MARXISMO E CULTURA
MARXISM AND CULTURE
Nildo Viana
RESUMO:
A questão da cultura é fundamental para a compreensão das sociedades
humanas. E por isso é um fenômeno que necessita ser incluído no desenvolvimento da
concepção marxista e vários autores esboçaram ou desenvolveram teses sobre a questão
cultural. O presente artigo visa expor, sinteticamente, a concepção marxista de cultura.
Isso remete ao problema do conceito de cultura, bem como o da relação entre cultura e
sociedade, cultura e indivíduo, entre diversos outros temas relacionados ou derivados. O
ponto de partida é a apresentação de um conceito de cultura coerente com a concepção
materialista da história. O passo seguinte desenvolvido foi a análise da cultura em sua
relação com a sociedade, modo de produção, indivíduo. Isso culminou com a análise
do fenômeno cultural na sociedade capitalista, mostrando a sua heterogeneidade, os
processos de hegemonia e luta cultural, até chegar ao problema do fetichismo da cultura.
PALAVRAS-CHAVE: Marxismo, Cultura, Hegemonia, Luta Cultural, Formas Sociais.
ABSTRACT:
The question of culture is fundamental to the understanding of human
societies. And so it is a phenomenon that needs to be included in the development of the
Marxist conception and several authors have sketched or developed theses on the cultural
question. The present article aims to expose, in a synthetical way, the Marxist conception
of culture. This refers to the problem of the concept of culture, as well as that of the
relationship between culture and society, culture and individual, among several other
related or derived themes. The starting point is the presentation of a concept of culture
consistent with the materialist conception of history. The next step developed was the
analysis of culture in its relationship with society, mode of production, individual. This
culminated in the analysis of the cultural phenomenon in capitalist society, showing its
heterogeneity, the processes of hegemony and cultural struggle, to the problem of the
fetishism of culture.
KEYWORDS: Marxism, Culture, Hegemony, Cultural Struggle, Social Forms.
A questão da cultura é
uma das mais debatidas nos meios intelectuais e hoje ganha proeminência como
tema e como elemento explicativo da realidade. O marxismo, por sua vez, sempre
foi acusado de desconsiderar a cultura ou considerá-la um epifenômeno derivado
da economia. Alguns marxistas se aventuraram a tratar da cultura, sob
abordagens distintas, mas geralmente tratando de aspectos mais específicos da
produção cultural, tal como a literatura. O nosso objetivo é apresentar uma
síntese de uma concepção marxista da cultura, pois a complexidade e amplitude
do tema impede ir além de um enfoque sintético[1]. Essa análise vai
focalizar os elementos essenciais de uma teoria marxista da cultura e por isso
alguns aspectos ficaram de fora, bem como abordagens não-marxistas serão
citadas brevemente, seja para realizar uma comparação, seja para assimilar algo
que possa ser uma contribuição para a teoria da cultura na perspectiva
marxista. Também lançamos algumas ideias que podem servir de inspiração para o
aprofundamento de alguns aspectos não trabalhados ou apenas sugeridos por
alguns pensadores, visando compor a síntese de tal concepção de forma mais
completa.
O primeiro elemento que
precisamos destacar em nossa análise é o conceito de cultura. Marx usou poucas
vezes o termo “cultura”, pois trabalhou mais com o conceito de consciência, bem
como termos correlatos, como ideologia, representações, etc. Além disso, Marx
não era um pensador marcado por realizar definições. Os seus conceitos são
apresentados em suas explicações teóricas, mas raramente são definidos[2]. Depois de Marx, poucos
marxistas ou pensadores influenciados pelo marxismo, trabalharam com cultura de
forma mais aprofundada e com uma definição desse termo. A abordagem da cultura
como fenômeno geralmente remete para autores como Gramsci e, mais recentemente,
Raymond Williams.
Gramsci não apresenta uma
definição precisa de cultura, mas é possível tentar resgatar o significado do
termo em seu pensamento em seu processo evolutivo e extrair daí uma definição.
Essa tentativa pode gerar a conclusão de que cultura em Gramsci expressa dois
fenômenos relacionados, mas distintos:
Podemos verificar nessa nota e, sobretudo,
acompanhando o desenvolvimento do conceito de cultura nos Quaderni, nas inúmeras notas que discutem a questão, a preocupação
de Gramsci em afirmar o conceito em duas direções: de um lado, a cultura
significa o modo de viver, de pensar e de sentir a realidade por parte de uma
civilização e, em segundo lugar, é concebida como projeto de formação do
indivíduo, como ideal educativo a ser transmitido para as novas gerações. Os
dois significados do termo em Gramsci não constituem inovações do ponto de
vista semiológico, pois, já entre os gregos e os latinos, as palavras paidéia e humanitas assumiam essas significações. A meu ver, o que podemos
destacar inicialmente, no uso gramsciano do termo, é a compreensão unitária dos
dois significados, ou seja, cultura significa um modo de viver que se produz e
se reproduz por meio de um projeto de formação (VIEIRA, 2018, p. 61).
Esse duplo significado do
termo cultura é problemático e pode criar confusões desnecessárias. De qualquer
forma, serve de ponto de partida para nossa discussão. Um outro autor que pode
servir para reflexões a respeito do conceito de cultura é Raymond Williams.
Williams pensa a cultura como “modo de vida global” ou “sistema de
significações”. Ele analisa as diversas concepções de cultura que se
desenvolveram historicamente e aponta para o entendimento de cultura nesse sentido
amplo, como modo de vida global, que é o sentido antropológico (e ele afirma
ser sociológico, o que é questionável), e um sentido mais especializado, que o
limitaria às atividades artísticas e intelectuais (WILLIAMS, 1992). Nesse
sentido, Williams recusa o processo de distinções terminológicas entre “cultura
erudita” e “cultura popular”.
Essas duas concepções são
ilustrativas de algumas concepções, autodeclaradas marxistas, a respeito da
cultura. Elas se vinculam com outras concepções, de origem não-marxista, a
respeito da cultura. A concepção de cultura em Gramsci e Williams apontam para
a cultura como um modo de vida global e cada um acrescenta um elemento
adicional: a formação individual em
Gramsci e as atividades intelectuais especializadas em Williams[3]. A cultura como modo de
vida global é o sentido mais comum atribuído à palavra cultura no pensamento
não-marxista e é, geralmente, o sentido antropológico do termo. Os
antropólogos, em sua maioria, concebem o termo cultura em sentido amplo,
englobando não somente as produções intelectuais, mas também os costumes e
outros aspectos da vida social, sendo semelhante à ideia de “modo de vida
global”[4]. Esse conceito é tão amplo
que se confunde com “civilização” e “sociedade”.
Consideramos esta
concepção de cultura extremamente ampla e que não é coerente com a análise
marxista. Essa definição cria um novo elemento que seria inserido na concepção
marxista de sociedade e que necessitaria uma reformulação da mesma para se
sustentar no seu interior. Por outro lado, esse termo entendido de forma tão
ampla acaba sendo equivalente ao sentido sociológico do termo “sociedade”. Marx
compreende a sociedade como o “conjunto das relações sociais”, e, nesse
sentido, se aproxima do sentido sociológico, apesar das imprecisões
terminológicas, existentes em muitos casos, no interior das produções
sociológicas concretas. Assim, o sentido amplo do termo cultura como “modo de
vida global” não só é incoerente com a concepção marxista original (a de Marx) como
é desnecessária, pois já existe o conceito de sociedade e os conceitos
derivados (modo de vida, modo de produção, consciência, etc.) que expressam tal
realidade.
Assim, um conceito
marxista de cultura necessitaria explicitar signo e significado, ou seja, o
fenômeno real e o conceito que o expressa. Ou seja, é necessário dizer o que é
cultura enquanto fenômeno real e assim explicitar seu significado como
conceito. No interior de uma teoria, não deve existir dois conceitos (no caso,
sociedade e cultura) com o mesmo significado, pois é algo desnecessário,
impreciso e que pode gerar confusão, especialmente numa sociedade marcada pela
“luta de classes em torno do signo” (BAKHTIN, 1990). Por conseguinte, o sentido
mais restrito do termo cultura é mais adequado para a concepção marxista. A
concepção de cultura que não entra em contradição com o marxismo e que é
necessária por abarcar um conjunto de fenômenos no interior da sociedade que
necessita ser abordada é a que a concebe como “conjunto das produções
intelectuais”[5].
Desta forma, distinguimos cultura de outros termos/fenômenos, como sociedade,
civilização, etc., e, ainda, de termos como consciência, ideologia[6], etc., pois ela remete a
uma totalidade: o conjunto de todas as formas de produção intelectual, as
formas de consciência, religião, ciência, filosofia, arte, representações
cotidianas, valores, sentimentos, linguagem, etc.[7] A cultura seria um termo
que trabalha com o conjunto de produções intelectuais de uma sociedade, sendo
uma parte daquilo que se convencionou chamar de “superestrutura”, ou seja, as
formas sociais[8].
Em síntese, a cultura é o conjunto das formas de produção intelectual de uma
determinada sociedade.
Nesse sentido, cultura é
um conceito universal, ou seja, existente em todas as sociedades humanas[9]. Porém, assume distintas
formas em sociedades diferentes. Em cada sociedade, há um modo de produção
dominante específico e uma forma de cultura específica. A sociedade feudal
possui o modo de produção feudal e a cultura feudal que lhe corresponde, bem
como a sociedade escravista possui uma cultura escravista e a sociedade moderna
uma cultura capitalista. Essa constatação nos remete para a discussão da
relação entre sociedade e cultura, o que, por sua vez, nos leva a discutir uma
das principais questões do materialismo histórico: a relação entre modo de
produção e formas sociais.
O conceito de sociedade
engloba o conjunto das relações sociais, ou seja, a totalidade da vida social,
incluindo os modos de produção[10] e as formas sociais. O
primeiro elemento, extraído do materialismo histórico[11], é a unidade e
correspondência entre modo de produção e cultura. O modo de produção dominante
numa sociedade constitui uma cultura que lhe é correspondente, tal como
exemplificamos acima. O modo de produção capitalista gera a cultura
capitalista, assim como gera um Estado capitalista. Assim, como o Estado, em
qualquer sociedade, é uma relação de dominação de classe (VIANA, 2015a) ou uma
“associação da classe dominante” para fazer valer seus interesses de classe
(MARX e ENGELS, 1982), a cultura é o conjunto das produções intelectuais. E
assim como o Estado assume formas diferentes em sociedades diferentes, podendo
ser um Estado escravista ou capitalista, a cultura também assume formas
distintas, podendo ser escravista ou capitalista.
A cultura, assim como o
Estado, não só corresponde a determinado modo de produção, possuindo uma
unidade com ele, como também o reproduz e reforça. A cultura tem um papel
regularizador das relações sociais, tal como o Estado. Assim, se no feudalismo
os guerreiros eram a força repressiva que garantia a reprodução das relações de
produção feudais, a cultura era a força persuasiva que possuía a mesma função.
A cultura feudal, marcadamente religiosa, justificava e legitimava a sociedade
feudal com a naturalização das “três ordens”, nas quais uns nascem para
trabalhar (servos), outros para rezar (clero) e outros para guerrear (nobreza).
A cultura feudal era religiosa e até os contestadores se manifestavam através
de heresias e linguagem religiosa (ENGELS, 1978).
No entanto, a cultura
sendo o conjunto das formas de produção intelectual de uma sociedade, está
perpassada por contradições que nascem do modo de produção dominante e da
divisão social do trabalho. As lutas de classes se reproduzem no plano da
consciência e da produção intelectual. Essas contradições podem ser mais fortes
ou mais fracas, dependendo da sociedade e da época. No caso das sociedades
tribais, elas nem sequer existem. Nas sociedades de classes, elas existem, mas
são menos fortes e presentes em algumas delas. No caso da sociedade feudal, as
formas de produção intelectual da classe servil eram muito limitadas para
combater a hegemonia da classe feudal. Elas só ganham força com a crise do
feudalismo e transição para o capitalismo, que é quando o messianismo emerge
com força. Nesse contexto, emerge uma rebelião cultural que expressa as lutas
de classes, como no caso de Thomas Münzer (BLOCH, 1973).
Esses aspectos
explicitam, simultaneamente, o que alguns denominaram “autonomia relativa” da
cultura (o que é atribuído também às demais formas sociais) ou seu caráter
ativo (e não meramente passivo, um mero epifenômeno). A ideia de autonomia
relativa (ENGELS, 1987) ou de caráter ativo ou mobilizador (VIANA, 2007b) se
confirma ao constatarmos que a cultura reproduz e reforça a sociedade existente,
especialmente as relações de produção dominantes, e também por ela poder ser
contestadora ou até mesmo revolucionária. E essa dupla possibilidade de ação da
cultura sobre a sociedade expressa as duas classes fundamentais constituídas
pelo modo de produção dominante. Nesse contexto, algumas manifestações
culturais específicas (como as ideologias com seu caráter conservador e as
utopias com seu caráter revolucionário) expressam esse processo cultural de
intervenção sobre a realidade e sua relação com a reprodução ou transformação
social.
Essas observações gerais
sobre a relação entre modo de produção e cultura a partir do materialismo
histórico são apenas uma explicitação de algo mais geral e que não pretendemos
aprofundar aqui. O objetivo foi apenas mostrar, em linhas gerais, a relação
entre estes dois elementos constitutivos da realidade. Porém, as relações
sociais concretas são mais complexas e necessitam de análises que tratem da
especificidade histórica de cada sociedade particular. Nas sociedades tribais,
por exemplo, a cultura não é perpassada por contradições, pois a inexistência
das classes sociais e a divisão rudimentar do trabalho gera uma homogeneidade
cultural (VIANA, 2011). A cultura nas sociedades classistas se manifesta
diferentemente, pois estas são perpassadas pelas divisões sociais,
especialmente a de classe, e por isso a homogeneidade é inexistente, embora
existam manifestações culturais comuns a todos os indivíduos e outras que são
de classes e grupos sociais. Em cada sociedade, a cultura assume uma especificidade
e é apenas na análise de casos concretos é que ela pode ser melhor
compreendida.
A cultura na sociedade
capitalista ganha uma enorme complexidade, pois não apenas se expande e se vê
envolvida por meios tecnológicos de comunicação e instituições educacionais,
como também se torna submetida à divisão social do trabalho e ao seu produto
derivado que é a divisão do trabalho intelectual. A divisão social do trabalho
no capitalismo gera um conjunto de classes sociais e entre elas, a classe
intelectual, especializada na produção intelectual (VIANA, 2018). Além da
classe intelectual, ela gera uma divisão do trabalho intelectual e esta produz
diversas esferas sociais voltadas para a produção intelectual. A esfera
artística, a esfera científica, a esfera jurídica, entre outras, produzem
ideologias, representações, etc. que, cada uma, de acordo com suas
especificidades, buscam a reprodução da sociedade capitalista e da própria
esfera, através de autovaloração e autolegitimação. Outro elemento que
complexifica a questão da cultura no capitalismo é o Estado capitalista
enquanto regularizador da produção cultural, com suas políticas culturais e
educacionais, bem como outras instituições e o capital comunicacional (“indústria
cultural”). Esses processos remetem a uma diversidade de questões que não
poderão ser desenvolvidas aqui.
O que interessa destacar
é que a cultura no capitalismo exerce a função de reprodução através da
hegemonia e que a existência de uma classe revolucionária, o proletariado,
permite a emergência de ideias revolucionárias e utópicas, incluindo a produção
teórica expressa no marxismo. Assim, é preciso entender que o processo de
constituição da classe intelectual e esferas sociais geram um processo de
separação na produção intelectual, realiza pelos especialistas, e a produção
cultural do resto da população. Isso cria a distinção entre a noosfera[12] e as representações
cotidianas, bem como entre a arte erudita e a arte popular, entre outros
processos semelhantes.
Estes elementos, que
apontam para a historicidade e especificidade da cultura em cada sociedade, são
importantes para não se perder de vista o caráter do método dialético e do
materialismo histórico, que não criam modelos que buscam encaixar a realidade e
sim visa constituir recursos mentais para expressar a realidade. O método
dialético é uma ferramenta intelectual e o materialismo histórico é uma teoria e
o objetivo de ambos é captar a realidade em suas múltiplas determinações e
historicidade. A cultura, nesse caso, é compreendida como um fenômeno real,
algo concreto. Enquanto fenômeno real, o seu conteúdo pode ser verdadeiro ou
falso. Independente de ser falso ou mera ficção, como no caso da arte, é algo
existente, que, como já dizia Korsch (1977), é parte da realidade e uma das
determinações dela. Assim, é útil distinguir entre o real-material (o mundo dos
objetos materiais e das relações sociais concretas) e o real-ideacional, o
mundo das ideias (VIANA, 2018). A crença em vampiros é falsa, mas é algo que
existe, é um fenômeno real-ideacional. A crença existe, mas inexiste o que ela
diz existir, os vampiros. Porém, a crença em vampiros é real e mobilizadora,
gerando ação por parte dos indivíduos que acreditam neles e a partir dela atuam
sobre o resto da realidade. O real-ideacional é o reconhecimento da existência
das ideias e de seu caráter ativo, o que não significa aceitar a veracidade de
seu conteúdo.
Um outro elemento
importante para a compreensão da questão cultural é a relação entre cultura e
indivíduo. Em cada sociedade, essa relação se altera. Nas sociedades tribais,
nas quais existe uma homogeneidade cultural, os indivíduos estão integrados na
cultura da sua sociedade, como se pode ver nas análises realizadas por Durkheim
(1996) a respeito das “representações coletivas”, mais especialmente do
totemismo. Outras especificidades ocorrem nessas sociedades, tal como o
processo de formação intelectual dos indivíduos, que ocorre através do processo
de socialização e trabalho. Nas sociedades de classes, com a complexificação da
divisão social do trabalho e da produção intelectual, a formação via
socialização e trabalho (neste caso, para algumas classes sociais e não para
todas) continua existindo, mas sendo mais comum para as classes
desprivilegiadas, enquanto que emergem os primeiros especialistas no trabalho
intelectual e uma nova forma de formação intelectual, através do ensino (como
se vê no caso dos sofistas e socráticos, que ensinavam os interessados em
aprender debater na Ágora). Na sociedade feudal essa dicotomia se reproduzia,
pois havia a produção cultural da população em geral e as igrejas e mosteiros
que se dedicavam aos estudos religiosos e teológicos e o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música).
Na
sociedade capitalista, o processo de formação individual se complexifica ainda
mais. A formação intelectual dos indivíduos ocorre através da socialização (e
do trabalho, no caso de algumas classes sociais) e através de um conjunto de
meios de comunicacao, instituições de ensino, etc. O modo de educação
capitalista e o saber escolar acabam gerando novas diferenciações no interior
da sociedade. Alguns não possuem acesso ao saber escolar e isso, na maioria dos
casos, significa analfabetismo, ou seja, o não domínio da leitura e da escrita.
A formação intelectual assume especificidades nesse caso. A formação da classe
intelectual gera não somente os especialistas na produção intelectual mas
também subdivisoes no seu interior, gerando as esferas sociais, instituições,
saberes especializados, etc.
Um autor não-marxista que
contribui com a compreensão desse fenômeno é o sociólogo Pierre Bourdieu.
Apesar dos limites teórico-metodológicos de sua abordagem (VIANA, 2015b) e do
problema de sua linguagem, que realiza uma transposição dos construtos da
ciência econômica ou do marxismo para a cultura (o que é visto em seus termos
“capital cultural”, “capital linguístico”, etc.), ele traz alguns elementos que
podem ser assimilados pelo marxismo. Este é o caso da ideia de “capital
cultural” e “capital linguístico”, bem como outros elementos relativos ao
processo de formação intelectual dos indivíduos.
No caso de Bourdieu seria
necessário ressignificar seus termos ou então substituí-los. Optamos pela
substituição e os novos termos substitutos ganham outro significado e coerência
com o marxismo. Uma das questões mais importantes no processo de formação
intelectual na sociedade moderna são as diferenças de classes. Isso não gera “culturas
de classe”, apesar de alguns usarem tal expressão. A cultura é o conjunto das
produções intelectuais de uma determinada sociedade e uma classe social não é
portadora de uma cultura própria, pois reproduz a cultura da sociedade e
apresenta formas específicas de manifestações culturais. O termo “consciência
de classe” é válido, mas cultura de classe já não tem sentido.
Porém, existem diferenças
culturais entre as classes sociais, que não constituem “culturas distintas”,
mas distinções no interior de uma mesma cultura, a capitalista. Além disso,
existe a formação de uma cultura antagônica à capitalista, mas que não está
encarnada em nenhuma classe social concreta, existente, e sim em determinada
produção intelectual, que é o marxismo[13]. Voltaremos a isso
adiante. Entre essas diferenças estão aquelas que atingem os indivíduos das
várias classes sociais. Aqui ganha importância o conceito de bagagem cultural
(ao invés de “capital cultural”, desenvolvido por Bourdieu e inserido no seu
edifício ideológico). A bagagem cultural de um indivíduo é resultado do seu
processo de formação intelectual. As crianças, obviamente, possuem uma bagagem
cultural muito pequena; os jovens, tendem a ter uma bagagem cultural maior e os
adultos tendem a superá-los. Aqueles com maior idade tiveram mais experiências
(socialização, trabalho, etc.) e puderam (dependendo da classe, família, etc.)
ter um acesso mais extenso à cultura de sua sociedade. A classe social é
fundamental para entender esse processo. Uma criança das classes
desprivilegiadas terá em sua bagagem cultural que pode ter sido retirado das
relações familiares, meios de comunicação (televisão, por exemplo), etc. e uma
criança das classes privilegiadas tende a ter acesso a um maior volume de bens
culturais e aqueles mais valorados pela escola, classe intelectual e classe
dominante. Isso possibilita, inclusive, que uma criança da burguesia tenha maior
bagagem cultural do que um jovem do lumpemproletariado.
A bagagem cultural é a
quantidade de elementos de cultura que um indivíduo ou grupo social possui.
Como a cultura é o conjunto das produções intelectuais de uma determinada
sociedade, então ela se distingue da consciência. A consciência é o ser
consciente (MARX e ENGELS, 1982) e portanto é inseparável do indivíduo. A
cultura, no entanto, é algo externo ao indivíduo[14], que ele pode ter acesso
e realizar sua aquisição, o que significa que a incorpora em sua consciência,
seja sob a forma de assimilação ou acomodação. O acesso cultural é perpassado
pelas divisões sociais, especialmente a divisão de classes. A aquisição
cultural dos indivíduos das classes desprivilegiadas é inferior à dos
indivíduos das classes privilegiadas.
Um elemento importante no
que se refere ao conceito de bagagem cultural é que ele é quantitativo e não
qualitativo. Ou seja, um indivíduo pode ser poliglota, mas se o seu acesso
cultural é apenas ao mundo da produção intelectual trivial e mercantil, que
quantitativamente pode ser elevado (o que se convencionou denominar “cultura
pop”, ou seja, as músicas, programas de TV, vida de celebridades, histórias em
quadrinhos, etc.), em vários idiomas, isso é apenas quantidade. Assim, a sua
bagagem cultural é grande, mas o seu saber real e seu enriquecimento
intelectual e humano pode ser restrito. Da mesma forma, a bagagem cultural pode
ser caracterizada por uma erudição enciclopédica ou por uma erudição formativa.
A erudição enciclopédica é aquela rica em informações e quantidade, enquanto
que a erudição formativa é que não se limita a quantidade e informações, mas é
reflexiva e permite a formação de novas ideias. A erudição enciclopédica está
para a acomodação enquanto que a erudição formativa está para a assimilação[15]. Marx é exemplo de um
indivíduo como erudição formativa e muitos indivíduos com amplo espectro de
leituras sem gerar saber novo é exemplo de erudição enciclopédica[16].
Por isso é necessário um
conceito complementar ao de bagagem cultural. Esse conceito complementar é domínio cultural. A bagagem cultural é o
conjunto de elementos da cultura acessados e adquiridos pelos indivíduos ou
grupo social e o domínio cultural são os elementos de cultura compreendidos e
assimilados por um determinado indivíduo ou grupo social. Assim, existem
indivíduos com menor bagagem cultural, mas com maior domínio cultural. Um
estudante de filosofia pode dominar três idiomas, enquanto que outro domina
apenas o idioma do seu próprio país e isso significa que o poliglota possui
maior bagagem linguística (e, possivelmente, cultural) que outro estudante de
filosofia. Contudo, se este estudante de filosofia que é poliglota tem dificuldade
de compreender o pensamento filosófico enquanto que o que domina só um idioma
tem facilidade, então este último tem maior domínio cultural. Nesse exemplo,
aquele que tem maior bagagem cultural tem menor domínio cultural e vice-versa.
Assim, bagagem cultural facilita domínio cultural, mas nem sempre é isso que
ocorre. É por isso que é possível ver nas universidades muitos jovens das
classes privilegiadas com grande bagagem cultural, mas com menor domínio
cultural do que alguns jovens das classes desprivilegiadas.
A aquisição cultural é um
elemento importante para entender o processo de constituição de bagagem e
domínio cultural de indivíduos e grupos. As classes desprivilegiadas tendem a
possuir menor bagagem e domínio cultural, o que se estende, obviamente, para a
maioria dos indivíduos pertencentes a tais classes sociais, enquanto que as
classes privilegiadas tendem ao contrário. A aquisição cultural que permite ao
indivíduo constituir sua bagagem cultural e/ou domínio cultural ocorre via família,
amizades, escola, meios de comunicação, etc. A acessibilidade cultural é maior
para os indivíduos das classes privilegiadas, pois a bagagem cultural de seus
familiares, amigos, etc., tende a ser maior, bem como o seu acesso à escola,
bens culturais e meios de comunicação é diferenciado e expressa seu
pertencimento de classe.
Essa questão remete para
a análise da produção cultural no capitalismo e sua relação com os blocos
sociais e a luta cultural. A luta cultural na sociedade capitalista, em sua
forma explicitamente de classe, ocorre geralmente através dos blocos sociais,
ou seja, as forças organizadas, combativas e conscientes que expressam
determinadas classes sociais (VIANA, 2015c). O bloco dominante é composto pelo
aparato estatal, instituições burguesas, ideólogos, etc., que expressam os
interesses da classe capitalista, enquanto que o bloco progressista expressa
classes auxiliares da burguesia que buscam se autonomizar (burocracia e
intelectualidade, fundamentalmente) e o bloco revolucionário expressa o
proletariado e classes desprivilegiadas em geral.
A aquisição cultural das
classes sociais é semelhante aos dos indivíduos pertencentes a elas. No
entanto, todas as classes sociais são submetidas à hegemonia burguesa e são
atingidas pela política cultural do Estado capitalista e do bloco dominante
como um todo. As ações culturais do bloco progressista e do bloco
revolucionário também atingem as classes sociais, mas com muito menor impacto,
mais ainda no último caso, e de forma diferenciada, pois estes blocos pouco
influenciam a burguesia. A aquisição cultural das classes desprivilegiadas é
muito dependente do capital comunicacional, do aparato estatal e das
instituições educacionais. Para os setores do proletariado de renda mais baixa,
o lumpemproletariado, etc., o acesso e aquisição culturais são bem restritos.
Uma das formas que o proletariado consegue ampliar a aquisição cultural é
quando emergem lutas radicalizadas ou processos revolucionários, pois os
indivíduos proletários ficam mais abertos e interessados em novas ideias devido
à efervescência que ocorre nesses momentos. O próprio processo de luta
constitui um momento de autoeducação e autoformação que permite avançar no
desenvolvimento de sua consciência, o que também incentiva uma maior aquisição
cultural, inclusive das tradições revolucionárias anteriores.
Isso nos remete para uma
questão fundamental que é a relação entre marxismo e cultura no âmbito
histórico. Até aqui tratamos da análise marxista da cultura, mas o marxismo não
é um pensamento contemplativo, embora realize o processo de explicação dos
processos sociais. O marxismo é um pensamento ativo e por isso visa intervir na
realidade. O pensamento contemplativo intervém na realidade, mas sob forma
conservadora. O pensamento ativo interfere na realidade, sob várias formas,
dependendo de qual é esse pensamento. O marxismo intervém na realidade, tal
como qualquer produção intelectual, simplesmente por existir e mobilizar
indivíduos. Porém, ele pretende ir além disso, intervindo de forma intencional
e revolucionária. Ele realiza esse processo através da luta cultural no
interior do capitalismo e avança no sentido de buscar sua fusão com o movimento
revolucionário do proletariado. Esses dois aspectos precisam ser desenvolvidos.
A luta cultural no
interior do capitalismo é uma necessidade da luta revolucionária que o marxismo
se propõe. Essa luta cultural visa combater a hegemonia burguesa (e
burocrática), as ideologias, as ilusões, os valores dominantes, as produções
culturais conservadoras e progressistas (VIANA, 2006) e, ao mesmo tempo,
propagar a ideia de união dos trabalhadores na luta por sua libertação e o
projeto de uma nova sociedade. Marx, por exemplo, efetivou uma ampla luta
cultural (VIANA, 2014) e dedicou inúmeros escritos refutando os mais diversos
ideólogos, entre os quais os neohegelianos (MARX e ENGELS, 1982), economistas
políticos (MARX, 1988), pretensos socialistas (MARX e ENGELS, 1978), etc. Ao
mesmo tempo, incentivou a organização dos trabalhadores e lutou contra os
setores problemáticos no seu interior, bem como as tendências conservadoras.
Marx efetivou uma ampla
produção teórica que se tornou uma arma do proletariado em sua luta contra o capital.
Ele também criticou aqueles que, atrelados a partidos políticos que diziam
representar os trabalhadores, ao invés de levar “elementos de cultura”, levavam
seus preconceitos burgueses. Essa passagem de Marx, criticando o Manifesto dos Três de Zurique, produzido
por social-democratas, exemplifica isso:
Este é um fenômeno inevitável, fundado no curso do desenvolvimento
histórico, que pessoas das classes até aqui dominantes se juntem ao
proletariado que luta e lhes tragam elementos de cultura. Colocamos isso
claramente no Manifesto. Aqui há,
porém, duas coisas a observar: Primeiro, essas pessoas, para serem úteis ao
movimento proletário, têm de trazer consigo elementos de cultura reais. Isto
não é, porém, o caso da grande maioria dos convertidos burgueses alemães. Nem o
Zukunft nem a Neue Gesellschaft trouxeram o que quer que fosse que fizesse o
movimento avançar um passo. Há lá uma falta absoluta de material de cultura real,
efetivo ou teórico. Ao invés disso, realizam tentativas para pôr o pensamento
socialista superficialmente apropriado em consonância com os pontos de vista
teóricos mais diversos que os senhores trouxeram consigo da Universidade ou de
qualquer outro lugar e sendo que um é ainda mais confuso do que o outro, graças
ao processo de putrefação em que se encontram os restos da filosofia alemã nos
dias de hoje. Ao invés de, para começar, estudarem eles próprios
fundamentadamente a nova ciência, cada um prefere aproximá-la dos pontos de
vista que trouxeram consigo, fazer dela uma ciência privada própria sem nenhum
hesitação e aparece mesmo com a pretensão de a querer ensinar. Por isso, entre
estes senhores existem tantos pontos de vista quanto número de cabeças; ao
invés de trazerem clareza seja lá ao que for, apenas estabeleceram uma grave
confusão – felizmente, quase só conhecida entre eles próprios. O partido pode
muito bem passar sem semelhantes elementos de cultura, cujo primeiro princípio
é ensinar o que ainda não aprenderam (MARX, 2014, p. 227-228) [17].
Marx acrescenta que se
existem indivíduos de outras classes que querem se juntar ao movimento
operário, a “primeira exigência é a de que elas não tragam consigo nenhum tipo
de preconceito burguês, pequeno-burguês, etc., e sim que se apropriem com
franqueza da perspectiva proletária” (MARX, 2014, p. 228). Caso eles criem o
seu próprio partido, é direito deles. No entanto, no interior do movimento
operário (“num partido operário”, entendendo que partido, em Marx, tem um
significado mais amplo do que em outros autores), “eles são elementos
deformadores”.
Aqui se revela outro
elemento de luta cultural: a luta cultural no interior dos meios
intelectualizados e militantes – contra as ideologias e suas influências no
pensamento revolucionário (gerando sua deformação) – e luta cultural no que se
refere ao próprio proletariado. No primeiro caso, é necessário combater esses
elementos deformadores no interior do movimento operário e, no segundo caso, no
interior das organizações e tendências revolucionárias. Esse duplo trabalho de
crítica e superação é realizada a partir da perspectiva do proletariado,
mantendo a autonomia e independência da classe contra a influência do
pensamento burguês e seus derivados.
Esse processo deve
avançar no sentido de realizar a fusão do pensamento revolucionário com o
proletariado. A teoria se torna uma força material quando se apodera das massas
(MARX, 1968). Esse processo significa, por um lado, que o proletariado, através
de suas lutas, realiza seu processo de autoeducação (MARX e ENGELS, 1978), e os
elementos de cultura (bem como os “preconceitos” do pensamento burguês) fazem
parte dessa luta e pode gerar elementos revolucionários ou conservadores. O
processo de autoeducação, no entanto, tende a gerar uma recusa desses elementos
de cultura conservadores que os deformadores do movimento operário produzem e
divulgam, e aumentar a adesão ao pensamento revolucionário. Isso ocorre,
geralmente, quando há ascensão das lutas radicalizadas (em menor grau) ou
tentativas de revolução proletária.
Esse processo culmina com
outro aspecto da concepção marxista de cultura: a revolução proletária como
revolução total, ou seja, que transforma o modo de produção e todas as formas
sociais, o conjunto das relações sociais. Tal como Marx colocou: “a revolução
comunista é a ruptura mais radical com as relações tradicionais, não é de se
estranhar, portanto, que seu desenvolvimento acarrete o rompimento mais radical
com as ideias tradicionais” (MARX e ENGELS, 1978, p. 111-112). Isso significa
que a revolução proletária é uma revolução cultural, além de ser uma
transformação no processo de produção, na política, etc., ou seja, da
totalidade das relações sociais.
A luta cultural é uma
parte das lutas de classes e é realizada por todas as classes, expressando seus
interesses. A classe capitalista luta para manter sua hegemonia, sua dominação
e reprodução cultural, enquanto que o proletariado, em seus momentos de
radicalização, luta contra tal dominação. No plano mais concreto, temos o bloco
dominante efetivando uma política cultural que expressa os interesses da classe
capitalista e nesse processo de luta cultural, a burguesia tem a vantagem de
possuir os meios de produção cultural, o aparato estatal, etc. A hegemonia
burguesa reina absoluta e disputa espaço com a hegemonia burocrática do bloco
progressista e a hegemonia proletária do bloco revolucionário. Por outro lado,
o bloco revolucionário luta pela hegemonia proletária, que ocorre sob forma
distinta e só pode ter relativo sucesso em setores da sociedade, pois somente
em momentos revolucionários pode ser tornar hegemônico no conjunto da
sociedade.
A hegemonia burguesa, bem
como a burocrática, se realiza através de um processo distinto do realizado
pela hegemonia proletária. Mas antes de discutir essas questões, é necessário
entender o conceito de hegemonia. Esse termo é usado, geralmente, no sentido
gramscista. Para Gramsci, hegemonia é a direção moral e intelectual que se
exerce na sociedade civil (GRAMSCI, 1987; GRAMSCI, 1988; GRAMSCI, 1982). Tal
direção moral e intelectual é efetivada, geralmente, pela classe dominante e a
ideologia é crucial nesse processo, sendo entendida por Gramsci como o “cimento
da dominação” (GRUPPI, 1991; SANTOS, 1979; BODEI, 1978). Outra concepção de hegemonia
é a de Lênin. No entanto, no caso de Lênin é uma concepção pouco desenvolvida e
mais restrita, pois ele aborda apenas na hegemonia do proletariado (GRUPPI,
1991). Gramsci, por sua vez, trata da hegemonia burguesa e da contra-hegemonia.
O conceito de hegemonia
aqui adota é outro. Para nós, hegemonia significa vigência cultural. A
hegemonia é marcada por uma vigência de determinados elementos de cultura, o
que significa que determinadas ideias, valores, ideologias, concepções, teoria,
representações cotidianas, são produzidas e reproduzidas no interior de uma
sociedade. Elas se distinguem das ideias mortas e superadas. Também se
distinguem das ideias marginalizadas. Aqui se torna útil distinguir hegemonia
global e hegemonia regional. A hegemonia global é aquela que se espalha por
toda a sociedade, A hegemonia global, numa determinada sociedade, é da classe
dominante. Se não fosse, a dominação teria que ser mantida via repressão. Isso
só ocorre em momentos de crise e revolução. A hegemonia regional é aquela na
qual se efetiva em determinadas regiões culturais. As regiões culturais, por
sua vez, são produtos das regiões sociais e estas se organizam na divisão
espacial/social do trabalho. As classes sociais desprivilegiadas ocupam, no
espaço nacional e espaço urbano, determinadas regiões sociais (periferia, por
exemplo) e podem se subdividir em sub-regiões culturais. O mesmo ocorre com as
classes privilegiadas. No entanto, as regiões culturais dominadas pela classe
dominante reproduzem a hegemonia global. As regiões culturais dominadas pelas
classes privilegiadas que buscam se autonomizar e separar da burguesia, também
reproduzem a hegemonia global, mas como algumas diferenciações.
A ideia de região
cultural não aponta para uma concepção de que existem “culturas de classes” em
cada região, mas sim manifestações adaptadas da cultura de uma determinada
sociedade e elementos próprios e específicos que não formam “uma cultura” e sim
divisões no interior dela. Metaforicamente, podemos dizer que a cultura é como
o idioma e as regiões culturais é como os dialetos. No Brasil, o idioma oficial
e dominante é o português, mas as formas de falar, os sotaques, os signos,
entre outros processos, são diferentes. É claro que as regiões culturais são
mais complexas que os dialetos, pois assumem diferenças socialmente
constituídas e que são políticas e ligadas à divisão social do trabalho. Em
síntese, quando dizemos que algo é “cultural” queremos tão somente dizer que é
referente ao real-ideacional, excluindo o real-material, ou seja, é do âmbito
mais restrito da cultura, em comparação com o social ou a sociedade.
Ao tratarmos de regiões
culturais entramos na diversidade de formas e manifestações da cultura de uma
sociedade. Se o foco ao tratar do conceito de cultura é a unidade, o foco ao
tratar das regiões culturais é a diversidade. Essa diversidade significa formas
e manifestações da cultura de uma determinada sociedade e não distintas
culturas no seu interior. As regiões culturais expressam essas distintas formas
de manifestação cultural, que podem ser opostas, complementares ou antagônicas.
A cultura remente ao conjunto das produções intelectuais da sociedade e as
regiões culturais à forma como ela se manifesta em distintos espaços sociais, o
que apenas complementa a ideia de que a cultura nas sociedades complexas,
especialmente no capitalismo, não é homogênea.
A região cultural pode
remeter para distintas formas de produção intelectual numa determinada
sociedade, englobando, por exemplo, a divisão do trabalho intelectual, as
esferas sociais, constituindo cada uma região cultural (arte, ciência,
teologia, etc.), a distinção social entre noosfera (as formas do saber
complexo: ciência, filosofia, marxismo, etc.) e representações cotidianas, bem
como as regiões culturais que expressam os blocos sociais com seus respectivos
espaços e hegemonias regionais. Hoje as regiões culturais também podem ser identificadas
através da internet e das redes sociais. É possível identificar o processo de
formação de correntes de opinião e posições políticas nos quais as regiões
culturais são virtuais. As diversas pesquisas sobre diversos acontecimentos (o
que ficou mais comum depois das manifestações populares de 2013 no Brasil)
mostram grandes correntes de opinião que expressam os blocos sociais e setores
relativamente alheios a eles[18]. Da mesma forma, as
pesquisas sobre redes sociais revelam um outro fenômeno que é o enclave
cultural. O enclave cultural é um pequeno setor de dissidentes dentro de uma
determinada região cultural. Por exemplo, na região cultural onde se mostra o
predomínio de uma corrente de opinião ligada a jornais, blogs, perfis,
conservadores, pode haver um setor bem minúsculo de caráter progressista ou até
mesmo revolucionário.
Assim, a região cultural
da noosfera, âmbito do saber complexo (VIANA, 2018), é fundamental para
entender a dinâmica cultural na sociedade moderna. Pois é através dela que as
formas mais complexas, estruturadas, sistemáticas e conscientes dos interesses
de classe se manifestam. Marx, por exemplo, apontou um elemento fundamental
nesse sentido ao analisar as três tendências da economia política de sua época:
a economia política clássica, a economia política vultar e a economia política
eclética, sendo as duas primeiras expressões diretas dos interesses da
burguesia e a última uma concepção eclética que expressava os mesmos
interesses, mas sob forma diferenciada e fazendo concessões ao movimento
operário. Ao lado disso, Marx apresenta a sua própria concepção, distinta das
demais por seu caráter crítico, por ser expressão do proletariado. A noosfera,
obviamente, é hegemonizada pela classe dominante e o marxismo aparece aqui como
essencialmente crítico e uma alternativa, gerando uma oposição entre ideologia
(sistema de pensamento ilusório) e teoria (expressão da realidade)[19].
A episteme burguesa, que
é um modo de pensar, é gerada historicamente e se torna hegemônica na sociedade
capitalista. Esse modo de pensar é uma infraestrutura do pensamento e tem como
seus elementos constitutivos um campo axiomático, um campo linguístico, um
campo analítico e um campo perceptivo[20] que tornam difícil
perceber determinados fenômenos e tendências. A utopia, por exemplo, está
expulsa desse modo de pensar, que é anistórico. A episteme burguesa é
permanente na sociedade capitalista, alterando apenas as suas formas, ou seja,
os seus paradigmas e ideologias. Os paradigmas são determinadas formas assumidas
pela episteme burguesa, enfatizando um ou outro aspecto seu (objetivismo ou
subjetivismo, racionalismo ou empiricismo, iluminismo ou romantismo, entre
outras antinomias do pensamento burguês). A episteme burguesa continua
existindo e sendo hegemônica, mas assume formas distintas na história do
desenvolvimento do capitalismo, gerando um novo paradigma a cada regime de
acumulação, bem como novas ideologias filiadas a ele.
A importância da análise
desse processo é que a episteme burguesa é a raiz da hegemonia paradigmática e
ideológica e uma vez produzida se espalha por toda a sociedade. As
características básicas da episteme burguesa coincidem com as representações
cotidianas ilusórias e traz processos semelhantes. Assim, se nas representações
cotidianas temos a simplificação, na episteme burguesa temos a sua forma
complexa que é o reducionismo (mais facilmente perceptível nos determinismos,
tais como o biológico, geográfico, cultural, econômico, etc.). Se as
representações cotidianas trazem em si a naturalização, a episteme burguesa
promove o anistorismo. As contradições existentes na sociedade, especialmente o
antagonismo da luta de classes entre burguesia e proletariado, são substituídas
por diversas antinomias (tais como as citadas anteriormente e que poderiam se
multiplicar ao infinito: direita/esquerda, sujeito/objeto, individualismo/holismo,
dogmatismo/ceticismo).
Assim, a hegemonia
burguesa domina toda a sociedade capitalista e a hegemonia proletária é
marginalizada, sendo uma hegemonia regional e bastante diminuta e que só cresce
com o avanço das lutas sociais e da luta cultural. Na maioria dos casos, a
hegemonia proletária é um enclave nas regiões culturais da noosfera e outras. A
cada regime de acumulação ocorre uma renovação hegemônica, na qual a burguesia
busca realizar novas tarefas para a reprodução da acumulação capitalista
(VIANA, 2018). O processo de hegemonia burguesa tem mecanismos diferentes da
hegemonia proletária. A hegemonia burguesa funciona através da dominação e
inércia e a hegemonia proletária da confluência e autoformação. As ideias
dominantes são as ideias que reproduzem os interesses da classe dominantes.
Trata-se de uma dominação cultural, na qual as políticas culturais ganham
grande força e se impõe ao conjunto da sociedade. As produções ideológicas
(economia neoliberal, por exemplo) são gestadas através de determinados
ideólogos e uma vez constituídas são reproduzidas, simplificadas, até chegar a
uma parte considerável da população. A inércia é o processo no qual essas ideias
produzidas são reproduzidas acriticamente, seja por interesses, falta de
reflexão, comodismo, submissão aos modismos, etc. A hegemonia burocrática
segue, praticamente, a mesma dinâmica. Ela está subordinada à episteme burguesa
e por isso reproduz vários elementos e aspectos da mesma e da hegemonia
burguesa, não gerando nenhum forte antagonismo.
A dinâmica da hegemonia
proletária é diferente. Ao invés de dominação e inércia, temos confluência e
autoformação. O bloco revolucionário, a partir das lutas e experiências
históricas do movimento operário e da produção intelectual existente,
especialmente o pensamento crítico, constitui determinadas ideias, concepções,
teorias, valores, etc., que expressam a perspectiva do proletariado[21]. Essa produção
intelectual, geralmente realizada por intelectuais engajados, círculos
militantes, grupos de jovens e proletários que avançam no desenvolvimento da
consciência e rompem, mesmo que parcialmente (em alguns casos, devido à
formação insuficiente, pressão da hegemonia burguesa, influência do modo de
pensar dominante, etc.), com a hegemonia burguesa, acaba sendo divulgada na
sociedade e endereçada para os trabalhadores. Estes, no entanto, devido à
dominação cultural da burguesia e outras determinações, não aceitam facilmente
e imediatamente tais ideias.
A confluência significa que,
no processo de luta do proletariado, esse avança em sua autoeducação e
autoformação, ampliando o número de indivíduos e setores que acabam chegando a
ideias semelhantes ao do bloco revolucionário e se aproximando dele
intelectualmente e praticamente e, quanto mais a luta aumenta, maior é a
confluência. Em momentos revolucionários, a confluência torna-se contagiante e
a hegemonia proletária, existente em apenas algumas regiões culturais (bloco
revolucionário, círculos políticos, etc.), vai se expandindo e conquistando
novas regiões culturais (bairros proletários e fábricas, por exemplo). A
hegemonia proletária nasce, portanto, no interior do bloco revolucionário e no
interior do próprio proletariado em sua luta, sob forma menos desenvolvida, e a
confluência acaba gerando a fusão entre ambos.
Por último, resta tratar
do fetichismo da cultura. As diversas definições e abordagens da questão
cultural formam um amplo espectro. No entanto, algumas delas carregam em sim um
problema que é o fetichismo da cultura. A cultura, nessas abordagens, parece
ter “vida própria” e ser determinante da ação humana. A antropologia foi a
principal geradora das ideologias culturalistas (WAGNER, 2012; WHITE, 1978;
GEERTZ, 2008; LARAIA, 2007)[22] que proliferaram e se
tornaram hegemônicas não apenas nesta ciência particular, mas no conjunto das
ciências humanas e além delas, especialmente com a ascensão do paradigma
subjetivista[23].
Sem dúvida, essas concepções antropológicas tiveram antecedentes filosóficos,
tal como as chamadas filosofias idealistas. No entanto, o culturalismo
antropológico é diferente, por se colocar como ciência e por usar o termo
cultura (ao invés de razão, ideia, etc.), e buscar a comprovação empírica de
sua tese.
O paradigma subjetivista
também gera novas ideologias culturalistas, com as tematizações sobre
“identidade”, “gênero”, etc. Aqui o pressuposto é inverso ao do marxismo. Se
para o marxismo há uma constituição social da cultura, para o culturalismo há
uma construção cultural do social. Porém, a concepção de cultura não é mais, na
maioria dos casos, uma totalidade e sim algo fragmentado, produção dos sujeitos
(indivíduos, grupos). Esse novo tipo de fetichismo da cultura também fica preso
a uma concepção segundo a qual o social é “construído” culturalmente (e, para
alguns dos ideólogos subjetivistas, pode ser “desconstruído”). Isso, em alguns
casos extremos, pode gerar a ideia de que basta mudar as palavras, a linguagem
(como o “politicamente correto”) para mudar as relações sociais.
No entanto, o
estruturalismo era um culturalismo holista e o pós-estruturalismo e as
ideologias subjetivistas são culturalistas, mas não são holistas. O ataque ao
marxismo que aparece como questionamento de “metanarrativas” (LYOTARD, 1993) é
o motivo pelo qual se declara a ruptura com o holismo estruturalista e funcionalista.
O alvo é o marxismo e isso foi produto da contrarrevolução cultural preventiva
após a rebelião estudantil de maio de 1968 e outras lutas sociais da época
(VIANA, 2009). É nesse contexto que há a produção de um novo fetichismo da
cultura. O alvo declarado, o estruturalismo (de onde deriva
“pós-estruturalismo”), é apenas uma declaração falsa (mesmo porque ele é
retomado posteriormente), pois o alvo verdadeiro é o marxismo.
Como colocamos
anteriormente, para o marxismo a cultura tem um caráter ativo (ou “autonomia
relativa”) e é uma das determinações da sociedade. Contudo, não é possível
pensar numa construção cultural da sociedade. No caso das concepções
antropológicas, mesmo usando cultural num sentido holista e amplo, a
centralidade é sempre do mundo das ideias e não nas relações sociais concretas.
Mesmo porque, se assim não fosse, não teria sentido dizer que a cultura
(entendida como sociedade, ou seja, uma totalidade, um “modo de vida global”)
constitui a sociedade. Claro que isso se manifesta numa determinada concepção
de sociedade, entendida fundamentalmente como cultural e que, no caso,
determina suas “partes”. É por isso que é possível usar expressões como
“construção cultural do gênero”, “construção cultural da realidade”, etc. Também
nesse caso há problemas, pois não é o cultural, isoladamente, que constitui um
fenômeno social específico e sim o conjunto das relações sociais.
No caso das concepções
subjetivistas, a centralidade é sempre do sujeito (e sua subjetividade) e não a
sociedade. A ideia de uma construção cultural do social pode ser vista no caso
da chamada “relações de gênero”, nas quais a cultura é que seria o elemento
determinante dos gêneros. A centralidade é atribuída para a cultura entendida
como real-ideacional e isso permite deduzir vários elementos: arbitrariedade,
atos subjetivos, etc., o que significa que é uma construção e pode ser
“desconstruída” e, mais do que isso, já que tal “desconstrução” é tão subjetiva
e arbitrária quanto a construção, sendo meramente cultural (em sentido
estrito). Claro que existem variações no interior das concepções subjetivistas,
mas eles remetem a esse tipo de problema de base. A forma como se compreender
essa “arbitrariedade” subjetiva é derivada da forma como se entende o “sujeito”[24].
Para o marxismo, ao
contrário, o que existe é uma constituição social da cultura, o que significa é
que o social remente à totalidade da sociedade e também a tudo que está
integrado nela. No sentido amplo, social remete para a totalidade da sociedade
e, no sentido restrito, se refere aos elementos constitutivos dela, suas
partes. Assim, para o marxismo não há “construção cultural do gênero” e sim
constituição social (no sentido amplo) dos ethos sexuais masculinos e
femininos. Por outro lado, isso não descarta os elementos corporais e outras
determinações, incluindo a cultura (que faz parte do social em sentido amplo). Para
o marxismo há a primazia das relações sociais concretas e isso inclui a cultura, mas essa é determinada e é
uma das determinações de si mesma. Por exemplo, a revolução francesa foi um
produto da luta de classes, das relações sociais concretas, com o
desenvolvimento do capital e sua força, mas as classes sociais em luta efetivam
a efetiva apelando para concepções anteriores e presentes para se posicionar,
legitimar, etc. Por isso, o iluminismo teve um significado importante no
processo de desencadeamento da revolução francesa. As ideias iluministas, por
sua vez, não surgiram do nada. Elas emergem a partir de novas classes,
interesses, relações sociais, e retoma ideias anteriores já existentes (o
empiricismo de Bacon e o racionalismo de Descartes, por exemplo). A cultura
anterior, que nasce num contexto social distinto, é um freio ou um acelerador
para mudanças sociais e sempre que é preciso é reinterpretada, transformada ou
substituída.
A construção cultural
cria uma espécie de separação na sociedade e coloca um elemento desta como
acima e determinante, a cultura. Esse processo é realizado sob distintas formas
em distintas concepções. No caso do marxismo, o social remete à totalidade e
por isso inclui a cultura, mas vai além no sentido de colocar a determinação
fundamental que remete ao modo de produção (e anteriormente analisamos a
relação entre este e a cultura). No conjunto das relações sociais que é a
sociedade, há um processo de primazia do modo de produção sobre as demais
relações sociais e a cultura. Isso não é uma conclusão arbitrária, mas sim algo
concreto, real, que, como já dizia Marx, pode ser observado concretamente,
materialmente (MARX e ENGELS, 1982; MARX, 1983). Uma sociedade só sobrevive produzindo
os bens materiais para garantir sua sobrevivência e isso ocorre no modo de
produção. Nenhuma sociedade sobrevive de cultura ou de discurso ideológico ou
de “construções subjetivas”. Essas fantasmagorias só são possíveis por existir
um processo de produção que garante a existência delas e dos seus produtores,
os ideólogos.
O fetichismo da cultura
é, ele mesmo, um fenômeno cultural determinado pela sociedade que o engendra.
As formas do fetichismo da cultura, por sua vez, remete às mutações sociais dos
regimes de acumulação e aos paradigmas hegemônicos instituídos a partir das
novas tarefas políticas da burguesia em sua luta para manter a reprodução
ampliada da acumulação de capital e das relações de produção capitalistas.
Nesse sentido, a cultura só pode ser compreendida historicamente e a partir de
uma análise totalizante, proporcionada pelo marxismo.
Em síntese, a relação
entre marxismo e cultura é bastante complexa e envolve um conjunto de questões
que abordamos introdutoriamente aqui, indo desde o conceito de cultura,
passando pela relação entre cultura e sociedade e outros elementos derivados,
até chegar ao problema do fetichismo da cultura. A breve síntese introdutória aqui
apresentada tratou de aspectos já desenvolvidos pelo marxismo e outros apenas
esboçados e que necessitam desenvolvimento. O enfoque sintético que realizamos
pretendeu apenas apontar os elementos essenciais de uma teoria marxista da
cultura, que já avançou em diversas questões, mas que ainda precisa desenvolver
aspectos novos e ainda não explorados de forma mais profunda.
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[1] Aqui não nos referimos à
complexidade do termo em suas múltiplas definições e concepções ao seu respeito
(EAGLETON, 2005; LARAIA, 2007; KAPLAN e
MANNERS, 1981) e sim no interior de uma concepção marxista, pois mesmo no seu
sentido mais restrito, envolve uma gama de questões e relações que não são nada
simples e fáceis de analisar. A concepção marxista de cultura que trabalhamos
aqui não é a de todos os autodeclarados marxistas (que remeteria a um conjunto
enorme de obras e autores) e sim apenas a alguns que julgamos contribuir mais
com a discussão sobre esse fenômeno e a síntese que nos propomos é restrita a
essa delimitação.
[2] A definição, no sentido marxista,
é uma síntese que explicita o significado do conceito. Um conceito, por sua
vez, é uma expressão da realidade, ou seja, uma reconstituição ideal do real.
Um conceito remente a diversos outros conceitos, gerando um universo
conceitual, que é a teoria (VIANA, 2007a).
[3] A ideia da cultura como “modo de
vida global” será deixada de lado por discordarmos e apontarmos para outra
concepção. A cultura no sentido de “atividades intelectuais” (WILLIAMS, 1992)
será abordada, mas apenas no caso da sociedade capitalista e como algo que não
engloba a totalidade do fenômeno cultural, pois as representações cotidianas e
as formas de consciência não consideradas especializadas integram o nosso
conceito de cultura. A questão da formação individual vamos abordar brevemente,
mas sob outra perspectiva.
[4] Para uma síntese introdutória a
respeito do conceito de cultura no pensamento antropológico, há o pequeno livro
de Laraia (2001) e existem outras obras de outros autores que tratam disso
(KAPLAN e MANNERS, 1981).
[5] Essa definição já foi apresentada por
vários autores, mas consideramos que Alfred Weber (1970) foi um dos primeiros a
apresentar, no interior da sociologia, essa definição, e depois foi assimilada
pelo marxismo (VIANA, 2011). Ela corresponde ao sentido mais restrito apontada
por Williams (1992), “atividades intelectuais”. Há uma diferença, no entanto,
pois nossa abordagem não se limita a atividades intelectuais “especializadas” e
sim toda e qualquer produção intelectual.
[6] Alguns autores buscaram distinguir
cultura e ideologia, colocando o primeiro termo no seu sentido amplo e global e
o segundo como “domínio ideativo de uma cultura”: “sob essa rubrica, incluímos
valores, normas, conhecimento, temas, filosofias e crenças religiosas,
sentimentos, princípio éticos, visões de mundo, sistemas e assim por diante”
(KAPLAN e MANNERS, 1981, p. 171). Assim, o termo “ideologia” para estes autores
é semelhante ao de “cultura”, na nossa concepção.
[7] É necessário ressaltar que aqui
“produção intelectual” aparece em sentido amplo e por isso se entende todas as
formas de expressão mental dos seres humanos e por isso pode incluir arte,
sentimentos, valores, linguagem, etc., e não apenas produções filosóficas e
científicas, como alguns pensam.
[8] Tal como Korsch (1983) já havia
colocado e é retomado por Althusser (1989) e Canclini (1979), “superestrutura”
não é um conceito e sim uma metáfora. A metáfora tinha um caráter ilustrativo
para explicitar a relação com o outro termo metafórico, a estrutura, que seria
a base do edifício e sem o qual a superestrutura não poderia existir e se
sustentar. O termo metafórico “estrutura” convivia com um conceito que abarcava
a realidade que ele expressava, que é modo de produção. No entanto, o termo
metafórico “superestrutura” não ganhou um conceito de forma tão clara e Marx
(1983) usa os termos “formas jurídicas, políticas e ideológicas” para expressar
o seu significado. O conceito de formas sociais de regularização (VIANA, 2007),
ou, sinteticamente, formas sociais (VIANA, 2016), é o que consideramos mais
adequado nesse caso.
[9] A distinção entre os conceitos
universais e os conceitos singulares (VIANA, 2007a) é importante na análise
marxista. Os conceitos universais são aqueles que expressam relações existentes
em todas as sociedades e todas as épocas, como modo de produção, sociedade,
cultura, etc. Eles se distinguem dos conceitos singulares que expressam
fenômenos que só existem em determinadas sociedades (tais como Estado, classes
sociais, ideologia, etc., que só existem nas sociedades de classes) e dos
conceitos singulares que expressam relações sociais de apenas uma sociedade
(mais-valor, estado capitalista, trabalho assalariado, liberalismo, etc., que
só existem na sociedade capitalista).
[10] Em uma sociedade determinada podem
coexistir mais de um modo de produção (VIANA, 2007a), tal como se pode deduzir
das afirmações de Marx (1988), em O
Capital e outras obras, no qual faz referências aos modos de produção
subordinados no capitalismo (camponês, por exemplo). No entanto, há um modo de
produção dominante, que é o que caracteriza determinada sociedade e é a
determinação fundamental das formas sociais (VIANA, 2007a).
[11] No Prefácio de Contribuição à
Crítica da Economia Política, Marx (1983) usa vários termos para explicitar
as complexas relações entre modo de produção dominante e formas sociais, como
“correspondência”, “elevação”, “contradição”, etc. A leitura rigorosa desse
texto é fundamental para a compreensão do materialismo histórico, assim como é
essencial evitar as interpretações simplificadoras desse texto. Alguns autores
tentaram analisar tal texto rompendo com as simplificações deformadoras do
mesmo (VIANA, 2017). Da mesma forma, esse texto é uma síntese e, como toda
síntese, não abarca a totalidade das relações sociais que visa sintetizar e por
isso não deve ser lido dogmaticamente e como algo autossuficiente, pois sua
compreensão (no pensamento de Marx) remete para outras obras e desdobramentos.
[12] A noosfera é composta pelas formas
de saber complexo, tais como a ciência, filosofia, teologia, marxismo (VIANA,
2018).
[13] Isso pode ser percebido no
antagonismo entre episteme marxista e episteme burguesa (VIANA, 2018).
[14] Com exceção da sua própria
produção intelectual, ou seja, sua consciência e produção cultural. A
externalidade aqui se refere à cultura produzida pelo conjunto da sociedade.
[15] A assimilação é um processo
criativo no qual o pensador extrai de outra concepção algum termo, ideia, etc.,
e a insere na sua concepção própria. É o caso do marxismo assimilar algum
elemento da sociologia de Bourdieu, tal como estamos fazendo aqui. A acomodação
é um processo no qual o indivíduo se adequa ao pensamento alheio, seja através
do ecletismo ou mera reprodução (VIANA, 2000).
[16] Entenda-se por saber novo a
realização de produção intelectual que vai desde o desenvolvimento de uma
teoria, análise de acontecimentos históricos e sociais, etc., ou seja, indo do
mais simples para o mais complexo. A erudição enciclopédica ajuda nesse
processo, mas não garante que seus portadores o efetivem. Um professor que cita
muitos autores em sala de aula e nunca escreveu artigo é um desses casos. Por
outro lado, Korsch também possuía uma erudição formativa, apesar de sua base
intelectual ser, fundamentalmente, o pensamento de Marx. Ele não só inovou na
interpretação de Marx, como resgatou, enfatizou e desenvolveu aspectos do
marxismo. Os exemplos poderiam se multiplicar e por isso nos contentamos apenas
com estes.
[17] Marx não chegou a aprofundar isso,
mesmo porque isso passou a ser mais comum após a sua morte, mas Labriola
(1979), Korsch (1977) e o jovem Lukács (1989) criticaram tal procedimento e
defenderam a autonomia intelectual do marxismo.
[18] Um exemplo pode ser visto em: https://www.revistaforum.com.br/mapeamento/.
Apesar dos problemas metodológicos que podem ser apontados em diversas dessas
pesquisas (por exemplo, algumas analisam através das palavras utilizadas e
essas podem ter significados distintos para grupos diferentes, bem como seu uso
depende do contexto, podendo ser favorável ou contrário, o que não pode ser
percebido apenas através do registro da palavra utilizada).
[19] A oposição entre teoria e
ideologia é esboçada por Marx, ao colocar que os economistas são os representantes
ideológicos da burguesia e os socialistas e comunistas os representantes
teóricos do proletariado (MARX, 1989). Essa ideia também está presente em
Korsch (1977) e vem sendo retomada contemporaneamente (VIANA, 2008).
[20] Seria impossível apresentar, aqui,
esses diversos conceitos, bem como outros derivados e elementos relacionados.
Para uma compreensão do conceito de episteme, campos mentais, e para o
entendimento da episteme burguesa e da episteme marxista, sugerimos a leitura
da obra O Modo de Pensar Burguês –
Episteme Burguesa e Episteme Marxista (VIANA, 2018).
[21] Como classe autodeterminada, ou
seja, “para-si” e não como classe determinada pelo capital, constituída no
plano das relações de produção. No caso de classe determinada pelo capital ou
“em-si”, o proletariado possui uma “consciência contraditória” (REICH, 1976;
GRAMSCI, 1987) e é na luta que vai superando essas contradições e passa para
uma consciência revolucionária. O bloco revolucionário, especialmente o
marxismo, expressa teoricamente o proletariado como classe autodeterminada e
nas épocas revolucionárias há uma confluência e fusão entre ambos. Esse
processo, nas experiências históricas concretas, se realizou parcialmente ou
mais amplamente, dependendo da radicalidade da luta.
[22] Keesing (1961) cita as teorias
idealistas da cultura na pesquisa antropológica, destacando a que aborda a
cultura como sistema cognitivo (Goodenough), como sistema estrutural
(Lévi-Strauss) e sistema simbólico (Geertz e Schneider). Consideramos que essas
concepções são fetichistas, mas a lista nos parece ser muito mais longa na
produção antropológica do que a apontada por Keesing.
[23] O paradigma subjetivista começa a
surgir a partir de 1969 através de diversas ideologias que passam da ênfase ao
holismo e objetivismo do paradigma hegemônico anterior para o particular
(sujeito ou “múltiplos sujeitos”) e subjetivismo, tal como o
pós-estruturalismo, multiculturalismo, etc.
[24] A obra de Young (2002), A Sociedade Excludente, serve para
exemplificar isso ao tratar do caso da criação de identidades essencializadas,
que podem ser interpretadas como subprodutos do paradigma subjetivista.
Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Marxismo e Cultura. In: Práxis Comunal, Belo Horizonte, v.1, n.1, p.13-31, jan./dez. 2018.
Disponível em:
https://seer.ufmg.br/index.php/praxiscomunal/article/view/12802/9382
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