares a serem analisadas (imunização, por exemplo): https://noticias.r7.com/saude/coronavirus-chegar-ao-pico-da-curva-de-contagio-nao-encerra-quarentena-dizem-especialistas-04042020

[5] Inclusive discursos higienistas e sanitaristas tendem a se fortalecer e justificar/legitimar ações estatais.

[6] No caso brasileiro, o governo Bolsonaro mostrou mais uma vez sua incompetência ao não aproveitar a oportunidade para desfazer a aliança do seu conservantismo com o neoliberalismo, tanto por pressão de setores do governo e do capital, quanto por falta de capacidade estratégica. As concessões ao neoliberalismo poderiam ter sido superadas se tivesse adotado, aproveitando a situação, uma forma estatizante, que é a mais adequada ao conservantismo. Isso significa que, no caso brasileiro, o governo Bolsonaro enfrentará dificuldades crescentes para se manter e isso se tornará mais grave pelo simples motivo que o próprio capital vai abandonar as diretrizes neoliberais por necessitar de apoio estatal, o que pode significar, inclusive, o fim de tal governo antes do término do mandato ou então uma mudança drástica em sua orientação.

[7] Sem dúvida, as classes inferiores são as que mais sofrerão com a pandemia e, principalmente, a situação pós-pandemia (CLARKE, 2020).

[8] Uma rápida análise da história do capitalismo demonstra justamente o revezamento entre tais posições: iluminismo (antes da revolução francesa), romantismo (pós-revolucão), positivismo (regime de acumulação intensivo), organicismo (nazifascismo e regime de acumulação bélico), reprodutivismo (regime de acumulação conjugado pós-Segunda Guerra Mundial), subjetivismo (regime de acumulação integral, pós-1980) (VIANA, 2019). Assim, o revezamento mostra a força de determinadas concepções (que se manifestam sob formas diferentes, mas seguem alguns elementos básicos e que se observa na sequencia iluminismo-positivismo-reprodutivismo e na sequencia romantismo-organicismo-subjetivismo, sendo que determinada característica assume mais força dependendo do paradigma hegemônico, e tendo em vista que o organicismo foi regional (o nazifascismo na Alemanha e Itália), apesar de ter semelhantes que não se tornaram hegemônicos em outros países. O caráter holista esteve presente em quase todos, mas o objetivismo foi típico do iluminismo, positivismo e reprodutivismo. Essas antinomias do pensamento burguês ajudam a explicar a recombinação dos elementos da episteme burguesa em cada regime de acumulação, de acordo com as necessidades do capital e as tarefas econômicas e políticas da burguesia, efetivadas via aparato estatal, gerando paradigmas hegemônicos que lhes são correspondentes.

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