Páginas Especiais

quarta-feira, 7 de março de 2018

EXISTE UM MARXISMO HETERODOXO?


Cristãos: Católicos e ortodoxos

EXISTE UM MARXISMO HETERODOXO?
Nildo Viana

É comum nas discussões sobre marxismo o uso dos termos “ortodoxo” e “heterodoxo”. Esses termos e a suposta existência dessas duas formas de marxismo se popularizaram, embora sem nenhuma reflexão mais profunda. O marxismo ortodoxo é visto pelos “heterodoxos” e supostos críticos do marxismo como algo negativo. Por outro lado, aqueles que se dizem “ortodoxos” se consideram os verdadeiros seguidores de Karl Marx e do marxismo. Alguns destes vão recusar a existência de um marxismo heterodoxo, pois o único marxismo seria o ortodoxo. No fundo, trata-se de uma discussão escolástica e bem distante do marxismo e seus procedimentos teóricos e metodológicos. Por isso se torna útil discutir o significado desses dois termos e se existe realmente um “marxismo heterodoxo”. Vamos iniciar discutindo a origem histórica dos dois termos, realizar uma análise crítica de ambos e encerrar colocando a concepção marxista sobre eles.
A ideia de um “marxismo ortodoxo” surge após a morte de Marx[1]. Após a morte do fundador do marxismo, Engels se tornou o principal representante da continuidade da produção intelectual de Marx e o nome mais respeitado no interior da social-democracia (o conjunto de partidos políticos que se autodenominaram dessa forma – apesar da crítica de Marx – especialmente o Partido Social-Democrata Alemão)[2] e, após sua morte, essa posição foi transferida para Karl Kautsky. Esse se tornou o guardião da “doutrina” marxista e escreveu alguns livros para simplificá-la e divulgá-la, além de acrescentar não só sua interpretação específica, mas também acréscimos (inclusive a aproximação de marxismo e evolucionismo). É nesse contexto que emerge o uso do termo “marxismo ortodoxo”, representado por Kautsky[3]. Este foi, inclusive, um dos adversários do “revisionismo” representado por Bernstein.
A disputa entre “ortodoxos” e “revisionistas” também contou com a ala dissidente da social-democracia, que foi representada, na Holanda, por Pannekoek e Gorter, e, na Alemanha, por Rosa Luxemburgo, divergindo de ambas as tendências. O apoio da social-democracia alemã aos créditos de guerra votados no parlamento abriu uma cisão a nível internacional, emergindo um conjunto de indivíduos, organizações e partidos oriundos das antigas dissidências e/ou novos dissidentes, compondo o que alguns denominaram “socialismo radical”. No interior deste, se destacaram os internacionalistas (Otto Rühle e outros), os espartaquistas (Rosa Luxemburgo, Karl Liebneckt e outros), os bolcheviques (Lênin e seus seguidores russos), entre outros.
Nesse contexto, o socialismo radical acabou se dividindo em diversas tendências até a vitória da Revolução Bolchevique na Rússia. Nesse momento, novas tendências emergiram em oposição ao bolchevismo (os antiparlamentaristas ingleses, os bordiguistas italianos, os comunistas alemães, etc.). O processo se radicalizou até a cisão internacional entre duas concepções que mais se destacaram: os “comunistas de partido”, representantes do leninismo na Rússia e seus adeptos e simpatizantes em outros países, e os “comunistas de conselhos”, defensores dos conselhos operários surgidos na Revolução Alemã como os embriões da futura sociedade comunista. Assim, se os comunistas de partido, o leninismo, atribuía ao partido a função de ser a agente da revolução e o gestor da sociedade socialista, os comunistas de conselhos reconheciam que tal função cabia aos conselhos operários. Os comunistas de conselhos perceberam o significado contrarrevolucionário dos partidos políticos e se tornaram antipartidários e os comunistas de partido elegeram essa forma organizacional como o único meio para a tomada do poder estatal.
A vitória do Partido Bolchevique na Rússia, ao realizar um golpe de estado que resultou na formação de um regime político ditatorial sob um capitalismo de estado (equivocadamente chamado de “socialismo”) acabou gerando a hegemonia do bolchevismo nos meios socialistas e comunistas e, posteriormente, através da força da Rússia no cenário internacional, ocorreu a “bolchevização” dos partidos comunistas. É neste contexto que emerge o novo “marxismo ortodoxo”, já não mais kautskista e sim leninista. Lênin se tornou o novo representante do “marxismo ortodoxo”.
Lukács, em seu período ligado à revolução húngara, divergiu do suposto “marxismo ortodoxo”, colocando que ortodoxia, em matéria de marxismo, se refere ao método (LUKÁCS, 1989). Karl Korsch (1977), por sua vez, vai apresentar uma concepção de marxismo derivada dos escritos de Marx e de Antonio Labriola, marxista italiano, definindo-o como expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado. As concepções de Lukács e Korsch, amplamente criticadas tanto por social-democratas quanto por bolchevistas, entravam em contradição com as duas formas de “marxismo ortodoxo”: a kautskista e a leninista. Kautsky separava a “ciência socialista” do “movimento operário” e apesar de não ter apresentando nenhuma definição de marxismo, a sua exposição sobre as “fontes do marxismo” apontava para entendê-lo como uma “ciência proletária” (contraposta a uma “ciência burguesa”) ou como doutrina sintetizadora da filosofia alemã, economia política inglesa e socialismo francês (KAUTSKY, 2002). Lênin concorda com tais teses, mas apresenta uma definição sintética de marxismo: “o marxismo é o sistema das ideias e da doutrina de Karl Marx” (LÊNIN, 1985, p. 15). A concepção de Lukács aponta para um rompimento com a redução do marxismo ao pensamento de Marx ao eleger o método como o aspecto fundamental. A ortodoxia marxista não seria, portanto, uma discussão apenas sobre o pensamento de Marx, mas sim a partir do método dialético. Essa posição é, ainda problemática, pois vai além de Kautsky e Lênin, mas ainda falta o ser social, a base real e concreta, o “fundamento material”, que gerou o marxismo. É por isso que a concepção de Korsch é a única coerente com o marxismo, pois é a partir da perspectiva do proletariado que se torna possível o método dialético, a obra de Marx, etc. A concepção de Korsch não separa a consciência do ser social e por isso marxismo (autêntico) e proletariado (revolucionário) são inseparáveis[4].
As concepções de Lukács e Korsch, bem com a dos comunistas conselhistas e outras concepções revolucionárias que criticavam tanto a social-democracia quanto o bolchevismo, foram marginalizadas. E é nesse contexto que vai emergir, muito tempo depois, a expressão “marxismo heterodoxo” para se referir aos críticos do que supostamente seria o “marxismo ortodoxo”. No Brasil, essa ideia se popularizou devido a uma publicação de Maurício Tragtenberg, intitulada “O Marxismo Heterodoxo”, que era uma coletânea de autores marginalizadas e esquecidos: Herman Gorter, Jan Wanclaw Makhaïsky e Amadeo Bordiga. Os textos eram caracterizados por críticas e polêmicas com Lênin e continha, cada autor, uma breve introdução de Tragtenberg. O termo “marxismo heterodoxo” usado na capa do livro e a definição de Tragtenberg acabaram gerando o uso desse termo aplicado a todos que não fossem leninistas (ou kautskistas, social-democratas). Segundo Tragtenberg, “definimos marxismo heterodoxo uma leitura de Marx não regida pelos moldes ‘ortodoxos” definidos pelo chamado ‘marxismo-leninismo-stalinismo’ ou ‘marxismo-leninismo-trotskismo’, que fundamentam as análises dos PCs vinculados ao modelo da URSS e fundamentavam até a pouco as análises dos integrantes da IV Internacional antes de sua divisão em três correntes e posterior subdivisão em duas tendências” (TRAGTENBERG, 1981, p. 7).

Isso foi suficiente para alguns simpatizantes das ideias de Tragtenberg usarem o termo, embora de forma mais ampla e sem maior reflexão. O primeiro ponto é que a definição de Tragtenberg remete a uma divergência com o stalinismo e trotskismo e suas “instituições” (URSS e IV Internacional), mas cai no equívoco de considerá-los “ortodoxos”, e com referência ao marxismo e deixa de lado as demais concepções consideradas “ortodoxas” (kautskismo, maoísmo, etc.). No entanto, Tragtenberg não tinha a intenção de elaborar um conceito. A definição que ele apresentou é apenas uma descrição geral de autores que estavam presentes na coletânea, sendo mais uma classificação do que uma tentativa de elaborar um conceito. Os que vieram depois de Tragtenberg é que popularizaram e dogmatizaram um termo usado num contexto específico e sem maior reflexão. O uso desse termo é extremamente problemático e vamos tratar disso a partir de agora.
O primeiro problema em usar o termo “marxismo heterodoxo” é o significado dos termos ortodoxo e heterodoxo. Essas duas palavras possuem origem religiosa e não sem motivo. Aliás, o “marxismo ortodoxo” se aproximava de uma concepção religiosa[5].  O termo ortodoxo vem da união de duas palavras de origem grega, orthos + doxa. Orthos significa “direito”, “reto”, “justo”, “correto”, “exato”. Doxa, por sua vez, significava, originalmente, “crença” ou “opinião” ou, ainda, “crença popular” e “opinião comum”, tal como Platão utilizou o termo. A palavra “doxa” ganhou novo significado posteriormente (alguns indicam que isso já estaria presente na Bíblia hebraica pré-cristã, apesar da veracidade de sua existência ser contestada por outros), passando a significar “glória”[6] e teria reaparecido na tradução grega do “Novo Testamento”.
A palavra ortodoxia é derivada da história do cristianismo, na qual se debatia sobre o cristianismo ortodoxo e que depois vai gerar as igrejas ortodoxas. É nesse contexto que surgem a ideia de ortodoxia, entendida como a doutrina verdadeira ou como “fidelidade à doutrina”. O Concílio de Calcedônia, em 451 D.C., sendo o quarto Concílio de sete, e cujo debate se deu em torno da discussão sobre o monofisismo ou diofisismo de Jesus Cristo, marcou uma cisão no cristianismo. Os defensores do monofisismo apresentavam a ideia de apenas uma natureza de Jesus Cristo e os defensores do diofisismo apresentavam a ideia de dupla natureza, uma humana e outra divina. O Concílio decidiu pelo diofisismo. A partir do século 11, houve a separação entre a Igreja Ortodoxa (também chamada Igreja Católica Ortodoxa) e a Igreja Católica (também chamada de Igreja Católica Apostólica Romana), quando houve o “Grande Cisma” e a excomunhão dos ortodoxos. As Igrejas Ortodoxas, por sua vez, se dividiram entre as calcedonianas (que aceitam o Concílio de Calcedônia) e as orientais (que rejeitam tal Concílio), gerando as igrejas ortodoxas chamadas “calcedonianas” (ou “bizantinas”) e as igrejas ortodoxas orientais, respectivamente.
Toda essa discussão sobre a ortodoxia no cristianismo tem importância no sentido de entender a origem do termo “ortodoxia”. Ela ocorre no âmbito religioso, na disputa por dogmas, tendo por fonte as sagradas escrituras. Por outro lado, por detrás destes exercícios especulativos a respeito das sagradas escrituras, existia uma disputa pelo poder com raízes sociais muito mais profundas, que não cabe aqui discutir. Assim, a ortodoxia é um processo de afirmação de fidelidade à uma doutrina como forma de manter dominação sobre os competidores e fiéis. Toda disputa em torno da ortodoxia se revela uma disputa pelo poder, no sentido de relação de dominação. Essa não se manifesta claramente e por isso é nas disputas em torno dos dogmas e de quem é ortodoxo que ela aparece concretamente.
Um processo semelhante ocorreu com a formação do “marxismo ortodoxo” de Kautsky, através de uma grande organização burocrática denominada Partido Social-Democrata Alemão e o novo “marxismo ortodoxo” de Lênin emergiu a partir de outra organização burocrática, o Partido Operário Social-Democrata Russo, especialmente quando houve a cisão na chamada “Segunda Internacional”, instituição que aglutinava os partidos social-democratas a nível mundial. A disputa entre Kautsky e Lênin era pelo poder nos partidos e a nível internacional e aparecia como disputa interpretativa da “doutrina” (termo muito utilizado por ambos) e por questões táticas.
Essa contextualização histórica e análise da palavra ortodoxia serve para mostrar os pontos problemáticos do seu uso por parte daqueles que se dizem marxistas. A origem religiosa do termo e o significado de “fidelidade à doutrina” não só é problemática em si, mas também por desvirtuar a discussão: a questão passa ser a interpretação dos dogmas e não os interesses de classe do proletariado. A interpretação dos dogmas, por sua vez, é a forma pela qual cada setor da burocracia partidária (entre outras) visa realizar sua disputa, como se fosse apenas uma questão de uma interpretação verdadeira do marxismo, mas que, no fundo, é uma busca do poder de dirigir o partido, o proletariado, a população como um todo.
O heterodoxo, por sua vez, pode ser aquele que quer disputar a ortodoxia (e esse não se assume desta forma) ou então se autodeclara não ortodoxo, desligado da “doutrina”. Assim, se autodenominar “marxista heterodoxo” significa admitir que o kautskismo e/ou o leninismo é marxista e, mais ainda, “ortodoxo”, fiel à doutrina (que, segundo eles, seriam as ideias de Marx). Isso significa uma deformação do marxismo, no sentido de que ele deixa de ser, tal como colocava Korsch, “expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado”, ou seja, uma teoria e como tal, distinto de dogmas e doutrinas. A teoria não é uma doutrina, ideologia, crença, etc., e nem se fundamenta em fidelidade a ideias e pessoas, por mais que elas sejam importantes (e, em alguns casos, são, tal como Marx ou Korsch, mas que requer análise e reflexão para se reconhecer sua importância ou não). A teoria se institui através da pesquisa e da reflexão e não da crença ou fidelidade, seja lá ao que for[7]. Para os ideólogos, a fidelidade à doutrina é o fundamental[8]; para os teóricos, é a consciência teórica é que promove a concordância ou discordância em relação a determinadas ideias. Para os ideólogos pseudomarxistas, a fidelidade garante o acesso à doutrina; para os teóricos marxistas, é a crítica que possibilita o acesso à teoria.
Para o marxismo autêntico, ou seja, não deformado, não se trata de ortodoxia ou heterodoxia e sim ser ou não expressão dos interesses fundamentais do proletariado. O que significa adotar uma posição política, realizar uma análise, defender uma ideia, não por Marx ter supostamente dito (pois, além de tudo, as interpretações, inclusive as mais absurdas e descontextualizadas, podem ser realizadas) e sim por corresponder à verdade e aos interesses de classe do proletariado.
Sem dúvida, Marx é uma referência fundamental, não só por ter sido o fundador do marxismo e por ter lançado as bases epistêmicas (teóricas, metodológicas, etc.) de uma crítica radical do capitalismo e do projeto de uma sociedade pós-capitalista (comunista, autogerida), mas, fundamentalmente, por ter expresso a perspectiva do proletariado, condição de possibilidade para esta produção intelectual. Porém, ele não tratou de tudo e nem podia prever o futuro, assim como se equivocou em algumas questões, como é o caso de todo ser humano. O reconhecimento da obra teórica monumental de Marx faz parte dos interesses de classe do proletariado, mesmo porque o compromisso com a verdade é parte do campo axiomático do marxismo, que expressa tais interesses a partir da perspectiva revolucionária. Depois de Marx, o marxismo pouco se desenvolveu, mas encontrou contribuições importantes que mantiveram a perspectiva do proletariado (Korsch, Pannekoek, Rühle, Mattick, Sylvia Pankhurst, etc.). O marxismo não poderia ser um pensamento cristalizado e estagnado, pois ele busca expressar a realidade e esta é infinita, bem como precisa acompanhar as mudanças históricas, e por isso sempre tem elementos para desenvolver.
O segundo problema é o de que o “marxismo heterodoxo” é inseparável do “marxismo ortodoxo”. Não há como falar de um sem falar de outro: se um não existisse, o outro não poderia existir. Ora, se os utilizadores de tal termo reconhecem que existe um “marxismo heterodoxo”, então eles reconhecem, simultaneamente, que o kautskismo ou o leninismo são o “marxismo ortodoxo”. E as críticas de Marx à social-democracia, dos comunistas conselhistas aos social-democratas e bolcheviques, para ficar em apenas dois exemplos, seriam coisas de “heterodoxos” contra “ortodoxos”. Isso gera um paradoxo: o próprio Marx, o fundador do marxismo, se tornar “heterodoxo”. Seria o mesmo que dizer que Jesus Cristo não era um cristão ortodoxo e sim “heterodoxo”, o que não tem nenhum sentido. Obviamente que essa discussão escolástica é interesse daqueles que realizam disputas burocráticas pelo poder e não daqueles que querem a emancipação humana via autoemancipação proletária ou então de militantes e intelectuais bem-intencionados, mas que falta maior compromisso com o desenvolvimento teórico e a clareza conceitual, elementos fundamentais da luta proletária.
O terceiro problema é que o uso dos termos “marxismo ortodoxo” e “marxismo heterodoxo” não tem fundamentação teórica. Os usos desses termos surgem a partir de uma mera rotulação sem maior reflexão e fundamentação. Aqueles que usam tais termos não trabalham com conceitos explicativos do que estão tratando e, na maioria das vezes, nem sequer definem as palavras que usam (a começar por “marxismo”, com raras exceções). Assim, para se fundamentar teoricamente uma posição a esse respeito, é necessário desenvolver os conceitos de marxismo, ortodoxia, heterodoxia, “marxismo ortodoxo”, “marxismo heterodoxo”, etc. E elaborar um conceito não é apenas criar uma definição, mas sim um processo totalizante, que envolve vários conceitos, e que explicam e expressam determinada realidade (tal como um fenômeno cultural, como é o marxismo).
Uma vez que se reconheça que tais termos são problemáticos e não expressam a realidade, então é necessário discutir quais termos deveriam, por conseguinte, ser utilizados. Historicamente, o que foi apresentado como “marxismo ortodoxo” é um falso marxismo, um pseudomarxismo. E isso se explica pelo fato de que o “marxismo” dominante é o marxismo da classe dominante (GOULDNER, 2014). Assim, o kautskismo, o leninismo, e todos os seus derivados, são formas do pseudomarxismo. O marxismo de Marx, Korsch, Pannekoek, que expressam teoricamente o proletariado, são o marxismo autêntico. Assim, a distinção é entre o autêntico e a falsificação, entre o marxismo (autêntico) e o pseudomarxismo. O marxismo autêntico, por sua vez, não é apenas uma “variante” ou uma “dissidência” do pseudomarxismo (seja o kautskista seja o leninista) e sim uma crítica do mesmo, pois este expressa outra classe social, que não é o proletariado. Logo, ao invés de “brigas de família”, como alguns trotskistas ingênuos imaginam que significa a oposição entre marxismo autêntico e pseudomarxismo, se trata de luta de classes no plano das ideias e da luta política em geral, que se expressa, por exemplo, na concepção da relação da teoria revolucionária com o proletariado, na questão da organização, no que se entende por revolução e sociedade comunista, etc. Se Marx iniciou a crítica ao pseudomarxismo (VIANA, 2017a), os comunistas conselhistas desenvolveram a crítica do kautskismo e leninismo, duas formas mais desenvolvidas do mesmo, assim como diversos outros deram sequência a esse trabalho crítico.
O pseudomarxismo é toda concepção que se diz marxista, mas que não expressa os interesses de classe do movimento operário revolucionário (o que significa que expressa os interesses de outras classes, tal como a burocracia e a intelectualidade), o que se manifesta também por ser uma deformação das ideias essenciais de Marx, o primeiro que expressou tais interesses teoricamente, ou seja, é um falso marxismo, a transformação dessa concepção de teoria em ideologia (VIANA, 2017b). O marxismo autêntico (e o termo “autêntico” é apenas para o diferenciá-lo do inautêntico, ou seja, da falsificação expressa no pseudomarxismo) é expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado, tal como colocou Korsch (1977). O marxismo autêntico e o pseudomarxismo são antagônicos, pois um expressa o proletariado revolucionário, e o outro expressa as classes auxiliares da burguesia, seja se autonomizando ou se subordinando a tal classe.
Assim, o critério para definir o que é pseudomarxismo e o que é marxismo autêntico é a perspectiva de classe que está por detrás de ambas as concepções e como Marx expressava a perspectiva do proletariado, então é inevitável que os pseudomarxistas tentem deformar o seu pensamento para que ele se encaixe em outras perspectivas. Por isso a luta é teórica, pelo resgate do pensamento de Marx e do marxismo autêntico posterior e ele, realizando a interpretação correta dos seus escritos e de sua concepção, bem como a crítica do pseudomarxismo; mas também é uma luta política mais ampla, buscando impedir que a versão deformada de marxismo consiga espaço junto ao proletariado, pois ela é prejudicial e se ela for bem sucedida coloca esta classe à reboque e ao serviço das burocracias partidárias (entre outras). A autoemancipação proletária é uma revolução total. Ela é teórica, e o marxismo autêntico é sua expressão; cultural, na qual o proletariado desenvolve sua consciência revolucionária e se aproxima do desenvolvimento teórico; política, marcada pela recusa das organizações burocráticas ao lado da instauração de organizações autárquicas (formas de auto-organização como os conselhos operários), que são a sua forma de concretização. Através do pseudomarxismo, se conquista o aparato estatal e se reproduz o capital, enquanto que através da luta revolucionária do proletariado, expressa teórica e politicamente pelo marxismo autêntico, se abole tanto o capital quanto o Estado e se instaura a sociedade autogerida, concretizando a emancipação humana.
Por conseguinte, o marxismo autêntico é antagônico ao pseudomarxismo e ao capitalismo em geral. Ele não tem compromisso com a sociedade do presente e sim com a sociedade do futuro. Essa é a razão pela qual pode fazer uma crítica desapiedada do existente e ao mesmo tempo recusar todos os compromissos com esta sociedade e com as migalhas, reformas, alianças conservadoras e reformistas, existentes no capitalismo. O pseudomarxismo, vulgo “marxismo ortodoxo”, por sua vez, está envolvido até a raiz do cabelo com tal sociedade, não consegue ultrapassá-la nem no plano mental de projetar uma nova sociedade, pois chega no máximo ao um capitalismo reformado (distribuição de renda e coisas semelhantes, para os herdeiros de Kautsky; estatização e capitalismo estatal, para os herdeiros de Lênin, etc.).
A conclusão inevitável dessa discussão toda é a de que não existe nenhum “marxismo heterodoxo”, mesmo porque não existe nenhum “marxismo ortodoxo”. O marxismo não é uma religião e nem possui dogmas. O que existe, efetivamente, é um pseudomarxismo que assume várias formas de acordo com os interesses e lutas interburocráticas (leninistas versus social-democratas; trotskistas versus stalinistas; maoístas versus stalinistas, etc.) e um marxismo autêntico, expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado, que combate todas as formas do pseudomarxismo como parte da luta pela libertação humana. Portanto, a luta por uma sociedade que concretize a libertação humana é uma luta contra o pseudomarxismo, que não passa de mais um obstáculo para sua concretização.

Referências

DRAPER, Hall. Lassalle e o Socialismo de Estado. Marxismo e Autogestão. Ano 02, num. 04, jul./dez. 2015.

GOULDNER, Steven. As Metamorfoses do Marxismo. Revista Espaço Livre. Vol. 9, num. 17, 2014.

HAUPT, Georg. Marx e o Marxismo. In: Hobsbawm, E. (Org.). História do Marxismo. Vol. 1. 3ª Edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

KAUTSKY, Karl. As Três Fontes do Marxismo. Rio de Janeiro: Centauro, 2002.

KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.

LÊNIN, W. As Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo. São Paulo: Global, 1985.

LÊNIN, W. O Estado e a revolução. São Paulo: Global, 1987.

LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. 2a edição, Rio de Janeiro: Elfos, 1989.

MAKHAÏSKI, J. W. Ciência Socialista, A Nova Religião dos Intelectuais. In: TRAGTENBERG, Maurício (org.). Marxismo Heterodoxo. São Paulo, Brasiliense, 1981a.

MATTICK, Paul. Kautsky: de Marx a Hitler. In: Mattick, P. e outros. Karl Kautsky e o Marxismo. Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1988

TRAGTENBERG, Maurício (org.). Marxismo Heterodoxo. São Paulo, Brasiliense, 1981.

VIANA, Nildo. Karl Marx: A Crítica Desapiedada do Existente. Curitiba: Prismas, 2017a.

VIANA, Nildo. O Que é Marxismo. Rio de Janeiro: Elo, 2008b.

VIANA, Nildo. Pseudomarxismo: A Transformação do Marxismo em Ideologia. Marxismo e Autogestão. Ano 04, num. 08, jul./dez. 2017b.




[1] A expressão “marxismo” surgiu através de Bakunin, com sentido pejorativo e se referindo aos apoiadores alemães de Marx na Associação Internacional dos Trabalhadores (HAUPT, 1987). Pouco depois o próprio Marx afirmaria que tudo que sabia é que “não era marxista”, justamente para se separar dos tais “seguidores”.
[2] A social-democracia alemã nasceu da fusão de supostos seguidores de Marx (os “marxistas”) e os seguidores de Lassalle (lassalistas), adeptos de um “socialismo de estado” (DRAPER, 2015). Marx e Engels fizeram diversas críticas ao partido nascente e isso foi expresso em cartas e textos de ambos. Após a morte de Marx, Engels manteria algumas críticas, mas se aproximaria cada vez mais dos partidos social-democratas e de sua burocracia.
[3] Paul Mattick (1988) faz uma síntese da evolução de Kautsky que é útil para compreender sua desvinculação completa com as ideias de Marx e com o movimento operário.
[4] A lacuna no pensamento de Korsch se manifesta em não ter aprofundado a discussão sobre teoria (VIANA, 2008), mas sua definição de marxismo é a mais adequada, independente disso.
[5] Makhaïsky (1981), aliás, já alertava que a “ciência socialista” era a “nova religião dos intelectuais”.
[6] A palavra glória teria vários sentidos na bíblia, segundo os pesquisadores, tal como “honra”, “grandeza”, “luz”. No caso da ortodoxia, o sentido geralmente atribuído é o de “luz” ou “brilho”, ou seja, aquilo que pode ser entendido como algo que produz clareza, verdade.
[7] Obviamente que a teoria possui uma base valorativa, expressa no seu campo axiomático (a esse respeito veja O Modo de Pensar Burguês, obra que em breve será publicada), que é sua condição de possibilidade, mas que não é algo “cego” e sim refletido a partir da análise, pesquisa, etc. Esse campo axiomático, que gera o compromisso com a verdade, é o projeto de transformação radical e total das relações sociais, expressando a sociedade do futuro no presente.
[8] Isso pode ser visto em algumas frases de Lênin (1987), tal como a de que só se pode ser marxista admitindo a “ditadura do proletariado”. Os pseudomarxistas aceitam de bom grado esse tipo de colocação. Um marxista autêntico questionaria: o que é ditadura do proletariado? O que esse termo se tornou depois de Marx? Esse termo serve atualmente para a luta do proletariado? Para os leninistas e seu dogmatismo, basta o mestre ter dito e tudo está resolvido, inclusive é o mestre Lênin é quem vai dizer o que significa ditadura do proletariado e todos vão acatar, pois ele é o representante do “marxismo ortodoxo”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário