Cristãos: Católicos e ortodoxos |
EXISTE
UM MARXISMO HETERODOXO?
Nildo Viana
É comum nas discussões
sobre marxismo o uso dos termos “ortodoxo” e “heterodoxo”. Esses termos e a
suposta existência dessas duas formas de marxismo se popularizaram, embora sem
nenhuma reflexão mais profunda. O marxismo ortodoxo é visto pelos “heterodoxos”
e supostos críticos do marxismo como algo negativo. Por outro lado, aqueles que
se dizem “ortodoxos” se consideram os verdadeiros seguidores de Karl Marx e do
marxismo. Alguns destes vão recusar a existência de um marxismo heterodoxo,
pois o único marxismo seria o ortodoxo. No fundo, trata-se de uma discussão
escolástica e bem distante do marxismo e seus procedimentos teóricos e
metodológicos. Por isso se torna útil discutir o significado desses dois termos
e se existe realmente um “marxismo heterodoxo”. Vamos iniciar discutindo a
origem histórica dos dois termos, realizar uma análise crítica de ambos e
encerrar colocando a concepção marxista sobre eles.
A ideia de um “marxismo
ortodoxo” surge após a morte de Marx[1]. Após a morte do fundador
do marxismo, Engels se tornou o principal representante da continuidade da
produção intelectual de Marx e o nome mais respeitado no interior da
social-democracia (o conjunto de partidos políticos que se autodenominaram
dessa forma – apesar da crítica de Marx – especialmente o Partido
Social-Democrata Alemão)[2] e, após sua morte, essa
posição foi transferida para Karl Kautsky. Esse se tornou o guardião da
“doutrina” marxista e escreveu alguns livros para simplificá-la e divulgá-la,
além de acrescentar não só sua interpretação específica, mas também acréscimos
(inclusive a aproximação de marxismo e evolucionismo). É nesse contexto que
emerge o uso do termo “marxismo ortodoxo”, representado por Kautsky[3]. Este foi, inclusive, um
dos adversários do “revisionismo” representado por Bernstein.
A disputa entre
“ortodoxos” e “revisionistas” também contou com a ala dissidente da
social-democracia, que foi representada, na Holanda, por Pannekoek e Gorter, e,
na Alemanha, por Rosa Luxemburgo, divergindo de ambas as tendências. O apoio da
social-democracia alemã aos créditos de guerra votados no parlamento abriu uma
cisão a nível internacional, emergindo um conjunto de indivíduos, organizações
e partidos oriundos das antigas dissidências e/ou novos dissidentes, compondo o
que alguns denominaram “socialismo radical”. No interior deste, se destacaram
os internacionalistas (Otto Rühle e outros), os espartaquistas (Rosa
Luxemburgo, Karl Liebneckt e outros), os bolcheviques (Lênin e seus seguidores
russos), entre outros.
Nesse contexto, o
socialismo radical acabou se dividindo em diversas tendências até a vitória da
Revolução Bolchevique na Rússia. Nesse momento, novas tendências emergiram em
oposição ao bolchevismo (os antiparlamentaristas ingleses, os bordiguistas italianos,
os comunistas alemães, etc.). O processo se radicalizou até a cisão
internacional entre duas concepções que mais se destacaram: os “comunistas de
partido”, representantes do leninismo na Rússia e seus adeptos e simpatizantes
em outros países, e os “comunistas de conselhos”, defensores dos conselhos
operários surgidos na Revolução Alemã como os embriões da futura sociedade
comunista. Assim, se os comunistas de partido, o leninismo, atribuía ao partido
a função de ser a agente da revolução e o gestor da sociedade socialista, os
comunistas de conselhos reconheciam que tal função cabia aos conselhos
operários. Os comunistas de conselhos perceberam o significado
contrarrevolucionário dos partidos políticos e se tornaram antipartidários e os
comunistas de partido elegeram essa forma organizacional como o único meio para
a tomada do poder estatal.
A vitória do Partido
Bolchevique na Rússia, ao realizar um golpe de estado que resultou na formação
de um regime político ditatorial sob um capitalismo de estado (equivocadamente
chamado de “socialismo”) acabou gerando a hegemonia do bolchevismo nos meios
socialistas e comunistas e, posteriormente, através da força da Rússia no
cenário internacional, ocorreu a “bolchevização” dos partidos comunistas. É
neste contexto que emerge o novo “marxismo ortodoxo”, já não mais kautskista e
sim leninista. Lênin se tornou o novo representante do “marxismo ortodoxo”.
Lukács, em seu período
ligado à revolução húngara, divergiu do suposto “marxismo ortodoxo”, colocando
que ortodoxia, em matéria de marxismo, se refere ao método (LUKÁCS, 1989). Karl
Korsch (1977), por sua vez, vai apresentar uma concepção de marxismo derivada
dos escritos de Marx e de Antonio Labriola, marxista italiano, definindo-o como
expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado. As concepções de
Lukács e Korsch, amplamente criticadas tanto por social-democratas quanto por
bolchevistas, entravam em contradição com as duas formas de “marxismo
ortodoxo”: a kautskista e a leninista. Kautsky separava a “ciência socialista”
do “movimento operário” e apesar de não ter apresentando nenhuma definição de
marxismo, a sua exposição sobre as “fontes do marxismo” apontava para
entendê-lo como uma “ciência proletária” (contraposta a uma “ciência burguesa”)
ou como doutrina sintetizadora da filosofia alemã, economia política inglesa e
socialismo francês (KAUTSKY, 2002). Lênin concorda com tais teses, mas
apresenta uma definição sintética de marxismo: “o marxismo é o sistema das
ideias e da doutrina de Karl Marx” (LÊNIN, 1985, p. 15). A concepção de Lukács
aponta para um rompimento com a redução do marxismo ao pensamento de Marx ao
eleger o método como o aspecto fundamental. A ortodoxia marxista não seria,
portanto, uma discussão apenas sobre o pensamento de Marx, mas sim a partir do
método dialético. Essa posição é, ainda problemática, pois vai além de Kautsky
e Lênin, mas ainda falta o ser social, a base real e concreta, o “fundamento
material”, que gerou o marxismo. É por isso que a concepção de Korsch é a única
coerente com o marxismo, pois é a partir da perspectiva do proletariado que se
torna possível o método dialético, a obra de Marx, etc. A concepção de Korsch não
separa a consciência do ser social e por isso marxismo (autêntico) e
proletariado (revolucionário) são inseparáveis[4].
As concepções de Lukács e
Korsch, bem com a dos comunistas conselhistas e outras concepções
revolucionárias que criticavam tanto a social-democracia quanto o bolchevismo,
foram marginalizadas. E é nesse contexto que vai emergir, muito tempo depois, a
expressão “marxismo heterodoxo” para se referir aos críticos do que
supostamente seria o “marxismo ortodoxo”. No Brasil, essa ideia se popularizou
devido a uma publicação de Maurício Tragtenberg, intitulada “O Marxismo Heterodoxo”, que era uma
coletânea de autores marginalizadas e esquecidos: Herman Gorter, Jan Wanclaw Makhaïsky
e Amadeo Bordiga. Os textos eram caracterizados por críticas e polêmicas com
Lênin e continha, cada autor, uma breve introdução de Tragtenberg. O termo
“marxismo heterodoxo” usado na capa do livro e a definição de Tragtenberg
acabaram gerando o uso desse termo aplicado a todos que não fossem leninistas
(ou kautskistas, social-democratas). Segundo Tragtenberg, “definimos marxismo
heterodoxo uma leitura de Marx não regida pelos moldes ‘ortodoxos” definidos
pelo chamado ‘marxismo-leninismo-stalinismo’ ou ‘marxismo-leninismo-trotskismo’,
que fundamentam as análises dos PCs vinculados ao modelo da URSS e
fundamentavam até a pouco as análises dos integrantes da IV Internacional antes
de sua divisão em três correntes e posterior subdivisão em duas tendências”
(TRAGTENBERG, 1981, p. 7).
Isso foi suficiente para
alguns simpatizantes das ideias de Tragtenberg usarem o termo, embora de forma
mais ampla e sem maior reflexão. O primeiro ponto é que a definição de Tragtenberg
remete a uma divergência com o stalinismo e trotskismo e suas “instituições”
(URSS e IV Internacional), mas cai no equívoco de considerá-los “ortodoxos”, e
com referência ao marxismo e deixa de lado as demais concepções consideradas “ortodoxas”
(kautskismo, maoísmo, etc.). No entanto, Tragtenberg não tinha a intenção de elaborar
um conceito. A definição que ele apresentou é apenas uma descrição geral de
autores que estavam presentes na coletânea, sendo mais uma classificação do que
uma tentativa de elaborar um conceito. Os que vieram depois de Tragtenberg é
que popularizaram e dogmatizaram um termo usado num contexto específico e sem
maior reflexão. O uso desse termo é extremamente problemático e vamos tratar
disso a partir de agora.
O primeiro problema em
usar o termo “marxismo heterodoxo” é o significado dos termos ortodoxo e
heterodoxo. Essas duas palavras possuem origem religiosa e não sem motivo.
Aliás, o “marxismo ortodoxo” se aproximava de uma concepção religiosa[5]. O termo ortodoxo vem da união de duas palavras
de origem grega, orthos + doxa. Orthos significa “direito”, “reto”, “justo”,
“correto”, “exato”. Doxa, por sua vez, significava, originalmente, “crença” ou
“opinião” ou, ainda, “crença popular” e “opinião comum”, tal como Platão
utilizou o termo. A palavra “doxa” ganhou novo significado posteriormente
(alguns indicam que isso já estaria presente na Bíblia hebraica pré-cristã, apesar
da veracidade de sua existência ser contestada por outros), passando a
significar “glória”[6]
e teria reaparecido na tradução grega do “Novo Testamento”.
A palavra ortodoxia é
derivada da história do cristianismo, na qual se debatia sobre o cristianismo
ortodoxo e que depois vai gerar as igrejas ortodoxas. É nesse contexto que
surgem a ideia de ortodoxia, entendida como a doutrina verdadeira ou como “fidelidade
à doutrina”. O Concílio de Calcedônia, em 451 D.C., sendo o quarto Concílio de
sete, e cujo debate se deu em torno da discussão sobre o monofisismo ou
diofisismo de Jesus Cristo, marcou uma cisão no cristianismo. Os defensores do
monofisismo apresentavam a ideia de apenas uma natureza de Jesus Cristo e os
defensores do diofisismo apresentavam a ideia de dupla natureza, uma humana e
outra divina. O Concílio decidiu pelo diofisismo. A partir do século 11, houve
a separação entre a Igreja Ortodoxa (também chamada Igreja Católica Ortodoxa) e
a Igreja Católica (também chamada de Igreja Católica Apostólica Romana), quando
houve o “Grande Cisma” e a excomunhão dos ortodoxos. As Igrejas Ortodoxas, por
sua vez, se dividiram entre as calcedonianas (que aceitam o Concílio de
Calcedônia) e as orientais (que rejeitam tal Concílio), gerando as igrejas
ortodoxas chamadas “calcedonianas” (ou “bizantinas”) e as igrejas ortodoxas
orientais, respectivamente.
Toda essa discussão sobre
a ortodoxia no cristianismo tem importância no sentido de entender a origem do
termo “ortodoxia”. Ela ocorre no âmbito religioso, na disputa por dogmas, tendo
por fonte as sagradas escrituras. Por outro lado, por detrás destes exercícios
especulativos a respeito das sagradas escrituras, existia uma disputa pelo
poder com raízes sociais muito mais profundas, que não cabe aqui discutir. Assim,
a ortodoxia é um processo de afirmação de fidelidade à uma doutrina como forma
de manter dominação sobre os competidores e fiéis. Toda disputa em torno da
ortodoxia se revela uma disputa pelo poder, no sentido de relação de dominação.
Essa não se manifesta claramente e por isso é nas disputas em torno dos dogmas
e de quem é ortodoxo que ela aparece concretamente.
Um processo semelhante
ocorreu com a formação do “marxismo ortodoxo” de Kautsky, através de uma grande
organização burocrática denominada Partido Social-Democrata Alemão e o novo
“marxismo ortodoxo” de Lênin emergiu a partir de outra organização burocrática,
o Partido Operário Social-Democrata Russo, especialmente quando houve a cisão
na chamada “Segunda Internacional”, instituição que aglutinava os partidos
social-democratas a nível mundial. A disputa entre Kautsky e Lênin era pelo
poder nos partidos e a nível internacional e aparecia como disputa interpretativa
da “doutrina” (termo muito utilizado por ambos) e por questões táticas.
Essa contextualização
histórica e análise da palavra ortodoxia serve para mostrar os pontos
problemáticos do seu uso por parte daqueles que se dizem marxistas. A origem
religiosa do termo e o significado de “fidelidade à doutrina” não só é
problemática em si, mas também por desvirtuar a discussão: a questão passa ser
a interpretação dos dogmas e não os interesses de classe do proletariado. A
interpretação dos dogmas, por sua vez, é a forma pela qual cada setor da
burocracia partidária (entre outras) visa realizar sua disputa, como se fosse
apenas uma questão de uma interpretação verdadeira do marxismo, mas que, no
fundo, é uma busca do poder de dirigir o partido, o proletariado, a população
como um todo.
O heterodoxo, por sua
vez, pode ser aquele que quer disputar a ortodoxia (e esse não se assume desta
forma) ou então se autodeclara não ortodoxo, desligado da “doutrina”. Assim, se
autodenominar “marxista heterodoxo” significa admitir que o kautskismo e/ou o
leninismo é marxista e, mais ainda, “ortodoxo”, fiel à doutrina (que, segundo
eles, seriam as ideias de Marx). Isso significa uma deformação do marxismo, no
sentido de que ele deixa de ser, tal como colocava Korsch, “expressão teórica
do movimento revolucionário do proletariado”, ou seja, uma teoria e como tal,
distinto de dogmas e doutrinas. A teoria não é uma doutrina, ideologia, crença,
etc., e nem se fundamenta em fidelidade a ideias e pessoas, por mais que elas
sejam importantes (e, em alguns casos, são, tal como Marx ou Korsch, mas que
requer análise e reflexão para se reconhecer sua importância ou não). A teoria
se institui através da pesquisa e da reflexão e não da crença ou fidelidade, seja
lá ao que for[7].
Para os ideólogos, a fidelidade à doutrina é o fundamental[8]; para os teóricos, é a consciência
teórica é que promove a concordância ou discordância em relação a determinadas
ideias. Para os ideólogos pseudomarxistas, a fidelidade garante o acesso à
doutrina; para os teóricos marxistas, é a crítica que possibilita o acesso à
teoria.
Para o marxismo
autêntico, ou seja, não deformado, não se trata de ortodoxia ou heterodoxia e
sim ser ou não expressão dos interesses fundamentais do proletariado. O que
significa adotar uma posição política, realizar uma análise, defender uma
ideia, não por Marx ter supostamente dito (pois, além de tudo, as
interpretações, inclusive as mais absurdas e descontextualizadas, podem ser
realizadas) e sim por corresponder à verdade e aos interesses de classe do
proletariado.
Sem dúvida, Marx é uma
referência fundamental, não só por ter sido o fundador do marxismo e por ter
lançado as bases epistêmicas (teóricas, metodológicas, etc.) de uma crítica
radical do capitalismo e do projeto de uma sociedade pós-capitalista
(comunista, autogerida), mas, fundamentalmente, por ter expresso a perspectiva
do proletariado, condição de possibilidade para esta produção intelectual.
Porém, ele não tratou de tudo e nem podia prever o futuro, assim como se
equivocou em algumas questões, como é o caso de todo ser humano. O
reconhecimento da obra teórica monumental de Marx faz parte dos interesses de
classe do proletariado, mesmo porque o compromisso com a verdade é parte do
campo axiomático do marxismo, que expressa tais interesses a partir da
perspectiva revolucionária. Depois de Marx, o marxismo pouco se desenvolveu,
mas encontrou contribuições importantes que mantiveram a perspectiva do proletariado
(Korsch, Pannekoek, Rühle, Mattick, Sylvia Pankhurst, etc.). O marxismo não
poderia ser um pensamento cristalizado e estagnado, pois ele busca expressar a
realidade e esta é infinita, bem como precisa acompanhar as mudanças
históricas, e por isso sempre tem elementos para desenvolver.
O segundo problema é o de
que o “marxismo heterodoxo” é inseparável do “marxismo ortodoxo”. Não há como
falar de um sem falar de outro: se um não existisse, o outro não poderia
existir. Ora, se os utilizadores de tal termo reconhecem que existe um
“marxismo heterodoxo”, então eles reconhecem, simultaneamente, que o kautskismo
ou o leninismo são o “marxismo ortodoxo”. E as críticas de Marx à
social-democracia, dos comunistas conselhistas aos social-democratas e
bolcheviques, para ficar em apenas dois exemplos, seriam coisas de
“heterodoxos” contra “ortodoxos”. Isso gera um paradoxo: o próprio Marx, o
fundador do marxismo, se tornar “heterodoxo”. Seria o mesmo que dizer que Jesus
Cristo não era um cristão ortodoxo e sim “heterodoxo”, o que não tem nenhum
sentido. Obviamente que essa discussão escolástica é interesse daqueles que
realizam disputas burocráticas pelo poder e não daqueles que querem a
emancipação humana via autoemancipação proletária ou então de militantes e
intelectuais bem-intencionados, mas que falta maior compromisso com o desenvolvimento
teórico e a clareza conceitual, elementos fundamentais da luta proletária.
O terceiro problema é que
o uso dos termos “marxismo ortodoxo” e “marxismo heterodoxo” não tem
fundamentação teórica. Os usos desses termos surgem a partir de uma mera
rotulação sem maior reflexão e fundamentação. Aqueles que usam tais termos não
trabalham com conceitos explicativos do que estão tratando e, na maioria das
vezes, nem sequer definem as palavras que usam (a começar por “marxismo”, com
raras exceções). Assim, para se fundamentar teoricamente uma posição a esse
respeito, é necessário desenvolver os conceitos de marxismo, ortodoxia,
heterodoxia, “marxismo ortodoxo”, “marxismo heterodoxo”, etc. E elaborar um
conceito não é apenas criar uma definição, mas sim um processo totalizante, que
envolve vários conceitos, e que explicam e expressam determinada realidade (tal
como um fenômeno cultural, como é o marxismo).
Uma vez que se reconheça que
tais termos são problemáticos e não expressam a realidade, então é necessário
discutir quais termos deveriam, por conseguinte, ser utilizados. Historicamente,
o que foi apresentado como “marxismo ortodoxo” é um falso marxismo, um
pseudomarxismo. E isso se explica pelo fato de que o “marxismo” dominante é o marxismo da classe dominante (GOULDNER, 2014).
Assim, o kautskismo, o leninismo, e todos os seus derivados, são formas do
pseudomarxismo. O marxismo de Marx, Korsch, Pannekoek, que expressam
teoricamente o proletariado, são o marxismo autêntico. Assim, a distinção é
entre o autêntico e a falsificação, entre o marxismo (autêntico) e o
pseudomarxismo. O marxismo autêntico, por sua vez, não é apenas uma “variante”
ou uma “dissidência” do pseudomarxismo (seja o kautskista seja o leninista) e
sim uma crítica do mesmo, pois este expressa outra classe social, que não é o
proletariado. Logo, ao invés de “brigas de família”, como alguns trotskistas
ingênuos imaginam que significa a oposição entre marxismo autêntico e
pseudomarxismo, se trata de luta de classes no plano das ideias e da luta
política em geral, que se expressa, por exemplo, na concepção da relação da
teoria revolucionária com o proletariado, na questão da organização, no que se
entende por revolução e sociedade comunista, etc. Se Marx iniciou a crítica ao
pseudomarxismo (VIANA, 2017a), os comunistas conselhistas desenvolveram a
crítica do kautskismo e leninismo, duas formas mais desenvolvidas do mesmo,
assim como diversos outros deram sequência a esse trabalho crítico.
O pseudomarxismo é toda concepção
que se diz marxista, mas que não expressa os interesses de classe do movimento operário
revolucionário (o que significa que expressa os interesses de outras classes,
tal como a burocracia e a intelectualidade), o que se manifesta também por ser uma
deformação das ideias essenciais de Marx, o primeiro que expressou tais
interesses teoricamente, ou seja, é um falso marxismo, a transformação dessa concepção
de teoria em ideologia (VIANA, 2017b). O marxismo autêntico (e o termo “autêntico”
é apenas para o diferenciá-lo do inautêntico, ou seja, da falsificação expressa
no pseudomarxismo) é expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado,
tal como colocou Korsch (1977). O marxismo autêntico e o pseudomarxismo são antagônicos,
pois um expressa o proletariado revolucionário, e o outro expressa as classes
auxiliares da burguesia, seja se autonomizando ou se subordinando a tal classe.
Assim, o critério para
definir o que é pseudomarxismo e o que é marxismo autêntico é a perspectiva de
classe que está por detrás de ambas as concepções e como Marx expressava a
perspectiva do proletariado, então é inevitável que os pseudomarxistas tentem
deformar o seu pensamento para que ele se encaixe em outras perspectivas. Por
isso a luta é teórica, pelo resgate do pensamento de Marx e do marxismo
autêntico posterior e ele, realizando a interpretação correta dos seus escritos
e de sua concepção, bem como a crítica do pseudomarxismo; mas também é uma luta
política mais ampla, buscando impedir que a versão deformada de marxismo
consiga espaço junto ao proletariado, pois ela é prejudicial e se ela for bem
sucedida coloca esta classe à reboque e ao serviço das burocracias partidárias
(entre outras). A autoemancipação proletária é uma revolução total. Ela é
teórica, e o marxismo autêntico é sua expressão; cultural, na qual o
proletariado desenvolve sua consciência revolucionária e se aproxima do
desenvolvimento teórico; política, marcada pela recusa das organizações
burocráticas ao lado da instauração de organizações autárquicas (formas de
auto-organização como os conselhos operários), que são a sua forma de
concretização. Através do pseudomarxismo, se conquista o aparato estatal e se
reproduz o capital, enquanto que através da luta revolucionária do
proletariado, expressa teórica e politicamente pelo marxismo autêntico, se
abole tanto o capital quanto o Estado e se instaura a sociedade autogerida,
concretizando a emancipação humana.
Por conseguinte, o
marxismo autêntico é antagônico ao pseudomarxismo e ao capitalismo em geral.
Ele não tem compromisso com a sociedade do presente e sim com a sociedade do
futuro. Essa é a razão pela qual pode fazer uma crítica desapiedada do
existente e ao mesmo tempo recusar todos os compromissos com esta sociedade e
com as migalhas, reformas, alianças conservadoras e reformistas, existentes no capitalismo.
O pseudomarxismo, vulgo “marxismo ortodoxo”, por sua vez, está envolvido até a
raiz do cabelo com tal sociedade, não consegue ultrapassá-la nem no plano
mental de projetar uma nova sociedade, pois chega no máximo ao um capitalismo
reformado (distribuição de renda e coisas semelhantes, para os herdeiros de
Kautsky; estatização e capitalismo estatal, para os herdeiros de Lênin, etc.).
A conclusão inevitável
dessa discussão toda é a de que não existe nenhum “marxismo heterodoxo”, mesmo
porque não existe nenhum “marxismo ortodoxo”. O marxismo não é uma religião e
nem possui dogmas. O que existe, efetivamente, é um pseudomarxismo que assume
várias formas de acordo com os interesses e lutas interburocráticas (leninistas
versus social-democratas; trotskistas versus stalinistas; maoístas versus
stalinistas, etc.) e um marxismo autêntico, expressão teórica do movimento
revolucionário do proletariado, que combate todas as formas do pseudomarxismo
como parte da luta pela libertação humana. Portanto, a luta por uma sociedade
que concretize a libertação humana é uma luta contra o pseudomarxismo, que não passa
de mais um obstáculo para sua concretização.
Referências
DRAPER, Hall. Lassalle e o Socialismo de Estado.
Marxismo e Autogestão. Ano 02, num.
04, jul./dez. 2015.
GOULDNER,
Steven. As Metamorfoses do Marxismo. Revista
Espaço Livre. Vol. 9, num. 17, 2014.
HAUPT, Georg. Marx e o Marxismo. In: Hobsbawm, E. (Org.). História do Marxismo. Vol. 1. 3ª Edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
KAUTSKY,
Karl. As Três Fontes do Marxismo. Rio
de Janeiro: Centauro, 2002.
KORSCH,
Karl. Marxismo e Filosofia. Porto:
Afrontamento, 1977.
LÊNIN, W. As
Três Fontes e as Três Partes Constitutivas do Marxismo. São Paulo: Global,
1985.
LÊNIN, W. O Estado e a revolução. São Paulo:
Global, 1987.
LUKÁCS, Georg. História
e Consciência de Classe. 2a edição, Rio de Janeiro: Elfos, 1989.
MAKHAÏSKI,
J. W. Ciência Socialista, A Nova Religião dos Intelectuais. In: TRAGTENBERG,
Maurício (org.). Marxismo Heterodoxo.
São Paulo, Brasiliense, 1981a.
MATTICK, Paul. Kautsky: de Marx a Hitler. In: Mattick, P. e outros. Karl Kautsky e o Marxismo. Belo Horizonte,
Oficina de Livros, 1988
TRAGTENBERG, Maurício (org.). Marxismo Heterodoxo. São Paulo,
Brasiliense, 1981.
VIANA, Nildo. Karl Marx: A Crítica Desapiedada do Existente. Curitiba: Prismas,
2017a.
VIANA, Nildo. O Que é Marxismo. Rio de Janeiro: Elo,
2008b.
VIANA, Nildo. Pseudomarxismo: A
Transformação do Marxismo em Ideologia. Marxismo
e Autogestão. Ano 04, num. 08, jul./dez. 2017b.
[1] A expressão “marxismo” surgiu
através de Bakunin, com sentido pejorativo e se referindo aos apoiadores
alemães de Marx na Associação Internacional dos Trabalhadores (HAUPT, 1987).
Pouco depois o próprio Marx afirmaria que tudo que sabia é que “não era
marxista”, justamente para se separar dos tais “seguidores”.
[2] A social-democracia alemã nasceu
da fusão de supostos seguidores de Marx (os “marxistas”) e os seguidores de
Lassalle (lassalistas), adeptos de um “socialismo de estado” (DRAPER, 2015).
Marx e Engels fizeram diversas críticas ao partido nascente e isso foi expresso
em cartas e textos de ambos. Após a morte de Marx, Engels manteria algumas críticas,
mas se aproximaria cada vez mais dos partidos social-democratas e de sua burocracia.
[3] Paul Mattick (1988) faz uma
síntese da evolução de Kautsky que é útil para compreender sua desvinculação
completa com as ideias de Marx e com o movimento operário.
[4] A lacuna no pensamento de Korsch se
manifesta em não ter aprofundado a discussão sobre teoria (VIANA, 2008), mas sua
definição de marxismo é a mais adequada, independente disso.
[5] Makhaïsky (1981), aliás, já
alertava que a “ciência socialista” era a “nova religião dos intelectuais”.
[6] A palavra glória teria vários
sentidos na bíblia, segundo os pesquisadores, tal como “honra”, “grandeza”,
“luz”. No caso da ortodoxia, o sentido geralmente atribuído é o de “luz” ou
“brilho”, ou seja, aquilo que pode ser entendido como algo que produz clareza,
verdade.
[7] Obviamente que a teoria possui uma
base valorativa, expressa no seu campo axiomático (a esse respeito veja O Modo de Pensar Burguês, obra que em
breve será publicada), que é sua condição de possibilidade, mas que não é algo “cego”
e sim refletido a partir da análise, pesquisa, etc. Esse campo axiomático, que gera
o compromisso com a verdade, é o projeto de transformação radical e total das relações
sociais, expressando a sociedade do futuro no presente.
[8] Isso pode ser visto em algumas
frases de Lênin (1987), tal como a de que só se pode ser marxista admitindo a “ditadura
do proletariado”. Os pseudomarxistas aceitam de bom grado esse tipo de colocação.
Um marxista autêntico questionaria: o que é ditadura do proletariado? O que
esse termo se tornou depois de Marx? Esse termo serve atualmente para a luta do
proletariado? Para os leninistas e seu dogmatismo, basta o mestre ter dito e
tudo está resolvido, inclusive é o mestre Lênin é quem vai dizer o que
significa ditadura do proletariado e todos vão acatar, pois ele é o
representante do “marxismo ortodoxo”.
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