Classes Superiores e Classes
Inferiores
Nildo Viana
A questão das classes sociais é fundamental na teoria de
Marx e para o marxismo. Ela ganhou várias discussões e abordagens sociológicas.
Porém, tanto nas abordagens sociológicas quanto na marxista, ainda existem
muitos pontos obscuros. Dentre estes pontos obscuros, basta citar o pouco
desenvolvimento da análise de determinadas classes sociais específicas. Em
certos casos, dependendo do sociólogo que se aventurou a tratar das classes
sociais, nem sequer há uma discussão sobre cada uma das classes sociais. Porém,
não vamos tratar aqui da sociologia das classes sociais e das diversas
abordagens nesse temário, pois nosso objetivo é discutir a concepção marxista
de classes sociais num aspecto bem delimitado, que é o uso de termos que
expressem as classes sociais em seus dois agregados mais amplos, as classes
superiores e as classes inferiores. Assim, também não vamos discutir a teoria
das classes sociais de Marx e seu desenvolvimento posterior por outros autores
marxistas, apesar de realizar uma breve síntese a esse respeito para
possibilitar a nossa análise sobre classes sociais superiores e inferiores.
Uma classe social pode ser definida como um conjunto de
indivíduos que possuem o mesmo modo de vida, os mesmos interesses e a mesma
luta comum contra outras classes sociais, que são elementos derivados da
divisão social do trabalho, que, por sua vez, é determinada pelo modo de
produção dominante[1].
Assim, é equivocado definir classes sociais apenas pelo modo de vida,
interesses e lutas comuns, pois isso pode se manifestar no caso de outros
grupos e setores da sociedade. Esses aspectos em comuns são específicos, são
derivados da “atividade fixa” na divisão social do trabalho (MARX; ENGELS,
1982) e, na perspectiva marxista, é fundamental entender que esta última só
pode ser compreendida a partir de sua constituição pelo modo de produção
dominante. Assim, os servos domésticos e os assalariados domésticos só podem
ser assim entendidos pelas relações de produção dominantes, a servidão e a
produção de mais-valor, assim como o campesinato no capitalismo e outras
classes sociais em todas as sociedades de classes. O elemento diferenciador das
classes sociais para grupos sociais ou outros agrupamentos é o vínculo com o
trabalho e com o processo de reprodução das condições de existência. O que une
os indivíduos no pertencimento de classe é a posição na divisão social do
trabalho e não a corporeidade (características biológicas, como sexo e raça), a
etnia, a cultura, ou qualquer outro aspecto. Sem dúvida, o pertencimento de
classe tem efeito sobre todos estes outros aspectos, mas não é uma
característica das classes e sim impactos da condição de classe nesses outros
elementos das diferenciações sociais. Assim, as mulheres, os negros, os
hippies, os jovens, os muçulmanos, os católicos, os judeus, os ecologistas,
entre inúmeros outros exemplos possíveis, não são classes sociais. Essa
afirmação é um tanto óbvia, embora muitos sociólogos e outros pesquisadores
confundam ou apresentem definições confusas que acabam permitindo confundir
essas coisas distintas.
Porém, aqui tratamos de classes sociais em geral. Essa foi uma
das discussões efetivadas pioneiramente por Marx, mas ele foi além disso e
desenvolveu uma análise das classes sociais no capitalismo (MARX, 1988; VIANA,
2018; VIANA, 2016). A partir do modo de produção capitalista emergem as duas
classes sociais fundamentais: a classe capitalista e a classe operária, ou,
usando outros termos, a burguesia e o proletariado. E, derivado da divisão
social do trabalho gerada pelo modo de produção capitalista, emergem outras
classes, tal como a burocracia (VIANA, 2018) e outras classes instituídas nas
formas sociais (“superestrutura”), nos modos de produção subordinados
(camponeses, artesãos, etc.), etc. No fundo, a sociedade capitalista institui
um conjunto de classes sociais[2].
Explicitado o significado do conceito de classes sociais, é
necessário entender que na realidade concreta estas se articulam, seja via
blocos sociais (o setor organizado, consciente e ativo que representam as
classes sociais), seja nas lutas sociais concretas por possuírem interesses
semelhantes. Marx apontava para uma tendência de polarização cada vez mais
intensa entre burguesia e proletariado com o desenvolvimento capitalista (MARX;
ENGELS, 1988). Ele pensava isso a partir da constatação de que as classes
sociais em decadência (oriundas da sociedade feudal), as classes sociais de
modos de produção subordinados e pequenos proprietários (campesinato, etc.),
tendiam a diminuir e desaparecer, simplificando os conflitos de classes e
restando o antagonismo entre as classes sociais fundamentais, burguesia e proletariado,
como forma básica e visível das contradições do capitalismo. Por outro lado,
Marx também colocou que as duas classes fundamentais tendiam a hegemonizar as
lutas sociais, com as demais classes sociais girando em torno delas e assumindo
o lado de uma ou outra classe social, por mais que algumas pudessem querer se
autonomizar[3].
As duas assertivas de Marx, a da simplificação do
antagonismo de classes com a polarização da luta entre burguesia e proletariado
e a coalizão de classes em torno delas, não se efetivaram exatamente como ele
previu. Assim, as classes decadentes foram realmente desaparecendo e as classes
ligadas a modos de produção subordinados perderam quantidade e espaço político,
mas, no entanto, outras classes sociais emergiram ou se fortaleceram. Por um lado,
a nobreza desapareceu e só restaram adornos integrados na sociedade
capitalista, bem como os servos deixaram de existir e o clero foi integrado no
capitalismo como uma esfera social[4].
Os artesãos também foram reduzidos à quase inexistência com o desenvolvimento
capitalista e o campesinato foi ficando cada vez mais diminuto, até desaparecer
em alguns países[5].
E, nesse aspecto, Marx estava correto. Porém, Marx escreveu no século 19 e,
embora tenha percebido as mutações e até emergência de novas classes sociais,
não pensou que elas se tornariam tão importantes, tanto pela quantidade quanto
pela força política. Assim, Marx percebeu a emergência da burocracia e seu
crescimento vertiginoso, enquanto burocracia estatal (MARX, 1986) e enquanto
burocracia empresarial, o que ele denominou “gerentes” (MARX, 1988). Após a
morte de Marx, há um processo ainda mais intenso de desenvolvimento da burocracia,
tanto das frações que já existiam, quanto através da emergência de novas
frações, tais como a universitária (e escolar), a partidária, a sindical, etc.,
ou seja, a burocracia civil avança a partir da segunda metade do século 19, a
fase A da burocratização, segundo Lapassade (1989)[6].
Por outro lado, Marx não considerou a intelectualidade uma classe social
(VIANA, 2013), pois seu desenvolvimento era muito incipiente no século 19.
Essas duas classes sociais, no entanto, cresceram em quantidade e força
política, especialmente a partir do século 20. A partir do pós-Segunda Guerra
Mundial, a expansão quantitativa da intelectualidade e burocracia é visível,
bem como o crescimento do seu peso político.
Assim, a tese da simplificação da luta de classes e sua
condensação na luta entre as duas classes fundamentais e antagônicas estava
correta para a época, mas devido ao desenvolvimento e ampliação da divisão
social do trabalho, a situação acabou se complexificando novamente. E isso
ficou ainda mais grave com o desenvolvimento da democracia representativa e
formação dos partidos políticos, pois a ideologia da representação e as ilusões
eleitorais permitiram que burocratas e intelectuais passassem a se declarar como
sendo os porta-vozes da classe operária, do “povo”, da “nação”, etc. Estes e
outros mecanismos, acabaram gerando um processo de dificuldade para a
autonomização do proletariado e, por conseguinte, sua passagem a classe
autodeterminada (“em-si”, segundo terminologia de Marx). A emergência da
juventude como grupo social importante politicamente, complexificou ainda mais
esta questão, pois os jovens pertencem a todas as classes, bem como um setor
mais específico no seu interior, os estudantes, que também ganharam força nas lutas
políticas. Desta forma, a tese da simplificação dos antagonismos de classes foi
superada historicamente e uma nova complexificação foi instituída.
A outra assertiva de Marx, sobre a coalizão de classes em
torno das duas classes fundamentais, continua válida, mas também se tornou mais
complexa. E isso tem a ver com o desenvolvimento capitalista e a alteração na
composição e divisão de classes já aludidas anteriormente. A coalizão de
classes em torno da burguesia ocorre, embora haja setores de algumas classes
sociais que buscam se autonomizar e, assim, parecem ficar ao lado da outra coalizão,
que seria em torno do proletariado. A burguesia, devido ao seu poder financeiro
e domínio sobre o aparato estatal, transformou a burocracia e a
intelectualidade em suas classes auxiliares. A posição e função na divisão
social do trabalho destas duas classes apontam para a reprodução das relações
de produção capitalistas, uma através do controle social e outra através da
produção cultural. É por isso que alguns setores dessas classes possuem altos
salários, tal como já alertava, desde o final do século 19, Makhaïsky (1981)[7].
Em 1914, Robert Michels (1982) já alertava para a burocratização dos partidos
social-democratas e a criação de uma “nova camada pequeno-burguesa”, o que, no
fundo, significava nova fração de classe da burocracia. Os estratos inferiores
dessas classes sociais, por sua vez, já não recebem salários tão elevados, e
alguns ficam no nível do proletariado, ou até menos em alguns casos, mas ainda
mantém o vínculo com os valores, interesses, etc., de sua classe de origem.
Porém, uma parte desse setor busca se autonomizar e se afastar da burguesia,
defendendo seus próprios interesses de classe. Mas, e isso complexifica a luta
de classes, alguns pensam e afirmam estar defendendo o proletariado, a
“transformação social”, o “socialismo”, o “povo”, as “classes populares”, etc.
e, no fundo, defendem a tomada de poder e a substituição da burguesia pela
burocracia. A intelectualidade fica a reboque da burocracia nesses casos, pois
são as organizações burocráticas (partidos, sindicatos, Organizações
Não-Governamentais, etc.) que possuem maior força e iniciativa política, apesar
de seu enfraquecimento crescente com o desenvolvimento capitalista.
O que vem sendo dificultado com o desenvolvimento
capitalista é a coalizão de classes em torno do proletariado. Obviamente que a
burguesia sempre lutou contra tal coalizão, e sempre foi beneficiada pelo
auxílio da burocracia e da intelectualidade, tanto em seus setores mais conservadores
e próximos da burguesia, quanto nos seus setores mais autonomizados e que dizem
representar a população e a transformação, pois ao se intitularem
"representantes” ou “vanguarda” dos trabalhadores, do proletariado, das
“classes populares”, do “povo”, acabam corroendo a hegemonia proletária em
favor de uma hegemonia burocrática. O bloco progressista, que reúne os setores
mais organizados, conscientes e ativos dessas duas classes, ao contrário do
outro setor que se articula com o bloco dominante sob hegemonia burguesa,
promove um processo de criação de organizações burocráticas (partidos,
sindicatos, etc.) que são obstáculos para a autonomização do proletariado, bem
como geram ideologias, doutrinas, correntes de opinião, que são outros obstáculos.
Além disso, aglutinam setores das classes inferiores, incluindo do
proletariado, em torno de suas organizações e concepções.
A coalizão de classes em torno do proletariado somente
ocorre quando há ascensão das lutas sociais, o que significa que o bloco revolucionário,
que é o setor mais organizado, consciente e ativo que expressa os interesses do
proletariado, tende a se tornar mais forte e presente, e o proletariado se
autonomiza, gerando a hegemonia proletária[8].
Alguns setores da intelectualidade e da juventude (em que pese esta não ser uma
classe social, mas adquiriu, com o desenvolvimento capitalista, uma importância
política considerável)[9],
também se articulam em torno do proletariado e isso se fortalece com a
autonomização do proletariado.
Assim, a assertiva de Marx sobre a coalizão de classes em
torno do proletariado continua válida, mas vem sendo dificultada e
obstaculizada pela burguesia e suas classes auxiliares. E uma “terceira
coalizão” se tornou possível, em torno da burocracia, inclusive atraindo setores
das classes inferiores, com o discurso em nome do proletariado ou dos
“trabalhadores”. Esses elementos ajudam a compreender a discussão a seguir
sobre classes superiores e inferiores.
As classes superiores se apresentam no plural por não ser uma
classe social e sim um agregado de classes sociais. O mesmo ocorre com as
classes inferiores. E qual é a relevância dessa distinção e do uso desses
termos? O primeiro aspecto é descritivo[10].
Distinguir entre classes superiores e classes inferiores[11]
é um elemento da composição e divisão de classes sociais. As classes superiores
são algumas classes sociais agregadas por sua situação de classe, bem como as
inferiores. Esse agregado de classes é a reunião de algumas classes sociais no
sentido descritivo, através da posição e função de cada uma delas na divisão
social do trabalho e na pirâmide social. Porém, além do aspecto descritivo,
essa distinção também tem um caráter político, que é a tendência para
unificação em torno da burguesia no caso das classes superiores e em torno do
proletariado no caso das classes inferiores. E a própria consciência de
pertencer ao agregado das classes superiores ou das classes inferiores já
contribui para a unificação em torno das classes fundamentais, o que corrói,
parcialmente, a possibilidade da “terceira coalizão”, que, no fundo, propõe um
capitalismo reformado e não uma nova sociedade e assim não atende as
necessidades e interesses das classes inferiores.
No plano concreto, as classes superiores são aquelas que
possuem maior poder e renda. A classe dominante, a burguesia, obviamente é a
detentora do capital e do poder financeiro, bem como possui o domínio sobre o
aparato estatal e hegemonia na sociedade civil. Ela é a principal classe
superior e em torno do qual todas as demais existem e a maioria são suas
classes auxiliares. Em certos momentos históricos, outras classes proprietárias
podem fazer parte das classes superiores, tal como a classe latifundiária. A
nobreza foi parte das classes superiores durante algum tempo, até ser superada
historicamente pelo desenvolvimento capitalista. Além dessas, as classes
auxiliares da burguesia, a burocracia e a intelectualidade fazem parte das
classes superiores, embora seus estratos inferiores estejam próximos, por sua
renda e menor poder, das classes inferiores. Essas classes sociais estão, por
conseguinte, no topo da pirâmide social. As classes proprietárias (incluindo, obviamente,
a classe capitalista) e as classes auxiliares da burguesia formam as classes
superiores.
As classes inferiores são aquelas destituídas de poder e de
menor renda, sendo as classes trabalhadoras (incluindo o lumpemproletariado),
algumas sendo exploradas, algumas sendo submetidas à pobreza e salários baixos.
A principal classe inferior é, obviamente, o proletariado, a classe dos
trabalhadores assalariados produtivos, que são aqueles que produzem mais-valor.
A sua importância se revela em ser o sustentáculo da produção material na
sociedade capitalista, sem a qual não existiria riqueza, bens materiais,
sobrevivência da espécie. Além dessa importância, “econômica”, o proletariado é
importante no plano político, pois sem ele não existe possibilidade de
transformação social, pois sem alteração nas relações de produção, que depende
dele, não há como emergir uma nova sociedade. Além disso, ele possui uma
potencialidade revolucionária, pois o trabalho alienado, a exploração
capitalista, o seu vínculo com a produção e o fato de estar no coração das
relações de produção capitalistas o tornam o artífice de novas relações de
produção e novas relações sociais. É isso que torna o proletariado (e não sua
quantidade, que em certo momento histórico e lugares foi também expressiva e
talvez a mais numerosa em alguns casos) uma classe revolucionária.
O proletariado é destituído de poder e sua renda é baixa, pois
mesmo nos setores em que os salários são mais elevados, eles não se comparam
aos das classes superiores (a não ser no caso dos estratos inferiores da
burocracia e da intelectualidade). Porém, existem outras classes em situação
semelhante e que formam, junto com ele, o agregado das classes inferiores. Esse
é o caso do lumpemproletariado, a classe marginal na divisão social do trabalho
e que vive no desemprego ou do subemprego[12],
dos subalternos[13],
dos camponeses, dos artesãos, entre outras classes, que também variam em
quantidade dependendo da época e lugar. Os artesãos, por exemplo, foram
reduzidos drasticamente e são parte de uma classe quase extinta.
Desta forma, poderíamos retomar a pirâmide social para
ilustrar esses dois agregados de classes sociais:
O segundo aspecto que demonstra a relevância dessa distinção
entre classes superiores e classes inferiores é a tendência para a coalizão delas
em torna da burguesia e do proletariado, respectivamente. Já colocamos que essa
tendência, observada por Marx, não se efetiva facilmente devido aos obstáculos
gerados pelas condições da sociedade capitalista, especialmente a emergência do
bloco progressista e da ideologia da representação (incluindo a da vanguarda). No
caso das classes superiores, essa coalizão nem sempre se concretiza englobando
o conjunto delas. Sem dúvida, existem divisões no interior da classe
capitalista (suas frações e outras subdivisões), bem como existem interesses
distintos e, em alguns casos, até opostos (mas não antagônicos) entre as
diversas classes que fazem parte do seleto grupo das classes superiores. As
divisões das outras classes além da burguesia também afetam essa coalizão, mas
é algo secundário (os estratos inferiores da burocracia e da intelectualidade,
por exemplo, tendem a querer se autonomizar e buscar formar uma “terceira coalizão”,
gerando o bloco progressista e girando em torno dele).
No caso das classes inferiores, a coalizão é ainda mais difícil.
Isso pelo simples motivo de que a hegemonia burguesa gera uma adesão de uma
grande quantidade de indivíduos dessas classes aos valores e concepções do
bloco dominante, conservador, e, secundariamente, aos do bloco progressista. No
primeiro caso, temos os indivíduos e setores das classes inferiores que
reproduzem e reforçam as ideias, valores, dominantes, a hegemonia burguesa, e,
por conseguinte, buscam ascensão social, a propriedade, o consumo, etc. e
defendem a sociedade existente. Trata-se de uma quantidade considerável de
indivíduos, sendo, geralmente, a maioria dos indivíduos que compõem as classes
inferiores. E foi assim em todas as épocas, com variações apenas no percentual
dessa maioria, se 80 ou 70%, por exemplo. Uma parte dos indivíduos das classes
inferiores, por ligações com partidos, sindicatos, etc., aderem aos valores e
concepções do bloco progressista. O quantum dessa adesão também varia
historicamente. Isso se justifica pelo motivo que alguns setores relativamente descontentes
querem alguma mudança, fazem reivindicações, ou, alguns, se aproximam de ideias
e valores ligados a tal bloco, em parte se iludindo com suas promessas e
discursos (alguns reproduzindo o marxismo, e, por conseguinte, elementos dos
interesses do proletariado). A última parte, quantitativamente insignificante
em épocas de estabilidade econômica e política, tende a se aproximar do bloco
revolucionário ou demonstrar um descontentamento geral sem ser acompanhado por
uma utopia ou ideia de transformação social. Sem dúvida, nesses dois últimos
casos, há variação devido à época e lugar, podendo aumentar ou diminuir. Em momentos
de radicalização das lutas de classes, a tendência é aumentar a adesão aos
valores e concepções do bloco progressista e do bloco revolucionário (sendo
que, historicamente, há uma diminuição no primeiro caso, devido ao conservadorismo,
oportunismo e burocratismo crescente da social-democracia e bolchevismo) e diminuição
drástica da adesão à hegemonia burguesa. Também não é preciso dizer que existem
diferenças no interior das classes inferiores. Os pequenos proprietários e
comerciantes são mais conservadores, bem como setores das classes trabalhadoras,
como comerciários, entre outros. Outros setores das classes inferiores já
tendem mais à rebeldia, tais como setores do lumpemproletariado, proletariado,
especialmente os jovens. No entanto, trata-se de rebeldia e não posição revolucionária
e isso é derivado tanto da condição juvenil (no caso específico dos jovens)
quanto da falta de autoformação e condições de desenvolver ou conhecer projeto
alternativo, ou, ainda, acreditar em sua possibilidade (o que inclui parte dos
jovens e adultos).
Assim, a hegemonia burguesa reina absoluta nas classes
superiores, com pouca dissidência e com uma parte, especialmente da burocracia
e intelectualidade, aderindo à hegemonia burocrática e, uma parte ainda mais
diminuta – da intelectualidade e juventude das classes superiores[14]
– à hegemonia proletária. A hegemonia burocrática é forte nos estratos
inferiores da burocracia e intelectualidade, bem como possui força atrativa em
setores da juventude das classes superiores e inferiores, além de atrair setores
das classes inferiores. A hegemonia proletária, por sua vez, é a menos
influente e que aglutina o menor número de indivíduos, sendo que atinge setores
da intelectualidade e juventude das classes superiores, em pequena quantidade,
e jovens e indivíduos em geral das classes inferiores, também em quantidade
muito pequena.
Essa é a situação em períodos de estabilidade econômica e
política. Processos de desestabilização de um regime de acumulação, crises
financeiras, lutas espontâneas e acirramentos dos conflitos de classes, alteram
esse processo, sem contar acontecimentos extraordinários em outras instâncias
(emergência de uma produção artística em perspectiva revolucionária que
consegue espaço na sociedade mesmo em períodos de estabilidade, produção teórica
que consegue, por sua capacidade explicativa, aglutinar mais pessoas, conflitos
localizados em certos lugares ou rebeldia juvenil que desemboca em radicalização
no plano cultural, etc.)[15],
alteram isso e podem promover o aumento de espaços de hegemonia proletária em
disputa com a hegemonia burocrática, que, em alguns casos, também se fortalece.
Desta forma, a divisão entre classes superiores e inferiores
expressa também uma importância política. O proletariado revolucionário (via
hegemonia proletária) tende a atrair as classes inferiores e tal tendência se
fortalece com as crises e radicalização das lutas de classes. E isso ocorre,
entre outras coisas, pelas semelhanças na posição da sociedade, nas reivindicações,
na insatisfação compartilhada, na desilusão com governos e partidos, etc. Essa,
no entanto, é uma tendência e já apontamos os obstáculos. Inclusive os setores
ambíguos do bloco revolucionário (que são semiproletários e, por isso, se
aproximam, em muitos casos, do bloco progressista ou de elementos de ideologias
burguesas e/ou burocráticas) é um outro obstáculo no interior da própria luta
revolucionária. Os indivíduos da ala semiproletária do bloco revolucionário são
influenciados pela hegemonia burguesa e burocrática, mesclando isso com
elementos de hegemonia proletária, e por isso a competição, a ambição
(inclusive intelectual), entre outros processos, dificultam a unificação do
bloco e o reforço da hegemonia proletária.
Porém, as condições de vida semelhantes das classes
inferiores, ou pelo menos de sua parte composta por trabalhadores assalariados
e lumpemproletariado, tendem a gerar uma unificação em torno do proletariado,
ou seja, aderir à hegemônica proletária, especialmente em momentos revolucionários.
Nessas épocas, até indivíduos das classes superiores podem aderir (alguns
momentaneamente, abandonando tal posição quando volta a estabilidade ou a tentativa
de revolução é derrotada, com algumas exceções, obviamente) à hegemonia
proletária.
O fundamental, no entanto, é entender que a percepção da existência
das classes inferiores é importante para analisar a divisão e composição de
classes da sociedade capitalista, por um lado, e para a compreensão das lutas
políticas, por outro. Além da importância analítica, há sua importância política,
pois é necessário compreender que o proletariado é a classe revolucionária de
nossa época, mas ele aglutina outras classes (as inferiores), especialmente nos
momentos revolucionários, e é assim que, mesmo não sendo a classe com maior
quantidade de indivíduos, reúne a maioria da população sob hegemonia
proletária. O caso da Revolução Russa mostra justamente isso, pois a maioria da
população era camponesa (70% da população) e o proletariado era concentrado em
algumas grandes cidades mais industrializadas e reuniu, além das classes
inferiores (especialmente o campesinato, nesse caso), apoio de setores da intelectualidade
e outros setores da sociedade. Isso também serve para alertar militantes e intelectuais,
que querem atuar apenas com indivíduos proletários, que a grande questão é fazer
avançar a hegemonia proletária, tanto no âmbito do proletariado com sua autonomização
e passagem para classe autodeterminada, quanto das demais classes inferiores e
setores das classes superiores (especialmente setores da juventude e da classe
intelectual) para fortalecer focos dessa hegemonia e ampliá-la ao máximo, mesmo
em momentos de estabilidade política e econômica, pois isso fortalece a tendência
de seu fortalecimento e maior possibilidade de superar as demais forças hegemônicas
em momentos revolucionários.
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[1]
Essa definição, não explícita, se encontra em Marx e Engels (1982) e tem
desdobramentos em outras obras, tal como se pode ver na síntese realizada dos
diversos escritos destes autores (VIANA, 2018; VIANA, 2016).
[2]
Alguns sociólogos deformaram a concepção de Marx ao atribuir a ele a ideia de
apenas duas classes sociais no capitalismo (GURVICHT, 1982), certamente por ter
lido apenas o volume 01 de O Capital, no qual ele focaliza a produção de
mais-valor, logo, a relação de produção existente entre burguesia e proletariado,
pois, se tivesse lido os demais volumes, veria as referências e análises dos
latifundiários, campesinato, lumpemproletariado, etc.
[3]
Esse foi o caso das lutas de classes na França, especialmente no que se refere
à Comuna de Paris (MARX, 2011).
[4]
Sobre as esferas sociais veja: Viana, 2015a.
[5]
Hobsbawn (1993) afirma que o campesinato desapareceu na Europa. Claro que aqui
se trata do conceito marxista de campesinato, como a pequena propriedade
nominal e familiar, e não qualquer definição deste termo, tal como aqueles que
pensam que todos os que moram no “campo” (zona rural) são camponeses, criando
uma indistinção histórica entre servos, camponeses, latifundiários, operários
agrícolas, etc. É isso tipo de confusão que permite alguns abordarem o que
denominam “sociedades camponesas” (WOLF, 1976).
[6]
Sobre a classe burocrática, é possível ver uma análise em: Viana, 2018a; Viana,
2018b) e a respeito da abordagem de Marx sobre a burocracia: Viana, 2015b.
[7]
Ele chegou a afirmar, não sem certo exagero, que Kautsky tinha um modo de vida
idêntico ao de um burguês (MAKHAÏSKY, 1981).
[8]
Sobre hegemonia burguesa e hegemonia proletária, cf. Viana, 2018c; Viana, 2015c.
[9]
Isso é possível devido às características da intelectualidade e da juventude.
Alguns setores da intelectualidade, por seu vínculo com a produção cultural e
os valores vinculados a ela, bem como sua contradição relativa com a burguesia
(burocratização e mercantilização da produção intelectual – arte, ciência, etc.
–, entre outros aspectos), possuem maior capacidade de ruptura com a classe
dominante, especialmente os setores mais autônomos, que se encontram geralmente
nos estratos mais baixos e aqueles que valoram mais suas atividades (embora,
quando exageram nesse ponto, se vinculam mais ao bloco progressista). A
juventude, por sua vez, devido sua autonomia relativa e negação de sua inserção
no mundo adulto, tende a rebeldia e ativismo, que, em certos setores, acaba se
aproximando do proletariado (embora outro setor, maior, se aproxima do bloco
progressista, ou seja, da hegemonia burocrática). Em momentos de radicalização
da luta de classes, aumenta a adesão de indivíduos intelectuais e jovens à
hegemonia proletária. Porém, é preciso deixar claro que a classe intelectual é
uma classe auxiliar da burguesia e, por conseguinte, é conservadora. No entanto,
indivíduos, ou até setores inteiros, podem ultrapassar essa determinação,
embora seja raro além de casos individuais ou setores marginalizados (que podem
também aderir ao extremismo conservador visando ganhar espaços com isso, tal
como ocorre hoje no Brasil em torno de Jair Bolsonaro, apesar de alguns
realizarem tal aproximação por questões morais).
[10]
Porém, não é qualquer descrição. Trata-se de uma descrição da realidade tal
como ela é efetivamente, sendo, portanto, concreta.
[11]
Em alguns textos passados utilizei os termos “classes privilegiadas” e “classes
desprivilegiadas”. Porém, esses termos são problemáticos pela confusão em torno
das discussões problemáticas atuais em torno dos “privilégios”, bem como focar
nesse item que, embora real, é de menor importância. Daí a alteração para
classes superiores e classes inferiores, expressão da posição das classes na
pirâmide social, forma ilustrativa da posição das classes na sociedade
capitalista.
[12]
Sobre o significado do lumpemproletariado existe várias polêmicas e posições
negativas ao seu respeito, desde Marx, mas que se intensificou e se tornou
unilateral após ele. Marx manteve algumas ambiguidades em sua definição de
lumpemproletariado (VIANA, 2018a), mas esta é uma das formas pelas quais ele o
concebe. Contemporaneamente, outros autores vêm ressignificando o conceito no
sentido de romper com tais ambiguidades e lhe retirando o caráter negativo
(VIANA, 2018a; BRAGA, 2013; VIANA, 2015d).
[13] A
classe subalterna é aquela que engloba o conjunto dos trabalhadores domésticos
(o que Marx denominou a “classe dos serviçais”), trabalhadores dos serviços e comércio,
que possuem renda inferior e não possuem poder nas instituições (funcionários
de limpeza, segurança, etc.).
[14]
Essa adesão, no entanto, é geralmente temporária e, na maioria das vezes, ambígua. Apenas uma parte
insignificante, numericamente, dos jovens das classes superiores mantém adesão à
hegemonia proletária após a entrada na idade adulta. As razões para isso já
foram apresentadas em Viana, 2015e.
[15]
Estes processos ocorrem em momentos de estabilidade, gerando focos de hegemonia
proletária. Porém, seu efeito vai além disso, pois, uma vez existindo, em momentos
de desestabilização se fortalecem e ampliam, reforçando a tendência para a coalizão
das classes inferiores em torno do proletariado, ou seja, adesão à hegemonia
proletária, indo além de focos para se tornar algo mais generalizado.
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