Prefácio ao livro: REBLIN, Iuri. O Alienígena e o Menino. Jundiaí: Paco, 2015. |
UMA
NOVA PORTA SE ABRE PARA O MUNDO DOS SUPER-HERÓIS
O presente livro de Iuri
Reblin é sua mais nova contribuição para a análise do gênero da superaventura
nas histórias em quadrinhos. Reblin é um dos principais pesquisadores da
superaventura e nos brinda com mais uma análise desse rico e estranho mundo. Pioneiro
e ousado, Reblin aborda a possibilidade de uma leitura teológica do gênero
superaventura destacando a questão da narrativa quadrinística desse gênero e
seus processos criativos. Ele abre uma nova porta para a análise do mundo dos
super-heróis e outras agora poderão ser abertas a partir desse primeiro passo.
Nesse contexto, ele
apresenta a questão do gênero superaventura, suas características, sua história
e obstáculos encontrados, destacando a questão da censura a partir da investida
de Fredric Wertham e do Comics Code
Authority. A questão do gênero da superaventura é discutida e analisada
como um gênero próprio e ligado ao que denominou “mitologia contemporânea”. A
partir desta construção histórica e analítica, Reblin relaciona superaventura e
teologia. Partindo da concepção de teologia do cotidiano, desenvolvida por
Rubem Alves e outros, ele aborda duas histórias de dois grandes ícones da
superaventura: Paz na terra, de
Superman, e O Poder da esperança, do
Capitão Marvel.
Esta breve descrição não
faz justiça à riqueza da obra, que assume grande complexidade e variedade
temáticas (dentro de cada capítulo, emerge temas e questões
interessantíssimas). Ela foi necessária para oferecer uma visão de conjunto que
permite destacar pontos que consideramos extremamente importantes. Assim, como
não podemos (nem devemos, de acordo com o objetivo do presente texto) abordar a
totalidade e detalhadamente a obra em seu conjunto e complexidade, então vamos
destacar alguns pontos que consideramos fundamentais (e que não são os únicos
importantes, mas selecionamo-los a partir de nossas preocupações com a pesquisa
sobre quadrinhos e com o gênero superaventura em particular).
O primeiro ponto que
destacamos é a justificativa apresentada por Reblin para sua pesquisa. As
histórias em quadrinhos sempre foram marginalizadas e tidas como algo
“inferior”, algo que não tem grande valor, infantil, destituído de importância
seja social, acadêmica, etc. Claro que isso mudou nas últimas décadas. A
mudança do público, os Graphic Novels,
os estudos acadêmicos que aumentam e vão se consolidando, o uso dos quadrinhos
nas escolas, a complexidade crescente da produção quadrinística, a existência
do underground, as produções mais reflexivas, entre outros elementos, comprovam
isto. Reblin mostra, com maestria, essa valoração das histórias em quadrinhos,
no caso da superaventura, principalmente a partir dos anos 1960. Ele demonstra
isso ao recordar a sua inserção como parte da “cultura de massas” (cultura
mercantil), sua influência na sociedade, etc., e o que podemos considerar como
mais importante, entendendo a superaventura como “expressão nítida da cultura
da era contemporânea” (sociedade moderna), repassando mensagens que discutem a
vida e a existência dos seres humanos.
A obra de Wertham foi
apenas um capítulo triste, tal como o macarthismo, da história dos Estados
Unidos num contexto histórico específico de embate com o seu concorrente
mundial, expresso pelo capitalismo estatal da URSS, gerando uma paranoia
preventiva para justificar a repressão e perseguição de qualquer crítica ou
oposição interna. Reblin mostra a emergência e superação desse capítulo
vergonhoso da história americana e a retomada da superaventura para além da
censura e repressão.
Nesse processo todo, a
superaventura é não só um produto cultural importante, e que tem os elementos
acima elencados, mas é uma necessidade de uma sociedade sem liberdade, sem
autorrealização do ser humano, que promove uma satisfação substituta na
realização fictícia do super-herói. A intencionalidade da criação da superaventura,
perceptível através da análise do seu processo de produção, já aponta para
outra coisa, para a reprodução dos valores dominantes, sendo axiológica, e também
para a posição hierárquica dos Estados Unidos a nível mundial, bem como para o
maniqueísmo. Desta forma, a superaventura carrega em si um elemento dominante
ao nível consciente e outro que foge ao controle da consciência dos criadores,
o inconsciente coletivo. Nesse contexto, há uma ambiguidade no interior da
superaventura, mas os valores marginais e em contradição com os valores
dominantes, em alguns casos emergem e tornam o inconsciente consciente, sendo
transformador, revolucionário, manifestação axionômica. De qualquer forma,
essas características são constituintes da superaventura e exercem não só o
papel de expressão de uma determinada realidade social, como também a reforça,
a revigora, ou a enfraquece, embora isso seja algo excepcional.
Outro ponto fundamental que
destacaríamos é a análise dos vínculos teológicos de uma história do Capitão Marvel
(obviamente que também de Superman, mas preferimos destacar alguns aspectos
importantes, pois não poderíamos abarcar todos). Reblin coloca a questão da
teologia do cotidiano como elemento de aproximação entre o religioso e a
superaventura. E Shazam (Capitão Marvel), nascido da inspiração de personagens
mitológicos, é um super-herói exemplar para tal aproximação. Contudo, Reblin
escolhe uma história específica para tal, O
Poder da esperança, na qual mostra o Capitão Marvel vivendo um dilema que
envolve crianças internadas em um hospital. Uma escolha curiosa (e que também
ocorre no caso do Superman, que aborda a temática da fome), pois recaí sobre a
relação de um super-herói e um problema social. Mas, obviamente, não se trata
apenas de um problema social, pois a realidade não está separada como é
apresentada pela divisão social do trabalho intelectual. O real é único, uma
totalidade. Nesse sentido, problemas sociais vivem junto com problemas
existenciais, culturais, etc. E, nesse sentido, temas teológicos podem ser
observados na história, desde a questão da fé e da esperança, bem como da
fraternidade (a ideia de que todos os seres humanos são irmãos, filhos de Deus)
e, como faz Reblin, recordar a posição de Jesus diante das crianças. Assim,
Reblin destaca elementos importantes da relação entre teologia e superaventura,
apresentando seus vínculos diversos.
Essa inovadora abordagem
da superaventura abre novos campos analíticos que antes não estavam delineados
e, além disso, abre a perspectiva de novas pesquisas que explorem novos temas,
vínculos, análises, da superaventura com a teologia e com a sociedade. Um
elemento interessante é que a superaventura pode ser considerada, a partir de
uma divagação inspirada na análise de Reblin, uma religião fictícia. Se
recordarmos que o mundo dos super-heróis é um mundo fictício que expressa, além
dos valores dominantes e raras vezes valores marginais, aspectos inconscientes,
incluindo o que denominamos “inconsciente coletivo”, podemos ver que a religião
também traz em si tais elementos. Ela também reproduz valores (dominantes e às
vezes marginais) e aspectos inconscientes e alguns do inconsciente coletivo. Em
ambos os casos, as representações dos seus produtores também se manifestam.
Nesse processo, há mais alguns elementos comuns: o extraordinário, o
sobrenatural, o poder super-humano, bem como também o maniqueísmo, a oposição
entre o bem e o mal – que se reproduz constantemente como um sonho recorrente.
Essa estrutura
semelhante, no entanto, possui diferenças radicais. A primeira e mais
importante no plano do pensamento é a que para os produtores da superaventura
os super-heróis são ficções, seres inexistentes, produtos da imaginação
criadora, enquanto que para os produtores da religião, os deuses (ou apenas um
Deus) são verdadeiros, reais, seres existentes de fato. Para os gregos antigos,
Zeus, Hermes, Prometeu, Minerva e diversos outros deuses existiam realmente.
Para os criadores de super-heróis, o Homem-Aranha, Thor, Homem de Ferro, Hulk,
Namor, são criações imaginárias deles mesmos. Claro que, também, a religião é
geralmente uma produção coletiva, de uma população inteira, de uma classe
social[1]. É possível acrescentar
inúmeras outras diferenças, tais como o caráter explicativo (concorde-se ou não
com as explicações ou com sua forma de fazê-lo) da religião e do caráter
meramente autoexplicativo do mundo da superaventura, o fato do moralismo ser
predominante nas religiões e secundário na superaventura.
Uma questão em comum na
religião e na superaventura, entretanto, é demasiadamente interessante.
Trata-se do momento utópico presente em ambas. O momento utópico é a parte de
uma forma de expressão da realidade (arte, ciência, religião, filosofia,
teoria, ideologia, etc.) que transcende o mundo existente, seja vendo o além
dele num outro mundo ou numa outra época, sendo apenas o desejo de sua
superação não expresso sob forma alguma. A religião, já dizia Marx, é o
protesto contra a miséria real. Esse mundo miserável deve ser substituído. A
substituição é além desse mundo, o Paraíso, a vida após a morte. Em alguns
casos, a religião quer outro mundo aqui e agora, o anabatismo, Thomas Munzer e
as rebeliões camponesas, as diversas manifestações messiânicas, são expressão
desse processo e desse novo momento utópico acrescentado ao anterior.
A superaventura, por sua
vez, apresenta como momento utópico a superação dos limites humanos realizado pelos
super-heróis, um desejo de libertação gerado por uma sociedade mercantil,
burocrática e competitiva. Em casos raros, há também manifestação direta de
busca de uma nova sociedade aqui e agora. Contudo, esses momentos utópicos
ficam no plano daquilo que Ernst Bloch denominou “utopias abstratas”, desejos e
projetos sem o caminho e os meios adequados para realizá-los. As utopias
concretas, aquelas que projetam uma sociedade do futuro e meios para se chegar
a ela que são realistas, não se manifestam em nenhum dos dois casos. Claro
está, também, que são apenas “momentos” e não a totalidade dessas produções
culturais, pois o que predomina em cada uma é a reprodução da sociedade
existente, o conservadorismo.
Contudo, essas breves
divagações são apenas possibilidades analíticas num sentido comparativo. A obra
de Reblin é muito mais profunda e ilumina diversas outras questões. Ao lado de suas
outras obras anteriores, especialmente seu livro Para o Alto e Avante! Uma Análise do Universo Criativo dos Super-Heróis,
ele fornece uma das mais importantes contribuições para o estudo do gênero da
superaventura, sendo hoje um dos principais estudiosos deste gênero e que
continua em sua longa jornada heroica de estudar, pesquisar, analisar,
contribuir e divulgar estudos sobre um mundo fantástico e que nos atinge por
expressar seres que fazem o que gostaríamos de fazer e muitas vezes não podemos
ou temos coragem de fazê-lo. Quando as injustiças são combatidas, o mal é
derrotado, nos sentimos mais humanos e ao mesmo tempo mais do que humanos, ou
seja, como seres humanos que superaram suas determinações sociais. O contexto e
o representante do mal é algo problemático[2], ligado a ideologemas e
valores axiológicos, mas, além disso, há o sentimento
de justiça, que guardamos em nós, e alguns guardam muito bem guardado (a
ponto de parecer que nem existe, por não se preocupar, ou demonstrar isso, com
as injustiças) que se sente satisfeito ao ver Batman derrotando um agressor
covarde, ao ver Namor derrotar um vilão que ameaçava uma cidade, ao ver o
Surfista Prateado se rebelar contra Galactus. O sentimento de justiça –
reprimido em nossa sociedade, assim como outros sentimentos, mas de uma forma bem
mais ampla ao ponto de que poucos se referem a ele e ser inexistente uma psicanálise
dos sentimentos (obliterada por uma superênfase na sexualidade), revela nada
mais do que a essência social do ser humano, a necessidade psíquica do vínculo
social e a identificação dos seres humanos com outros seres humanos. Nesse
sentido, a superaventura é humana, demasiadamente humana. O sobre-humano vem
para manifestar o humano, que tem dificuldade, devido forças externas (relações
sociais) de ser/manifestar o que é. Assim, o mundo dos super-heróis está vivo
dentro de nós e somente aqueles que não o conheceram mais profundamente é que
podem descartá-lo como algo destituído de importância.
A luta dos super-heróis,
assume, portanto, uma importância social, política e existencial. A pesquisa
sobre a superaventura, pelo menos no caso brasileiro, já promoveu um avanço
suficiente para destacar diversos aspectos, problemáticas, elementos, que
envolvem a superaventura. Iuri Reblin faz isso e seus escritos sobre a
superaventura, que tem na presente obra mais uma contribuição importante,
avança e reforça a necessidade de novos estudos e pesquisas sobre este mundo
fantástico. Reblin, desta forma, abre nova porta para análise da superaventura –
e depois dela existem outras, sendo um universo infinito de milhões de portas
sucessivas – e este é um dos principais méritos do presente livro.
Nildo Viana
Outubro de 2012
[1] A exceção ocorre
contemporaneamente, a partir da emergência de religiões hipermercantilizadas.
Estas não são mais do que uma criação artificial de algo também artificial, que
se caracterizam mais por criar igrejas do que religiões autênticas.
[2] E isso vale também para a
religião, que é outra comparação possível, já que ambas combatem a injustiça,
embora muitas vezes a concepção de justiça seja influenciada pela sociedade e
época, restando de forma marginal uma justiça mais autêntica.
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