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segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Jogos e Valores

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JOGOS E VALORES

Nildo Viana



Os jogos são uma das formas de lazer mais presente na nossa vida cotidiana. Existe uma grande variedade de jogos e eles possuem um longo processo histórico. Um elemento pouco discutido em relação aos jogos é a questão dos valores. Por isso é importante relacionar jogos e valores. Este é o nosso objetivo. Para tanto, vamos abordar os jogos como valores e também como reprodutores de valores.

Mas, antes de iniciar a reflexão sobre a relação entre jogos e valores, é preciso delimitar quais fenômenos nós denominamos como “jogo”. Sem dúvida, o conceito de jogo, ou o fenômeno ao qual nos referimos quando usamos tal termo nem sempre é claro. Desde o jogo de futebol, passando pelos jogos eletrônicos, até chegar aos jogos de cartas, há uma enorme variedade de jogos[1]. Sem dúvida, é possível extrapolar e falar de “jogo político”, mas, nesse caso, o que se faz é usar metaforicamente o termo, colocando que há uma semelhança formal entre os jogos e a política institucional. Existem diversas definições de jogo (KISHIMOTO, 1994)[2], mas partiremos de uma definição para continuar nossa discussão.

Vamos iniciar com uma definição preliminar de jogo. Ele é, aparentemente, um conjunto de atividades específicas comandadas por regras que visam um objetivo interno também específico gerados por um ambiente artificial. A princípio, essa definição não esclarece muito. Mas se formos além da definição, poderemos compreender melhor o seu significado, ao explicitar o significado de cada elemento componente do jogo. Então temos os seguintes elementos constitutivos do jogo: a) atividades específicas; b) regras; c) objetivo interno; d) ambiente artificial. Quais atividades específicas estão presentes nos jogos? De onde vem sua especificidade? Aqui temos que entender que um jogo é marcado por atividades específicas que são as do jogo e se distinguem das atividades sociais em geral (trabalho, política, etc.). E cada jogo tem atividades específicas que se diferenciam de outro jogo. O jogo de futebol é uma atividade específica, bem como o jogo de baralho (e, nesse, como existem diversos jogos, também existe uma diversidade interna de atividades específicas, todas envolvendo as cartas do baralho, mas com regras, objetivos, etc., distintos). Assim, temos as atividades específicas de cada jogo particular, mas temos também o jogo como atividade específica. Isso será explicado mais adiante.

As regras são fundamentais num jogo. Não existe jogo sem regras. O basquetebol tem regras específicas e o futebol, ou beisebol, possuem outras. No futebol só se pode pegar a bola com a mão em situações específicas (ou um jogador específico, o goleiro, embora não possa fazê-lo em todas as situações), enquanto que no basquetebol essa é a situação mais comum. O jogo de damas tem um conjunto de regras, assim como o xadrez tem outras e a complexidade varia de um para o outro. O objetivo interno é aquilo que se espera do jogo. O objetivo interno do futebol, basquetebol, beisebol, etc., é vencer a partida num jogo isolado e, no conjunto, vencer o campeonato. O objetivo interno do truco, do buraco (canastra), do pôquer, é ganhar, vencer o adversário. O objetivo interno do xadrez é o xeque-mate, a vitória. Assim, o objetivo específico do jogo é geralmente ganhar ou atingir uma determinada meta e isso é específico em cada jogo. No futebol, é marcando um número de gols maior do que o adversário; no truco (jogo de baralho) é vencer as três rodadas e conquistar pontos até chegar ao número de 12 em cada rodada; no jogo de Damas é capturar (ou imobilizar) todas as peças do adversário.

Por último, temos um ambiente artificial. Esse é o elemento essencial do jogo. O jogo é um ambiente artificial que cria atividades, regras e objetivos específicos. Essa é a melhor definição de jogo. E é o que a distingue, por exemplo, da brincadeira. Quando um indivíduo entra num jogo como o Ludo, ele sai da realidade (e nisso Huizinga acerta parcialmente ao colocar que fica fora da realidade cotidiana, embora seja da realidade em geral, e não apenas a cotidianidade, que é “suspensa” no momento do jogo). Ele passa a realizar uma atividade específica (jogar os dados, mexer com as peças, buscar atingir as peças dos adversários, etc.), cujo objetivo interno é vencer através da ação de colocar todas as suas peças na casa final e quem colocar as quatro peças primeiro, ganha o jogo, o que é feito de acordo com regras anteriormente delimitadas e independente da vontade dos jogadores. Quando ele faz isso, está em uma outra realidade, não a da sociedade, a do trabalho, a da família, etc. Isso é um ambiente artificial, que inexiste fora dele mesmo. Nesse ambiente artificial, se constitui atividades específicas, objetivos específicos e regras específicas. É como se fosse um mundo paralelo, uma realidade paralela[3].

Esse ambiente artificial é o que caracteriza o jogo e faz ele ser o que é. É por isso que ele deve ter regras, atividades e objetivos específicos, que destoam da realidade social em que vivemos. Porém, isso pode ocorrer de forma mais ou menos intensa. Temos jogos, portanto, ambientes artificiais, que são réplicas da sociedade atual ou de aspectos dela. Os jogos de guerra, por exemplo, reproduzem num ambiente artificial elementos das guerras reais. O Xadrez apresenta um ambiente artificial que reproduz uma realidade social de determinada época, e inclusive muda com a mutação da sociedade. O futebol é um ambiente artificial que não é réplica de nenhuma atividade social específica, mas que se altera de acordo com os interesses por detrás dele. O processo de mercantilização e burocratização do futebol fez dele um esporte cada vez menos interessante e mais defensivo, pois os resultados e o pragmatismo se tornaram o guia das decisões, esquema tático, etc.

Assim, os ambientes artificiais chamados jogos são produtos sociais e históricos. Ele é um ambiente por cercar o indivíduo com atividades, regras, objetivos que são específicos e é artificial pelo motivo de que tais elementos específicos não são os das relações de trabalho, familiares, políticas, etc. Ele, através desses elementos específicos, cria um pequeno mundo derivado (que chamamos de ambiente) que é artificial, no sentido de que é algo à parte das atividades de produção e reprodução da vida material e social. Os ambientes artificiais são produtos sociais e históricos, mas realizam um processo de distanciamento da sociedade. Isso, no entanto, ocorre em graus distintos, pois a sociedade pode cercar esse ambiente artificial e inseri-lo em suas relações e assim pode aproximá-lo dela. Quanto maior essa aproximação, mais desinteressante pode se tornar um jogo. Esse é o caso do futebol e outros esportes no capitalismo, quando são mercantilizados e burocratizados, pois continuam ambientes artificiais, mas cada vez mais determinados por relações externas e o objetivo interno é cada vez mais subordinado aos objetivos externos.

O jogo, na sociedade, permite aos indivíduos sair das relações sociais e de sua posição social, mesmo que momentaneamente. Isso permite ao indivíduo fugir do mundo real. Nesse ponto, começamos a distinguir o objetivo interno do jogo e o objetivo externo. O objetivo externo remete à pergunta: por qual motivo as pessoas jogam? Se se perguntar, por qual motivo as pessoas trabalham, a resposta vai ser mais ou menos facilmente apresentada: para sobreviver. O trabalho é necessário (embora nem para todos, tal como aqueles que vivem do trabalho alheio). Por qual motivo as pessoas se alimentam? A resposta é relativamente óbvia. Isso não acontece quando se pergunta “por qual motivo as pessoas jogam”? E derivado disso seria possível perguntar também por qual motivo algumas pessoas não jogam e não gostam de jogos, ou, ainda, por qual motivo alguns jogam compulsivamente. Vamos tratar desse último caso mais adiante. Os jogos possuem objetivos internos (e específicos em cada jogo), mas é preciso explicar qual é a motivação dos indivíduos entrarem nesse ambiente artificial. Alguns explicam isso através da ideia da função de descanso em relação ao trabalho. Sem dúvida, isso pode acontecer, embora seja mais comum para alguns jogos e em alguns casos, mas não é possível generalizar, pois muitos jogos são cansativos e demandam alta concentração (o xadrez, por exemplo) ou dispêndio de força física (os jogos de bola, como futebol, por exemplo).

Assim, podemos dizer que as pessoas jogam por diversos motivos em diversos contextos e que pode ser descansar, fugir da realidade, efetivar a socialidade, aprendizagem, desenvolver suas potencialidades, competir, etc. A competição, um dos elementos fundamentais da sociabilidade capitalista (VIANA, 2008), é um dos principais incentivos para o jogo na sociedade moderna. No jogo, ele pode ser um vencedor, mesmo que na sociedade seja um perdedor. No jogo, ele pode esquecer os conflitos, os problemas do trabalho, as dificuldades das relações afetivas, etc. É por isso que o jogo assume várias incumbências na sociedade e isso vai variar em cada caso concreto. No caso da sociedade moderna, o mais comum é que o jogo sirva como evasão e para a competição, mas ele não perde as demais incumbências (socialidade, descanso, educação, autorrealização, etc.), que, no entanto, são marginalizadas nesse contexto. E, dependendo do contexto, jogo, etc., uma ou outra incumbência pode ser preponderante.

A partir dessa reflexão inicial sobre o conceito de jogo, podemos avançar na análise da relação entre os jogos e os valores culturais[4]. Uma vez compreendido o que é o jogo, podemos avançar para analisar a sua relação com os valores. Porém, é preciso esclarecer o que se entende por valores. Por valores entendemos aquilo que é considerado pelos indivíduos como importante, significativo (VIANA, 2007). Assim, o que nós gostamos, preferimos, consideramos “belo”, “superior”, “fundamental”, “correto”, etc., são coisas que valoramos. Disso deriva um conjunto de outras questões, como a questão da valoração, da desvaloração, dos valores dominantes, entre outras, mas não será possível realizar essa discussão aqui e, de acordo com os nossos objetivos, é suficiente a definição de valores e elementos complementares colocaremos apenas quando for necessário.

A relação entre jogos e valores se estabelece em dois aspectos. Um desses aspectos é a valoração dos jogos e o outro é os valores manifestos nos jogos. O aspecto que vamos discutir inicialmente é o dos jogos como valores. Para muitos indivíduos, um jogo pode se tornar um valor. Sem dúvida, mecanismos psíquicos complexos podem levar os indivíduos a uma certa relação problemática com os jogos, desenvolvendo um comportamento compulsivo[5]. Assim, as crianças e jovens possuem uma tendência maior para a valoração dos jogos, pois é uma forma de brincar e desenvolver suas potencialidades, bem como, no caso da sociedade capitalista, uma forma de competir também. Assim, a valoração, ou mesmo supervaloração de jogos, é um fenômeno relativamente comum na sociedade atual. E isso, quando o jogo é mercantilizado (e burocratizado), ele pode ser um valor ligado aos interesses dos indivíduos. Um jogador de futebol profissional tende a supervalorar esse esporte, pois sua vida gira em torno disso, bem como seu sucesso ou fracasso, não apenas como esportista, mas como profissional e ser social. Um jogador de sucesso “venceu na vida”, tem dinheiro e tudo o que é derivado disso. Dessa forma, o seu envolvimento com o futebol é intenso, pois se mescla atividades cotidianas, interesses, relações sociais, etc. Logo, nada mais normal que esteja entre os seus valores fundamentais. Por outro lado, um indivíduo que faz parte de uma torcida organizada também pode supervalorar o futebol, embora sua motivação seja geralmente outra, tal como a competição social. Para os indivíduos que perderam a competição social, vencer a competição nesse ambiente artificial funciona como compensação. E isso é motivação para valoração, mesmo que a vitória não tenha sido conseguida, mas a sua possibilidade existe, ao contrário da competição social no trabalho e outras instâncias da vida. O mesmo processo pode funcionar num jogo de cartas ou tabuleiro e é por isso que algumas pessoas não suportam a derrota, pois seria o último reduto em que poderiam ser vitoriosas.

Mas os jogos não são valorados apenas por causa de mentalidade competitiva e interesses. Eles também podem ser valorados por vínculos sentimentais (recordação da infância ou de relações afetivas que remetem a convívio através de jogos) e diversas outras motivações. Por outro lado, certos indivíduos podem valorar diversos jogos e até criar uma hierarquia entre eles, enquanto que outros indivíduos podem valorar apenas um jogo ou mesmo desvalorar todos os jogos. No caso individual, é necessário, para compreender esse processo, analisar a história de vida do indivíduo. Inclusive a valoração de jogos pode ganhar uma repercussão nacional. O Brasil, por exemplo, já foi denominado o “país do futebol” e isso é perceptível na ideia de um “esporte nacional”, ou seja, que teria a preferência da maioria da população[6]. Um exemplo extremo de valoração dos jogos se encontra, justamente, num dos maiores estudiosos desse tema, o historiador John Huizinga, autor de Homo Ludens. O título da obra já aponta para a supervaloração do jogo, pois o ser humano é definido fundamentalmente como jogador.

Porém, a relação entre jogos e valores culturais vai além da valoração do jogo. O jogo reproduz e reforça valores existentes na sociedade. O jogo é constituído social e historicamente. Os jogos, quando são criados, são produzidos por indivíduos, seres humanos reais, concretos. Esses indivíduos nascem numa determinada sociedade, ocupam uma determinada posição no seu interior, desenvolvem valores, ideias, sentimentos, a partir da sociedade em que nascem. Por esse motivo, os jogos, quando são inventados, são por estes indivíduos, que só podem ser compreendidos a partir de sua história de vida, o que remete para a sociedade, a época, o seu lugar na divisão social do trabalho, a cultura, etc., no qual ele se forma e desenvolve sua vida. Logo, por mais individual e original que seja o jogo inventado, ele traz em si a marca da sociedade na qual ele surge. Mesmo se um indivíduo cria um jogo para despertar uma consciência revolucionária (e consiga êxito nessa criação, ou seja, no caso que tenha sucesso em produzir algo que realmente seja o que ele intencionava produzir)[7], isso só tem sentido por causa que ele vive nessa sociedade e a nega, bem como criou tal jogo por causa de sua história de vida, que é o que explica ele ter se tornado “revolucionário”.

Sendo assim, a invenção de um jogo é um produto social e histórico e, geralmente, ele reproduz a sociedade de sua época, os valores dominantes. O jogo, predominantemente, é axiológico[8]. O xadrez, por exemplo, reproduz a sociedade feudal[9]. O rei e a rainha, a torre, o bispo, o cavalo, bem como os peões, marcam a hierarquia da sociedade feudal. Qual é a peça mais importante do jogo? O Rei. Ora, lembrando que importância remete a valores, então o Rei, no jogo, é a peça de maior valor. O indivíduo mais valorado na sociedade tem como equivalente a peça mais valorada no jogo. A hierarquia se apresenta no jogo e assim temos não apenas uma reprodução dos valores dominantes da sociedade feudal, mas o seu reforço. Esse reforço se manifesta através do processo de sua materialização no jogo, o que significa que ele participará do processo de socialização dos indivíduos, que aponta para sua naturalização, etc. O jogo de xadrez, numa sociedade feudal, era um ambiente artificial voltado para atividades específicas, regras e objetivos internos, que se assemelham à prática da guerra, algo comum na sociedade feudal. O objetivo interno é derrotar o rei que é o adversário e isso de acordo com regras que mostram a hierarquia social (os peões possuem menor variedade de movimentos, enquanto que as outras peças possuem movimentos mais amplos e a Rainha maior variedade de movimentos).

No capitalismo, existem jogos que reproduzem valores capitalistas, como, por exemplo, o Banco Imobiliário e semelhantes. Um dos valores fundamentais da sociedade capitalista é o dinheiro e esse jogo se fundamenta justamente na busca e valoração do dinheiro. O objetivo do jogo é tornar-se o mais rico jogador, o que já revela um valor fundamental do jogo que é um similar da realidade da sociedade moderna. E as regras do jogo são as do mercado financeiro, ocorrendo através de compra, aluguel ou venda de propriedades. As atividades específicas do jogo consistem no cálculo mercantil e estratégia para vencer o jogo, ao lado do uso de dados e outros processos que lembram a prática capitalista de negociação, aquisição, venda, competição, etc. Assim, o jogo reproduz os valores dominantes, tal como a supervaloração do dinheiro, a competição, etc., e, ao mesmo tempo, reforça os mesmos, pois atua no processo de socialização, gera envolvimento emocional e naturalização das relações sociais existentes, etc.

Nem todos os jogos, no entanto, possuem valores explícitos. Esse é o caso do jogo de dominó. Ele pode ser um valor para os aficionados, mas no seu ambiente artificial não há valores explícitos. Os valores ligados ao ambiente artificial, interno, é apenas a competição e a busca em derrotar os adversários. Desta forma, ele reproduz o valor da competição e isso é comum a quase todos os jogos (os chamados “jogos colaborativos” são uma exceção). Porém, em que pese a competição seja um valor burguês, elemento fundamental da sociabilidade capitalista, ele é uma necessidade nas relações sociais concretas – um indivíduo que não realiza competição será derrotado ou excluído – e a socialização para a competição também ajuda no sentido de preparar para a luta[10]. Por outro lado, um indivíduo que não conhece a competição, não só fica inapto para ela, como também fica despreparado para combatê-la. A questão dos jogos e da competição é que ela é amplamente majoritária e promove um processo de exacerbação e, mais ainda, pela vitória, ou seja, para ganhar o jogo. E é o objetivo de ganhar a qualquer custo a competição (social ou lúdica) que acaba se tornando preponderante e é por isso que é tão comum o chamado “roubo” no jogo, que significa passar por cima das regras e enganar o adversário para ganhar, injustamente.

Nós abordamos os objetivos internos do jogo, mas resta a questão dos objetivos externos e estes remetem para os jogadores e para a sociedade, no qual vamos nos deparar novamente com a questão dos valores. Por qual motivo um indivíduo joga? Existem vários motivos, dependendo do indivíduo, da época, da sociedade, entre outras questões que vão muito além da vontade ou da consciência dos jogadores. Um indivíduo pode entrar num jogo com o objetivo de desenvolver a socialidade, bem como pode fazê-lo para conseguir sobreviver, se for um profissional. Um jogador de futebol amador pode jogar para reunir com os amigos ou para descarregar suas energias físicas. Um jogador profissional pode fazê-lo para ganhar dinheiro ou vencer a competição social (a competição esportiva é um meio para ganhar a competição social, nesse caso) ou simplesmente para sobreviver. No caso de um indivíduo concreto, pode ser por várias motivações, inclusive algumas contraditórias (é por isso que alguns jogadores de futebol profissional podem ser ousados numa época em que a ousadia foi condenada na busca pelos resultados, o que é raro, mas ainda existe). Os indivíduos podem jogar também para se evadir. A evasão é um dos elementos mais complexos da sociedade capitalista, pois permite que o indivíduo fuja da realidade (social, marcada por conflitos, derrotas, etc.) e se refugie num ambiente artificial no qual ele pode vencer a competição e ter a satisfação disso ou então simplesmente esquecer “a vida lá fora”. A evasão pode gerar uma busca compulsiva pelos jogos e acaba sendo um fenômeno psíquico complexo gerado pelas relações sociais da sociedade moderna.

Os objetivos externos remetem a outros fenômenos sociais, bem como a valores. Os indivíduos que usam o jogo como competição substituta, servindo como compensação da derrota na competição social acabam demonstrando os seus valores. Por outro lado, aqueles que usam o jogo para realizar suas potencialidades demonstram outros valores. Contudo, os objetivos dos jogos não são, na maioria das vezes, definidos pelo indivíduo. É a sociedade que gera uma mentalidade dominante, valores dominantes, etc. e isso derivado de suas relações sociais concretas (modo de produção, sociabilidade, etc.).

Em síntese, os jogos são perpassados por valores, são valorados (ou desvalorados) e reproduzem e reforçam determinados valores, sendo que o que é predominante é a reprodução e reforço dos valores dominantes. Nesse sentido, os jogos são, hegemonicamente, axiológicos. Sem dúvida, existem jogos axionômicos, tal como alguns jogos que se baseiam na cooperação ao invés da competição, bem como alguns jogos axiológicos podem ser subvertidos e se tornarem o seu oposto (o jogo de xadrez, por exemplo, já recebeu alterações, como, por exemplo, um jogador jogar com as peças mais fortes e outro apenas com os peões, só que em maior quantidade, expressando assim ao invés de uma guerra, a luta de classes) ou também podem ser utilizados sob forma axionômica[11], para colocar que ele expressa essa sociedade e seus problemas. A complexa relação entre jogos e valores tem vários outros elementos que aqui não foram desenvolvidos, bem como tem diversas variações dependendo dos jogos, da época, etc. Mas atingimos o nosso objetivo de realizar uma discussão introdutória sobre a relação dos jogos e dos valores.

Referências

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: O Jogo como Elemento da Cultura. São Paulo: Perspectiva, 2001.

KISHIMOTO, Tizuko. O Jogo e a Educação Infantil. Perspectiva. Florianópolis, UFSC/CED, NUP, vol. 12, num. 22, 1994.

VIANA, Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasília: Thesaurus, 2007.

VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.


[1] “Tentar definir o jogo não é tarefa fácil. Quando se diz a palavra jogo cada um pode entendê-la de modo diferente. Pode-se estar falando de jogos políticos, de adultos, de crianças, de animais ou de amarelinha, de xadrez, de adivinhas, de contar estórias, de brincar de "mamãe e filhinha", de dominó, de quebra-cabeça, de construir barquinho e uma infinidade de outros. Tais jogos, embora recebam a mesma denominação, têm suas especificidades. Por exemplo, no faz-de-conta, há forte presença da situação imaginária, no jogo de xadrez, as regras externas padronizadas permitem a movimentação das peças. Já a construção de um barquinho exige não só a representação mental do objeto a ser construído, mas também a habilidade manual para operacionalizá-lo” (KISHIMOTO, 1994).
[2] Não é possível concordar com uma das mais conhecidas definições de jogo, que é a de Huizinga: “uma  atividade  ou  ocupação  voluntária,  exercida  dentro  de  certos  e  determinados  limites  de  tempo  e  espaço,  segundo  regras  livremente  consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo,  acompanhado  de  um  sentimento  de  tensão  e  de  alegria  e  de  uma consciência de ser diferente da ‘vida quotidiana’” (HUIZINGA, 2001, p. 33). A razão da discordância é que, embora perceba alguns elementos típicos dos jogos, como a existência de regras, há também problemas, como o seu caráter voluntário, que existe na maioria dos casos, mas não pode ser generalizado (o processo de mercantilização e profissionalização retira o caráter voluntário de diversos jogos), bem como outros elementos questionáveis.
[3] Nesse sentido, o jogo se assemelha à arte. Mas existem algumas diferenças. A arte cria uma “realidade paralela” que é o seu universo ficcional. O artista produz a arte, o universo ficcional, e o não-artista é mais um espectador, não um produtor. No jogo, os que jogam são jogadores, agentes. Sem dúvida, existem jogos em que as pessoas observam e torcem sem participar, bem como algumas obras de arte que visam a “interação” com o espectador. A diferença fundamental, no entanto, é que a arte remete ao ficcional, a algo que o artista e o espectador, sabem não ser a realidade, sendo mera ficção. O jogo, ao contrário, não é ficcional. Ele é real. Só que “separado” de outras atividades reais. O que ocorre num jogo é algo real e efetivo, mas que tem sua validade restringida a ele mesmo. Assim, a realidade paralela produzida pela arte é ficcional e a criada pelo jogo é não-ficcional, sendo, portanto, duas formas distintas de criação humana.
[4] A palavra “valores” é utilizada sob formas bem distintas em contextos diferentes. Em matemática ou teoria das cores, assumem um significado específico, bem como em economia (e no marxismo, no qual se pode falar de valor de uso e valor de troca das mercadorias). Aqui colocamos “valores culturais” para distinguir desses outros usos da palavra, pois seu significado aqui remete para a questão cultural e mental e não em contextos mais específicos e/ou especializados.
[5] Por comportamento compulsivo entenda-se aqueles atos caracterizados por uma vontade irresistível, de caráter não racional, que constrange o indivíduo a realizar determinadas ações, como o consumo de drogas e repetição de atos, tal como jogar constantemente. A explicação disso remete para elementos psíquicos que seriam melhor compreendidos através de uma análise psicanalítica que não nos propomos a realizar aqui.
[6] E aqui temos uma percepção de que a valoração dos jogos é reforçada pelo sucesso nos mesmos. No Brasil, por exemplo, o futebol sempre teve um conjunto de aficionados, a começar dos seus praticantes amadores, dos profissionais, dos clubes, dos envolvidos indiretamente (comentaristas esportivos, etc.). Além desses, envolvidos nessa área de atuação profissional ou amadora, temos as pessoas próximas que são atingidas. Porém, o envolvimento de um setor amplo da população e seu crescimento tem a ver com as vitórias. A seleção brasileira de futebol ao conquistar uma copa do mundo, aglutina novos adeptos e entusiastas do futebol. Os meios oligopolistas de comunicação usam o espetáculo futebolístico para lucrar e a vitória numa copa do mundo desperta entusiasmo e mais pessoas para valorar tal esporte. Esse é um dos poucos esportes que os brasileiros podem contar com a possibilidade de vitória. Em outros esportes, isso ocorre em escala bem menor. As várias copas conquistadas reforçam a reprodução da popularidade do futebol e assim ele se consolida como o principal esporte nacional e o mais valorado, aquele que os brasileiros se sentem vitoriosos a nível mundial.
[7] Se esse indivíduo possui limitações ou ambiguidades, será mais difícil atingir esse objetivo.
[8] Axiologia é uma determinada configuração dos valores dominantes na sociedade, ou seja, uma combinação de valores dominantes. Dizer que algo é axiológico significa afirmar que manifesta os valores dominantes.
[9] A origem do xadrez é palco de polêmicas, e alguns remetem ao mundo árabe. No entanto, não era exatamente o xadrez que tratamos aqui e que é mais conhecido. Inclusive o Bispo e a Rainha foram, segundo alguns, adicionados ao jogo quando chegou à Europa. Isso significa que um jogo pode ser inventado numa época e sociedade e depois, em outra época e sociedade, é adaptado ao novo contexto social e histórico.
[10] A diferença entre competição social e luta de classes reside no fato de que a primeira aceita o jogo e suas regras – embora nem sempre as regras –, ou seja, os meios e os fins são os da sociedade capitalista (os fins são a riqueza, o poder, o sucesso, a fama, a vitória, a ascensão social, etc.) e os meios são os mais variados (inclusive se pode dividir entre os legais e morais e os ilegais e imorais), se destacando a competição. A luta de classes ocorre por outros objetivos: não é uma concorrência para chegar em primeiro lugar e sim uma disputa no qual um lado quer manter e reproduzir “o jogo e suas regras” (esta sociedade) e outros querem aboli-los, ou seja, transformar essa sociedade em outra sociedade.
[11] Axionomia é uma determinada configuração dos valores autênticos (VIANA, 2007), ou seja, que correspondem à natureza humana, ao desenvolvimento da práxis (autorrealização via trabalho, no sentido amplo do termo e excetuando o trabalho alienado, tal como a criatividade) e da socialidade (relações sociais autênticas e harmoniosas, o que exclui as relações de exploração e dominação e todas as demais derivadas delas).

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Marxismo e Economia - Minicurso






Inscrições: nupaccursos@gmail.com
Até dia 08/09
De 09/09 a 15/09
De 16/09 a 20/09
20,00
25,00
30,00


Depósito Bancário
Caixa Econômica Federal
Conta Poupança: 49398-0
Agência: 1575
Operação: 013
André de Melo Santos

Para realizar a inscrição é necessário efetivar o pagamento e enviar o comprovante para o e-mail:  nupaccursos@gmail.com
Caso seja necessário o CPF do titular da conta, para transferências a partir de outros bancos, entrar em contato.

Haverá certificado de 15 horas
Vagas: 30

Programação:

Dia 21/09 – Sábado: 08:30 -12:00
1ª Sessão: Economia e Ideologia: crítica marxista da economia liberal – Ricardo, Smith e outros
Prof. Dr. Cleito Pereira dos Santos - UFG

Dia 28/09 – Sábado: 08:30-12:00
2ª Sessão: Marx – crítica da economia política e teoria do capitalismo
Prof. Dr. Lucas Maia dos Santos - IFG

Dia 05/09 – sábado: 08:30-12:00
3ª Sessão: Os críticos economistas de Marx – Pareto, Von Mises e outros
Prof. Dr. Nildo Viana - UFG

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

MESA REDONDA: PROIBICIONISMO, POLÍTICA DE REDUÇÃO DE DANOS E USO PREJUDICIAL DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS


MESA REDONDA: PROIBICIONISMO, POLÍTICA DE REDUÇÃO DE DANOS E USO PREJUDICIAL DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS

* FABRÍCIO ROSA
* MARCUS FLÁVIO OLIVEIRA
* NILDO VIANA

III JORNADA DE PREVENÇÃO AO USO PREJUDICIAL DE ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS.

IFG - INHUMAS

14 DE SETEMBRO DE 2019
08:00:12:00


domingo, 8 de setembro de 2019

Capitalismo, Juventude e Movimento Estudantil - seminário



SEMINÁRIO:
Capitalismo, Juventude e Movimento Estudantil
UEG, 10-11/09/2019

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Maio de 1968: Luta de Classes e Projeto Autogestionário

MAIO DE 1968: <br>luta de classes e projeto autogestionário

Sinopse

O livro Maio de 1968 aborda esse acontecimento histórico extraordinário mostrando sua dinâmica envolvida na luta de classes e o projeto autogestionário desenvolvido no seu interior. Através da análise da luta cultural, lutas estudantis e operárias, papel da burocracia partidária e sindical, se analisa vários aspectos deste evento, tais como sua gênese, herança cultural e vínculo com o projeto autogestionário.

Detalhes do produto

Editora: EDITORA CRV
ISBN:978-85-444-3548-9
DOI: 10.24824/978854443548.9
Ano de edição: 2019
Distribuidora: EDITORA CRV
Número de páginas: 132
Formato do Livro: 16x23 cm
Número da edição:1


Autores

LISANDRO BRAGA
É Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG).

NILDO VIANA
É Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília e Pós-Doutor pela Universidade de São Paulo.

Aquisição: