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sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Marxismo e Cultura


MARXISMO E CULTURA 
MARXISM AND CULTURE 
Nildo Viana

RESUMO: 
A questão da cultura é fundamental para a compreensão das sociedades humanas. E por isso é um fenômeno que necessita ser incluído no desenvolvimento da concepção marxista e vários autores esboçaram ou desenvolveram teses sobre a questão cultural. O presente artigo visa expor, sinteticamente, a concepção marxista de cultura. Isso remete ao problema do conceito de cultura, bem como o da relação entre cultura e sociedade, cultura e indivíduo, entre diversos outros temas relacionados ou derivados. O ponto de partida é a apresentação de um conceito de cultura coerente com a concepção materialista da história. O passo seguinte desenvolvido foi a análise da cultura em sua relação com a sociedade, modo de produção, indivíduo. Isso culminou com a análise do fenômeno cultural na sociedade capitalista, mostrando a sua heterogeneidade, os processos de hegemonia e luta cultural, até chegar ao problema do fetichismo da cultura. 
PALAVRAS-CHAVE: Marxismo, Cultura, Hegemonia, Luta Cultural, Formas Sociais. 

ABSTRACT: 
The question of culture is fundamental to the understanding of human societies. And so it is a phenomenon that needs to be included in the development of the Marxist conception and several authors have sketched or developed theses on the cultural question. The present article aims to expose, in a synthetical way, the Marxist conception of culture. This refers to the problem of the concept of culture, as well as that of the relationship between culture and society, culture and individual, among several other related or derived themes. The starting point is the presentation of a concept of culture consistent with the materialist conception of history. The next step developed was the analysis of culture in its relationship with society, mode of production, individual. This culminated in the analysis of the cultural phenomenon in capitalist society, showing its heterogeneity, the processes of hegemony and cultural struggle, to the problem of the fetishism of culture. 

KEYWORDS: Marxism, Culture, Hegemony, Cultural Struggle, Social Forms. 


A questão da cultura é uma das mais debatidas nos meios intelectuais e hoje ganha proeminência como tema e como elemento explicativo da realidade. O marxismo, por sua vez, sempre foi acusado de desconsiderar a cultura ou considerá-la um epifenômeno derivado da economia. Alguns marxistas se aventuraram a tratar da cultura, sob abordagens distintas, mas geralmente tratando de aspectos mais específicos da produção cultural, tal como a literatura. O nosso objetivo é apresentar uma síntese de uma concepção marxista da cultura, pois a complexidade e amplitude do tema impede ir além de um enfoque sintético[1]. Essa análise vai focalizar os elementos essenciais de uma teoria marxista da cultura e por isso alguns aspectos ficaram de fora, bem como abordagens não-marxistas serão citadas brevemente, seja para realizar uma comparação, seja para assimilar algo que possa ser uma contribuição para a teoria da cultura na perspectiva marxista. Também lançamos algumas ideias que podem servir de inspiração para o aprofundamento de alguns aspectos não trabalhados ou apenas sugeridos por alguns pensadores, visando compor a síntese de tal concepção de forma mais completa.
O primeiro elemento que precisamos destacar em nossa análise é o conceito de cultura. Marx usou poucas vezes o termo “cultura”, pois trabalhou mais com o conceito de consciência, bem como termos correlatos, como ideologia, representações, etc. Além disso, Marx não era um pensador marcado por realizar definições. Os seus conceitos são apresentados em suas explicações teóricas, mas raramente são definidos[2]. Depois de Marx, poucos marxistas ou pensadores influenciados pelo marxismo, trabalharam com cultura de forma mais aprofundada e com uma definição desse termo. A abordagem da cultura como fenômeno geralmente remete para autores como Gramsci e, mais recentemente, Raymond Williams.
Gramsci não apresenta uma definição precisa de cultura, mas é possível tentar resgatar o significado do termo em seu pensamento em seu processo evolutivo e extrair daí uma definição. Essa tentativa pode gerar a conclusão de que cultura em Gramsci expressa dois fenômenos relacionados, mas distintos:
Podemos verificar nessa nota e, sobretudo, acompanhando o desenvolvimento do conceito de cultura nos Quaderni, nas inúmeras notas que discutem a questão, a preocupação de Gramsci em afirmar o conceito em duas direções: de um lado, a cultura significa o modo de viver, de pensar e de sentir a realidade por parte de uma civilização e, em segundo lugar, é concebida como projeto de formação do indivíduo, como ideal educativo a ser transmitido para as novas gerações. Os dois significados do termo em Gramsci não constituem inovações do ponto de vista semiológico, pois, já entre os gregos e os latinos, as palavras paidéia e humanitas assumiam essas significações. A meu ver, o que podemos destacar inicialmente, no uso gramsciano do termo, é a compreensão unitária dos dois significados, ou seja, cultura significa um modo de viver que se produz e se reproduz por meio de um projeto de formação (VIEIRA, 2018, p. 61).
Esse duplo significado do termo cultura é problemático e pode criar confusões desnecessárias. De qualquer forma, serve de ponto de partida para nossa discussão. Um outro autor que pode servir para reflexões a respeito do conceito de cultura é Raymond Williams. Williams pensa a cultura como “modo de vida global” ou “sistema de significações”. Ele analisa as diversas concepções de cultura que se desenvolveram historicamente e aponta para o entendimento de cultura nesse sentido amplo, como modo de vida global, que é o sentido antropológico (e ele afirma ser sociológico, o que é questionável), e um sentido mais especializado, que o limitaria às atividades artísticas e intelectuais (WILLIAMS, 1992). Nesse sentido, Williams recusa o processo de distinções terminológicas entre “cultura erudita” e “cultura popular”.
Essas duas concepções são ilustrativas de algumas concepções, autodeclaradas marxistas, a respeito da cultura. Elas se vinculam com outras concepções, de origem não-marxista, a respeito da cultura. A concepção de cultura em Gramsci e Williams apontam para a cultura como um modo de vida global e cada um acrescenta um elemento adicional:  a formação individual em Gramsci e as atividades intelectuais especializadas em Williams[3]. A cultura como modo de vida global é o sentido mais comum atribuído à palavra cultura no pensamento não-marxista e é, geralmente, o sentido antropológico do termo. Os antropólogos, em sua maioria, concebem o termo cultura em sentido amplo, englobando não somente as produções intelectuais, mas também os costumes e outros aspectos da vida social, sendo semelhante à ideia de “modo de vida global”[4]. Esse conceito é tão amplo que se confunde com “civilização” e “sociedade”.
Consideramos esta concepção de cultura extremamente ampla e que não é coerente com a análise marxista. Essa definição cria um novo elemento que seria inserido na concepção marxista de sociedade e que necessitaria uma reformulação da mesma para se sustentar no seu interior. Por outro lado, esse termo entendido de forma tão ampla acaba sendo equivalente ao sentido sociológico do termo “sociedade”. Marx compreende a sociedade como o “conjunto das relações sociais”, e, nesse sentido, se aproxima do sentido sociológico, apesar das imprecisões terminológicas, existentes em muitos casos, no interior das produções sociológicas concretas. Assim, o sentido amplo do termo cultura como “modo de vida global” não só é incoerente com a concepção marxista original (a de Marx) como é desnecessária, pois já existe o conceito de sociedade e os conceitos derivados (modo de vida, modo de produção, consciência, etc.) que expressam tal realidade.
Assim, um conceito marxista de cultura necessitaria explicitar signo e significado, ou seja, o fenômeno real e o conceito que o expressa. Ou seja, é necessário dizer o que é cultura enquanto fenômeno real e assim explicitar seu significado como conceito. No interior de uma teoria, não deve existir dois conceitos (no caso, sociedade e cultura) com o mesmo significado, pois é algo desnecessário, impreciso e que pode gerar confusão, especialmente numa sociedade marcada pela “luta de classes em torno do signo” (BAKHTIN, 1990). Por conseguinte, o sentido mais restrito do termo cultura é mais adequado para a concepção marxista. A concepção de cultura que não entra em contradição com o marxismo e que é necessária por abarcar um conjunto de fenômenos no interior da sociedade que necessita ser abordada é a que a concebe como “conjunto das produções intelectuais”[5]. Desta forma, distinguimos cultura de outros termos/fenômenos, como sociedade, civilização, etc., e, ainda, de termos como consciência, ideologia[6], etc., pois ela remete a uma totalidade: o conjunto de todas as formas de produção intelectual, as formas de consciência, religião, ciência, filosofia, arte, representações cotidianas, valores, sentimentos, linguagem, etc.[7] A cultura seria um termo que trabalha com o conjunto de produções intelectuais de uma sociedade, sendo uma parte daquilo que se convencionou chamar de “superestrutura”, ou seja, as formas sociais[8]. Em síntese, a cultura é o conjunto das formas de produção intelectual de uma determinada sociedade.
Nesse sentido, cultura é um conceito universal, ou seja, existente em todas as sociedades humanas[9]. Porém, assume distintas formas em sociedades diferentes. Em cada sociedade, há um modo de produção dominante específico e uma forma de cultura específica. A sociedade feudal possui o modo de produção feudal e a cultura feudal que lhe corresponde, bem como a sociedade escravista possui uma cultura escravista e a sociedade moderna uma cultura capitalista. Essa constatação nos remete para a discussão da relação entre sociedade e cultura, o que, por sua vez, nos leva a discutir uma das principais questões do materialismo histórico: a relação entre modo de produção e formas sociais.
O conceito de sociedade engloba o conjunto das relações sociais, ou seja, a totalidade da vida social, incluindo os modos de produção[10] e as formas sociais. O primeiro elemento, extraído do materialismo histórico[11], é a unidade e correspondência entre modo de produção e cultura. O modo de produção dominante numa sociedade constitui uma cultura que lhe é correspondente, tal como exemplificamos acima. O modo de produção capitalista gera a cultura capitalista, assim como gera um Estado capitalista. Assim, como o Estado, em qualquer sociedade, é uma relação de dominação de classe (VIANA, 2015a) ou uma “associação da classe dominante” para fazer valer seus interesses de classe (MARX e ENGELS, 1982), a cultura é o conjunto das produções intelectuais. E assim como o Estado assume formas diferentes em sociedades diferentes, podendo ser um Estado escravista ou capitalista, a cultura também assume formas distintas, podendo ser escravista ou capitalista.
A cultura, assim como o Estado, não só corresponde a determinado modo de produção, possuindo uma unidade com ele, como também o reproduz e reforça. A cultura tem um papel regularizador das relações sociais, tal como o Estado. Assim, se no feudalismo os guerreiros eram a força repressiva que garantia a reprodução das relações de produção feudais, a cultura era a força persuasiva que possuía a mesma função. A cultura feudal, marcadamente religiosa, justificava e legitimava a sociedade feudal com a naturalização das “três ordens”, nas quais uns nascem para trabalhar (servos), outros para rezar (clero) e outros para guerrear (nobreza). A cultura feudal era religiosa e até os contestadores se manifestavam através de heresias e linguagem religiosa (ENGELS, 1978).
No entanto, a cultura sendo o conjunto das formas de produção intelectual de uma sociedade, está perpassada por contradições que nascem do modo de produção dominante e da divisão social do trabalho. As lutas de classes se reproduzem no plano da consciência e da produção intelectual. Essas contradições podem ser mais fortes ou mais fracas, dependendo da sociedade e da época. No caso das sociedades tribais, elas nem sequer existem. Nas sociedades de classes, elas existem, mas são menos fortes e presentes em algumas delas. No caso da sociedade feudal, as formas de produção intelectual da classe servil eram muito limitadas para combater a hegemonia da classe feudal. Elas só ganham força com a crise do feudalismo e transição para o capitalismo, que é quando o messianismo emerge com força. Nesse contexto, emerge uma rebelião cultural que expressa as lutas de classes, como no caso de Thomas Münzer (BLOCH, 1973).
Esses aspectos explicitam, simultaneamente, o que alguns denominaram “autonomia relativa” da cultura (o que é atribuído também às demais formas sociais) ou seu caráter ativo (e não meramente passivo, um mero epifenômeno). A ideia de autonomia relativa (ENGELS, 1987) ou de caráter ativo ou mobilizador (VIANA, 2007b) se confirma ao constatarmos que a cultura reproduz e reforça a sociedade existente, especialmente as relações de produção dominantes, e também por ela poder ser contestadora ou até mesmo revolucionária. E essa dupla possibilidade de ação da cultura sobre a sociedade expressa as duas classes fundamentais constituídas pelo modo de produção dominante. Nesse contexto, algumas manifestações culturais específicas (como as ideologias com seu caráter conservador e as utopias com seu caráter revolucionário) expressam esse processo cultural de intervenção sobre a realidade e sua relação com a reprodução ou transformação social.
Essas observações gerais sobre a relação entre modo de produção e cultura a partir do materialismo histórico são apenas uma explicitação de algo mais geral e que não pretendemos aprofundar aqui. O objetivo foi apenas mostrar, em linhas gerais, a relação entre estes dois elementos constitutivos da realidade. Porém, as relações sociais concretas são mais complexas e necessitam de análises que tratem da especificidade histórica de cada sociedade particular. Nas sociedades tribais, por exemplo, a cultura não é perpassada por contradições, pois a inexistência das classes sociais e a divisão rudimentar do trabalho gera uma homogeneidade cultural (VIANA, 2011). A cultura nas sociedades classistas se manifesta diferentemente, pois estas são perpassadas pelas divisões sociais, especialmente a de classe, e por isso a homogeneidade é inexistente, embora existam manifestações culturais comuns a todos os indivíduos e outras que são de classes e grupos sociais. Em cada sociedade, a cultura assume uma especificidade e é apenas na análise de casos concretos é que ela pode ser melhor compreendida.
A cultura na sociedade capitalista ganha uma enorme complexidade, pois não apenas se expande e se vê envolvida por meios tecnológicos de comunicação e instituições educacionais, como também se torna submetida à divisão social do trabalho e ao seu produto derivado que é a divisão do trabalho intelectual. A divisão social do trabalho no capitalismo gera um conjunto de classes sociais e entre elas, a classe intelectual, especializada na produção intelectual (VIANA, 2018). Além da classe intelectual, ela gera uma divisão do trabalho intelectual e esta produz diversas esferas sociais voltadas para a produção intelectual. A esfera artística, a esfera científica, a esfera jurídica, entre outras, produzem ideologias, representações, etc. que, cada uma, de acordo com suas especificidades, buscam a reprodução da sociedade capitalista e da própria esfera, através de autovaloração e autolegitimação. Outro elemento que complexifica a questão da cultura no capitalismo é o Estado capitalista enquanto regularizador da produção cultural, com suas políticas culturais e educacionais, bem como outras instituições e o capital comunicacional (“indústria cultural”). Esses processos remetem a uma diversidade de questões que não poderão ser desenvolvidas aqui.
O que interessa destacar é que a cultura no capitalismo exerce a função de reprodução através da hegemonia e que a existência de uma classe revolucionária, o proletariado, permite a emergência de ideias revolucionárias e utópicas, incluindo a produção teórica expressa no marxismo. Assim, é preciso entender que o processo de constituição da classe intelectual e esferas sociais geram um processo de separação na produção intelectual, realiza pelos especialistas, e a produção cultural do resto da população. Isso cria a distinção entre a noosfera[12] e as representações cotidianas, bem como entre a arte erudita e a arte popular, entre outros processos semelhantes.
Estes elementos, que apontam para a historicidade e especificidade da cultura em cada sociedade, são importantes para não se perder de vista o caráter do método dialético e do materialismo histórico, que não criam modelos que buscam encaixar a realidade e sim visa constituir recursos mentais para expressar a realidade. O método dialético é uma ferramenta intelectual e o materialismo histórico é uma teoria e o objetivo de ambos é captar a realidade em suas múltiplas determinações e historicidade. A cultura, nesse caso, é compreendida como um fenômeno real, algo concreto. Enquanto fenômeno real, o seu conteúdo pode ser verdadeiro ou falso. Independente de ser falso ou mera ficção, como no caso da arte, é algo existente, que, como já dizia Korsch (1977), é parte da realidade e uma das determinações dela. Assim, é útil distinguir entre o real-material (o mundo dos objetos materiais e das relações sociais concretas) e o real-ideacional, o mundo das ideias (VIANA, 2018). A crença em vampiros é falsa, mas é algo que existe, é um fenômeno real-ideacional. A crença existe, mas inexiste o que ela diz existir, os vampiros. Porém, a crença em vampiros é real e mobilizadora, gerando ação por parte dos indivíduos que acreditam neles e a partir dela atuam sobre o resto da realidade. O real-ideacional é o reconhecimento da existência das ideias e de seu caráter ativo, o que não significa aceitar a veracidade de seu conteúdo.
Um outro elemento importante para a compreensão da questão cultural é a relação entre cultura e indivíduo. Em cada sociedade, essa relação se altera. Nas sociedades tribais, nas quais existe uma homogeneidade cultural, os indivíduos estão integrados na cultura da sua sociedade, como se pode ver nas análises realizadas por Durkheim (1996) a respeito das “representações coletivas”, mais especialmente do totemismo. Outras especificidades ocorrem nessas sociedades, tal como o processo de formação intelectual dos indivíduos, que ocorre através do processo de socialização e trabalho. Nas sociedades de classes, com a complexificação da divisão social do trabalho e da produção intelectual, a formação via socialização e trabalho (neste caso, para algumas classes sociais e não para todas) continua existindo, mas sendo mais comum para as classes desprivilegiadas, enquanto que emergem os primeiros especialistas no trabalho intelectual e uma nova forma de formação intelectual, através do ensino (como se vê no caso dos sofistas e socráticos, que ensinavam os interessados em aprender debater na Ágora). Na sociedade feudal essa dicotomia se reproduzia, pois havia a produção cultural da população em geral e as igrejas e mosteiros que se dedicavam aos estudos religiosos e teológicos e o trivium (gramática, retórica e dialética) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música).
Na sociedade capitalista, o processo de formação individual se complexifica ainda mais. A formação intelectual dos indivíduos ocorre através da socialização (e do trabalho, no caso de algumas classes sociais) e através de um conjunto de meios de comunicacao, instituições de ensino, etc. O modo de educação capitalista e o saber escolar acabam gerando novas diferenciações no interior da sociedade. Alguns não possuem acesso ao saber escolar e isso, na maioria dos casos, significa analfabetismo, ou seja, o não domínio da leitura e da escrita. A formação intelectual assume especificidades nesse caso. A formação da classe intelectual gera não somente os especialistas na produção intelectual mas também subdivisoes no seu interior, gerando as esferas sociais, instituições, saberes especializados, etc.
Um autor não-marxista que contribui com a compreensão desse fenômeno é o sociólogo Pierre Bourdieu. Apesar dos limites teórico-metodológicos de sua abordagem (VIANA, 2015b) e do problema de sua linguagem, que realiza uma transposição dos construtos da ciência econômica ou do marxismo para a cultura (o que é visto em seus termos “capital cultural”, “capital linguístico”, etc.), ele traz alguns elementos que podem ser assimilados pelo marxismo. Este é o caso da ideia de “capital cultural” e “capital linguístico”, bem como outros elementos relativos ao processo de formação intelectual dos indivíduos.
No caso de Bourdieu seria necessário ressignificar seus termos ou então substituí-los. Optamos pela substituição e os novos termos substitutos ganham outro significado e coerência com o marxismo. Uma das questões mais importantes no processo de formação intelectual na sociedade moderna são as diferenças de classes. Isso não gera “culturas de classe”, apesar de alguns usarem tal expressão. A cultura é o conjunto das produções intelectuais de uma determinada sociedade e uma classe social não é portadora de uma cultura própria, pois reproduz a cultura da sociedade e apresenta formas específicas de manifestações culturais. O termo “consciência de classe” é válido, mas cultura de classe já não tem sentido.
Porém, existem diferenças culturais entre as classes sociais, que não constituem “culturas distintas”, mas distinções no interior de uma mesma cultura, a capitalista. Além disso, existe a formação de uma cultura antagônica à capitalista, mas que não está encarnada em nenhuma classe social concreta, existente, e sim em determinada produção intelectual, que é o marxismo[13]. Voltaremos a isso adiante. Entre essas diferenças estão aquelas que atingem os indivíduos das várias classes sociais. Aqui ganha importância o conceito de bagagem cultural (ao invés de “capital cultural”, desenvolvido por Bourdieu e inserido no seu edifício ideológico). A bagagem cultural de um indivíduo é resultado do seu processo de formação intelectual. As crianças, obviamente, possuem uma bagagem cultural muito pequena; os jovens, tendem a ter uma bagagem cultural maior e os adultos tendem a superá-los. Aqueles com maior idade tiveram mais experiências (socialização, trabalho, etc.) e puderam (dependendo da classe, família, etc.) ter um acesso mais extenso à cultura de sua sociedade. A classe social é fundamental para entender esse processo. Uma criança das classes desprivilegiadas terá em sua bagagem cultural que pode ter sido retirado das relações familiares, meios de comunicação (televisão, por exemplo), etc. e uma criança das classes privilegiadas tende a ter acesso a um maior volume de bens culturais e aqueles mais valorados pela escola, classe intelectual e classe dominante. Isso possibilita, inclusive, que uma criança da burguesia tenha maior bagagem cultural do que um jovem do lumpemproletariado.
A bagagem cultural é a quantidade de elementos de cultura que um indivíduo ou grupo social possui. Como a cultura é o conjunto das produções intelectuais de uma determinada sociedade, então ela se distingue da consciência. A consciência é o ser consciente (MARX e ENGELS, 1982) e portanto é inseparável do indivíduo. A cultura, no entanto, é algo externo ao indivíduo[14], que ele pode ter acesso e realizar sua aquisição, o que significa que a incorpora em sua consciência, seja sob a forma de assimilação ou acomodação. O acesso cultural é perpassado pelas divisões sociais, especialmente a divisão de classes. A aquisição cultural dos indivíduos das classes desprivilegiadas é inferior à dos indivíduos das classes privilegiadas.
Um elemento importante no que se refere ao conceito de bagagem cultural é que ele é quantitativo e não qualitativo. Ou seja, um indivíduo pode ser poliglota, mas se o seu acesso cultural é apenas ao mundo da produção intelectual trivial e mercantil, que quantitativamente pode ser elevado (o que se convencionou denominar “cultura pop”, ou seja, as músicas, programas de TV, vida de celebridades, histórias em quadrinhos, etc.), em vários idiomas, isso é apenas quantidade. Assim, a sua bagagem cultural é grande, mas o seu saber real e seu enriquecimento intelectual e humano pode ser restrito. Da mesma forma, a bagagem cultural pode ser caracterizada por uma erudição enciclopédica ou por uma erudição formativa. A erudição enciclopédica é aquela rica em informações e quantidade, enquanto que a erudição formativa é que não se limita a quantidade e informações, mas é reflexiva e permite a formação de novas ideias. A erudição enciclopédica está para a acomodação enquanto que a erudição formativa está para a assimilação[15]. Marx é exemplo de um indivíduo como erudição formativa e muitos indivíduos com amplo espectro de leituras sem gerar saber novo é exemplo de erudição enciclopédica[16].
Por isso é necessário um conceito complementar ao de bagagem cultural. Esse conceito complementar é domínio cultural. A bagagem cultural é o conjunto de elementos da cultura acessados e adquiridos pelos indivíduos ou grupo social e o domínio cultural são os elementos de cultura compreendidos e assimilados por um determinado indivíduo ou grupo social. Assim, existem indivíduos com menor bagagem cultural, mas com maior domínio cultural. Um estudante de filosofia pode dominar três idiomas, enquanto que outro domina apenas o idioma do seu próprio país e isso significa que o poliglota possui maior bagagem linguística (e, possivelmente, cultural) que outro estudante de filosofia. Contudo, se este estudante de filosofia que é poliglota tem dificuldade de compreender o pensamento filosófico enquanto que o que domina só um idioma tem facilidade, então este último tem maior domínio cultural. Nesse exemplo, aquele que tem maior bagagem cultural tem menor domínio cultural e vice-versa. Assim, bagagem cultural facilita domínio cultural, mas nem sempre é isso que ocorre. É por isso que é possível ver nas universidades muitos jovens das classes privilegiadas com grande bagagem cultural, mas com menor domínio cultural do que alguns jovens das classes desprivilegiadas.
A aquisição cultural é um elemento importante para entender o processo de constituição de bagagem e domínio cultural de indivíduos e grupos. As classes desprivilegiadas tendem a possuir menor bagagem e domínio cultural, o que se estende, obviamente, para a maioria dos indivíduos pertencentes a tais classes sociais, enquanto que as classes privilegiadas tendem ao contrário. A aquisição cultural que permite ao indivíduo constituir sua bagagem cultural e/ou domínio cultural ocorre via família, amizades, escola, meios de comunicação, etc. A acessibilidade cultural é maior para os indivíduos das classes privilegiadas, pois a bagagem cultural de seus familiares, amigos, etc., tende a ser maior, bem como o seu acesso à escola, bens culturais e meios de comunicação é diferenciado e expressa seu pertencimento de classe.
Essa questão remete para a análise da produção cultural no capitalismo e sua relação com os blocos sociais e a luta cultural. A luta cultural na sociedade capitalista, em sua forma explicitamente de classe, ocorre geralmente através dos blocos sociais, ou seja, as forças organizadas, combativas e conscientes que expressam determinadas classes sociais (VIANA, 2015c). O bloco dominante é composto pelo aparato estatal, instituições burguesas, ideólogos, etc., que expressam os interesses da classe capitalista, enquanto que o bloco progressista expressa classes auxiliares da burguesia que buscam se autonomizar (burocracia e intelectualidade, fundamentalmente) e o bloco revolucionário expressa o proletariado e classes desprivilegiadas em geral.
A aquisição cultural das classes sociais é semelhante aos dos indivíduos pertencentes a elas. No entanto, todas as classes sociais são submetidas à hegemonia burguesa e são atingidas pela política cultural do Estado capitalista e do bloco dominante como um todo. As ações culturais do bloco progressista e do bloco revolucionário também atingem as classes sociais, mas com muito menor impacto, mais ainda no último caso, e de forma diferenciada, pois estes blocos pouco influenciam a burguesia. A aquisição cultural das classes desprivilegiadas é muito dependente do capital comunicacional, do aparato estatal e das instituições educacionais. Para os setores do proletariado de renda mais baixa, o lumpemproletariado, etc., o acesso e aquisição culturais são bem restritos. Uma das formas que o proletariado consegue ampliar a aquisição cultural é quando emergem lutas radicalizadas ou processos revolucionários, pois os indivíduos proletários ficam mais abertos e interessados em novas ideias devido à efervescência que ocorre nesses momentos. O próprio processo de luta constitui um momento de autoeducação e autoformação que permite avançar no desenvolvimento de sua consciência, o que também incentiva uma maior aquisição cultural, inclusive das tradições revolucionárias anteriores.
Isso nos remete para uma questão fundamental que é a relação entre marxismo e cultura no âmbito histórico. Até aqui tratamos da análise marxista da cultura, mas o marxismo não é um pensamento contemplativo, embora realize o processo de explicação dos processos sociais. O marxismo é um pensamento ativo e por isso visa intervir na realidade. O pensamento contemplativo intervém na realidade, mas sob forma conservadora. O pensamento ativo interfere na realidade, sob várias formas, dependendo de qual é esse pensamento. O marxismo intervém na realidade, tal como qualquer produção intelectual, simplesmente por existir e mobilizar indivíduos. Porém, ele pretende ir além disso, intervindo de forma intencional e revolucionária. Ele realiza esse processo através da luta cultural no interior do capitalismo e avança no sentido de buscar sua fusão com o movimento revolucionário do proletariado. Esses dois aspectos precisam ser desenvolvidos.
A luta cultural no interior do capitalismo é uma necessidade da luta revolucionária que o marxismo se propõe. Essa luta cultural visa combater a hegemonia burguesa (e burocrática), as ideologias, as ilusões, os valores dominantes, as produções culturais conservadoras e progressistas (VIANA, 2006) e, ao mesmo tempo, propagar a ideia de união dos trabalhadores na luta por sua libertação e o projeto de uma nova sociedade. Marx, por exemplo, efetivou uma ampla luta cultural (VIANA, 2014) e dedicou inúmeros escritos refutando os mais diversos ideólogos, entre os quais os neohegelianos (MARX e ENGELS, 1982), economistas políticos (MARX, 1988), pretensos socialistas (MARX e ENGELS, 1978), etc. Ao mesmo tempo, incentivou a organização dos trabalhadores e lutou contra os setores problemáticos no seu interior, bem como as tendências conservadoras.
Marx efetivou uma ampla produção teórica que se tornou uma arma do proletariado em sua luta contra o capital. Ele também criticou aqueles que, atrelados a partidos políticos que diziam representar os trabalhadores, ao invés de levar “elementos de cultura”, levavam seus preconceitos burgueses. Essa passagem de Marx, criticando o Manifesto dos Três de Zurique, produzido por social-democratas, exemplifica isso:
Este é um fenômeno inevitável, fundado no curso do desenvolvimento histórico, que pessoas das classes até aqui dominantes se juntem ao proletariado que luta e lhes tragam elementos de cultura. Colocamos isso claramente no Manifesto. Aqui há, porém, duas coisas a observar: Primeiro, essas pessoas, para serem úteis ao movimento proletário, têm de trazer consigo elementos de cultura reais. Isto não é, porém, o caso da grande maioria dos convertidos burgueses alemães. Nem o Zukunft nem a Neue Gesellschaft trouxeram o que quer que fosse que fizesse o movimento avançar um passo. Há lá uma falta absoluta de material de cultura real, efetivo ou teórico. Ao invés disso, realizam tentativas para pôr o pensamento socialista superficialmente apropriado em consonância com os pontos de vista teóricos mais diversos que os senhores trouxeram consigo da Universidade ou de qualquer outro lugar e sendo que um é ainda mais confuso do que o outro, graças ao processo de putrefação em que se encontram os restos da filosofia alemã nos dias de hoje. Ao invés de, para começar, estudarem eles próprios fundamentadamente a nova ciência, cada um prefere aproximá-la dos pontos de vista que trouxeram consigo, fazer dela uma ciência privada própria sem nenhum hesitação e aparece mesmo com a pretensão de a querer ensinar. Por isso, entre estes senhores existem tantos pontos de vista quanto número de cabeças; ao invés de trazerem clareza seja lá ao que for, apenas estabeleceram uma grave confusão – felizmente, quase só conhecida entre eles próprios. O partido pode muito bem passar sem semelhantes elementos de cultura, cujo primeiro princípio é ensinar o que ainda não aprenderam (MARX, 2014, p. 227-228) [17].
Marx acrescenta que se existem indivíduos de outras classes que querem se juntar ao movimento operário, a “primeira exigência é a de que elas não tragam consigo nenhum tipo de preconceito burguês, pequeno-burguês, etc., e sim que se apropriem com franqueza da perspectiva proletária” (MARX, 2014, p. 228). Caso eles criem o seu próprio partido, é direito deles. No entanto, no interior do movimento operário (“num partido operário”, entendendo que partido, em Marx, tem um significado mais amplo do que em outros autores), “eles são elementos deformadores”.
Aqui se revela outro elemento de luta cultural: a luta cultural no interior dos meios intelectualizados e militantes – contra as ideologias e suas influências no pensamento revolucionário (gerando sua deformação) – e luta cultural no que se refere ao próprio proletariado. No primeiro caso, é necessário combater esses elementos deformadores no interior do movimento operário e, no segundo caso, no interior das organizações e tendências revolucionárias. Esse duplo trabalho de crítica e superação é realizada a partir da perspectiva do proletariado, mantendo a autonomia e independência da classe contra a influência do pensamento burguês e seus derivados.
Esse processo deve avançar no sentido de realizar a fusão do pensamento revolucionário com o proletariado. A teoria se torna uma força material quando se apodera das massas (MARX, 1968). Esse processo significa, por um lado, que o proletariado, através de suas lutas, realiza seu processo de autoeducação (MARX e ENGELS, 1978), e os elementos de cultura (bem como os “preconceitos” do pensamento burguês) fazem parte dessa luta e pode gerar elementos revolucionários ou conservadores. O processo de autoeducação, no entanto, tende a gerar uma recusa desses elementos de cultura conservadores que os deformadores do movimento operário produzem e divulgam, e aumentar a adesão ao pensamento revolucionário. Isso ocorre, geralmente, quando há ascensão das lutas radicalizadas (em menor grau) ou tentativas de revolução proletária.
Esse processo culmina com outro aspecto da concepção marxista de cultura: a revolução proletária como revolução total, ou seja, que transforma o modo de produção e todas as formas sociais, o conjunto das relações sociais. Tal como Marx colocou: “a revolução comunista é a ruptura mais radical com as relações tradicionais, não é de se estranhar, portanto, que seu desenvolvimento acarrete o rompimento mais radical com as ideias tradicionais” (MARX e ENGELS, 1978, p. 111-112). Isso significa que a revolução proletária é uma revolução cultural, além de ser uma transformação no processo de produção, na política, etc., ou seja, da totalidade das relações sociais.
A luta cultural é uma parte das lutas de classes e é realizada por todas as classes, expressando seus interesses. A classe capitalista luta para manter sua hegemonia, sua dominação e reprodução cultural, enquanto que o proletariado, em seus momentos de radicalização, luta contra tal dominação. No plano mais concreto, temos o bloco dominante efetivando uma política cultural que expressa os interesses da classe capitalista e nesse processo de luta cultural, a burguesia tem a vantagem de possuir os meios de produção cultural, o aparato estatal, etc. A hegemonia burguesa reina absoluta e disputa espaço com a hegemonia burocrática do bloco progressista e a hegemonia proletária do bloco revolucionário. Por outro lado, o bloco revolucionário luta pela hegemonia proletária, que ocorre sob forma distinta e só pode ter relativo sucesso em setores da sociedade, pois somente em momentos revolucionários pode ser tornar hegemônico no conjunto da sociedade.
A hegemonia burguesa, bem como a burocrática, se realiza através de um processo distinto do realizado pela hegemonia proletária. Mas antes de discutir essas questões, é necessário entender o conceito de hegemonia. Esse termo é usado, geralmente, no sentido gramscista. Para Gramsci, hegemonia é a direção moral e intelectual que se exerce na sociedade civil (GRAMSCI, 1987; GRAMSCI, 1988; GRAMSCI, 1982). Tal direção moral e intelectual é efetivada, geralmente, pela classe dominante e a ideologia é crucial nesse processo, sendo entendida por Gramsci como o “cimento da dominação” (GRUPPI, 1991; SANTOS, 1979; BODEI, 1978). Outra concepção de hegemonia é a de Lênin. No entanto, no caso de Lênin é uma concepção pouco desenvolvida e mais restrita, pois ele aborda apenas na hegemonia do proletariado (GRUPPI, 1991). Gramsci, por sua vez, trata da hegemonia burguesa e da contra-hegemonia.
O conceito de hegemonia aqui adota é outro. Para nós, hegemonia significa vigência cultural. A hegemonia é marcada por uma vigência de determinados elementos de cultura, o que significa que determinadas ideias, valores, ideologias, concepções, teoria, representações cotidianas, são produzidas e reproduzidas no interior de uma sociedade. Elas se distinguem das ideias mortas e superadas. Também se distinguem das ideias marginalizadas. Aqui se torna útil distinguir hegemonia global e hegemonia regional. A hegemonia global é aquela que se espalha por toda a sociedade, A hegemonia global, numa determinada sociedade, é da classe dominante. Se não fosse, a dominação teria que ser mantida via repressão. Isso só ocorre em momentos de crise e revolução. A hegemonia regional é aquela na qual se efetiva em determinadas regiões culturais. As regiões culturais, por sua vez, são produtos das regiões sociais e estas se organizam na divisão espacial/social do trabalho. As classes sociais desprivilegiadas ocupam, no espaço nacional e espaço urbano, determinadas regiões sociais (periferia, por exemplo) e podem se subdividir em sub-regiões culturais. O mesmo ocorre com as classes privilegiadas. No entanto, as regiões culturais dominadas pela classe dominante reproduzem a hegemonia global. As regiões culturais dominadas pelas classes privilegiadas que buscam se autonomizar e separar da burguesia, também reproduzem a hegemonia global, mas como algumas diferenciações.
A ideia de região cultural não aponta para uma concepção de que existem “culturas de classes” em cada região, mas sim manifestações adaptadas da cultura de uma determinada sociedade e elementos próprios e específicos que não formam “uma cultura” e sim divisões no interior dela. Metaforicamente, podemos dizer que a cultura é como o idioma e as regiões culturais é como os dialetos. No Brasil, o idioma oficial e dominante é o português, mas as formas de falar, os sotaques, os signos, entre outros processos, são diferentes. É claro que as regiões culturais são mais complexas que os dialetos, pois assumem diferenças socialmente constituídas e que são políticas e ligadas à divisão social do trabalho. Em síntese, quando dizemos que algo é “cultural” queremos tão somente dizer que é referente ao real-ideacional, excluindo o real-material, ou seja, é do âmbito mais restrito da cultura, em comparação com o social ou a sociedade.
Ao tratarmos de regiões culturais entramos na diversidade de formas e manifestações da cultura de uma sociedade. Se o foco ao tratar do conceito de cultura é a unidade, o foco ao tratar das regiões culturais é a diversidade. Essa diversidade significa formas e manifestações da cultura de uma determinada sociedade e não distintas culturas no seu interior. As regiões culturais expressam essas distintas formas de manifestação cultural, que podem ser opostas, complementares ou antagônicas. A cultura remente ao conjunto das produções intelectuais da sociedade e as regiões culturais à forma como ela se manifesta em distintos espaços sociais, o que apenas complementa a ideia de que a cultura nas sociedades complexas, especialmente no capitalismo, não é homogênea.
A região cultural pode remeter para distintas formas de produção intelectual numa determinada sociedade, englobando, por exemplo, a divisão do trabalho intelectual, as esferas sociais, constituindo cada uma região cultural (arte, ciência, teologia, etc.), a distinção social entre noosfera (as formas do saber complexo: ciência, filosofia, marxismo, etc.) e representações cotidianas, bem como as regiões culturais que expressam os blocos sociais com seus respectivos espaços e hegemonias regionais. Hoje as regiões culturais também podem ser identificadas através da internet e das redes sociais. É possível identificar o processo de formação de correntes de opinião e posições políticas nos quais as regiões culturais são virtuais. As diversas pesquisas sobre diversos acontecimentos (o que ficou mais comum depois das manifestações populares de 2013 no Brasil) mostram grandes correntes de opinião que expressam os blocos sociais e setores relativamente alheios a eles[18]. Da mesma forma, as pesquisas sobre redes sociais revelam um outro fenômeno que é o enclave cultural. O enclave cultural é um pequeno setor de dissidentes dentro de uma determinada região cultural. Por exemplo, na região cultural onde se mostra o predomínio de uma corrente de opinião ligada a jornais, blogs, perfis, conservadores, pode haver um setor bem minúsculo de caráter progressista ou até mesmo revolucionário.
Assim, a região cultural da noosfera, âmbito do saber complexo (VIANA, 2018), é fundamental para entender a dinâmica cultural na sociedade moderna. Pois é através dela que as formas mais complexas, estruturadas, sistemáticas e conscientes dos interesses de classe se manifestam. Marx, por exemplo, apontou um elemento fundamental nesse sentido ao analisar as três tendências da economia política de sua época: a economia política clássica, a economia política vultar e a economia política eclética, sendo as duas primeiras expressões diretas dos interesses da burguesia e a última uma concepção eclética que expressava os mesmos interesses, mas sob forma diferenciada e fazendo concessões ao movimento operário. Ao lado disso, Marx apresenta a sua própria concepção, distinta das demais por seu caráter crítico, por ser expressão do proletariado. A noosfera, obviamente, é hegemonizada pela classe dominante e o marxismo aparece aqui como essencialmente crítico e uma alternativa, gerando uma oposição entre ideologia (sistema de pensamento ilusório) e teoria (expressão da realidade)[19].
A episteme burguesa, que é um modo de pensar, é gerada historicamente e se torna hegemônica na sociedade capitalista. Esse modo de pensar é uma infraestrutura do pensamento e tem como seus elementos constitutivos um campo axiomático, um campo linguístico, um campo analítico e um campo perceptivo[20] que tornam difícil perceber determinados fenômenos e tendências. A utopia, por exemplo, está expulsa desse modo de pensar, que é anistórico. A episteme burguesa é permanente na sociedade capitalista, alterando apenas as suas formas, ou seja, os seus paradigmas e ideologias. Os paradigmas são determinadas formas assumidas pela episteme burguesa, enfatizando um ou outro aspecto seu (objetivismo ou subjetivismo, racionalismo ou empiricismo, iluminismo ou romantismo, entre outras antinomias do pensamento burguês). A episteme burguesa continua existindo e sendo hegemônica, mas assume formas distintas na história do desenvolvimento do capitalismo, gerando um novo paradigma a cada regime de acumulação, bem como novas ideologias filiadas a ele.
A importância da análise desse processo é que a episteme burguesa é a raiz da hegemonia paradigmática e ideológica e uma vez produzida se espalha por toda a sociedade. As características básicas da episteme burguesa coincidem com as representações cotidianas ilusórias e traz processos semelhantes. Assim, se nas representações cotidianas temos a simplificação, na episteme burguesa temos a sua forma complexa que é o reducionismo (mais facilmente perceptível nos determinismos, tais como o biológico, geográfico, cultural, econômico, etc.). Se as representações cotidianas trazem em si a naturalização, a episteme burguesa promove o anistorismo. As contradições existentes na sociedade, especialmente o antagonismo da luta de classes entre burguesia e proletariado, são substituídas por diversas antinomias (tais como as citadas anteriormente e que poderiam se multiplicar ao infinito: direita/esquerda, sujeito/objeto, individualismo/holismo, dogmatismo/ceticismo).
Assim, a hegemonia burguesa domina toda a sociedade capitalista e a hegemonia proletária é marginalizada, sendo uma hegemonia regional e bastante diminuta e que só cresce com o avanço das lutas sociais e da luta cultural. Na maioria dos casos, a hegemonia proletária é um enclave nas regiões culturais da noosfera e outras. A cada regime de acumulação ocorre uma renovação hegemônica, na qual a burguesia busca realizar novas tarefas para a reprodução da acumulação capitalista (VIANA, 2018). O processo de hegemonia burguesa tem mecanismos diferentes da hegemonia proletária. A hegemonia burguesa funciona através da dominação e inércia e a hegemonia proletária da confluência e autoformação. As ideias dominantes são as ideias que reproduzem os interesses da classe dominantes. Trata-se de uma dominação cultural, na qual as políticas culturais ganham grande força e se impõe ao conjunto da sociedade. As produções ideológicas (economia neoliberal, por exemplo) são gestadas através de determinados ideólogos e uma vez constituídas são reproduzidas, simplificadas, até chegar a uma parte considerável da população. A inércia é o processo no qual essas ideias produzidas são reproduzidas acriticamente, seja por interesses, falta de reflexão, comodismo, submissão aos modismos, etc. A hegemonia burocrática segue, praticamente, a mesma dinâmica. Ela está subordinada à episteme burguesa e por isso reproduz vários elementos e aspectos da mesma e da hegemonia burguesa, não gerando nenhum forte antagonismo.
A dinâmica da hegemonia proletária é diferente. Ao invés de dominação e inércia, temos confluência e autoformação. O bloco revolucionário, a partir das lutas e experiências históricas do movimento operário e da produção intelectual existente, especialmente o pensamento crítico, constitui determinadas ideias, concepções, teorias, valores, etc., que expressam a perspectiva do proletariado[21]. Essa produção intelectual, geralmente realizada por intelectuais engajados, círculos militantes, grupos de jovens e proletários que avançam no desenvolvimento da consciência e rompem, mesmo que parcialmente (em alguns casos, devido à formação insuficiente, pressão da hegemonia burguesa, influência do modo de pensar dominante, etc.), com a hegemonia burguesa, acaba sendo divulgada na sociedade e endereçada para os trabalhadores. Estes, no entanto, devido à dominação cultural da burguesia e outras determinações, não aceitam facilmente e imediatamente tais ideias.
A confluência significa que, no processo de luta do proletariado, esse avança em sua autoeducação e autoformação, ampliando o número de indivíduos e setores que acabam chegando a ideias semelhantes ao do bloco revolucionário e se aproximando dele intelectualmente e praticamente e, quanto mais a luta aumenta, maior é a confluência. Em momentos revolucionários, a confluência torna-se contagiante e a hegemonia proletária, existente em apenas algumas regiões culturais (bloco revolucionário, círculos políticos, etc.), vai se expandindo e conquistando novas regiões culturais (bairros proletários e fábricas, por exemplo). A hegemonia proletária nasce, portanto, no interior do bloco revolucionário e no interior do próprio proletariado em sua luta, sob forma menos desenvolvida, e a confluência acaba gerando a fusão entre ambos.
Por último, resta tratar do fetichismo da cultura. As diversas definições e abordagens da questão cultural formam um amplo espectro. No entanto, algumas delas carregam em sim um problema que é o fetichismo da cultura. A cultura, nessas abordagens, parece ter “vida própria” e ser determinante da ação humana. A antropologia foi a principal geradora das ideologias culturalistas (WAGNER, 2012; WHITE, 1978; GEERTZ, 2008; LARAIA, 2007)[22] que proliferaram e se tornaram hegemônicas não apenas nesta ciência particular, mas no conjunto das ciências humanas e além delas, especialmente com a ascensão do paradigma subjetivista[23]. Sem dúvida, essas concepções antropológicas tiveram antecedentes filosóficos, tal como as chamadas filosofias idealistas. No entanto, o culturalismo antropológico é diferente, por se colocar como ciência e por usar o termo cultura (ao invés de razão, ideia, etc.), e buscar a comprovação empírica de sua tese.
O paradigma subjetivista também gera novas ideologias culturalistas, com as tematizações sobre “identidade”, “gênero”, etc. Aqui o pressuposto é inverso ao do marxismo. Se para o marxismo há uma constituição social da cultura, para o culturalismo há uma construção cultural do social. Porém, a concepção de cultura não é mais, na maioria dos casos, uma totalidade e sim algo fragmentado, produção dos sujeitos (indivíduos, grupos). Esse novo tipo de fetichismo da cultura também fica preso a uma concepção segundo a qual o social é “construído” culturalmente (e, para alguns dos ideólogos subjetivistas, pode ser “desconstruído”). Isso, em alguns casos extremos, pode gerar a ideia de que basta mudar as palavras, a linguagem (como o “politicamente correto”) para mudar as relações sociais.
No entanto, o estruturalismo era um culturalismo holista e o pós-estruturalismo e as ideologias subjetivistas são culturalistas, mas não são holistas. O ataque ao marxismo que aparece como questionamento de “metanarrativas” (LYOTARD, 1993) é o motivo pelo qual se declara a ruptura com o holismo estruturalista e funcionalista. O alvo é o marxismo e isso foi produto da contrarrevolução cultural preventiva após a rebelião estudantil de maio de 1968 e outras lutas sociais da época (VIANA, 2009). É nesse contexto que há a produção de um novo fetichismo da cultura. O alvo declarado, o estruturalismo (de onde deriva “pós-estruturalismo”), é apenas uma declaração falsa (mesmo porque ele é retomado posteriormente), pois o alvo verdadeiro é o marxismo.
Como colocamos anteriormente, para o marxismo a cultura tem um caráter ativo (ou “autonomia relativa”) e é uma das determinações da sociedade. Contudo, não é possível pensar numa construção cultural da sociedade. No caso das concepções antropológicas, mesmo usando cultural num sentido holista e amplo, a centralidade é sempre do mundo das ideias e não nas relações sociais concretas. Mesmo porque, se assim não fosse, não teria sentido dizer que a cultura (entendida como sociedade, ou seja, uma totalidade, um “modo de vida global”) constitui a sociedade. Claro que isso se manifesta numa determinada concepção de sociedade, entendida fundamentalmente como cultural e que, no caso, determina suas “partes”. É por isso que é possível usar expressões como “construção cultural do gênero”, “construção cultural da realidade”, etc. Também nesse caso há problemas, pois não é o cultural, isoladamente, que constitui um fenômeno social específico e sim o conjunto das relações sociais.
No caso das concepções subjetivistas, a centralidade é sempre do sujeito (e sua subjetividade) e não a sociedade. A ideia de uma construção cultural do social pode ser vista no caso da chamada “relações de gênero”, nas quais a cultura é que seria o elemento determinante dos gêneros. A centralidade é atribuída para a cultura entendida como real-ideacional e isso permite deduzir vários elementos: arbitrariedade, atos subjetivos, etc., o que significa que é uma construção e pode ser “desconstruída” e, mais do que isso, já que tal “desconstrução” é tão subjetiva e arbitrária quanto a construção, sendo meramente cultural (em sentido estrito). Claro que existem variações no interior das concepções subjetivistas, mas eles remetem a esse tipo de problema de base. A forma como se compreender essa “arbitrariedade” subjetiva é derivada da forma como se entende o “sujeito”[24].
Para o marxismo, ao contrário, o que existe é uma constituição social da cultura, o que significa é que o social remente à totalidade da sociedade e também a tudo que está integrado nela. No sentido amplo, social remete para a totalidade da sociedade e, no sentido restrito, se refere aos elementos constitutivos dela, suas partes. Assim, para o marxismo não há “construção cultural do gênero” e sim constituição social (no sentido amplo) dos ethos sexuais masculinos e femininos. Por outro lado, isso não descarta os elementos corporais e outras determinações, incluindo a cultura (que faz parte do social em sentido amplo). Para o marxismo há a primazia das relações sociais concretas e isso  inclui a cultura, mas essa é determinada e é uma das determinações de si mesma. Por exemplo, a revolução francesa foi um produto da luta de classes, das relações sociais concretas, com o desenvolvimento do capital e sua força, mas as classes sociais em luta efetivam a efetiva apelando para concepções anteriores e presentes para se posicionar, legitimar, etc. Por isso, o iluminismo teve um significado importante no processo de desencadeamento da revolução francesa. As ideias iluministas, por sua vez, não surgiram do nada. Elas emergem a partir de novas classes, interesses, relações sociais, e retoma ideias anteriores já existentes (o empiricismo de Bacon e o racionalismo de Descartes, por exemplo). A cultura anterior, que nasce num contexto social distinto, é um freio ou um acelerador para mudanças sociais e sempre que é preciso é reinterpretada, transformada ou substituída.
A construção cultural cria uma espécie de separação na sociedade e coloca um elemento desta como acima e determinante, a cultura. Esse processo é realizado sob distintas formas em distintas concepções. No caso do marxismo, o social remete à totalidade e por isso inclui a cultura, mas vai além no sentido de colocar a determinação fundamental que remete ao modo de produção (e anteriormente analisamos a relação entre este e a cultura). No conjunto das relações sociais que é a sociedade, há um processo de primazia do modo de produção sobre as demais relações sociais e a cultura. Isso não é uma conclusão arbitrária, mas sim algo concreto, real, que, como já dizia Marx, pode ser observado concretamente, materialmente (MARX e ENGELS, 1982; MARX, 1983). Uma sociedade só sobrevive produzindo os bens materiais para garantir sua sobrevivência e isso ocorre no modo de produção. Nenhuma sociedade sobrevive de cultura ou de discurso ideológico ou de “construções subjetivas”. Essas fantasmagorias só são possíveis por existir um processo de produção que garante a existência delas e dos seus produtores, os ideólogos.
O fetichismo da cultura é, ele mesmo, um fenômeno cultural determinado pela sociedade que o engendra. As formas do fetichismo da cultura, por sua vez, remete às mutações sociais dos regimes de acumulação e aos paradigmas hegemônicos instituídos a partir das novas tarefas políticas da burguesia em sua luta para manter a reprodução ampliada da acumulação de capital e das relações de produção capitalistas. Nesse sentido, a cultura só pode ser compreendida historicamente e a partir de uma análise totalizante, proporcionada pelo marxismo.
Em síntese, a relação entre marxismo e cultura é bastante complexa e envolve um conjunto de questões que abordamos introdutoriamente aqui, indo desde o conceito de cultura, passando pela relação entre cultura e sociedade e outros elementos derivados, até chegar ao problema do fetichismo da cultura. A breve síntese introdutória aqui apresentada tratou de aspectos já desenvolvidos pelo marxismo e outros apenas esboçados e que necessitam desenvolvimento. O enfoque sintético que realizamos pretendeu apenas apontar os elementos essenciais de uma teoria marxista da cultura, que já avançou em diversas questões, mas que ainda precisa desenvolver aspectos novos e ainda não explorados de forma mais profunda.

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[1] Aqui não nos referimos à complexidade do termo em suas múltiplas definições e concepções ao seu respeito (EAGLETON, 2005; LARAIA, 2007; KAPLAN  e MANNERS, 1981) e sim no interior de uma concepção marxista, pois mesmo no seu sentido mais restrito, envolve uma gama de questões e relações que não são nada simples e fáceis de analisar. A concepção marxista de cultura que trabalhamos aqui não é a de todos os autodeclarados marxistas (que remeteria a um conjunto enorme de obras e autores) e sim apenas a alguns que julgamos contribuir mais com a discussão sobre esse fenômeno e a síntese que nos propomos é restrita a essa delimitação.
[2] A definição, no sentido marxista, é uma síntese que explicita o significado do conceito. Um conceito, por sua vez, é uma expressão da realidade, ou seja, uma reconstituição ideal do real. Um conceito remente a diversos outros conceitos, gerando um universo conceitual, que é a teoria (VIANA, 2007a).
[3] A ideia da cultura como “modo de vida global” será deixada de lado por discordarmos e apontarmos para outra concepção. A cultura no sentido de “atividades intelectuais” (WILLIAMS, 1992) será abordada, mas apenas no caso da sociedade capitalista e como algo que não engloba a totalidade do fenômeno cultural, pois as representações cotidianas e as formas de consciência não consideradas especializadas integram o nosso conceito de cultura. A questão da formação individual vamos abordar brevemente, mas sob outra perspectiva.
[4] Para uma síntese introdutória a respeito do conceito de cultura no pensamento antropológico, há o pequeno livro de Laraia (2001) e existem outras obras de outros autores que tratam disso (KAPLAN e MANNERS, 1981).
[5] Essa definição já foi apresentada por vários autores, mas consideramos que Alfred Weber (1970) foi um dos primeiros a apresentar, no interior da sociologia, essa definição, e depois foi assimilada pelo marxismo (VIANA, 2011). Ela corresponde ao sentido mais restrito apontada por Williams (1992), “atividades intelectuais”. Há uma diferença, no entanto, pois nossa abordagem não se limita a atividades intelectuais “especializadas” e sim toda e qualquer produção intelectual.
[6] Alguns autores buscaram distinguir cultura e ideologia, colocando o primeiro termo no seu sentido amplo e global e o segundo como “domínio ideativo de uma cultura”: “sob essa rubrica, incluímos valores, normas, conhecimento, temas, filosofias e crenças religiosas, sentimentos, princípio éticos, visões de mundo, sistemas e assim por diante” (KAPLAN e MANNERS, 1981, p. 171). Assim, o termo “ideologia” para estes autores é semelhante ao de “cultura”, na nossa concepção.
[7] É necessário ressaltar que aqui “produção intelectual” aparece em sentido amplo e por isso se entende todas as formas de expressão mental dos seres humanos e por isso pode incluir arte, sentimentos, valores, linguagem, etc., e não apenas produções filosóficas e científicas, como alguns pensam.
[8] Tal como Korsch (1983) já havia colocado e é retomado por Althusser (1989) e Canclini (1979), “superestrutura” não é um conceito e sim uma metáfora. A metáfora tinha um caráter ilustrativo para explicitar a relação com o outro termo metafórico, a estrutura, que seria a base do edifício e sem o qual a superestrutura não poderia existir e se sustentar. O termo metafórico “estrutura” convivia com um conceito que abarcava a realidade que ele expressava, que é modo de produção. No entanto, o termo metafórico “superestrutura” não ganhou um conceito de forma tão clara e Marx (1983) usa os termos “formas jurídicas, políticas e ideológicas” para expressar o seu significado. O conceito de formas sociais de regularização (VIANA, 2007), ou, sinteticamente, formas sociais (VIANA, 2016), é o que consideramos mais adequado nesse caso.
[9] A distinção entre os conceitos universais e os conceitos singulares (VIANA, 2007a) é importante na análise marxista. Os conceitos universais são aqueles que expressam relações existentes em todas as sociedades e todas as épocas, como modo de produção, sociedade, cultura, etc. Eles se distinguem dos conceitos singulares que expressam fenômenos que só existem em determinadas sociedades (tais como Estado, classes sociais, ideologia, etc., que só existem nas sociedades de classes) e dos conceitos singulares que expressam relações sociais de apenas uma sociedade (mais-valor, estado capitalista, trabalho assalariado, liberalismo, etc., que só existem na sociedade capitalista).
[10] Em uma sociedade determinada podem coexistir mais de um modo de produção (VIANA, 2007a), tal como se pode deduzir das afirmações de Marx (1988), em O Capital e outras obras, no qual faz referências aos modos de produção subordinados no capitalismo (camponês, por exemplo). No entanto, há um modo de produção dominante, que é o que caracteriza determinada sociedade e é a determinação fundamental das formas sociais (VIANA, 2007a).
[11] No Prefácio de Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx (1983) usa vários termos para explicitar as complexas relações entre modo de produção dominante e formas sociais, como “correspondência”, “elevação”, “contradição”, etc. A leitura rigorosa desse texto é fundamental para a compreensão do materialismo histórico, assim como é essencial evitar as interpretações simplificadoras desse texto. Alguns autores tentaram analisar tal texto rompendo com as simplificações deformadoras do mesmo (VIANA, 2017). Da mesma forma, esse texto é uma síntese e, como toda síntese, não abarca a totalidade das relações sociais que visa sintetizar e por isso não deve ser lido dogmaticamente e como algo autossuficiente, pois sua compreensão (no pensamento de Marx) remete para outras obras e desdobramentos.
[12] A noosfera é composta pelas formas de saber complexo, tais como a ciência, filosofia, teologia, marxismo (VIANA, 2018).
[13] Isso pode ser percebido no antagonismo entre episteme marxista e episteme burguesa (VIANA, 2018).
[14] Com exceção da sua própria produção intelectual, ou seja, sua consciência e produção cultural. A externalidade aqui se refere à cultura produzida pelo conjunto da sociedade.
[15] A assimilação é um processo criativo no qual o pensador extrai de outra concepção algum termo, ideia, etc., e a insere na sua concepção própria. É o caso do marxismo assimilar algum elemento da sociologia de Bourdieu, tal como estamos fazendo aqui. A acomodação é um processo no qual o indivíduo se adequa ao pensamento alheio, seja através do ecletismo ou mera reprodução (VIANA, 2000).
[16] Entenda-se por saber novo a realização de produção intelectual que vai desde o desenvolvimento de uma teoria, análise de acontecimentos históricos e sociais, etc., ou seja, indo do mais simples para o mais complexo. A erudição enciclopédica ajuda nesse processo, mas não garante que seus portadores o efetivem. Um professor que cita muitos autores em sala de aula e nunca escreveu artigo é um desses casos. Por outro lado, Korsch também possuía uma erudição formativa, apesar de sua base intelectual ser, fundamentalmente, o pensamento de Marx. Ele não só inovou na interpretação de Marx, como resgatou, enfatizou e desenvolveu aspectos do marxismo. Os exemplos poderiam se multiplicar e por isso nos contentamos apenas com estes.
[17] Marx não chegou a aprofundar isso, mesmo porque isso passou a ser mais comum após a sua morte, mas Labriola (1979), Korsch (1977) e o jovem Lukács (1989) criticaram tal procedimento e defenderam a autonomia intelectual do marxismo.
[18] Um exemplo pode ser visto em: https://www.revistaforum.com.br/mapeamento/. Apesar dos problemas metodológicos que podem ser apontados em diversas dessas pesquisas (por exemplo, algumas analisam através das palavras utilizadas e essas podem ter significados distintos para grupos diferentes, bem como seu uso depende do contexto, podendo ser favorável ou contrário, o que não pode ser percebido apenas através do registro da palavra utilizada).
[19] A oposição entre teoria e ideologia é esboçada por Marx, ao colocar que os economistas são os representantes ideológicos da burguesia e os socialistas e comunistas os representantes teóricos do proletariado (MARX, 1989). Essa ideia também está presente em Korsch (1977) e vem sendo retomada contemporaneamente (VIANA, 2008).
[20] Seria impossível apresentar, aqui, esses diversos conceitos, bem como outros derivados e elementos relacionados. Para uma compreensão do conceito de episteme, campos mentais, e para o entendimento da episteme burguesa e da episteme marxista, sugerimos a leitura da obra O Modo de Pensar Burguês – Episteme Burguesa e Episteme Marxista (VIANA, 2018).
[21] Como classe autodeterminada, ou seja, “para-si” e não como classe determinada pelo capital, constituída no plano das relações de produção. No caso de classe determinada pelo capital ou “em-si”, o proletariado possui uma “consciência contraditória” (REICH, 1976; GRAMSCI, 1987) e é na luta que vai superando essas contradições e passa para uma consciência revolucionária. O bloco revolucionário, especialmente o marxismo, expressa teoricamente o proletariado como classe autodeterminada e nas épocas revolucionárias há uma confluência e fusão entre ambos. Esse processo, nas experiências históricas concretas, se realizou parcialmente ou mais amplamente, dependendo da radicalidade da luta.
[22] Keesing (1961) cita as teorias idealistas da cultura na pesquisa antropológica, destacando a que aborda a cultura como sistema cognitivo (Goodenough), como sistema estrutural (Lévi-Strauss) e sistema simbólico (Geertz e Schneider). Consideramos que essas concepções são fetichistas, mas a lista nos parece ser muito mais longa na produção antropológica do que a apontada por Keesing.
[23] O paradigma subjetivista começa a surgir a partir de 1969 através de diversas ideologias que passam da ênfase ao holismo e objetivismo do paradigma hegemônico anterior para o particular (sujeito ou “múltiplos sujeitos”) e subjetivismo, tal como o pós-estruturalismo, multiculturalismo, etc.
[24] A obra de Young (2002), A Sociedade Excludente, serve para exemplificar isso ao tratar do caso da criação de identidades essencializadas, que podem ser interpretadas como subprodutos do paradigma subjetivista.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Marxismo e Cultura. In: Práxis Comunal, Belo Horizonte, v.1, n.1, p.13-31, jan./dez. 2018.
Disponível em:
https://seer.ufmg.br/index.php/praxiscomunal/article/view/12802/9382

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