JOGOS
E VALORES
Nildo Viana
Os jogos são uma das formas de lazer mais presente na nossa
vida cotidiana. Existe uma grande variedade de jogos e eles possuem um longo
processo histórico. Um elemento pouco discutido em relação aos jogos é a
questão dos valores. Por isso é importante relacionar jogos e valores. Este é o
nosso objetivo. Para tanto, vamos abordar os jogos como valores e também como
reprodutores de valores.
Mas, antes de iniciar a reflexão sobre a relação entre jogos
e valores, é preciso delimitar quais fenômenos nós denominamos como “jogo”. Sem
dúvida, o conceito de jogo, ou o fenômeno ao qual nos referimos quando usamos
tal termo nem sempre é claro. Desde o jogo de futebol, passando pelos jogos
eletrônicos, até chegar aos jogos de cartas, há uma enorme variedade de jogos[1].
Sem dúvida, é possível extrapolar e falar de “jogo político”, mas, nesse caso,
o que se faz é usar metaforicamente o termo, colocando que há uma semelhança
formal entre os jogos e a política institucional. Existem diversas definições
de jogo (KISHIMOTO, 1994)[2],
mas partiremos de uma definição para continuar nossa discussão.
Vamos iniciar com uma definição preliminar de jogo. Ele é,
aparentemente, um conjunto de atividades específicas comandadas por regras que
visam um objetivo interno também específico gerados por um ambiente artificial.
A princípio, essa definição não esclarece muito. Mas se formos além da
definição, poderemos compreender melhor o seu significado, ao explicitar o
significado de cada elemento componente do jogo. Então temos os seguintes elementos
constitutivos do jogo: a) atividades específicas; b) regras; c) objetivo
interno; d) ambiente artificial. Quais atividades específicas estão presentes
nos jogos? De onde vem sua especificidade? Aqui temos que entender que um jogo
é marcado por atividades específicas que são as do jogo e se distinguem das
atividades sociais em geral (trabalho, política, etc.). E cada jogo tem
atividades específicas que se diferenciam de outro jogo. O jogo de futebol é
uma atividade específica, bem como o jogo de baralho (e, nesse, como existem
diversos jogos, também existe uma diversidade interna de atividades
específicas, todas envolvendo as cartas do baralho, mas com regras, objetivos,
etc., distintos). Assim, temos as atividades específicas de cada jogo particular,
mas temos também o jogo como atividade específica. Isso será explicado mais
adiante.
As regras são fundamentais num jogo. Não existe jogo sem
regras. O basquetebol tem regras específicas e o futebol, ou beisebol, possuem
outras. No futebol só se pode pegar a bola com a mão em situações específicas
(ou um jogador específico, o goleiro, embora não possa fazê-lo em todas as
situações), enquanto que no basquetebol essa é a situação mais comum. O jogo de
damas tem um conjunto de regras, assim como o xadrez tem outras e a
complexidade varia de um para o outro. O objetivo interno é aquilo que se
espera do jogo. O objetivo interno do futebol, basquetebol, beisebol, etc., é
vencer a partida num jogo isolado e, no conjunto, vencer o campeonato. O
objetivo interno do truco, do buraco (canastra), do pôquer, é ganhar, vencer o
adversário. O objetivo interno do xadrez é o xeque-mate, a vitória. Assim, o
objetivo específico do jogo é geralmente ganhar ou atingir uma determinada meta
e isso é específico em cada jogo. No futebol, é marcando um número de gols
maior do que o adversário; no truco (jogo de baralho) é vencer as três rodadas
e conquistar pontos até chegar ao número de 12 em cada rodada; no jogo de Damas
é capturar (ou imobilizar) todas as peças do adversário.
Por último, temos um ambiente artificial. Esse é o elemento essencial
do jogo. O jogo é um ambiente artificial que cria atividades, regras e
objetivos específicos. Essa é a melhor definição de jogo. E é o que a
distingue, por exemplo, da brincadeira. Quando um indivíduo entra num jogo como
o Ludo, ele sai da realidade (e nisso Huizinga acerta parcialmente ao colocar
que fica fora da realidade cotidiana, embora seja da realidade em geral, e não
apenas a cotidianidade, que é “suspensa” no momento do jogo). Ele passa a
realizar uma atividade específica (jogar os dados, mexer com as peças, buscar
atingir as peças dos adversários, etc.), cujo objetivo interno é vencer através
da ação de colocar todas as suas peças na casa final e quem colocar as quatro
peças primeiro, ganha o jogo, o que é feito de acordo com regras anteriormente
delimitadas e independente da vontade dos jogadores. Quando ele faz isso, está
em uma outra realidade, não a da sociedade, a do trabalho, a da família, etc.
Isso é um ambiente artificial, que inexiste fora dele mesmo. Nesse ambiente
artificial, se constitui atividades específicas, objetivos específicos e regras
específicas. É como se fosse um mundo paralelo, uma realidade paralela[3].
Esse ambiente artificial é o que caracteriza o jogo e faz
ele ser o que é. É por isso que ele deve ter regras, atividades e objetivos
específicos, que destoam da realidade social em que vivemos. Porém, isso pode
ocorrer de forma mais ou menos intensa. Temos jogos, portanto, ambientes
artificiais, que são réplicas da sociedade atual ou de aspectos dela. Os jogos
de guerra, por exemplo, reproduzem num ambiente artificial elementos das
guerras reais. O Xadrez apresenta um ambiente artificial que reproduz uma
realidade social de determinada época, e inclusive muda com a mutação da
sociedade. O futebol é um ambiente artificial que não é réplica de nenhuma
atividade social específica, mas que se altera de acordo com os interesses por
detrás dele. O processo de mercantilização e burocratização do futebol fez dele
um esporte cada vez menos interessante e mais defensivo, pois os resultados e o
pragmatismo se tornaram o guia das decisões, esquema tático, etc.
Assim, os ambientes artificiais chamados jogos são produtos
sociais e históricos. Ele é um ambiente por cercar o indivíduo com atividades,
regras, objetivos que são específicos e é artificial pelo motivo de que tais
elementos específicos não são os das relações de trabalho, familiares,
políticas, etc. Ele, através desses elementos específicos, cria um pequeno
mundo derivado (que chamamos de ambiente) que é artificial, no sentido de que é
algo à parte das atividades de produção e reprodução da vida material e social.
Os ambientes artificiais são produtos sociais e históricos, mas realizam um
processo de distanciamento da sociedade. Isso, no entanto, ocorre em graus
distintos, pois a sociedade pode cercar esse ambiente artificial e inseri-lo em
suas relações e assim pode aproximá-lo dela. Quanto maior essa aproximação,
mais desinteressante pode se tornar um jogo. Esse é o caso do futebol e outros
esportes no capitalismo, quando são mercantilizados e burocratizados, pois
continuam ambientes artificiais, mas cada vez mais determinados por relações
externas e o objetivo interno é cada vez mais subordinado aos objetivos
externos.
O jogo, na sociedade, permite aos indivíduos sair das
relações sociais e de sua posição social, mesmo que momentaneamente. Isso
permite ao indivíduo fugir do mundo real. Nesse ponto, começamos a distinguir o
objetivo interno do jogo e o objetivo externo. O objetivo externo remete à
pergunta: por qual motivo as pessoas jogam? Se se perguntar, por qual motivo as
pessoas trabalham, a resposta vai ser mais ou menos facilmente apresentada:
para sobreviver. O trabalho é necessário (embora nem para todos, tal como
aqueles que vivem do trabalho alheio). Por qual motivo as pessoas se alimentam?
A resposta é relativamente óbvia. Isso não acontece quando se pergunta “por qual
motivo as pessoas jogam”? E derivado disso seria possível perguntar também por
qual motivo algumas pessoas não jogam e não gostam de jogos, ou, ainda, por
qual motivo alguns jogam compulsivamente. Vamos tratar desse último caso mais adiante.
Os jogos possuem objetivos internos (e específicos em cada jogo), mas é preciso
explicar qual é a motivação dos indivíduos entrarem nesse ambiente artificial. Alguns
explicam isso através da ideia da função de descanso em relação ao trabalho.
Sem dúvida, isso pode acontecer, embora seja mais comum para alguns jogos e em
alguns casos, mas não é possível generalizar, pois muitos jogos são cansativos
e demandam alta concentração (o xadrez, por exemplo) ou dispêndio de força
física (os jogos de bola, como futebol, por exemplo).
Assim, podemos dizer que as pessoas jogam por diversos
motivos em diversos contextos e que pode ser descansar, fugir da realidade,
efetivar a socialidade, aprendizagem, desenvolver suas potencialidades,
competir, etc. A competição, um dos elementos fundamentais da sociabilidade
capitalista (VIANA, 2008), é um dos principais incentivos para o jogo na
sociedade moderna. No jogo, ele pode ser um vencedor, mesmo que na sociedade
seja um perdedor. No jogo, ele pode esquecer os conflitos, os problemas do trabalho,
as dificuldades das relações afetivas, etc. É por isso que o jogo assume várias
incumbências na sociedade e isso vai variar em cada caso concreto. No caso da
sociedade moderna, o mais comum é que o jogo sirva como evasão e para a
competição, mas ele não perde as demais incumbências (socialidade, descanso,
educação, autorrealização, etc.), que, no entanto, são marginalizadas nesse
contexto. E, dependendo do contexto, jogo, etc., uma ou outra incumbência pode
ser preponderante.
A partir dessa reflexão inicial sobre o conceito de jogo,
podemos avançar na análise da relação entre os jogos e os valores culturais[4].
Uma vez compreendido o que é o jogo, podemos avançar para analisar a sua
relação com os valores. Porém, é preciso esclarecer o que se entende por
valores. Por valores entendemos aquilo que é considerado pelos indivíduos como
importante, significativo (VIANA, 2007). Assim, o que nós gostamos, preferimos,
consideramos “belo”, “superior”, “fundamental”, “correto”, etc., são coisas que
valoramos. Disso deriva um conjunto de outras questões, como a questão da
valoração, da desvaloração, dos valores dominantes, entre outras, mas não será
possível realizar essa discussão aqui e, de acordo com os nossos objetivos, é
suficiente a definição de valores e elementos complementares colocaremos apenas
quando for necessário.
A relação entre jogos e valores se estabelece em dois
aspectos. Um desses aspectos é a valoração dos jogos e o outro é os valores
manifestos nos jogos. O aspecto que vamos discutir inicialmente é o dos jogos
como valores. Para muitos indivíduos, um jogo pode se tornar um valor. Sem
dúvida, mecanismos psíquicos complexos podem levar os indivíduos a uma certa
relação problemática com os jogos, desenvolvendo um comportamento compulsivo[5].
Assim, as crianças e jovens possuem uma tendência maior para a valoração dos
jogos, pois é uma forma de brincar e desenvolver suas potencialidades, bem
como, no caso da sociedade capitalista, uma forma de competir também. Assim, a
valoração, ou mesmo supervaloração de jogos, é um fenômeno relativamente comum
na sociedade atual. E isso, quando o jogo é mercantilizado (e burocratizado),
ele pode ser um valor ligado aos interesses dos indivíduos. Um jogador de
futebol profissional tende a supervalorar esse esporte, pois sua vida gira em
torno disso, bem como seu sucesso ou fracasso, não apenas como esportista, mas
como profissional e ser social. Um jogador de sucesso “venceu na vida”, tem
dinheiro e tudo o que é derivado disso. Dessa forma, o seu envolvimento com o
futebol é intenso, pois se mescla atividades cotidianas, interesses, relações
sociais, etc. Logo, nada mais normal que esteja entre os seus valores
fundamentais. Por outro lado, um indivíduo que faz parte de uma torcida
organizada também pode supervalorar o futebol, embora sua motivação seja
geralmente outra, tal como a competição social. Para os indivíduos que perderam
a competição social, vencer a competição nesse ambiente artificial funciona
como compensação. E isso é motivação para valoração, mesmo que a vitória não
tenha sido conseguida, mas a sua possibilidade existe, ao contrário da
competição social no trabalho e outras instâncias da vida. O mesmo processo
pode funcionar num jogo de cartas ou tabuleiro e é por isso que algumas pessoas
não suportam a derrota, pois seria o último reduto em que poderiam ser
vitoriosas.
Mas os jogos não são valorados apenas por causa de
mentalidade competitiva e interesses. Eles também podem ser valorados por
vínculos sentimentais (recordação da infância ou de relações afetivas que
remetem a convívio através de jogos) e diversas outras motivações. Por outro
lado, certos indivíduos podem valorar diversos jogos e até criar uma hierarquia
entre eles, enquanto que outros indivíduos podem valorar apenas um jogo ou
mesmo desvalorar todos os jogos. No caso individual, é necessário, para
compreender esse processo, analisar a história de vida do indivíduo. Inclusive
a valoração de jogos pode ganhar uma repercussão nacional. O Brasil, por
exemplo, já foi denominado o “país do futebol” e isso é perceptível na ideia de
um “esporte nacional”, ou seja, que teria a preferência da maioria da população[6].
Um exemplo extremo de valoração dos jogos se encontra, justamente, num dos
maiores estudiosos desse tema, o historiador John Huizinga, autor de Homo
Ludens. O título da obra já aponta para a supervaloração do jogo, pois o
ser humano é definido fundamentalmente como jogador.
Porém, a relação entre jogos e valores culturais vai além da
valoração do jogo. O jogo reproduz e reforça valores existentes na sociedade. O
jogo é constituído social e historicamente. Os jogos, quando são criados, são
produzidos por indivíduos, seres humanos reais, concretos. Esses indivíduos
nascem numa determinada sociedade, ocupam uma determinada posição no seu interior,
desenvolvem valores, ideias, sentimentos, a partir da sociedade em que nascem.
Por esse motivo, os jogos, quando são inventados, são por estes indivíduos, que
só podem ser compreendidos a partir de sua história de vida, o que remete para
a sociedade, a época, o seu lugar na divisão social do trabalho, a cultura,
etc., no qual ele se forma e desenvolve sua vida. Logo, por mais individual e
original que seja o jogo inventado, ele traz em si a marca da sociedade na qual
ele surge. Mesmo se um indivíduo cria um jogo para despertar uma consciência
revolucionária (e consiga êxito nessa criação, ou seja, no caso que tenha
sucesso em produzir algo que realmente seja o que ele intencionava produzir)[7],
isso só tem sentido por causa que ele vive nessa sociedade e a nega, bem como
criou tal jogo por causa de sua história de vida, que é o que explica ele ter
se tornado “revolucionário”.
Sendo assim, a invenção de um jogo é um produto social e
histórico e, geralmente, ele reproduz a sociedade de sua época, os valores
dominantes. O jogo, predominantemente, é axiológico[8].
O xadrez, por exemplo, reproduz a sociedade feudal[9].
O rei e a rainha, a torre, o bispo, o cavalo, bem como os peões, marcam a
hierarquia da sociedade feudal. Qual é a peça mais importante do jogo? O Rei.
Ora, lembrando que importância remete a valores, então o Rei, no jogo, é a peça
de maior valor. O indivíduo mais valorado na sociedade tem como equivalente a
peça mais valorada no jogo. A hierarquia se apresenta no jogo e assim temos não
apenas uma reprodução dos valores dominantes da sociedade feudal, mas o seu
reforço. Esse reforço se manifesta através do processo de sua materialização no
jogo, o que significa que ele participará do processo de socialização dos
indivíduos, que aponta para sua naturalização, etc. O jogo de xadrez, numa
sociedade feudal, era um ambiente artificial voltado para atividades
específicas, regras e objetivos internos, que se assemelham à prática da
guerra, algo comum na sociedade feudal. O objetivo interno é derrotar o rei que
é o adversário e isso de acordo com regras que mostram a hierarquia social (os
peões possuem menor variedade de movimentos, enquanto que as outras peças
possuem movimentos mais amplos e a Rainha maior variedade de movimentos).
No capitalismo, existem jogos que reproduzem valores
capitalistas, como, por exemplo, o Banco Imobiliário e semelhantes. Um dos
valores fundamentais da sociedade capitalista é o dinheiro e esse jogo se
fundamenta justamente na busca e valoração do dinheiro. O objetivo do jogo é tornar-se
o mais rico jogador, o que já revela um valor fundamental do jogo que é um
similar da realidade da sociedade moderna. E as regras do jogo são as do
mercado financeiro, ocorrendo através de compra, aluguel ou venda de
propriedades. As atividades específicas do jogo consistem no cálculo mercantil
e estratégia para vencer o jogo, ao lado do uso de dados e outros processos que
lembram a prática capitalista de negociação, aquisição, venda, competição, etc.
Assim, o jogo reproduz os valores dominantes, tal como a supervaloração do
dinheiro, a competição, etc., e, ao mesmo tempo, reforça os mesmos, pois atua
no processo de socialização, gera envolvimento emocional e naturalização das
relações sociais existentes, etc.
Nem todos os jogos, no entanto, possuem valores explícitos.
Esse é o caso do jogo de dominó. Ele pode ser um valor para os aficionados, mas
no seu ambiente artificial não há valores explícitos. Os valores ligados ao
ambiente artificial, interno, é apenas a competição e a busca em derrotar os
adversários. Desta forma, ele reproduz o valor da competição e isso é comum a
quase todos os jogos (os chamados “jogos colaborativos” são uma exceção).
Porém, em que pese a competição seja um valor burguês, elemento fundamental da
sociabilidade capitalista, ele é uma necessidade nas relações sociais concretas
– um indivíduo que não realiza competição será derrotado ou excluído – e a
socialização para a competição também ajuda no sentido de preparar para a luta[10].
Por outro lado, um indivíduo que não conhece a competição, não só fica inapto
para ela, como também fica despreparado para combatê-la. A questão dos jogos e
da competição é que ela é amplamente majoritária e promove um processo de
exacerbação e, mais ainda, pela vitória, ou seja, para ganhar o jogo. E é o
objetivo de ganhar a qualquer custo a competição (social ou lúdica) que acaba
se tornando preponderante e é por isso que é tão comum o chamado “roubo” no
jogo, que significa passar por cima das regras e enganar o adversário para
ganhar, injustamente.
Nós abordamos os objetivos internos do jogo, mas resta a
questão dos objetivos externos e estes remetem para os jogadores e para a
sociedade, no qual vamos nos deparar novamente com a questão dos valores. Por
qual motivo um indivíduo joga? Existem vários motivos, dependendo do indivíduo,
da época, da sociedade, entre outras questões que vão muito além da vontade ou
da consciência dos jogadores. Um indivíduo pode entrar num jogo com o objetivo
de desenvolver a socialidade, bem como pode fazê-lo para conseguir sobreviver,
se for um profissional. Um jogador de futebol amador pode jogar para reunir com
os amigos ou para descarregar suas energias físicas. Um jogador profissional
pode fazê-lo para ganhar dinheiro ou vencer a competição social (a competição
esportiva é um meio para ganhar a competição social, nesse caso) ou
simplesmente para sobreviver. No caso de um indivíduo concreto, pode ser por
várias motivações, inclusive algumas contraditórias (é por isso que alguns
jogadores de futebol profissional podem ser ousados numa época em que a ousadia
foi condenada na busca pelos resultados, o que é raro, mas ainda existe). Os
indivíduos podem jogar também para se evadir. A evasão é um dos elementos mais
complexos da sociedade capitalista, pois permite que o indivíduo fuja da
realidade (social, marcada por conflitos, derrotas, etc.) e se refugie num
ambiente artificial no qual ele pode vencer a competição e ter a satisfação
disso ou então simplesmente esquecer “a vida lá fora”. A evasão pode gerar uma
busca compulsiva pelos jogos e acaba sendo um fenômeno psíquico complexo gerado
pelas relações sociais da sociedade moderna.
Os objetivos externos remetem a outros fenômenos sociais,
bem como a valores. Os indivíduos que usam o jogo como competição substituta,
servindo como compensação da derrota na competição social acabam demonstrando
os seus valores. Por outro lado, aqueles que usam o jogo para realizar suas
potencialidades demonstram outros valores. Contudo, os objetivos dos jogos não
são, na maioria das vezes, definidos pelo indivíduo. É a sociedade que gera uma
mentalidade dominante, valores dominantes, etc. e isso derivado de suas
relações sociais concretas (modo de produção, sociabilidade, etc.).
Em síntese, os jogos são perpassados por valores, são
valorados (ou desvalorados) e reproduzem e reforçam determinados valores, sendo
que o que é predominante é a reprodução e reforço dos valores dominantes. Nesse
sentido, os jogos são, hegemonicamente, axiológicos. Sem dúvida, existem jogos
axionômicos, tal como alguns jogos que se baseiam na cooperação ao invés da
competição, bem como alguns jogos axiológicos podem ser subvertidos e se
tornarem o seu oposto (o jogo de xadrez, por exemplo, já recebeu alterações,
como, por exemplo, um jogador jogar com as peças mais fortes e outro apenas com
os peões, só que em maior quantidade, expressando assim ao invés de uma guerra,
a luta de classes) ou também podem ser utilizados sob forma axionômica[11],
para colocar que ele expressa essa sociedade e seus problemas. A complexa
relação entre jogos e valores tem vários outros elementos que aqui não foram
desenvolvidos, bem como tem diversas variações dependendo dos jogos, da época,
etc. Mas atingimos o nosso objetivo de realizar uma discussão introdutória
sobre a relação dos jogos e dos valores.
Referências
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O Jogo como Elemento da Cultura.
São Paulo: Perspectiva, 2001.
KISHIMOTO,
Tizuko. O Jogo e a Educação Infantil. Perspectiva. Florianópolis,
UFSC/CED, NUP, vol. 12, num. 22, 1994.
VIANA,
Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna.
Brasília: Thesaurus, 2007.
VIANA, Nildo. Universo
Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo:
Escuta, 2008.
[1] “Tentar
definir o jogo não é tarefa fácil. Quando se diz a palavra jogo cada um pode entendê-la
de modo diferente. Pode-se estar falando de jogos políticos, de adultos, de
crianças, de animais ou de amarelinha, de xadrez, de adivinhas, de contar
estórias, de brincar de "mamãe e filhinha", de dominó, de
quebra-cabeça, de construir barquinho e uma infinidade de outros. Tais jogos,
embora recebam a mesma denominação, têm suas especificidades. Por exemplo, no
faz-de-conta, há forte presença da situação imaginária, no jogo de xadrez, as
regras externas padronizadas permitem a movimentação das peças. Já a construção
de um barquinho exige não só a representação mental do objeto a ser construído,
mas também a habilidade manual para operacionalizá-lo” (KISHIMOTO, 1994).
[2]
Não é possível concordar com uma das mais conhecidas definições de jogo, que é
a de Huizinga: “uma atividade ou
ocupação voluntária, exercida
dentro de certos
e determinados limites
de tempo e
espaço, segundo regras
livremente consentidas, mas
absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado
de um sentimento
de tensão e
de alegria e
de uma consciência de ser
diferente da ‘vida quotidiana’” (HUIZINGA, 2001, p. 33). A razão da
discordância é que, embora perceba alguns elementos típicos dos jogos, como a
existência de regras, há também problemas, como o seu caráter voluntário, que
existe na maioria dos casos, mas não pode ser generalizado (o processo de
mercantilização e profissionalização retira o caráter voluntário de diversos
jogos), bem como outros elementos questionáveis.
[3]
Nesse sentido, o jogo se assemelha à arte. Mas existem algumas diferenças. A
arte cria uma “realidade paralela” que é o seu universo ficcional. O artista
produz a arte, o universo ficcional, e o não-artista é mais um espectador, não
um produtor. No jogo, os que jogam são jogadores, agentes. Sem dúvida, existem
jogos em que as pessoas observam e torcem sem participar, bem como algumas
obras de arte que visam a “interação” com o espectador. A diferença
fundamental, no entanto, é que a arte remete ao ficcional, a algo que o artista
e o espectador, sabem não ser a realidade, sendo mera ficção. O jogo, ao
contrário, não é ficcional. Ele é real. Só que “separado” de outras atividades
reais. O que ocorre num jogo é algo real e efetivo, mas que tem sua validade
restringida a ele mesmo. Assim, a realidade paralela produzida pela arte é
ficcional e a criada pelo jogo é não-ficcional, sendo, portanto, duas formas
distintas de criação humana.
[4] A
palavra “valores” é utilizada sob formas bem distintas em contextos diferentes.
Em matemática ou teoria das cores, assumem um significado específico, bem como
em economia (e no marxismo, no qual se pode falar de valor de uso e valor de
troca das mercadorias). Aqui colocamos “valores culturais” para distinguir
desses outros usos da palavra, pois seu significado aqui remete para a questão
cultural e mental e não em contextos mais específicos e/ou especializados.
[5]
Por comportamento compulsivo entenda-se aqueles atos caracterizados por uma
vontade irresistível, de caráter não racional, que constrange o indivíduo a
realizar determinadas ações, como o consumo de drogas e repetição de atos, tal
como jogar constantemente. A explicação disso remete para elementos psíquicos
que seriam melhor compreendidos através de uma análise psicanalítica que não
nos propomos a realizar aqui.
[6] E
aqui temos uma percepção de que a valoração dos jogos é reforçada pelo sucesso
nos mesmos. No Brasil, por exemplo, o futebol sempre teve um conjunto de aficionados,
a começar dos seus praticantes amadores, dos profissionais, dos clubes, dos envolvidos
indiretamente (comentaristas esportivos, etc.). Além desses, envolvidos nessa
área de atuação profissional ou amadora, temos as pessoas próximas que são atingidas.
Porém, o envolvimento de um setor amplo da população e seu crescimento tem a
ver com as vitórias. A seleção brasileira de futebol ao conquistar uma copa do
mundo, aglutina novos adeptos e entusiastas do futebol. Os meios oligopolistas
de comunicação usam o espetáculo futebolístico para lucrar e a vitória numa
copa do mundo desperta entusiasmo e mais pessoas para valorar tal esporte. Esse
é um dos poucos esportes que os brasileiros podem contar com a possibilidade de
vitória. Em outros esportes, isso ocorre em escala bem menor. As várias copas
conquistadas reforçam a reprodução da popularidade do futebol e assim ele se
consolida como o principal esporte nacional e o mais valorado, aquele que os
brasileiros se sentem vitoriosos a nível mundial.
[7] Se
esse indivíduo possui limitações ou ambiguidades, será mais difícil atingir
esse objetivo.
[8]
Axiologia é uma determinada configuração dos valores dominantes na sociedade,
ou seja, uma combinação de valores dominantes. Dizer que algo é axiológico
significa afirmar que manifesta os valores dominantes.
[9] A
origem do xadrez é palco de polêmicas, e alguns remetem ao mundo árabe. No
entanto, não era exatamente o xadrez que tratamos aqui e que é mais conhecido.
Inclusive o Bispo e a Rainha foram, segundo alguns, adicionados ao jogo quando
chegou à Europa. Isso significa que um jogo pode ser inventado numa época e
sociedade e depois, em outra época e sociedade, é adaptado ao novo contexto
social e histórico.
[10] A
diferença entre competição social e luta de classes reside no fato de que a
primeira aceita o jogo e suas regras – embora nem sempre as regras –, ou seja,
os meios e os fins são os da sociedade capitalista (os fins são a riqueza, o
poder, o sucesso, a fama, a vitória, a ascensão social, etc.) e os meios são os
mais variados (inclusive se pode dividir entre os legais e morais e os ilegais
e imorais), se destacando a competição. A luta de classes ocorre por outros
objetivos: não é uma concorrência para chegar em primeiro lugar e sim uma
disputa no qual um lado quer manter e reproduzir “o jogo e suas regras” (esta
sociedade) e outros querem aboli-los, ou seja, transformar essa sociedade em
outra sociedade.
[11]
Axionomia é uma determinada configuração dos valores autênticos (VIANA, 2007),
ou seja, que correspondem à natureza humana, ao desenvolvimento da práxis
(autorrealização via trabalho, no sentido amplo do termo e excetuando o trabalho
alienado, tal como a criatividade) e da socialidade (relações sociais
autênticas e harmoniosas, o que exclui as relações de exploração e dominação e
todas as demais derivadas delas).
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