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quinta-feira, 26 de março de 2020

Marx não é “Marxista” - As Origens do Pseudomarxismo


Marx não é “Marxista”
As Origens do Pseudomarxismo

Nildo Viana

É célebre a frase de Marx: “tudo que eu sei é que não sou marxista”. O seu significado, no entanto, não é claro, para a maioria daqueles que tem acesso a ela. O que Marx quis dizer com isso? O nosso objetivo é justamente para tentar esclarecer o significado dessa afirmação.

As frases isoladas são mau interpretadas, podem gerar deformações, ou então simplificações grosseiras. É comum, por exemplo, alguns extraírem frases de Marx fora do contexto para dizer que ele é racista. Uma das mais famosas – e cômicas – é quando subtraem uma frase em que ele ironiza Proudhon sobre escravidão e, com o isolamento, atribuem ela a um pensamento de Marx. Esse é um caso de deformação (e geralmente intencional) do pensamento de Marx. Outros citam frases como “a religião é o ópio do povo” e, deixando de lado o contexto e outras afirmações associadas, para simplificar sua análise do fenômeno religioso.

Isso significa que, para entender uma frase inserida num contexto mais amplo e efetivada no âmbito de um saber noosférico (complexo, como é a filosofia, a ciência, o marxismo), é necessário contextualizá-la. É por isso que efetivaremos a contextualização da frase de Marx em que afirma que não é marxista, pois somente assim se torna possível sua compreensão mais profunda.

O termo “marxista” foi criado por Bakunin, no contexto da divergência de ambos na I Internacional, como termo pejorativo (HAUPT, 1987; VIANA, 2008). No entanto, os “marxistas” que Bakunin se referia eram os “seguidores” de Marx, especialmente na AIT, que seriam fundamentalmente os socialistas franceses e alemães. Assim, o primeiro significado, pejorativo, de “marxismo”, era os adeptos das ideias e posições políticas de Karl Marx. Marx, desde que começou a produzir intelectualmente e atuar politicamente, começou a ter um conjunto de indivíduos que concordam com suas concepções e posições políticas (alguns de forma mais geral, outros menos, assim como havia o caso daqueles que concordavam mais com as produções intelectuais e outros mais com as posições políticas, sem adotar o outro elemento integralmente).

É nesse contexto que o nome “marxismo” vai começar a ser usado e vai perdendo o sentido bakuninista e, paulatinamente, ganhar um novo sentido, positivo. É possível perceber o uso do termo quando Marx ainda era vivo e depois que ele morre. No final da vida de Marx, o sentido positivo já havia avançado. Ou seja, o nome “marxismo” passa a ser usado não apenas pelos adversários, mas também pelos adeptos das ideias e posições de Marx. Porém, é somente após a sua morte que o significado positivo se impõe e torna-se de amplo uso.

O contexto que Marx afirmou não ser marxista é da passagem para o significado positivo do termo. Nesse mesmo contexto, surgia, na França, os supostos adeptos de Marx. Através do genro de Marx, Paul Lafargue, que ficaria famoso com o seu panfleto O Direito à Preguiça (1983) e Jules Guesde, que formaram o Partido Operário Francês, houve o primeiro momento do “marxismo” na França. A compreensão dessa história fica mais fácil recorrendo para as cartas de Marx e Engels, no qual explicam sua relação com tal partido, bem como a origem da frase referente ao marxismo. Através da correspondência de Marx e Engels entre si e com diversos outros interlocutores, é possível recuperar o sentido da célebre frase. Mas o contexto histórico e político que envolvia Marx e Engels também é importante para contextualizar o seu significado.

O contexto inicial da frase remente aos supostos adeptos das ideias e posições de Marx na França, Lafargue e Guesde. Lafargue iniciou sua ação política influenciado pelo anarquismo e, com o passar do tempo, conhece Marx e se aproxima de suas ideias. Marx não nutria grande simpatia por Lafargue, sendo que o criticou tanto antes quanto depois do casamento dele com sua filha, Jenny. Lafargue saiu do proudhonismo e se aproximou de Marx e suas ideias, e acabou se tornando um dos principais contatos na França e depois articulador político. Ele se aliou a Jules Guesde, outro adepto das ideias de Marx, e que se destacou no movimento socialista no final do século 19 até o início do século. Os dois foram os principais articuladores do PO – Partido Operário (que depois de 1893 passa a se chamar Partido Operário Francês – POF).

É importante entender a formação desse partido para compreender a relação entre Marx e os “marxistas” franceses. Através das correspondências (MARX; ENGELS, 2010a), ficamos sabendo que O Programa do Partido Operário, escrito em 1880, teve a colaboração de Marx. Este escreveu o Preâmbulo do documento[1]. O seu conteúdo era o seguinte:

Considerando,

Que a emancipação da classe produtiva é a de todos os seres humanos sem distinção de sexo ou de raça,

Que os produtores só podem ser livres desde que possuam os meios de produção (terras, fábricas, navios, bancos, créditos, etc.),

Que existem apenas duas formas pelas quais os meios de produção podem pertencer a eles:

A forma individual que jamais existiu geralmente e efetivamente e que é cada vez mais eliminada pelo progresso industrial;
A forma coletiva, cujos elementos materiais e intelectuais são constituídos pelo próprio desenvolvimento da sociedade capitalista.

Considerando,

Que essa apropriação coletiva só pode resultar da ação revolucionária da classe produtiva - ou proletariado - organizada como um partido político distinto;

Que essa organização deve ser perseguida por todos os meios à disposição do proletariado, incluindo o sufrágio universal, transformado de um instrumento de ilusão, como tem sido até então, em um instrumento de emancipação;

Os trabalhadores socialistas franceses, dando como objetivo a expropriação política e econômica da classe capitalista e o retorno à coletividade de todos os meios de produção, decidiram, como meio de organização e luta, entrar nas eleições com as seguintes demandas imediatas [...][2].
O texto acima não foi o redigido por Marx e sim o que foi aprovado pelo Congresso Fundador do Partido no mesmo ano de sua redação, com emendas e por isso não sabemos se é exatamente o mesmo texto ou se houve alguma alteração[3]. Sem dúvida, não deve ter ocorrido grandes mudanças no documento e, menos ainda, no Preâmbulo. A sequência do documento foi redigida por Guesde, com a colaboração de Marx, Engels e Lafargue. O documento possuía duas seções, uma política e outra econômica. A seção política colocava a necessidade de liberdade de imprensa e organização, revogação de ações estatais contra os trabalhadores e suas organizações, tal como a Associação Internacional dos Trabalhadores, abolição da dívida pública e do exército permanente (e sua substituição pelo “povo armado”), entre outras. A seção econômica reivindicava descanso semanal para os trabalhadores, redução da jornada de trabalho, salário mínimo baseado em estatísticas em preço local de alimentos a ser definido por um comitê estatístico de trabalhadores, igualdade salarial entre os dois sexos, responsabilização das empresas por velhos e inválidos, etc.

Após a elaboração e adoção do Programa, emergem divergências entre Marx e representantes do PO. Guesde considerava que o programa mínimo (as seçoes política e econômica) tinham o objetivo de apenas atrair os trabalhadores e o fundamental era o programa máximo (o preâmbulo, escrito por Marx), que remetia ao objetivo final, abolição do capitalismo e instauração do comunismo. Marx considera que as lutas econômicas e imediatas emergiram espontaneamente do proletariado e por isso deveriam ser metas concretas da luta operária, como meio para organização do proletariado. A diferença era basicamente a de que Guesde e Lafargue se apegavam apenas ao objetivo final e desconsiderava as lutas imediatas. Dentro do partido, por sua vez, existia aqueles que se preocupavam apenas com o programa mínimo e com as lutas e reivindicações imediatas. Marx e Engels questionavam ambas as tendências. A tendência maximalista de Guesde e Lafargue era oriunda do anarquismo e sua posição remetia para uma “fraseologia revolucionária” sem maior vínculo com as lutas operárias e entendimento da articulação entre interesses imediatos e interesses fundamentais, lutas imediatas e lutas pelo objetivo final. A questão da greve geral, considerada anarquista, por Marx e Engels, exemplifica isso. Guesde e Lafargue entendia por greve geral uma ideia a ser propagandeada e que seria “revolucionária”, enquanto que Marx e Engels considerava tal concepção “anarquista”, não por se oporem às greves, e sim por seu caráter abstrato e sem fundamento nas lutas operárias, pois elas deveriam brotar das ações dos trabalhadores e somente depois gerar um processo mais amplo de generalização[4].

A luta interna no partido ocorria entre os seguidores de Malon e Brousse, chamados de “possibilistas” e os chamados “coletivistas” (Guesde e Lafargue). Marx e Engels reprovavam algumas ações e atitudes, bem como textos, de Lafargue e Guesde. Da mesma forma, contestam os minimalistas do Partido Operário. Engels inclusive afirmou em uma carta que eles ameaçavam o caráter de classe do partido.

É nesse contexto que Engels cita a afirmação de Marx sobre o “marxismo” pela primeira vez. Engels usou o termo “marxismo” e “marxista” antes, sempre entre aspas. Numa carta para Bernstein, Engels cita a afirmação segundo a qual o “marxismo” (sempre entre aspas, tal como ele já usara antes em outras cartas) é “peculiar”: “Ora, o que é conhecido como ‘marxismo’ na França é, de fato, um produto completamente peculiar – tanto que Marx certa vez disse a Lafargue: ‘o que é certo é que eu não sou marxista” (ENGELS, 2010a, p. 356).

As aspas são reveladoras, pois não se trata de “marxismo” e mais tarde, como veremos, Engels volta a isso. A carta, no entanto, oferece margem para interpretações diferentes. Em primeiro lugar, Engels questiona Bernstein que conhece o “marxismo” francês por segunda mão, através de Malon, e por isso aponta a “baixa autoestima” do Partido Operário. Ele responde dizendo que o “marxismo” francês é “peculiar”. E cita a passagem de Marx, afirmando que foi uma fala direcionada para Lafargue: “o que é certo é que não sou marxista”. Alguns podem interpretar que ele está tratando do PO como um todo, o que, curiosamente, incluiria o próprio Lafargue. Outra interpretação é que ele estaria se referindo aos minimalistas do Partido Operário, e por isso a fala para Lafargue, um maximalista[5]. O que é certo, e as cartas deixam isso evidente, é que Marx discordava tanto dos minimalistas (possibilistas), que se limitam a reivindicações imediatas, quanto de maximalistas (coletivistas), que se limitam ao discurso geral sobre revolução. Logo, se ele disse que não é “marxista” para Lafargue, isso significava que ele não era favorável aos minimalistas, mas ele também discordava dos maximalistas e, por conseguinte, mesmo que não tenha sido explícito, se aplicava também a este.

Uma outra carta de Engels parece reforçar essa última interpretação, pois ele, escrevendo para Lafargue, lhe diz que nunca o chamou – mas se refere aos coletivistas, pois está no plural e de forma antagônica aos possibilistas – de outra coisa a não ser “os chamados marxistas” (entre aspas) e que ficaria contente se ele achasse outra expressão sucinta para substitui-la, pois “antipossibilistas” seria censurada por ele mesmo. A carta é de 1889, e o “marxismo” já não tem mais tom pejorativo. Mas aqui Engels contrapõe possibilistas (minimalistas) como não-marxistas e coletivistas, que ele denomina “assim chamados marxistas”, entre aspas. Se apenas os coletivistas são “marxistas”, então a frase de Marx era para eles. Contudo, o mais provável é que o “não-marxismo” de Marx se referia a todas as tendências do partido. Além disso, essa carta é de 1889, ou seja, 7 anos após a cisão do partido e, nesse contexto, os possibilistas devem ter deixado de ser considerados marxistas[6].

Mas toda essa discussão visa contextualizar a frase de Marx e o resultado geral, devido à falta de clareza da afirmação de Engels e aos diversos problemas contextuais, não oferece nenhuma certeza. O que temos de conclusivo é: Marx e Engels tiveram influência e importância na formação do Partido Operário na França, bem como tinham grande proximidade com Guesde e Lafargue, “marxistas”, e que, no entanto, criticam tantos os possibilistas quanto os coletivistas, com suas concepções minimalistas e maximalistas, respectivamente. A recusa do minimalismo dos possibilistas ocorre pelo abandono do caráter de classe e da luta de classes, ficando no nível do “programa mínimo”, abandonando o objetivo final (comunismo). A recusa do maximalismo dos coletivistas ocorre pela desconsideração total, com exceção da propagandística, das lutas imediatas dos trabalhadores, bem como devido a outras questões, tais como a influência anarquista, imaturidade, entre outros problemas.

Nesse contexto, uma das divergências de Marx e Engels com o anarquismo reaparece na discussão. Isso ajuda a entender a discordância com Guesde e Lafargue, pois de forma isolada pode parecer que Marx era favorável ao eleitoralismo. A crítica de Engels aos possibilistas e abandono do caráter de classe deixa claro que não havia nenhum eleitoralismo na concepção dele e de Marx. Engels deixou claro que discordava da tendência minimalista de renunciar ao programa revolucionário com o objetivo de conseguir mais adeptos e mais votos nas eleições. A crítica de Marx e Engels ao apoliticismo anarquista, que se aplica aos maximalistas franceses, é a de abandonar a luta concreta e substituí-las por fraseologias supostamente revolucionárias. A ideia é que é necessário usar todas as formas de luta para fazer a classe operária avançar e assim se autonomizar, até conseguir as condições para efetivar uma revolução social. Nesse contexto, a luta eleitoral era vista como uma das possibilidades de ação do movimento operário. Ao mesmo tempo, era possível Marx criticar o “cretinismo parlamentar”. A oposição às eleições realizada pelos anarquistas – e de certo modo pelos maximalistas – era fundada em princípios gerais abstratificados e não em estratégia e análise da realidade concreta.

Assim, é possível dizer que Marx chegou, nesse caso específico das eleições, numa conclusão errada a partir de um caminho certo, enquanto que os anarquistas (e maximalistas, num certo momento) chegaram à conclusão certa a partir do caminho errado. Mas, por partirem do caminho errado, erraram em inúmeras outras coisas. Porém, o equívoco de Marx não pode ser descontextualizado. Na época histórica em que apresentou suas concepções sobre eleições, não a recusando sob a forma de princípio inquestionável, era num momento histórico em que o processo de burocratização e os mecanismos burocráticos da democracia burguesa nascente eram muito menos perceptíveis. Marx não percebeu o fenômeno da burocratização crescente da sociedade civil e nem que os nascentes partidos “operários” geravam uma burocracia partidária (que crescia com o crescimento do partido, mas o que, nesse momento, era incipiente pela pouca força deles) que constituía interesses próprios. Os anarquistas – e os maximalistas – também não perceberam isso[7], pois a recusa do processo eleitoral era derivada de “princípios gerais” e ideias gerais sobre poder e corrupção do ser humano.

Mas, voltando ao problema da afirmação de Marx, à qual conclusão podemos chegar? Até aqui, preliminarmente, podemos dizer que Marx recusa o suposto “marxismo” (seja dos maximalistas, dos minimalistas ou de ambos) que outros dizem defender. Logo, ele não está, obviamente, recusando suas próprias ideias, o que seria absurdo. Porém, para avançar nessa conclusão, é preciso deixar claro o que significa “marxismo”. Antes disso, porém, vamos tratar de outra carta de Engels no qual reaparece a afirmação de Marx, sob outra forma.

Porém, essa afirmação de Marx reaparece no seguinte trecho:
A concepção materialista da história tem hoje em dia numerosos amigos que a utilizam como desculpa para não estudar história. Como Marx costumava dizer, referindo-se aos “marxistas” franceses dos fins dos anos 70: “tudo que sei é que não sou um marxista” (ENGELS, 1987, p. 36)[8].
Aqui novamente Engels retoma a afirmação de Marx, acrescentando que era seu “costume” afirmar isso e que a afirmação se dirigia aos “marxistas” (entre aspas) franceses do final dos anos 1870 (embora isso possa não ser tão exato assim). Esses supostos “marxistas” poderiam ser os mesmos que geraram o Partido Operário, ou alguns deles. A novidade aqui é que Engels aponta para a sua adoção da frase de Marx para qualificar como “não-marxista” aqueles que usam o materialismo histórico (concepção materialista da história) como uma receita que encaixa o processo histórico e assim evita estudar a história. No mesmo mês, em carta a Lafargue, Engels cita novamente a frase de Marx:
De forma usual, eles consideravam suas universidades burguesas como Saint-Cyrs[9] socialistas, dando-lhes o direito a ingressar no partido na categoria de oficiais, se não na de general. Todos esses nobres senhores se interessam pelo marxismo, embora sejam do tipo que você conheceu na França há dez anos e dos quais Marx disse: "Tudo o que sei é que não sou marxista". E ele sem dúvida diria sobre esses nobres senhores o que Heine disse a respeito de seus imitadores: "Semeei dragões e colhi pulgas" (ENGELS, 2010b, p. 21-22).
Esta carta de Engels é curiosa, pois ele aparentemente cai em contradição. A carta é endereçada para Lafargue e a afirmação de Marx, segundo Engels, na primeira carta em que cita isso, seria para ele. Se Marx não falou diretamente para Lafargue, então ele poderia ser um dos “marxistas” franceses citados. Aqui ele retoma o argumento de que aqueles que não entenderam o marxismo se aplica o que Marx afirmou. A citação de Heine aponta exatamente para esse significado: os supostos "marxistas” são pulgas que imitam um dragão.

Uma diferença nas cartas seguintes de Engels é que a palavra marxista começa a aparecer sem aspas, o que significa estar ganhando um significado positivo. Numa carta de julho de 1892, para Schorlemmer, ele diz que a Federação social-democrata se diz marxista (sem aspas) em princípio, mas é antimarxista na prática (ENGELS, 2010b). Numa carta a Kautsky ele volta a tratar da Federação Social-Democrata, afirmando que ela é uma seita pura e simples que ossificou o marxismo em um dogma rígido ao recusar todo movimento de trabalhadores que não fosse marxista ortodoxo e “marxista de uma maneira muito errada”. Nas cartas a partir de 1892 aparece a palavra “marxista” sem aspas e se referindo aos alemães e franceses, de forma positiva. Ele passa a falar de programa marxista, plataforma marxista, teoria marxista e contar o número de marxistas nas disputas políticas. Assim, ele cita Werner Sombart como “marxista bastante eclético”. A sua “flexibilização” do que é marxismo é visível, tal como se pode observar em sua afirmação segundo a qual:
Jaurès está no caminho certo. Ele está aprendendo o marxismo e não deve se apressar demais. No entanto, ele já fez um bom progresso, muito mais do que eu ousara ter esperança. Quanto ao resto, não vamos exigir muita ortodoxia! O partido é grande demais, e a teoria de Marx se tornou muito difundida para pessoas relativamente confusas e isoladas que causam muitos danos no Ocidente. Na sua parte do mundo, é diferente, como aconteceu conosco em 1845-59 (ENGELS, 2010c, p. 451).
Para quem considerou os maximalistas e minimalistas do Partido Operário como “marxistas” entre aspas, a consideração de Sombart e Jaurés como “marxistas”, mesmo chamando um de “eclético” e ou “aprendendo” já demonstra a mudança de Engels e seu envolvimento com a social-democracia. Aliás, Jaurés, que adentra ao Partido Operário Francês, mas, depois de conflitos com Jules Guesde, acaba saindo e formando o PS – Partido Socialista, reformista.

Enfim, depois dessa reconstituição histórica, podemos voltar ao tema fundamental, que é o significado da afirmação de Marx. A afirmação de Marx, independentemente para quem foi efetivamente dirigida, significa que ele não é “marxista” no sentido em que se atribuía tal termo, na França (bem como na Alemanha). Mas o que significa ser “marxista”? Quando o termo surgiu com Bakunin, significava, pejorativamente, um indivíduo adepto das concepções e posições políticas de Karl Marx. Quando Marx afirma que não é “marxista”, o significado é outro, pois está implícito de que aqueles que se autodeclaram assim não são adeptos de suas concepções e posições, mas, mais do que isso, significa não expressar teórica e politicamente a perspectiva do proletariado.

Isso fica mais claro na sua crítica aos social-democratas alemães, tanto em cartas quanto na Crítica ao Programa de Gotha (MARX, 1974; VIANA, 2017) Neste texto, além de criticar o programa em si e suas afirmações, ainda coloca que o Estatuto da Associação Internacional dos Trabalhadores e o Manifesto Comunista (MARX; ENGELS, 1988) foram deformados na sua “tradução” para tal documento. Marx coloca a desvinculação com o movimento revolucionário do proletariado. Em uma carta ele é ainda mais explícito:
No que nos diz respeito, com todo o nosso passado, só nos resta um caminho a seguir. Há quase 40 anos colocamos em primeiro plano a luta de classes como o motor da história e, especialmente, a luta de classes entre burguesia e proletariado, como a grande alavanca da revolução social moderna. É-nos impossível, portanto, caminharmos juntos com pessoas que querem suprimir esta luta de classes do movimento. Quando fundamos a Internacional e formulamos em termos claros seu grito de guerra: “a libertação da classe operária será obra da própria classe operária”. Não podemos evidentemente caminhar com pessoas que declaram aos quatro cantos que os operários são muito pouco instruídos para poder emancipar a si mesmos, e que só a partir de cima eles podem ser libertados, pelas cúpulas, pelos filantropos burgueses e pequeno-burgueses. Se o novo órgão do partido toma uma atitude que corresponda às ideias destes senhores, se essa orientação é burguesa e não proletária, não nos restará mais nada a fazer, por mais lamentável que seja, do que declarar abertamente nossa oposição e romper a solidariedade da qual demos prova até agora, na qualidade de representantes do partido alemão no exterior”. Esperemos, contudo, que não se chegue até ai. [...] (MARX, 2014, p. 229).
Aqui Marx coloca o elemento programático e o caráter de classe da deformação. Como elemento programática, está a teoria marxista da luta de classes e da autoemancipação proletária e, como elemento de deformação de classe, está na afirmação que a orientação dos social-democratas “é burguesa e não proletária”. Assim, temos um duplo questionamento: o abandono da concepção (marxista) e um abandono da perspectiva do proletariado[10].

Desta forma, podemos avançar na discussão explicitando o que é o marxismo e o que significa a afirmação de Marx sobre não ser “marxista”. O marxismo não é as concepções e posições políticas de Marx, como queria Bakunin, e sim a expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado, tal como definido por Karl Korsch (1977). Essa definição une o caráter de classe, proletário, e a sua expressão formal, a teoria. Porém, trata-se do proletariado revolucionário, ou seja, não como classe determinada pelo capital[11]. O fato de Marx ter expressa pela primeira vez sob forma teórica e formando uma episteme proletária liga, obviamente, a questão do pensamento e da classe social. Assim, não se trata de uma fidelidade ao pensamento de Marx e sim manter a perspectiva revolucionária do proletariado. Nesse caso, como Marx manifestou pioneiramente e de forma mais aprofundada a episteme marxista, então isso coincide com a coerência em relação ao seu pensamento. 
Contudo, isso não significa concordar com tudo que Marx colocou, pois como ser humano, por mais que tivesse uma base sólida em método, teoria, perspectiva de classe (valores, sentimentos, etc.), ele não era infalível. E isso é mais forte ainda em questões imediatas, sem uma maior reflexão, ou em questões periféricas ou, ainda, pontuais e conjunturais. A sua posição diante das eleições, por exemplo, é equivocada, embora isso seja explicado pelo momento histórico e pela burocratização inicial do processo eleitoral. Na essência e na totalidade, no entanto, a concepção de Marx é superior a qualquer outra. Aliás, Engels coloca justamente isso ao dizer que militantes de diversos países buscavam seus conselhos e sabiam que eram os melhores (ENGELS, 2010b). Isso é possível pelo motivo de que ele dominava método, teoria, além dos valores, o que lhe proporcionava condições favoráveis para acertar, enquanto que outros, por suas ambiguidades ou valores não-axionômicos, por deficiência teórica e metodológica, possuíam condições desfavoráveis e por isso os equívocos constantes, a começar por Engels.

A partir desse esclarecimento, o significado da afirmação de Marx remete para duas questões (tal como se vê na crítica que ele efetiva aos social-democratas): o afastamento da perspectiva do proletariado e da expressão teórica dessa classe expressa em duas ideias. Ou seja, é simultaneamente uma questão de perspectiva de classe (valores, sentimentos, interesses) e de desenvolvimento da consciência (num sentido mais amplo). Marx afirma que não é “marxista”, pois aqueles que dizem ser “marxistas” não expressam a perspectiva do proletariado revolucionário e por isso apresentam ideias incompatíveis com as produzidas por ele. Nos casos concretos que constam nas cartas, esse é o caso dos minimalistas (possibilistas), maximalistas (coletivistas) e social-democratas. Os minimalistas ficam ao nível do proletariado como classe determinada e se afastam drasticamente das ideias de Marx; os maximalistas busca expressar o proletariado revolucionário, mas de forma abstratificada e com fraseologias revolucionárias, tal como o anarquismo da época e assim produzem ideias incompatíveis com o marxismo; a social-democracia é a mais distante da concepção e posição marxista, pois se vincula a outras classes sociais[12] e sua deformação do pensamento de Marx é mais grave e evidente. Assim, nenhuma dessas concepções é marxista, por mais que se autodeclarem desta forma.

A célebre frase de Marx, uma vez entendido o contexto acima aludido, não significa, obviamente, uma recusa das próprias ideias e sim daqueles que dizem segui-las e no fundo as simplificam e deformam. A frase que seria mais compreensível é “Tudo que eu sei é que não sou pseudomarxista”. E isso nos remete ao problema de definir o pseudomarxismo, que não é marxismo. O pseudomarxismo é um falso “marxismo”, pois se declara marxista, usa termos marxistas (geralmente misturados com as de ideologias burguesas ou burocráticas), diz expressar o proletariado (na maioria das vezes, pois muitos pseudomarxistas abandonam até isso), mas não só é incompatível com as ideias e posições de Karl Marx como, também e principalmente, expressa valores, sentimentos, interesses, posições, que não são as do proletariado revolucionário e sim de outras classes ou o faz isso ambiguamente (como no caso dos maximalistas franceses). Hoje podemos definir o pseudomarxismo como toda concepção que se autodeclara marxista, mas que é incoerente com o marxismo tanto no plano das ideias quanto da perspectiva de classe que está em sua base, não sendo uma expressão teórica do proletariado revolucionário. Marx não era pseudomarxista e foi um dos primeiros críticos do pseudomarxismo[13].

Referências

ENGELS, Friedrich. Engels a Konrad Schmidt (Londres, 05 de agosto de 1890). In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Cartas Filosóficas e Manifesto Comunista de 1848. São Paulo, Moraes, 1987.

ENGELS, Friedrich. Engels to Bernstein. 2-3 November 1882. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works. Vol. 46. Londres: Lawrence & Wishart, 2010a.

ENGELS, Friedrich. Engels to Eduard Bernstein. 25 October, 1881. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works. Vol. 46. Londres: Lawrence & Wishart, 2010a.

ENGELS, Friedrich. Engels to Georgi Plekhanov. 26 February, 1895. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works. Vol. 49. Londres: Lawrence & Wishart, 2010c.

ENGELS, Friedrich. Engels to Kautsky. 12 August, 1892. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works. Vol. 49. Londres: Lawrence & Wishart, 2010b.

ENGELS, Friedrich. Engels to Lafargue. 27 August, 1890. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works. Vol. 49. Londres: Lawrence & Wishart, 2010b.

HAUPT, Georg. Marx e o Marxismo. In: HOBSBAWM, E. (Org.). História do Marxismo. Vol. 1. 3ª Edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.
MARX, Karl. “O Manifesto dos Três de Zurique”. Marxismo e Autogestão. Vol. 01, num. 02, jul./dez. de 2014.
MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª edição, São Paulo: Global, 1989.

MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. Lisboa, Nunes, 1974.
MARX, Karl. O Manifesto dos Três de Zurique. Marxismo e Autogestão. Vol. 01, num. 02, jul./dez. de 2014.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.

VIANA, Nildo. Karl Marx: A Crítica Desapiedada do Existente. Curitiba: Prismas, 2017.
VIANA, Nildo. O Que é Marxismo? Rio de Janeiro, Elo, 2008.






[1] “Mas é verdade que Guesde apareceu quando se tratava de elaborar o projeto de programa do Partido Operário Francês. Seu preâmbulo foi ditado palavra por palavra por Marx na presença de Lafargue e de mim mesmo aqui na minha sala” (ENGELS, 2010a, p. 148). Engels não poupou elogio ao texto: “uma obra-prima da argumentação convincente raramente encontrada, escrita clara e sucintamente para as massas” (ENGELS, 2010a, p. 148).
[3] “Esse programa foi posteriormente discutido pelos franceses e aceito com algumas alterações, inclusive algumas incluídas por Malon, que não foram, de forma alguma, melhorias (ENGELS, 2010a, p. 148).
[4] Marx reflete sobre a greve em A Miséria da Filosofia (1989).
[5] A carta é de novembro de 1882, sendo que no Congresso do Partido Operário em setembro havia ocorrido a cisão entre os possibilistas e os coletivistas, o que poderia dar a entender que se tratava de uma referência aos minimalistas. Porém, os possibilistas não se declaravam “marxistas” e sim os coletivistas. Assim, é difícil ter uma certeza sobre a quem Marx efetivamente se referia, devido à falta de clareza de Engels.
[6] Inclusive os social-democratas apoiavam os possibilistas e foi Engels que os convenceu a mudar seu apoio para os guesdistas, como também ficaram conhecidos.
[7] Aliás, até hoje grande parte dos anarquistas ainda não percebeu e por isso regridem ao apartidarismo (ao invés do antipartidarismo do anarquismo antigo) e defesa de sindicatos, hoje completamente burocratizados.
[8] Veja edição inglesa em Marx e Engels, 2010b.
[9] Escola especial militar, fundada em Fontainbleau em 1803 e transferida para Saint-Cyr, perto de Versalhes, em 1808. Ela treinava oficiais de infantaria e cavalaria e o curso completo durava dois anos, e esse deve ser o motivo para Engels sugerir a qualidade duvidosa da aprendizagem nesse contexto e a transferir para os socialistas oriundos de universidade.
[10] Em outra passagem do mesmo escrito, Marx enfatiza a questão da teoria e sua relação com a questão da universidade e perspectiva de classe: “Há lá uma falta absoluta de material de cultura real, efetivo ou teórico. Ao invés disso, realizam tentativas para pôr o pensamento socialista superficialmente apropriado em consonância com os pontos de vista teóricos mais diversos que os senhores trouxeram consigo da Universidade ou de qualquer outro lugar e sendo que um é ainda mais confuso do que o outro, graças ao processo de putrefação em que se encontram os restos da filosofia alemã nos dias de hoje. Ao invés de, para começar, estudarem eles próprios fundamentadamente a nova ciência, cada um prefere aproximá-la dos pontos de vista que trouxeram consigo, fazer dela uma ciência privada própria sem nenhuma hesitação e aparece mesmo com a pretensão de a querer ensinar. Por isso, entre estes senhores existem tantos pontos de vista quanto número de cabeças; ao invés de trazerem clareza seja lá ao que for, apenas estabeleceram uma grave confusão – felizmente, quase só conhecida entre eles próprios. O partido pode muito bem passar sem semelhantes elementos de cultura, cujo primeiro princípio é ensinar o que ainda não aprenderam” (MARX, 2014, p. 227-228).
[11] Essa é a posição dos “minimalistas” anteriormente citados e de grande parte de anarquistas e autonomistas. Ao não ultrapassarem as reivindicações imediatas e não colocarem o projeto revolucionário ao lado das lutas cotidianas, ficam ao reboque da classe operária determinada pelo capital, ou seja, sob hegemonia burguesa. O reboquismo é um mau oposto ao do vanguardismo, e por isso a posição social-democrata e bolchevista é burocrática, dirigista, mas para isso precisam que o proletariado fique no nível de classe determinada, e esta é a razão da recusa de sua radicalização e autonomização, desde a negação das lutas espontâneas até as lutas autônomas e autogestionárias.
[12] Marx vincula à burguesia e pequeno-burguesia, por não ter conseguido perceber a emergência de novas frações da classe burocrática, tal como a partidária.
[13] Engels, um marxista ambíguo, também realiza críticas, mas muitas vezes reproduz o que critica. Ainda dedicaremos uma obra específica para analisar de forma mais global e analisando a evolução do seu pensamento para explicitar o real significado de sua obra no interior do marxismo.

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