ANÁLISE MARXISTA DE
CONJUNTURA
Nildo Viana
Um dos temas recorrentes para os
militantes políticos é o da análise de conjuntura. Em movimentos grevistas nas
universidades, há quem reivindique um responsável para realizar tal análise. Os
congressos partidários, estudantis e sindicais são sempre permeados por
supostas análises de conjuntura. Estes, quando possuem as famosas “teses”, são
sempre precedidos de pretensas (e muitas vezes extensas) “análises de
conjuntura”. Nessas, proliferam dados estatísticos, geralmente sobre economia,
e/ou considerações sobre o governo e suas políticas estatais.
É possível realizar diversos
questionamentos a tais procedimentos. Deixaremos isso para o final, quando
apresentarmos a crítica ao conjunturalismo. Essa é uma parte complementar do
presente trabalho, cujo objetivo é muito mais apresentar a concepção marxista
de análise da conjuntura do que os usos e abusos, bem como equívocos, dos
supostos “analistas da conjuntura”.
O ponto de partida da concepção
marxista de análise de conjuntura é esclarecer o que significa isso. Em outras
palavras, o primeiro elemento que deve ser tratado é: o que é análise de
conjuntura? E derivado desta questão inicial, emergem inúmeras outras. Porém,
não iniciaremos respondendo tal questão. Vamos iniciar apresentando os
pressupostos da análise marxista da conjuntura e somente após tal apresentação é
que abordaremos a questão do que significa isso e como é o seu procedimento,
bem como outros elementos derivados.
Pressupostos da análise marxista da conjuntura
A análise marxista da conjuntura
tem alguns pressupostos. Seremos breves na exposição desses pressupostos, que
são, fundamentalmente, quatro: o método dialético, o materialismo histórico, a
teoria do capitalismo e a perspectiva do proletariado. Esses quatro elementos
são inseparáveis e por isso estão presentes em toda e qualquer análise de
conjuntura que se pretenda marxista.
O método dialético é um elemento
indispensável para qualquer análise marxista da conjuntura. Obviamente que um
indivíduo concreto pode utilizá-lo de forma refletida ou irrefletida. Para quem
tem domínio do método e faz parte do seu modo de pensar[1],
então é algo realizado espontaneamente, mas para quem não tem, é preciso estar
atento para conseguir realizar uma análise dialética. Aqui não será possível
realizar uma discussão sobre o método dialético, mas tão somente destacar sua
importância e apontar quais elementos do referido método são importantes para
uma análise da conjuntura.
Algumas categorias da dialética
são fundamentais, pois permitem ultrapassar o imaginário (representações
cotidianas ilusórias) e a ideologia. As categorias de totalidade, determinação
fundamental e múltiplas determinações são fundamentais em uma análise de
conjuntura, pois consegue estabelecer uma percepção de conjunto que, ao mesmo
tempo, expressa o que é fundamental e os demais aspectos da realidade, sem
tomar estes como o principal. A percepção da essência (determinação
fundamental) é condição para a compreensão da existência (múltiplas
determinações) e para evitar a mera reprodução mental da aparência (tal como
faz o imaginário e as ideologias)[2].
O método dialético é inseparável
do materialismo histórico, da perspectiva do proletariado e da teoria do
capitalismo. O materialismo histórico é uma teoria da história e da sociedade
que traz a percepção de diversos aspectos da realidade, tais como os conceitos
de sociedade, modo de produção capitalista, relações de produção, Estado,
classes sociais, luta de classes, cultura, consciência, etc. No entanto, não se
trata de conceitos separados ou separáveis. Esses conceitos, em si, apontam
para uma determinada percepção da realidade, mas remetem para outros conceitos
e apresentam uma explicação da realidade social. O materialismo histórico estabelece
uma reflexão sobre a relação entre modo de produção e formas sociais, a
compreensão das formas de consciência e seu significado na luta de classes,
etc.
O materialismo histórico
apresenta a primazia do modo de produção e das relações de classes que emergem
a partir dele, como elemento fundamental para a compreensão da dinâmica social.
Essas relações de classes são relações de exploração, luta de classes. O
conceito de luta de classes é o que revela a determinação fundamental de uma
sociedade e não pode estar ausente de nenhuma análise. A conjuntura fica
incompreensível sem o conceito de luta de classes e de sociedade[3].
Em termos de método dialético, a luta de classes é equivalente à determinação
fundamental e a sociedade à categoria de totalidade, que reúne as múltiplas
determinações num caso concreto.
A teoria do capitalismo é
expressão do materialismo histórico no caso concreto da sociedade atual. O
conceito de sociedade é importante e pressuposto, mas é preciso chegar a um
nível maior de concreticidade e isso nos leva a uma análise da sociedade
capitalista e do modo de produção capitalista que é sua determinação fundamental,
constituindo as classes fundamentais, burguesia e proletariado, o que pressupõe
compreender a forma específica de exploração capitalista (produção de
mais-valor) e suas consequências (acumulação de capital, etc.).
Assim, é importante a compreensão
do modo de produção capitalista, da acumulação de capital, essência e dinâmica
do estado capitalista, classes sociais do capitalismo (burguesia, proletariado,
burocracia, etc.), regimes de acumulação, blocos sociais, etc. O conceito de
classes sociais acaba se tornando fundamental, pois é através da análise da dinâmica
da luta de classes no capitalismo é que se pode superar a aparência e os
equívocos analíticos. As classes sociais e os interesses vinculados a elas são
elementos fundamentais para entender a dinâmica social e os processos sociais
mais concretos, incluindo as subdivisões (frações de classes) e elementos
derivados (blocos sociais, hegemonia, etc.), tais como as ações estatais,
partidárias, movimentos sociais, etc. Assim, o conceito de classes sociais
(elemento do materialismo histórico) no caso histórico e concreto do
capitalismo, o que pressupõe compreender quais são as classes existentes na
sociedade capitalista (em determinado momento de sua história), permite avançar
na análise ao entender seus interesses, conflitos, etc. e assim ter uma
percepção mais ampla do processo ao invés de se perder no mundo das aparências
(que pode se limitar, por exemplo, a luta de partidos, como se isso fosse o
fundamental).
Por fim, o conjunto destas categorias
(da dialética) e conceitos (do materialismo histórico e da teoria do
capitalismo) constituiria um amontoado de termos vazios se estiver fora da
perspectiva do proletariado. A perspectiva do proletariado constitui um campo
axiomático que é pressuposto de uma real compreensão da dialética, do
materialismo histórico e do capitalismo. A perspectiva do proletariado
constitui um conjunto de valores, sentimentos e interesses que apontam para a
necessidade da transformação radical e total do conjunto das relações sociais e
uma determinada relação com a verdade. A perspectiva do proletariado requer o
compromisso com a verdade, pois este é um interesse do proletariado, se
tornando um valor e compromisso daqueles que a adotam.
Nesse momento é preciso destacar
que os indivíduos concretos podem pretender realizar, conscientemente, uma
análise marxista da conjuntura, mas, devido a múltiplas determinações, podem
possuir ambiguidades, contradições, etc., em relação à perspectiva do
proletariado. Essas ambiguidades e contradições tendem a se reproduzir em sua
relação com o método dialético, materialismo histórico e análise de conjuntura,
Sem dúvida, a incompreensão do método dialético, do materialismo histórico e da
teoria do capitalismo também promove equívocos, mesmo se partindo da
perspectiva do proletariado. Isso ocorre pelo motivo de que o campo axiomático
constituído pela perspectiva do proletariado é fonte de geração de saberes
verdadeiros, mas as dificuldades intelectuais podem impedir o avanço desse
processo, gerando dogmatismo, cristalizações, etc. Da mesma forma, um indivíduo
com grande capacidade de abstração e trabalho intelectual, sem tal campo
axiomático, tende a nunca chegar à verdade. A unidade entre perspectiva do
proletariado e formação intelectual é condição para uma consciência correta da
realidade e alguns se perdem pela falta de perspectiva do proletariado e outros
por formação intelectual limitada.
Isso é mais grave em alguns
casos. Tal como quando um indivíduo, apesar de se pretender “marxista”, realiza
adesão a um determinado governo ou então aceitação do discurso de legitimação
deste, o que, obviamente, gera uma análise equivocada da conjuntura. Assim, uma
análise de conjuntura a partir da concepção marxista pressupõe esses elementos
e através deles é possível superar o mundo das aparências e o conjunturalismo.
O que é análise marxista da conjuntura?
Após o esclarecimento dos
pressupostos, passemos para as questões fundamentais em relação ao nosso tema
de análise. O que é análise de conjuntura? Ou, mais especificamente, o que é
análise marxista de conjuntura? A análise de conjuntura é vista,
simplificadamente, como uma reflexão sobre os acontecimentos mais recentes,
especialmente nos âmbitos econômicos e/ou políticos. Isso é bem simples e muito
distante da análise marxista da conjuntura, embora a delimitação seja
geralmente semelhante.
Para entender o que é a análise
marxista da conjuntura é importante entender o significado dos seus elementos
componentes (análise e conjuntura) na abordagem dialética. A análise é um
processo no qual se realiza a focalização teórica em um aspecto da realidade
sem perder de vista a totalidade e historicidade. Isso já distingue a análise
marxista de inúmeras outras, bem como possibilita a percepção de que há um
foco, mas este não pode ser retirado da história (o seu processo de
constituição, o seu vínculo com a história da sociedade, no caso, capitalista)
e da totalidade (sua inserção no interior de um conjunto de relações sociais,
suas relações, etc.). Observando que se trata de uma sociedade de classes e que
por isso não é possível desconsiderar as lutas de classes e os interesses
antagônicos entre as classes fundamentais e os diversos interesses das demais
classes e das frações de classes, etc.
Trata-se, no entanto, de análise
de conjunto. Portanto, o que é analisado é a conjuntura. Daí a necessidade de
esclarecer o significado desse termo. A análise dialética, nesse caso, realiza
a focalização na conjuntura. O foco na conjuntura não significa abandonar os
elementos essenciais da episteme marxista (totalidade, historicidade,
radicalidade) e seus pressupostos. O abandono destes elementos significa que a
análise não é marxista. Ela pode até se dizer análise da conjuntura, mas não
uma análise marxista.
Assim, o foco analítico na
conjuntura traz a necessidade de explicitar o que é conjuntura. A conjuntura,
no sentido comum da palavra tal como usada na linguagem cotidiana, remete para
as “circunstâncias, quadro geral, conjunto de acontecimentos” ou então “circunstâncias
desfavoráveis”. No primeiro significado, temos algo que remete a uma visão de
conjunto e acontecimentos recentes que podem ser entendidos como
condicionadores da situação atual. As “circunstâncias” são constituídas social
e historicamente pelos seres humanos e não algo “dado”. Embora tenha elementos
verdadeiros, é muito impreciso e pouco esclarecedor. No segundo significado, é
mais uma constatação de uma situação desfavorável, pois “diante da conjuntura”
não há muito o que fazer, como diriam alguns. Esse significado não tem valor
analítico.
Outro uso comum do termo é
quando a palavra “conjuntura” é usada por alguns cientistas sociais,
especialmente economistas e cientistas políticos. Nesse contexto, emerge um termo
impreciso, sem definição ou conceituação, na maioria dos casos. O que não deixa
de ser curioso, por se tratar de “cientistas”. Outros apresentam definições
vagas, que geralmente reproduzem a linguagem cotidiana: “conjunto”; “conjunto
de acontecimentos”. Assim, não é difícil ficar sabendo, que, nesses casos, análise
de conjuntura é entendida como uma “análise de conjunto”. Isso, sem dúvida, não
esclarece muita coisa.
Passemos, então, para a concepção
marxista de conjuntura. Uma reflexão sobre isso ainda não foi elaborada de
forma desenvolvida por nenhum pensador marxista, pelo que sabemos. No máximo,
algum pseudomarxista pode ter tentado fazer discussão a esse respeito, mas como
não ultrapassam a episteme burguesa, então dificilmente poderiam oferecer uma
contribuição mais significativa para o desenvolvimento da análise marxista
sobre conjuntura.
Iniciemos com uma definição
preliminar de conjuntura, que servirá de base para a posterior constituição de
um conceito. Podemos definir conjuntura como um conjunto de acontecimentos que ocorre em uma contemporalidade e é
decorrente de um processo histórico (que constitui suas determinações) e no
interior de determinado conjunto de relações sociais (a sociedade, o
capitalismo). A partir dessa definição preliminar podemos avançar e
entender mais o que significa uma análise marxista de conjuntura.
Um conjunto de acontecimentos
significa que a conjuntura remete a um conjunto, um contexto mais amplo, de
acontecimentos. Os acontecimentos podem ser interpretados sob várias formas:
atos imprevisíveis ou aleatórios, tudo que ocorre na sociedade, o
extraordinário, etc. No sentido marxista, os acontecimentos são ações sociais
e, ocasionalmente, fenômenos naturais[4],
que se desenvolvem em determinada sociedade.
O conjunto de acontecimentos que
caracterizam a conjuntura é constituído pelos processos sociais que são delimitados
e se desenvolvem no âmbito mais concreto da contemporalidade. O fundamental é
compreender que toda conjuntura é um conjunto de acontecimentos, mas nem todo
conjunto de acontecimentos é uma conjuntura. Trata-se de um conjunto de
acontecimentos delimitados por uma contemporalidade. O que é contemporalidade?
Geralmente o termo “contemporalidade” é apresentado como sinônimo de
contemporaneidade. Aqui, no entanto, assume outro significado. A
contemporalidade é um neologismo para explicitar que se trata de um conjunto de
acontecimentos que ocorrem num mesmo momento (período de tempo) marcado por seu
caráter recente ou atual. A contemporalidade é um momento histórico
determinado, que constitui um conjunto articulado e integrado de acontecimentos,
que é o atual. Essa articulação e integração é temporal, espacial e social.
E isso não é a mesma coisa que
contemporaneidade? Não no sentido que trabalhos com os dois termos. A
contemporalidade se distingue da contemporaneidade, sendo esta um momento do
capitalismo vinculado ao regime de acumulação vigente. Assim, a contemporaneidade
pode ser entendida em sentido amplo, sendo compreendida como sinônimo de
modernidade. Nesse sentido, sociedade moderna e sociedade contemporânea seriam
a mesma coisa, duas formas diferentes de expressar que vivemos na sociedade
capitalista, que é a sociedade atual. O uso do termo sociedade contemporânea,
nesse sentido amplo, expressa a temporalidade social de uma época, a do
capitalismo. No sentido restrito, e que utilizamos mais constantemente, a
contemporaneidade é a fase atual do
capitalismo. Como a história do capitalismo se constitui como uma sucessão
de regimes de acumulação, a contemporaneidade expressa o momento do regime de
acumulação vigente. Assim, a contemporaneidade para quem viveu nos anos após
1945 até aproximadamente 1980, era a do regime de acumulação conjugado. Para os
que vivem hoje, a contemporaneidade se inicia, aproximadamente, em 1980, quando
há a formação do regime de acumulação integral.
A contemporalidade é um termo
mais abstrato e cuja delimitação é do analista, que escolhe um momento
histórico delimitado por ele para analisar. Assim, a contemporalidade abarcada
por uma análise marxista da conjuntura pode ser de um ano, dez anos, etc. e
pode ser 2013, de 2013 a 2015, de 2010 a 2016, etc.[5] A
delimitação é temporal, mas não é algo arbitrário. Ou seja, o analista delimita
uma contemporalidade e sua duração, mas isso geralmente é realizado para
explicar algum fenômeno concreto, como uma radicalização das lutas de classes,
ascensão de movimento grevista, queda de governos, crescimento do
conservadorismo, etc. Outra diferença é que a contemporaneidade, no sentido
mais restrito, expressa um processo temporal bem mais longo, pois a
contemporalidade é delimitada para explicar acontecimentos específicos mais
restritos temporalmente e atuais para o analista. Se a delimitação for muito
extensa, então se trata de análise histórica e não análise de conjuntura.
Da mesma forma, a análise de
conjuntura trata da época atual e não acontecimentos do passado distante. Marx
analisou a contemporalidade que vai de 1848 a 1950 na França por ter escrito
nessa mesma época. Se hoje alguém escreve a respeito desse período, trata-se de
análise histórica e não análise de conjuntura. A contemporalidade é a que
vivemos e que por isso a análise se justifica e é mais difícil, pois há falta
de informações, maior envolvimento pessoal, os resultados não estão definidos,
etc.
Essa contemporalidade não é um
ato inaugural na história, ela é constituída social e historicamente, o que
remete à necessidade de entender sua constituição[6].
Desta forma, se um marxista quer analisar a conjuntura que culminou com o impeachment de Fernando Collor de Melo,
então ele precisa entender a constituição social e histórica de uma
contemporalidade, o que significa delimitá-la (e poderia, por exemplo, começar
com o processo eleitoral de 1989 até a concretização do impedimento). Essa
delimitação inicial é provisória, pois no momento da análise, ela pode ser
redefinida, pois as informações e reflexões podem apontar para elementos que
ocorreram antes ou depois do início anteriormente delimitado. Esse
acontecimento histórico, o impeachment
do governo Collor, pode remeter para uma extensão de tempo que pode ser
alterada, como, por exemplo, a análise da correlação de forças, hegemonia,
etc., antes de 1989 e que poderia trazer informações que explicaria o fracasso
dos políticos tradicionais que não conseguiram chegar ao segundo turno[7].
A contemporalidade é constituída
socialmente, o que pressupõe entender não apenas sua constituição histórica,
mas também social. Sem dúvida, para a análise marxista o social e o histórico
são inseparáveis. Mas geralmente as análises de conjuntura realizadas caem no
descritivismo histórico, no qual os processos históricos não são visto como
sociais e explicativos e sim como mera sucessão de fatos, como se isso fosse
suficiente ou autossuficiente.
A contemporalidade existe em um
conjunto de relações sociais que lhe determina, o que significa que ela não
pode ser compreendida fora da compreensão da sociedade. O impeachment de Fernando Collor se torna incompreensível, tal como o
impeachment de Dilma Roussef, sem uma
compreensão mais profunda da sociedade, das classes sociais, dos interesses,
dos processos em desenvolvimento (situação financeira, disputas partidárias,
interesses mais restritos de setores da sociedade, etc.). Sem entender os
aspectos fundamentais da sociedade não é possível realizar tal análise, e,
devido sua delimitação, também é preciso entender os acontecimentos
particulares, pois a análise de conjuntura pressupõe um grau maior de
concreção, já que se trata de acontecimentos específicos. E mais ainda
dependendo de que acontecimentos se trata.
A análise de conjuntura é
realizada para compreender um fenômeno concreto e a contemporalidade é quando
se une o processo histórico mais profundo com um determinado conjunto de
acontecimentos para explicar tal fenômeno, o que significa que não é possível
desvincular ambos. A compreensão de um fenômeno concreto só pode ocorrer a
partir de seu vínculo com a contemporalidade esta ocorre no interior de
processos sociais mais amplos, longos e profundos. Isso é uma obviedade para um
marxista, mas quando se lê inúmeras análises de conjuntura que colocam diversos
acontecimentos recentes e depois apresenta o fenômeno concreto (uma greve, uma
eleição, etc.) sem realizar tal vínculo, observa-se que nem sempre o óbvio é
percebido. A contemporalidade e sua constituição aparecem, nesses casos, como
mero “pano de fundo”, não vinculado ou relacionado mecanicamente ou
arbitrariamente com o fenômeno que ser quer explicar. Isso, sem dúvida, nada
tem a ver com uma análise marxista de conjuntura, que temo como pressuposto explicar
através das relações concretamente instituídas e não se iludir com as aparências,
nem fragmentar a realidade.
O objetivo da análise marxista de conjuntura
Uma questão complementar surge
nesse momento. Qual é o objetivo de uma análise marxista de conjuntura? Para
aqueles que foram formados a partir do pseudomarxismo ou na militância
partidária, estudantil e sindical, ela aparece como fundamental. Para a
perspectiva do proletariado, ela possui, do jeito que é geralmente realizada, sem
importância. A motivação para a análise de conjuntura nos congressos partidários,
estudantis e sindicais vai além da busca de compreensão da conjuntura: o seu
objetivo final visa a atuação prática, pois envolve a disputa interna. Assim
cada tendência realiza determinada interpretação da conjuntura e isso justifica
os embates internos a respeito da tática, pois geralmente é nesse âmbito que
emergem as divergências. A tendência mais extremista de um partido ou do
movimento estudantil pode analisar a conjuntura a partir da ideia de “crise
estrutural” (ou mesmo “crise final do capitalismo”) e assim justificar sua
política mais extremista, bem como a tendência mais moderada pode trabalhar com
a ideia de uma ofensiva da burguesia no plano eleitoral visando corroer suas
bases eleitorais e isso justifica sua tática eleitoralista. As duas
interpretações diferentes da conjuntura servem para conquistar adesões e é uma
forma de disputa interna, o que ocorre também nas disputas partidárias,
sindicais, etc.
Para o marxismo, a análise da
conjuntura não é e nunca foi fundamental. Ela é apenas um complemento de uma
análise histórica mais geral e tem um significado político de compreender as
divisões da classe dominante e seus efeitos sobre a luta proletária, num curto
espaço de tempo, o que pode ajudar nas decisões táticas e estratégicas dos
militantes e organizações revolucionárias ou então compreender um fenômeno concreto
visando se posicionar diante dele. A sua importância é relativa e por isso não
pode ser supervalorada, pois não altera questões mais importantes. Sem dúvida, essa
é uma posição do marxismo, cujo objetivo final é a revolução social e a
instauração da autogestão social, pouco importando as lutas políticas
institucionais e outros aspectos relacionados. A sua estratégia, luta, etc.,
não se alteram em sua linha geral diante da conjuntura.
O conjunto de acontecimentos que
formam a contemporalidade, numa análise marxista, não é delimitado
arbitrariamente pelo analista. A delimitação de uma contemporalidade tem como
pressuposto a necessidade de explicar um determinado conjunto de acontecimentos
ou um acontecimento específico no seu interior. Ou seja, a delimitação tem como
determinação o significado dos acontecimentos e sua importância para a luta
política do proletariado e do bloco revolucionário. A importância ou falta de
importância de determinado acontecimento específico ou conjunto de
acontecimentos remete a este significado social e político do mesmo. Dependendo
do acontecimento específico, ele pode ser delimitado por aspectos mais
específicos da inserção do militante ou grupo revolucionário.
O foco analítico pode ser a
contemporalidade como um todo ou então um acontecimento específico (fenômeno concreto).
Ou seja, pode ser na totalidade da contemporalidade ou em uma de suas partes. A
contemporalidade como um todo remete para um conjunto de acontecimentos que se
desdobram em determinado período de tempo (a conjuntura nos Estados Unidos de
2008 a 2011, por exemplo) e um acontecimento específico pode ser a participação
brasileira na copa do mundo de 1970 (para quem vivia nessa época) ou de 2014,
sendo que este remete, necessariamente, para a contemporalidade como um todo,
pois fora dela é incompreensível. Sem entender o regime ditatorial no Brasil ou
as manifestações de 2013 e a desaceleração da acumulação de capital a partir de
2012, esses dois fenômenos futebolísticos passam a ter uma compreensão muito
limitada.
O objetivo da análise de conjuntura
é explicar um destes elementos (a contemporalidade em geral – um determinado
período de tempo – ou um acontecimento específico no seu interior, um fenômeno concreto
que é parte dela) e que tem um objetivo extra-analítico que é a tomada de
decisões, elaboração de estratégias, para a luta política. A análise da contemporalidade
em geral pode ser as lutas de classes num determinado momento e lugar, como,
por exemplo, na França de 1848 a 1850 (MARX, 1986) ou então no Brasil, de 2013
a 2015 (VIANA, 2015). Nesse caso, o objetivo analítico é compreender as lutas
de classes com o objetivo extra-analítico de se posicionar e intervir em tal
contexto.
A análise de conjuntura pode ser
realizada para explicar um acontecimento específico, um fenômeno concreto, como,
por exemplo, o impeachment de Dilma
Roussef, ou a derrota eleitoral do PT em 2016. O objetivo dessa análise é
compreender a constituição do fenômeno específico e lhe explicar, pois isso tem
importância na compreensão do conjunto dos acontecimentos (a contemporalidade)
e também contribui para se posicionar diante do acontecimento.
Assim, há um duplo objetivo na
análise marxista da conjuntura: o analítico, que visa entender determinado fenômeno
ou contemporalidade e o extra-analítico, que é o posicionamento gerado a partir
dessa compreensão. Esse duplo objetivo forma um único objetivo, pois eles são inseparáveis
e essa dualidade é apenas uma forma de dividir a práxis no sentido de mostrar a
necessidade de um momento analítico mais profundo e um momento de luta mais
consciente posterior. A compreensão que não gera posicionamento é inútil e o
posicionamento sem compreensão é nocivo e não-marxista.
Análises Marxistas da Conjuntura
As análises marxistas de
conjuntura são relativamente poucas. No fundo, proliferam inúmeras análises de
conjuntura a partir de uma concepção não-marxista ou pseudomarxista. Entre as
análises autenticamente marxistas, se destacam as realizadas por Karl Marx a
respeito das Lutas de Classes na França (em algumas obras), embora também tenha
feita sobre a conjuntura na Alemanha e Espanha[8].
Em A Luta de Classes na França: 1848-1850,
originalmente publicada como artigos em Neue
Rheinische Zeitung, Marx aborda as lutas que se desenrolam entre 1848-1850
nesse país. Nela, ele apresenta tanto os acontecimentos políticos e ações
individuais, de classe, etc., sempre tendo como pressuposto as relações de
produção e sua dinâmica, bem como os interesses de classes, etc. Em outras
obras é perceptível o mesmo processo analítico.
Uma análise de conjuntura que
merece destaque e por isso analisaremos mais detidamente é a obra O Dezoito do Brumário, originalmente uma
série de artigos para jornal, na qual Marx oferece uma magistral análise de
conjuntura. Da mesma forma, Marx mostra as lutas de classes e os interesses por
detrás das ações individuais e explica o bonapartismo a partir de relações
sociais reais: a burocracia estatal, seu crescimento, seus interesses, sua
busca de autonomização. A análise demonstra como a burocracia estatal
(bonapartista) manipulou as classes sociais para se manter no poder (campesinato,
lumpemproletariado, etc.), bem como mostrou a ação dos blocos sociais (sem
utilizar tal termo) ao ver a aglutinação de interesses de determinadas
organizações, grupos, veículos de comunicação e expressão ideológica, os
representantes intelectuais de cada bloco, etc. É nesse contexto que ele mostra
as três tendências políticas que se digladiaram nesse contexto: a da classe
dominante e suas classes auxiliares; a da “pequena-burguesia”
(social-democracia) e do proletariado. Expressamos isso na atualidade através
do conceito de blocos sociais e estes seriam o bloco dominante, o bloco
progressista e o bloco revolucionário, respectivamente.
Outro elemento importante nessa
obra é que Marx analisa as lutas de classes no contexto do desenvolvimento
capitalista, das relações de produção, das relações de distribuição, etc.
Porém, ele não faz uma descrição ou aprofundamento nestes elementos, pois isso
não seria uma análise de conjuntura[9]. Ele também realiza uma periodização e
coloca os acontecimentos mais particulares e como eles fazem parte do processo,
mas ao mesmo tempo não se limitar a eles ou os toma como determinantes. Marx não
caiu nessa forma de equívoco analítico. Ou seja, a obra como um todo apresenta
todos os elementos que anteriormente apontamos como pressupostos do modo de
análise marxista da conjuntura.
Um trecho do Dezoito Brumário ilustra o modo de
análise marxista de conjuntura:
Os
legitimistas e os orleanistas, como dissemos, formavam as duas grandes facções
do partido da ordem. O que ligava estas facções aos seus pretendentes e as
opunha uma à outra seriam apenas as flores-de-lis e a bandeira tricolor, a Casa
dos Bourbons e a Casa dos Orléans, diferentes matizes do monarquismo? Sob os
Bourbons governara a grande propriedade territorial, com seus padres e lacaios;
sob os Orléans, a alta finança, a grande indústria, o alto comércio, ou seja, o
capital, com seu séquito de advogados, professores e oradores melífluos. A
Monarquia Legitimista foi apenas a expressão política do domínio hereditário
dos senhores de terra, como a Monarquia de Julho fora apenas a expressão
política do usurpado domínio dos burgueses arrivistas. O que separava as duas
facções, portanto, não era nenhuma questão de princípio, eram suas condições
materiais de existência, duas diferentes espécies de propriedade, era o velho
contraste entre a cidade e o campo, a rivalidade entre o capital e o
latifúndio. Que havia, ao mesmo tempo, velhas recordações, inimizades pessoais,
temores e esperanças, preconceitos e ilusões, simpatias e antipatias,
convicções, questões de fé e de princípio que as mantinham ligadas a uma ou a
outra casa real – quem o nega? Sobre as diferentes formas de propriedade, sobre
as condições sociais, se elevam maneiras de pensar e concepções de vida
distintas e peculiarmente constituídas. A classe inteira os cria e os forma
sobre a base de suas condições materiais e das relações sociais
correspondentes. O indivíduo isolado, que as adquire através da tradição e da educação,
poderá imaginar que constituem os motivos reais e o ponto de partida de sua
conduta. Embora orleanistas e legitimistas, embora cada facção se esforçasse
por convencer-se e convencer os outros de que o que as separava era sua
lealdade às duas casas reais, os fatos provaram mais tarde que o que impedia a
união de ambas era mais a divergência de seus interesses. E assim como na vida
privada se diferencia o que um homem pensa e diz de si mesmo do que ele
realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se distinguir mais ainda as frases
e as fantasias dos partidos de sua formação real e de seus interesses reais, o
conceito que fazem de si do que são na realidade (MARX, 1989, p. 45-46).
Nesse trecho Marx coloca as duas
alas do bloco dominante apresentando os símbolos (as flores-de-lis e a bandeira
tricolor) que expressavam sua oposição e depois as subdivisões de classe, com
seus interesses e representantes intelectuais (de um lado, a “grande
propriedade territorial, com seus padres e lacaios”; de outro, “a alta finança,
a grande indústria, o alto comércio, ou seja, o capital, com seu séquito de
advogados, professores e oradores melífluos”). Uma ala era a “expressão
política do domínio hereditário dos senhores de terra” e a outra “a expressão
política do usurpado domínio dos burgueses arrivistas”. Em síntese, Marx
apresenta as classes sociais que detinham a hegemonia em cada um dos dois
lados: “O que separava as duas facções, portanto, não era nenhuma questão de princípio, eram suas condições materiais de existência, duas diferentes espécies de propriedade,
era o velho contraste entre a cidade e o campo, a rivalidade entre o capital e o latifúndio”.
Marx aponta para questões mais
concretas: “velhas recordações, inimizades pessoais, temores e esperanças,
preconceitos e ilusões, simpatias e antipatias, convicções, questões de fé e de
princípio” e reconhece sua existência. Mas ele não toma isso como um “dado”,
não se ilude com a aparência. Esses elementos existem, mas são explicados e
remetidos às suas bases reais: as diferentes formas de propriedade e as
distintas condições sociais geram “maneiras de pensar e concepções de vida
distintas e peculiarmente constituídas”. Por fim, retoma um dos princípios do
materialismo histórico: “a classe inteira os cria e os forma sobre a base de
suas condições materiais e das relações sociais correspondentes”. E retoma
outro elemento do materialismo histórico: a questão da autoilusão e como o
analista não deve compartilhar com o iludido a sua ilusão: “O indivíduo
isolado, que as adquire através da tradição e da educação, poderá imaginar que
constituem os motivos reais e o ponto de partida de sua conduta”. As duas alas
se esforçavam para convencer a si mesmas e aos outros que o que as separavam
era “era sua lealdade às duas casas reais”, mas, “os fatos provaram mais tarde
que o que impedia a união de ambas era mais a divergência de seus interesses”.
Os interesses são muito mais importantes para explicar as disputas políticas do
que os discursos. E, por fim, faz uma afirmação que já estava no Prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política a respeito da
autoilusão individual e coletiva: “E assim como na vida privada se diferencia o
que um homem pensa e diz de si mesmo do que ele realmente é e faz, nas lutas
históricas deve-se distinguir mais ainda as frases e as fantasias dos partidos
de sua formação real e de seus interesses reais, o conceito que fazem de si do
que são na realidade”.
Esse pequeno trecho de Marx
mostra que a análise de conjuntura que ele faz remete ao método dialético
(totalidade, pois não isola e no resto da obra aparece os outros blocos sociais
e classes sociais, o aparato estatal, etc., a historicidade, a radicalidade,
etc.), o materialismo histórico (as classes e seus interesses e lutas, as
formas de consciência e seu processo de constituição, etc.), a teoria do
capitalismo (a oposição entre classe latifundiária e classe capitalista, etc.,
o que é mais desenvolvido no conjunto do livro, aparecendo as demais classes, o
Estado capitalista, etc.), a perspectiva do proletariado: crítica radical,
desvendamento dos interesses de classe, etc., e no resto da obra aparece outras
classes e o proletariado buscando se autonomizar, mostrando um conjunto de
valores e outros elementos que expressam tal perspectiva.
Assim, para entender a análise
marxista de conjuntura é fundamental realizar a leitura das obras de Marx em
que ele efetivou esse processo analítico, especialmente A Luta de Classes na França: 1848-1950 e o Dezoito do Brumário, bem como outras deste autor e algumas outras,
que são mais raras e nem sempre com a mesma qualidade e profundidade da
realizada pelo fundador do marxismo.
Como fazer análise marxista de conjuntura?
Assim, a partir da compreensão
do que é a análise marxista da conjuntura, o próximo passo é iniciar a
discussão sobre como efetivar tal análise. O primeiro passo é definir qual
contemporalidade se trata, ou seja, qual período de tempo que será analisado e,
este, por sua vez, depende de qual conjunto de acontecimentos ou acontecimento
específico se busca compreender. Se o que se quer compreender é o governo
Temer, então período de tempo delimitado será de 2016 até 2018. Se for o
governo de Donald Trump, nos Estados Unidos, será, se for realizado no final de
2018, o período de 2017-2018.
O segundo passo é buscar
compreender a dinâmica do capitalismo e sua configuração contemporânea. Assim,
se houver um certo domínio dos pressupostos já aludidos anteriormente, é
necessário entender a dinâmica capitalista e seu atual estágio (desenvolvimento
capitalista, regime de acumulação atual, etc.). A compreensão da dinâmica do
capitalismo é um elemento teórico que precede a análise de conjuntura. Sem tal
compreensão, a análise de conjuntura não é marxista. A compreensão teórica da
dinâmica do capitalismo remete ao problema da evolução do capitalismo,
fundamentalmente da luta de classes e da acumulação de capital e sua situação
na contemporalidade analisada.
Nesse contexto, alguns conceitos
assumem importância analítica: regime de acumulação, luta de classes e blocos
sociais, aparato estatal, classes sociais, hegemonia, renovação hegemônica, entre
outros. A compreensão da configuração atual do capitalismo remete a uma análise
e entendimento do regime de acumulação vigente, pois isso é fundamental para
entender as classes sociais, os interesses, as tendências, as ideologias, etc.
O terceiro passo é compreender
como que os seres humanos agem nesse contexto, especialmente as classes sociais
e os blocos sociais. A análise da luta de classes e dos blocos sociais
pressupõe sair do mundo das aparências e apenas dos discursos de seus agentes,
buscando compreender, fundamentalmente, os interesses, motivações, derivados da
posição social dos indivíduos, grupos, organizações, classes, envolvidos. O
trecho de Marx serve para ilustrar esse processo analítico, pois o discurso é
analisado, mas inserido na totalidade e que não é tido como verdade, algo dado,
pois é necessário ultrapassar as ilusões e autoilusões.
Nesse sentido, a análise
marxista de conjuntura é um processo de concreção e de superação do concreto-aparente,
descobrindo as determinações das ações, que passam pelos elementos analíticos
do capitalismo e sua dinâmica, chegando ao regime de acumulação e sua
historicidade (modificações, pois ele também não é estático), as lutas de
classes, os interesses, as expressões políticas e intelectuais organizadas das
classes (blocos sociais), etc. A
análise de conjuntura é um processo de concreção e, como tal, trata das
questões mais concretas e isso pode promover o equívoco de se limitar ao
concreto-aparente, ficando no mundo da pseudoconcreticidade. A análise leva em
consideração a contemporalidade, mas não se limita a ela, pois observa as suas
determinações e a totalidade. Essa possibilidade, para quem parte do método
dialético e do materialismo histórico, é pouco provável, mas como se trata de
indivíduos concretos, os equívocos são possíveis nesse âmbito.
Por conseguinte, deixar de lado
esses elementos significa realizar uma análise não-marxista e cair no
conjunturalismo. Por isso é necessária uma análise crítica do conjunturalismo,
mostrando suas diferenças em relação à análise marxista da conjuntura.
Crítica ao Conjunturalismo
As análises de conjuntura
geralmente realizadas são expressões do conjunturalismo. O conjunturalismo é
explicado por diversos motivos, mas o principal é o predomínio do modo de
pensar burguês na sociedade moderna, gerando os problemas analíticos que são
comuns nesse caso. Sem dúvida, as idiossincrasias (tal como a formação
intelectual limitada, a inexperiência, etc.), as pressões sociais, a tradição
de análise de conjuntura, presentismo, entre outros problemas, também
contribuem com esse processo.
O conjunturalismo é uma espécie
de fetichismo da conjuntura. Ele se manifesta sob várias formas. A “análise”
conjunturalista realiza um dos seguintes procedimentos: a) descrição de
acontecimentos; b) reflexões sobre o determinado sem referências ao
determinante; c) o abandono da historicidade, totalidade e radicalidade
(perspectiva do proletariado). A descrição de acontecimentos é uma das formas
mais comuns de conjunturalismo, no qual apenas se elenca um conjunto de
acontecimentos, sem efetivar uma verdadeira análise, ou seja, reflexão sobre a
contemporalidade. As reflexões sobre o determinado sem a consideração sobre o
determinante já pode ser realizado com embasamento em ideologias, embora isso
nem sempre aconteça. Esse é o caso de quando se fica preso aos discursos dos
agentes ou representações ou ações políticas desligadas de suas bases reais
(modo de produção, regime de acumulação, classes sociais, blocos sociais, interesses,
etc.). O abandono da historicidade, totalidade e radicalidade é comum para quem
parte do modo de pensar burguês e não compartilha a perspectiva do proletariado
e isso pode ocorrer sob diversas formas. Esse processo ocorre nos dois casos
anteriores e é típica de análises superficiais, descritivas, impressionistas. Nesse
caso, a aparência toma conta e não há explicação ou compreensão do momento
histórico em questão (contemporalidade) e nem das tarefas políticas imediatas.
O conjunturalismo pode ser reproduzido
até mesmo no caso de pessoas sinceramente engajadas na luta revolucionária por
falta de método e teoria ou outras determinações. Este, no entanto, é mais uma
exceção do que a regra. As raízes sociais do conjunturalismo quando realizado
por representantes intelectuais da burguesia ou de suas classes auxiliares, são
os interesses que os movem. Os interesses são determinantes na escolha de
aspectos da realidade, interpretações, etc. Assim como a análise marxista de
conjuntura centra sua atenção nas motivações, interesses, etc., dos agentes do
processo real para compreender seus discursos e representações, a análise
marxista do conjunturalismo realiza o mesmo processo ao analisar os
conjunturalistas. A supervaloração da conjuntura, por exemplo, pode ser
promovida por oportunismo. Existem milhares de casos que servem para demonstrar
isso: “voto crítico”; apoio a partidos para evitar o “fascismo”, etc. Ou seja,
o conjunturalismo, ao criar o fantasma do fascismo, pressiona os setores
“democráticos”, “humanistas”, de “esquerda” para se unir numa “frente” para impedir
a ascensão fascista.
O conjunturalismo se fundamenta
numa concepção não-marxista ou pseudomarxista. É por isso que ele pode reproduzir
a “doutrina dos fatores” e abordar “conjuntura econômica”, separada de
“conjuntura política”, etc. Nesse caso, temos um recorte da realidade que
reproduz o modo de pensar burguês, isolando um aspecto da realidade e reduzindo
esta a ele. Outro elemento comum é o uso de dados estatísticos como se eles, em
si mesmos, explicassem determinada realidade[10]. Os
dados estatísticos necessitam ser explicados ao invés de explicarem algo. Dados
sobre aumento da inflação é apenas uma informação (e, obviamente, esse fenômeno
real, desde que a informação seja verdadeira, tem efeitos sobre realidade), mas
isso é superficial se não se explica o que a produz e saber de suas tendências.
Sem a compreensão do que gera a dinâmica inflacionária, não se consegue
entender o fenômeno adequadamente e nem sua tendência futura que pode alterar a
conjuntura.
Considerações Finais: Marxismo e Conjuntura
A excessiva preocupação com a
conjuntura pode ser um problema para os militantes e organizações
revolucionárias. A análise marxista da conjuntura não substitui a análise da
sociedade capitalista e de suas tendências e nem pode se desligar disso. A conjuntura tem importância relativa para o
marxismo, que é entender a correlação de forças na luta de classes, a
necessidade da ação e definição de estratégias, mas é algo secundário. A
formação intelectual mais ampla (que inclusive fornece as bases para quem quer
realizar uma análise marxista de conjuntura) é muito mais importante do que
longas discussões sobre conjuntura. Sem as ferramentas fornecidas pelo método
dialético e materialismo histórico, as eternas discussões sobre conjuntura
tendem a ser realizadas tendo por base o modo de pensar burguês, o que leva,
fatalmente, ao conjunturalismo.
Somente numa situação
revolucionária a análise de conjuntura se unifica com a análise marxista do
capitalismo e suas tendências. Quando ocorre o processo de autonomização do
proletariado e avanço das lutas sociais, a contemporalidade analisada ganha importância
no sentido de se colocar a possibilidade de transformação radical e total da
sociedade, momento no qual o essencial se revela na própria existência concreta
dos indivíduos no capitalismo.
A excessiva ênfase ou
preocupação com a conjuntura promove o risco do conjunturalismo e do reformismo
e o do confundir o essencial com o momentâneo. Assim, a luta de partidos ou a
preocupação com o “avanço do conservadorismo” ou do “fascismo” pode jogar
indivíduos revolucionários nos braços do progressismo e no apoio ao reformismo,
ao invés de continuar a luta cultural e a luta pela constituição de
organizações autárquicas (formas de auto-organização) pelo proletariado e
classes desprivilegiadas, formação de centros de contrapoder e hegemonia
proletária (parcial, ou seja, em certos setores da sociedade, pois no conjunto
isso só é possível em momentos revolucionários).
Assim, a conclusão é a de que ficar
na análise mais teórica e abstrata é menos prejudicial do que cair no conjunturalismo.
Uma análise mais ampla do capitalismo e suas características tem um significado
formativo muito mais amplo do que o entendimento das disputas eleitorais e
partidárias ou as subdivisões da classe dominante[11].
A análise marxista da conjuntura pode esclarecer o que ocorre na contemporalidade,
mas os indivíduos reais e concretos que tem acesso a ela pode simplesmente
tomar partido e decisões equivocadas sem uma percepção histórica, radical e
totalizante, tal como optar pelo “menos ruim”, o que pode ocorrer por não
partir da perspectiva do proletariado ou por ter uma formação intelectual
limitada.
A análise marxista da
conjuntura, por outro lado, é fundamental para não se cair no jogo das forças
políticas existentes por ignorância do processo, como, por exemplo, apoiar a
social-democracia por causa de um suposto risco de “fascismo”. Mas para isso é
preciso que tal análise deixe claro que o problema não é apenas o bloco
dominante e o conservadorismo e sim ele e o bloco progressista e seu
reformismo, ou seja, a direita e a esquerda, pois ambos são elementos de
reprodução da sociedade capitalista e isso ocorre à custa do proletariado e demais
classes desprivilegiadas. Para a perspectiva do proletariado, conservadorismo e
progressismo, direita e esquerda, são diferentes, mas são iguais. A diferença
não é essencial, pois nesse âmbito todos eles são reprodutores do capitalismo.
A longa história do capitalismo já comprovou isso. Obviamente que isso não é um
julgamento dos indivíduos que, devido múltiplas determinações, assumem uma ou
outra dessas posições, e sim da concepção política em si. Os indivíduos podem
mudar de concepção política, mas a concepção política não pode deixar de ser o
que é. Se o fizer, se torna outra concepção política. Da mesma forma, isso é
diferente em indivíduos diferentes: alguns dificilmente mudam (dependendo da
classe, história de vida, etc.) e outros podem mudar com um pouco mais de
facilidade.
Assim, a crítica ao
conjunturalismo deve ser constante e a análise marxista da conjuntura deve
sempre explicitar que ao tratar de coisas mais concretas não abandona seu
projeto, sua perspectiva, seu método, etc. Se o vizinho da direita começa a
brigar com o vizinho da esquerda por causa do som alto da festa de um deles e
da música brega que tocava, eu posso até analisar isso e compreender esse
processo mais profundamente. Só não posso achar que isso é mais importante do
que entender o capital comunicacional e a mercantilização da música popular,
bem como a formação social dos indivíduos, seus desequilíbrios psíquicos, etc. Esses
fenômenos sociais mais gerais ajudam a explicar os fenômenos sociais mais
particulares e por isso mesmo a totalidade é mais importante do que ficar preso
no imediato e momentâneo. Assim, uma coisa é ter ferramentas intelectuais para
analisar os processos sociais, outra coisa é ficar preso na imediaticidade
desses processos.
Assim, a análise marxista da
conjuntura às vezes se torna mais necessária para esclarecer as lutas
políticas, os jogos de interesses, etc., mas é mais importante que o analista e
o leitor do analista saibam distinguir entre o essencial e o superficial, pois
essa distinção é fundamental para a estratégia e ação e para que essas sejam
cada vez mais conscientes e eficazes no sentido de contribuir com a luta pela
transformação social radical e total.
Referências
KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto,
Afrontamento, 1977.
MARX, Karl Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª Edição, São Paulo:
Martins Fontes, 1983.
MARX, Karl. As Lutas de Classes na França (1848 - 1850).
São Paulo, Global, 1986.
MARX, Karl. O Capital.
Vol. 1, 3a Edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.
MARX, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas A Kugelmann. 5ª Edição, Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1989.
VIANA, Nildo. A
Consciência da História. Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético.
2ª edição, Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.
VIANA, Nildo.
A Luta de Classes no Brasil (2013-2015). Revista
Espaço Livre, vol. 10, num. 20, 2015. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/343/349 acessado em: 12/12/2015.
VIANA, Nildo. Escritos
Metodológicos de Marx. 3a edição, Goiânia: Alternativa, 2007.
[1] Os
indivíduos na sociedade capitalista, mesmo os autointitulados “marxistas”,
geralmente reproduzem o modo de pensar dominante, que é o burguês. O modo de
pensar burguês é problemático e criador de ilusões, sendo radicalmente
diferente do modo de pensar marxista. Os indivíduos são socializados,
ressocializados, etc., para reproduzir o modo de pensar burguês e por isso há
uma dificuldade em compreender, aceitar e utilizar a episteme marxista, o que
só pode ser conquistado através de um esforço intelectual em superar o modo de
pensar burguês. Isso foi desenvolvido na obra O Modo de Pensar Burguês. Episteme Burguesa e Episteme Marxista,
que em breve será publicada.
[2]
Aqui não poderemos realizar um aprofundamento sobre o método dialético, o que
pode ser visto em outras obras (MARX, 1983; MARX, 1988; KORSCH, 1977; VIANA,
2007a; VIANA, 2007b).
[3] Claro
que aqui se trata do conceito de classes sociais tal como desenvolvido por Marx
e não apenas o uso do termo com outro significado. Por exemplo, alguns analisam
conjuntura abordando uma tal “classe média”, o que é um termo não-marxista
(VIANA, 2018) e que ao invés de ajudar a explicar a realidade, o que faz é obscurecê-la.
[4]
Quando estes atingem a sociedade. Por exemplo, um furacão pode promover uma
calamidade em alguma região de algum país e isso tem efeitos sociais diversos
(mortalidade, destruição de bens coletivos, problemas financeiros, etc.) ou uma
praga pode prejudicar a produção de determinados alimentos, gerando seu
encarecimento, empobrecimento, mudanças nas exportações e importações de alguns
países, etc.
[5]
Marx, por exemplo, analisou a luta de classes na França de 1848 até 1850 (MARX,
1986) e, no nosso caso, analisamos a luta de classes no Brasil de 2013 até 2015
(VIANA, 2015).
[6] E
ter a consciência de que ela se constitui no interior da história do
capitalismo.
[7] As
eleições de 1989 foi a que reuniu, num pleito só, o maior número de medalhões
da política institucional na história eleitoral do país: Ulisses Guimarães,
Aureliano Chaves, Lula, Leonel Brizola, Mário Covas, Paulo Maluf, Ronaldo
Caiado e outras figuras não tão conhecidas, mas que se destacaram nesse processo
eleitoral ou nos seguintes (Enéas Camargo e Guilherme Afif Domingos), tinham
certa tradição política (Roberto Freire e Fernando Gabeira), não concorreram
(Silvio Santos teve sua candidatura impugnada e Jânio Quadros abdicou) e ainda
teve vários outros candidatos pouco conhecidos e com poucos votos. Isso torna
ainda mais curioso o fato de Collor ter conseguido chegar ao segundo turno e explicar
a pouca preocupação de setores da burguesia com Lula, que na época tinha um
discurso mais contundente.
[8] Rosa
Luxemburgo também realizou algumas análises de conjuntura interessantes, embora
com limites derivados de problemas teórico-metodológicos e idiossincráticos, bem
como alguns outros marxistas.
[9] Não
que ele estivesse pensando nesses termos, mas para os objetivos que ele se
propunha, não cabia uma análise teórica mais ampla nesse contexto discursivo.
[10]
Isso sem falar nas formas de uso dos dados estatísticos. Muitos não compreendem
estes dados de forma mais ampla. Alguns tomam os dados estatísticos como sendo
um ato inaugurador da conjuntura, sem analisar sua historicidade. Em casos mais
graves, que é quando faltam elementos rudimentares para uma interpretação mais
ampla ou criticidade (o processo de produção dos dados estatísticos pode ser
manipulado, pode ser tecnicamente problemático, pode tratar de um período muito
curto e que está envolvido com acontecimentos momentâneos, pode ser mais
adequado a certas regiões do que para a totalidade de um país, pode ter
embasamento ideológico, etc.), o seu uso é um obstáculo para uma análise
concreta da conjuntura, caindo em abstratificações que nada ajudam na compreensão
de uma contemporalidade.
[11] Por
exemplo, entender as várias formas do liberalismo tem uma importância reduzida
diante da compreensão da dinâmica da acumulação capitalista. as formas do
liberalismo são subdivisões dentro de uma ideologia burguesa e ajuda apenas a
entender por qual motivo os liberais progressistas se aproximam do bloco progressista
e de sua moral, e por qual motivo os liberais conservantistas se afastam dele e
se aproxima mais do reacionarismo. Esse é o risco já alertado por Hegel: ver a árvore
(ou as árvores) e perder de vista a floresta. Esse risco pode ser adaptado para
o processo histórico: corre-se o risco de ver o momento presente e perder de
vista as tendências históricas mais profundas.
Muiyo interessante. Bom texto.
ResponderExcluirGrato, Hortencia Mendes!
ExcluirMuito bom o texto. Me tirou várias dúvidas quanto a compreensão de conjuntura na visão Marxista
ResponderExcluirQue bom que foi útil, Maria José! grato!
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