Marxismo Original e Utopia
Nildo Viana
Resumo:
O marxismo original – desenvolvido por Marx e Engels –
geralmente é contraposto ao socialismo utópico como se fosse uma recusa
absoluta e total. O objetivo do artigo é discutir a relação entre o marxismo
original e o socialismo utópico e com a utopia. A tese defendida no artigo é a
de que o caráter antiutópico do marxismo original é uma simplificação, pois o
que ele realiza é uma suplantação do utopismo, o que significa manter os seus
elementos positivos e negar os seus elementos negativos. Para tanto, o texto
lança mão da análise da seção do Manifesto Comunista no qual Marx se posiciona
diante do socialismo utópico e textos complementares, bem como a análise de
comentaristas.
Palavras-Chave: Marxismo Original; Proletariado; Socialismo
Teórico; Socialismo Utópico; Teoria; Utopia.
Abstract:
The original Marxism -
developed by Marx and Engels - is generally opposed to the utopian socialism
like an absolute and total denial. The objective of this article is to discuss
the relationship between the original Marxism and utopian socialism and utopia.
The thesis defended in the article is that the anti-utopian character of the
original Marxism is a simplification, since it performs is a supplanting of
utopianism, which means keeping its positive elements and deny its negative
elements. Therefore, the text makes use of the analysis section of the
Communist Manifesto where Marx stands before the utopian socialism and
complementary texts, as well as analysis of commentators.
Keywords: Original Marxism;
Proletariat; Theoretical Socialism; Utopian socialism; Theory; Utopia.
A palavra utopia surgiu 500 anos atrás com a obra de Thomas
Morus. Após essa primeira utopia literária apareceu inúmeras outras[1],
bem como surgiram as utopias sociais e demais utopias artísticas[2].
As utopias sociais eram ainda muito rudimentares antes da consolidação do
proletariado como classe social. É com o surgimento do proletariado que emerge
as utopias sociais que ficaram conhecidas como “socialismo utópico” ou
“romântico”. O nosso objetivo aqui é colocar duas questões: qual é a relação do
marxismo original com a utopia e com o socialismo utópico? Por marxismo
original se entenda as ideias dos fundadores do marxismo, Marx e Engels,
especialmente o primeiro. A razão desse questionamento é uma concepção muito
comum segundo a qual os representantes do marxismo original seriam
antiutópicos. Isso, no entanto, é uma simplificação do pensamento marxista
original e nosso objetivo é defender e fundamentar esta hipótese e a de que, na
verdade, o marxismo é um desenvolvimento da utopia.
O primeiro ponto a destacar é o conceito de utopia. O que é
utopia? Esse termo pode ser, e efetivamente foi, compreendido sob formas
distintas. A utopia nas representações cotidianas é o mesmo que “sonho
irrealizável” e nisso o que se tem é apenas a popularização da concepção do
fundador do positivismo, Augusto Comte, para quem ela não seria nada mais que
“sonho metafísico e irracional” (VIANA, 1990). Essa concepção de utopia não
passa de uma tentativa de desqualificação pejorativa. Ernst Bloch já apresenta
a utopia como “fundamentação objetiva do porvir” (BLOCH, 2006). Sem dúvida, as
definições de utopia sempre focalizam o futuro. Nesse sentido, a utopia é uma
concepção (positiva) de sociedade do futuro (BERNSTEIN, 2016), que tem na
ucronia a concepção negativa (BERNSTEIN, 2016), o que outros chamam “distopia”
ou “cacotopia”. No entanto, consideramos que a estrutura da obra de Thomas
Morus, A Utopia, traz em si o segredo
do significado da utopia. O livro A
Utopia tem duas partes, uma de crítica da sociedade existente e outra que
apresenta a ilha paradisíaca que tem o mesmo nome da obra[3].
Assim, o significado da utopia é o de um pensamento (ficcional ou real) que
realiza a crítica da sociedade presente e apresenta um projeto ou proposta de
sociedade futura (VIANA, 1990). Na obra de Morus temos esses dois elementos. Em
outras utopias literárias aparece apenas o segundo momento, uma descrição de
uma sociedade futura. No entanto, em toda descrição de uma sociedade futura
está implícito uma crítica da sociedade presente. Se a sociedade ideal é sem
propriedade privada, então esta é percebida criticamente. Ou seja, toda utopia traz,
explícita ou implicitamente, uma crítica da sociedade presente.
Esse é o conteúdo das utopias, mas esse conteúdo determina
uma forma. Qual é a forma determinada pelo conteúdo da utopia? Ora, se o
conteúdo é uma crítica da sociedade presente e um projeto de sociedade futura,
então a forma é marcada por dois elementos fundamentais: o elemento crítico e o
elemento propositivo. Isso se manifesta tanto nas utopias literárias quanto nas
utopias sociais. Contudo, são duas formas de duas manifestações distintas. A
utopia é uma crítica e um projeto que, no plano literário, constitui um gênero,
mas no plano social não pode ser assim entendido. As utopias sociais são
representações congruentes (VIANA, 2015), possuindo coerência e organização que
vão além das representações cotidianas, mas ficam aquém do saber complexo
expresso na ciência, filosofia, etc.
Assim, as utopias sociais são representações congruentes,
meio-termo entre o saber cotidiano e o saber complexo, que organiza o
pensamento a partir de dois aspectos basilares: crítica da sociedade presente,
projeto de sociedade alternativa. Contudo, ela é basicamente conteúdo, mais que
forma. É por isso que podem existir manifestações míticas ou doutrinárias
utópicas, pois essas formas podem absorver o conteúdo utópico. O aspecto formal
da utopia é apenas a estrutura do pensamento utópico, composta por negação e
afirmação, mas que não gera uma forma mais acabada e por isso se materializa em
outras formas de pensamento mais desenvolvidas, seja para enriquecê-la, seja
para empobrecê-la. Da mesma forma, ela pode se desenvolver e se tornar algo
superior, um saber complexo. Isso expressaria a passagem da utopia para a
teoria. Nesse momento, os seus elementos essenciais permanecem, mas são
desenvolvidos e aprofundados, constituindo um saber complexo e que rompe com
ilusões, ingenuidade, superficialidade. Torna-se, assim, a unidade entre a
necessidade de transformação radical da sociedade gerada por sentimentos,
valores, interesses, com uma análise profunda e desenvolvida da realidade
social, assumindo a forma de saber complexo.
As utopias sociais são aquelas que ultrapassam o mundo da
ficção ou da aspiração contemplativa[4] e
se manifestam na vida social como projeto político, esperança messiânica,
propostas de sociedade. Esse é o caso daquilo que ficou conhecido como
“socialismo utópico”. Toda discussão de Marx e Engels focaliza o chamado
“socialismo utópico” e poucas vezes eles citam as utopias literárias. Portanto,
a oposição entre marxismo original e socialismo utópico é o elemento
fundamental para entender o processo analítico da utopia em geral.
Socialismo científico versus socialismo
utópico?
A crítica de Marx (e, secundariamente, de Engels) ao
socialismo utópico foi reduzida, por muitos, com uma oposição entre socialismo
científico e socialismo utópico[5]. Derivado
disso e nas mãos dos seus epígonos, acabou sendo reduzido a uma oposição entre
ciência e utopia. Essa interpretação tem muitos elementos para se apoiar. Desde
o título do pequeno livro de Engels, Do
Socialismo Utópico ao Socialismo Científico (que era uma parte de sua obra Anti-Düring, publicado separadamente como
livreto), até as diversas investidas de diversos ideólogos no sentido de
recusar todo “utopismo” no pensamento de Marx, a começar por Karl Kautsky. A
assimilação do marxismo original pela social-democracia significou sua mescla
com o positivismo e o cientificismo (com elementos de kantismo, darwinismo,
evolucionismo, etc.). E isso foi herdado pelo bolchevismo e por todas as forças
progressistas da sociedade moderna, pelo menos até o final da década de 1960,
com algumas exceções.
O curioso é que poucos se dedicaram a analisar os escritos
de Marx sobre o socialismo utópico[6]. Abensour
(1990) foi uma exceção e assim ofereceu uma excelente contribuição para a
compreensão da relação entre Marx e o socialismo utópico. Abensour critica os
intérpretes de Marx e Engels:
Escritos em períodos diferentes e bastante distantes no tempo, o
Manifesto Comunista e Socialismo Utópico e Socialismo Científico não deixam de
inspirar ao intérprete a tentação de confrontá-los. Com efeito é sedutor e
fácil retirar da comparação desses dois textos uma crítica invariante da
utopia. O método consiste, então, em apreciar como as teses extraídas foram
anunciadas ou preparadas em textos anteriores ao primeiro texto, retomadas ou
confirmadas em textos intermediários e definitivamente consagradas no segundo
texto. Muitos cederam a essa tentação. Esse método, próximo da exegese,
produtor de um comentário repetitivo e estéril, apresenta os inconvenientes do
leito de Procusto (como toda empresa que visa mais a afirmar ou confirmar a
ortodoxia que a prosseguir um trabalho teórico): isto é, num primeiro momento a
localização e a escolha dos textos considerados puros e essenciais e, no
segundo momento, a seleção, a redução e o afastamento de outros textos a partir
das normas assim encontradas, eliminando-se necessariamente as virtualidades de
que esses textos são portadores e, de modo mais geral, todo elemento, toda
significação lateral que não concorde com as normas arbitrariamente
estabelecidas (ABENSOUR, 1990, p. 12-13).
Abensour faz um trabalho interessante ao mostrar que a
oposição entre ciência e utopia é equivocada. Ele remete a diversos textos de
Marx para demonstrar isso, bem como aponta diversas afirmações deste pensador
nas quais afirma que os utópicos são científicos[7]. O
procedimento de Abensour é não só mais rico e desenvolvido que a dos epígonos
de Marx, mas também muito mais próximo do seu pensamento. Contudo, o método de
leitura de Abensour também tem problemas. O primeiro é que ele não consegue
compreender o campo lexical marxista e suas mutações. Esse é o caso do termo
“ciência” na concepção de Marx. Esse termo é utilizado por Marx com dois
significados distintos: um significado próprio, que faz parte da estrutura do
seu pensamento, sendo positivo (e, nesse sentido, pouco foi utilizado) e o
significado comum da palavra, no sentido positivista hegemônico na época. No
primeiro significado, ciência é igual a teoria, um saber totalizante, profundo
e verdadeiro sobre a realidade, cuja fonte de inspiração é Hegel (KORSCH, 1983)[8].
Abensour identifica o sentido negativo de ciência justamente ao analisar suas
considerações sobre o socialismo utópico:
A ciência também pode estar do lado da revolução parcial e, diz Marx,
em primeiro lugar a ciência dos utopistas. A ciência social arruína, mata a
utopia. Em lugar de erigir a utopia como contratipo da ciência, Marx denuncia
essa tara congênita da utopia que é a cientificidade. Daí vem a oposição entre
dois tipos de ciência: a ciência doutrinária e a ciência revolucionária
(ABENSOUR, 1990, p. 21).
Assim, a “ciência doutrinária” é alvo de crítica de Marx e a
“ciência revolucionária” é o elemento fundamental do seu pensamento, para usar
expressões de Abensour. Um outro limite da análise de Abensour é não levar em
conta a evolução intelectual do pensamento de Marx. A compreensão de um autor
passa por uma análise de sua evolução intelectual, pois, caso contrário, as
alterações, os aprofundamentos, as retificações, entre outros processos, são
apagados. Proudhon mudou e por isso a avaliação dele por Marx sofreu alteração.
No entanto, Marx também mudou e isso também contribuiu para ele alterar sua
análise da obra de Proudhon.
Outro ponto problemático de Abensour é considerar o Manifesto Comunista (bem como o livreto
de Engels) como “propaganda”. Sem dúvida, é um manifesto e por isso não tem a
profundidade de O Capital, mas não é
um texto dos mais simples e as leituras superficiais podem fazer parecer que é
fácil e propagandístico, mas há muita sutileza neste escrito. Da mesma forma, é
onde ele deixa mais explícita e desenvolvida sua posição diante do socialismo
utópico. Por isso o Manifesto Comunista precisaria ser
analisado, pois, caso contrário, o procedimento que o próprio Abensour acusa os
intérpretes de Marx, se aplicaria a ele mesmo (repetindo: “a seleção, a redução
e o afastamento de outros textos a partir das normas assim encontradas,
eliminando-se necessariamente as virtualidades de que esses textos são
portadores e, de modo mais geral, todo elemento, toda significação lateral que
não concorde com as normas arbitrariamente estabelecidas”). O Manifesto pouco aparece em sua análise. De
qualquer forma, Abensour é um dos poucos que tematiza mais profundamente a
relação entre marxismo original e socialismo utópico.
A posição de Marx diante do socialismo utópico está mais
desenvolvida no Manifesto Comunista e
os elementos essenciais estão presentes nos poucos trechos do mesmo, inclusive
reforçando a interpretação de Abensour. Marx analisa o socialismo utópico
através de sua teoria da história, ou seja, do materialismo histórico. Esse é
um elemento fundamental. Para Marx, a história das sociedades de classes é caracterizada
pela luta de classes, tal como se vê no próprio Manifesto Comunista (MARX e ENGELS, 1978). O socialismo utópico é
interpretado como expressão intelectual de um estágio rudimentar da luta
proletária:
As primeiras tentativas do proletariado para alcançar seus objetivos,
realizadas em épocas de efervescência geral, no período de destruição da
sociedade feudal, falharam, devido ao estado precário do proletariado e à
ausência de condições econômicas para sua emancipação, condições que só
poderiam ser provocadas pela época burguesa. A literatura revolucionária que
acompanhara esses primeiros movimentos do proletariado possuía,
necessariamente, um caráter reacionário, inculcando o ascetismo universal e um
grosseiro igualitarismo (MARX e ENGELS, 1978, p. 120).
Marx complementa dizendo que os sistemas produzidas por
Saint-Simon, Fourier, Owen e outros, surgem nesse primeiro momento de luta
entre burguesia e proletariado. Ou, mais explicitamente:
Como o desenvolvimento dos antagonismos de classes acompanha o da
indústria, a situação econômica, no seu entender, não oferece as condições
materiais necessárias à emancipação do proletariado. Por isso, procuram uma
nova ciência social, novas leis sociais, que criem tais condições (MARX e
ENGELS, 1978, p. 120).
Abensour poderia ter retirado desse trecho mais um elemento
para reforçar a crítica de Marx da criação de ciência e sistemas de pensamento.
Marx conclui que:
Os fundadores desses sistemas reconhecem os antagonismos de
classe e a ação dos elementos destruidores na própria sociedade dominante. Mas
o proletariado ainda em formação lhes parece uma classe sem qualquer iniciativa
histórica ou qualquer movimento político independente
Marx não apenas relaciona socialismo utópico e
desenvolvimento incipiente do proletariado, como também aponta para a posição
dos utopistas diante do proletariado, ao considera-lo sem capacidade de
“iniciativa histórica” e “movimento político independente”. Aqui temos um
elemento fundamental do pensamento de Marx. A sua teoria da revolução é fundada
na ideia de autoemancipação do proletariado (VIANA, 2016; VIANA, 2012). Em
várias obras ele destacou esse processo e analisou os estágios da luta operária
(MARX, 1989; MARX e ENGELS, 1978) até o ponto da autoemancipação (MARX, 1986;
MARX e ENGELS, 1978). O Manifesto
Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, redigido por Marx,
aponta justamente para essa ideia-chave: “a emancipação dos trabalhadores é
obra dos próprios trabalhadores”.
A ideia central de Marx é que a história das sociedades de
classes é a da luta de classes e a compreensão do seu pensamento político só
pode ser efetivada tendo em vista essa concepção basilar e bem distinta da dos
pseudomarxistas e diversos intérpretes do seu pensamento, incluindo aqueles que
trocam luta de classes por luta de partidos e coisas semelhantes. Assim, da
social-democracia ao bolchevismo, se repete os mesmos erros dos socialistas
utópicos:
À atividade histórica substituem sua própria imaginação pessoal; às
condições históricas da emancipação, condições fantásticas, e à organização
espontânea e gradativa do proletariado em classe em organização social
pré-fabricada por eles. Em sua opinião, a história do futuro resume-se na
propaganda e na realização prática de seus planos de organização social. Na
formação desses planos, compenetram-se que estão cuidando sobretudo dos
interesses da classe operária, a classe mais sofredora. Para eles, o
proletariado só existe sob o prisma de classe mais sofredora (MARX e ENGELS,
1978, p. 121).
Essa crítica de Marx se aplica igualmente à
social-democracia e bolchevismo. Contudo, existem diferenças. O socialismo
utópico surge numa época determinada, na qual a classe burocrática e a classe
intelectual estão pouco desenvolvidas, especialmente a última. A
social-democracia e o bolchevismo emergem numa época em que a burocracia e a
intelectualidade já estão desenvolvidas como classes sociais[9].
Por isso, o substitucionismo utópico é devido ao contexto histórico no qual o
proletariado está pouco desenvolvido e os utopistas eram filantropos
preocupados com a classe mais sofredora, mesmo porque a exploração nessa época
era bem mais visível e as longas jornadas de trabalho e condições de vida
bastante precárias.
Esse caráter incipiente do proletariado faz emergir tais
planos imaginativos e o desejo de “melhorar a condição de todos os membros da
sociedade”, “apelam indistintamente para todas as classes da sociedade”, até
mesmo para a classe dominante. Marx ironiza, parafraseando Leibniz: “pois como
poderiam as pessoas deixar de reconhecer nesse sistema, o melhor plano possível
para a melhor das sociedades possíveis?” (MARX e ENGELS, 1978, p. 121). Eis o
melhor plano possível para o melhor dos mundos possíveis. É por isso que os
socialistas utópicos “rejeitam toda ação política e, principalmente, toda ação
revolucionária”. Aqui está um dos elementos fundamentais da crítica de Marx ao
socialistas utópicos. Eles “procuram atingir seus objetivos por meios pacíficos
e tentam abrir caminho ao novo evangelho social por experiências em pequena
escala, necessariamente destinadas ao fracasso, e pela força do exemplo” (MARX
e ENGELS, 1978, p. 121).
Nesse sentido, o texto “propagandista” de Marx expressa uma
explicação para a existência do socialismo utópico, o estado rudimentar do
proletariado e isso explica, por sua vez, seus limites: substituição do
proletariado, planos imaginativos em substituição da luta de classes, meios
gerais e pacíficos de luta. O socialismo utópico é limitado pela condição
histórica do proletariado, o que gera o substitucionismo de classe (os
filantropos substituem o proletariado), de imaginação (a luta operária é
substituída pelos planos imaginativos), de luta (a luta revolucionária é
substituída por apelo geral para toda a sociedade, meios pacíficos e pequenas
experiências e a força do exemplo)[10].
Desta forma, a crítica ao socialismo utópico não é por causa da utopia em si e
sim por causa do utopismo, caracterizado pelo substitucionismo, cuja fonte é
uma suposta “ciência social” e criação de “sistemas utópicos” ao invés da
análise da realidade concreta e da força social capaz de efetivar a revolução
social, o proletariado.
A análise de Marx do socialismo utópico vislumbra uma
questão fundamental e que persistirá no anarquismo e outras tendências que
surgirão posteriormente e continuam existindo até hoje. Ao entender a classe
operária como mais sofredora, ele acaba sendo expressão dos sentimentos e
necessidades dessa classe, mas não dos seus interesses e nem consegue elevar
isso ao nível de uma teoria. Marx explicita essa questão dos sentimentos e
necessidades com a expressão “aspirações instintivas”:
A descrição fantástica da sociedade futura, feita numa época em que o
proletariado ainda se encontra num estado rudimentar e tem apenas uma concepção
fantasista de sua própria posição, corresponde às primeiras aspirações instintivas
dessa classe a uma transformação geral da sociedade (MARX e ENGELS, 1978, p.
121).
Aqui reside o aspecto positivo do socialismo utópico. Ele é
a expressão das aspirações instintivas do proletariado, manifestando
sentimentos simpáticos pelo proletariado[11]. Essa
primeira manifestação é “instintiva” por lhe faltar maior racionalidade e
desenvolvimento. Por isso sua expressão sentimental por indivíduos de outras
classes é acompanhada pelo substitucionismo e pela imaginação, os “sistemas
utópicos”. Derivado disso, emerge o mérito do socialismo utópico:
Essas obras socialistas e comunistas também contêm um elemento crítico.
Atacam todos os princípios da sociedade vigente. Portanto, fornecem valioso
material para o esclarecimento da classe operária. As medidas práticas que
propõem – tais como a supressão da distinção entre a cidade e o campo, a
abolição da família, das indústrias nas mãos de particulares, do sistema de
salários, a proclamação da harmonia social, a transformação do Estado em mero
administrador da produção – anunciam o desaparecimento dos antagonismos de
classes que mal começam e que são encarados por tais obras de maneira
indefinida e imprecisa. Por conseguinte, essas medidas possuem um caráter
simplesmente utópico (MARX e ENGELS, 1978, p. 122).
Marx destaca, nesse trecho, o caráter crítico do socialismo
utópico e reconhece o “valioso material” para esclarecimento do proletariado.
Como manifestação utópica, a crítica da sociedade presente é expresso pelo
socialismo utópico. As medidas práticas anunciam o fim da luta de classes, mas
o estágio rudimentar dessa acaba gerando uma percepção indefinida e imprecisa
por parte dos socialistas utópicos e suas obras. A crítica é o ponto forte, as
medidas práticas já são ambíguas e possuem um caráter “utópico”, aqui a palavra
aparecendo num sentido pejorativo.
Depois de reconhecer o vínculo sentimental do socialismo
utópico com o proletariado, Marx reconhece seu caráter crítico, mas limitado,
especialmente por não compreender mais profundamente a luta de classes e por
isso suas medidas práticas são limitadas. A crítica de Marx ao socialismo utópico
é expressa mais claramente na análise de sua defasagem histórica:
A importância do socialismo e do comunismo crítico-utópico está na
razão inversa do desenvolvimento histórico. À medida que se forma e se
desenvolve a moderna luta de classes, o fantástico afã de abstrair-se dela, os
ataques que lhes são feitos, perdem todo o valor prático e toda a justificação
teórica. Por isso, embora os fundadores desses sistemas fossem revolucionários
em certos aspectos, seus discípulos formaram meras seitas reacionárias, pois se
prendem às concepções de seus mestres, apesar do desenvolvimento histórico do
proletariado. Procuram consistentemente atenuar a luta de classes, conciliando
os antagonismos. Sonham com a realização experimental de suas utopias sociais,
com phalanstères isolados, com a
criação de colônias internas, ou com o estabelecimento da Pequena Icaria – edições de bolso da Nova Jerusalém – para realizar
tais castelos no ar, veem-se obrigados a apelar para os sentimentos e os cofres
dos burgueses. Pouco a pouco, caem na categoria dos socialistas conservadores
ou reacionários [...], deles diferindo apenas por um pedantismo mais
sistemático e uma fé fanática e supersticiosa nos efeitos miraculosos de sua
ciência social (MARX e ENGELS, 1978, p. 122).
O socialismo utópico, em sua época de nascimento, era
justificado pelo estágio rudimentar do proletariado e sua luta. Contudo, com o
desenvolvimento histórico, essa justificativa se perde e o seu valor decresce.
A formação de “seitas reacionárias” e a recusa da luta de classes apenas
mostram o seu progressivo distanciamento do proletariado e dos interesses desta
classe. O substitucionismo, no novo contexto histórico, se torna conservador. O
mérito do socialismo utópico se perde com o passar do tempo, em “razão inversa
do desenvolvimento histórico”.
Do Socialismo Utópico ao Socialismo Teórico
A análise do socialismo utópico por Marx no Manifesto Comunista reforça, no geral, a
interpretação de Abensour (1990) na maioria dos seus aspectos[12]. Marx
não enfatiza a oposição entre utopia e ciência, como bem colocou Abensour
(1990). Inclusive, a formação de “sistemas de pensamento”, é comum e muitas
vezes revelam seu caráter científico, no sentido pejorativo do termo, tal como
Marx coloca em algumas passagens: “assim como os economistas são os
representantes científicos da classe burguesa, os socialistas e os comunistas
são os teóricos da classe proletária” (MARX, 1989, p. 118).
Hegel utiliza o termo ideologia como sendo o pensamento
congelado de uma época e a teoria como expressão (verdadeira) dessa mesma época
(GOMBIM, 1974). Essa oposição entre ideologia e teoria será retomada em algumas
passagens por Marx e, posteriormente, por Karl Korsch (1977). A teoria, no
entanto, é essencialmente crítica. A crítica revolucionária de Marx é manifestação
de sua teoria. A teoria só é possível quando emerge uma classe social que traz
em si a realização da sociedade futura, ou seja, do proletariado. A teoria, e a
crítica revolucionária que ela possibilita, só pode existir a partir da
perspectiva do proletariado como classe autodeterminada[13].
É por isso que o marxismo surge não com a formação do proletariado, mas quando
sua luta atinge um estágio mais elevado (LABRIOLA, 1979).
Por conseguinte, o socialismo de Marx é teórico e é a
suplantação do socialismo utópico. Ele conserva os elementos válidos do
socialismo utópico (expressão sentimental do proletariado, crítica da sociedade
presente, projeto de sociedade do futuro), mas os eleva a um nível superior e
supera os seus limites. Assim, o proletariado é o coração e o socialismo
teórico (marxismo) é a cabeça (MARX, 1968). A expressão sentimental e dos
interesses de classe do proletariado ganha a forma teórica, superior à sua
forma utópica, e assim supera os seus limites, transformando a crítica da
sociedade presente em crítica radical e fundamentada teoricamente[14], e
colocando a sociedade do futuro, o comunismo (hoje diríamos autogestão, para
diferenciar das deformações históricas em relação ao nome e países que foram
equivocadamente denominados como “comunistas”), como processo de criação
proletária que se constitui na realidade concreta, o que significa o abandono
dos “planos imaginativos”[15].
A revolução parcial proposta pelos socialistas utópicos é substituída pela
revolução total do proletariado (ABENSOUR, 1990) e os sistemas utópicos gerados
pela imaginação é substituído pela análise da tendência histórica e das suas
formas de emergência através da luta proletária.
Assim, essa passagem do socialismo utópico para o teórico
significa uma suplantação intelectual. Ela foi a expressão teórica do movimento
real do proletariado. A imaginação, os sistemas, a suposta ciência social, etc.
são superadas e em seu lugar brota a crítica radical e a teoria revolucionária.
Se na época em que o proletariado não tinha forças para se autoafirmar como
classe independente e autônoma, o socialismo utópico se justificava como sua
expressão sentimental, isso não tem mais valor. Até hoje isso ainda ocorre, tal
como em certas correntes do anarquismo, cuja expressão sentimental do
proletariado fica restrita a doutrinas limitadas. O seu significado é outro
depois das lutas operárias radicalizadas (e revoluções proletárias inacabadas)
e do desenvolvimento teórico expresso pelo marxismo original e seus
continuadores, pois significa que a expressão sentimental está aquém do
potencial e até mesmo do desenvolvimento real do movimento operário.
Marx enfatizou a necessidade de superar a separação entre
razão e sentimentos, ou, como ele colocava metaforicamente, cabeça e coração. A
cabeça sem coração é fria e imobilizadora e o coração sem cabeça é voluntarismo
cego. O socialismo teórico[16] é
a unificação entre cabeça e coração, entre razão e sentimentos. Como já dizia
Hegel, “não basta amar, é preciso saber amar”. É nesse contexto que a teoria se
torna fundamental e suplanta a utopia, mantendo o fogo aceso dos sentimentos,
mas guiando-lhes pela compreensão da realidade concreta através da teoria. A
teoria conserva o fogo utópico e o eleva a um nível superior, ao torná-lo
materializável. É por isso que o marxismo foi considera por Ernst Bloch como
uma “utopia concreta” (BICCA, 1987).
Considerações Finais
O trajeto do presente artigo foi marcado por uma
reconstituição da análise de Marx do socialismo utópico e da sua crítica ao
mesmo, bem como sua proposta de superação com o “socialismo teórico” (chamado
na época por Marx como “comunismo crítico” e por Engels como “socialismo
científico”, entre outras formas). O objetivo foi esclarecer que a crítica de
Marx não se referia ao projeto de uma sociedade futura, como popularmente se
coloca, e sim como esse era constituído pelo socialismo utópico, através de
sistemas utópicos e planos imaginativos, parte da crítica geral do
substitucionismo utopista. Desta forma, ao contrário daqueles que sempre
quiseram afastar Marx do socialismo utópico com o objetivo de lhe retirar o
caráter revolucionário, ele nega este em seus limites e falta de radicalidade[17],
não por excesso deste. O marxismo original reconheceu os méritos da utopia e do
socialismo utópico e ao mesmo tempo promoveu sua suplantação e sua substituição
pela teoria revolucionária do proletariado.
Referências
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VIANA, Nildo.
Quem tem Medo da Utopia? Brasil
Revolucionário, ano 2, n. 7, dezembro de 1990.
[1]
Alguns concebem que algumas obras, como A
República, de Platão (1974) ou A
Cidade de Deus, de Santo Agostinho, seriam “utopias”. Essa é uma
interpretação problemáticas. As utopias são produtos da sociedade moderna e
emergem no capitalismo. Os escritos de Platão e Santo Agostinho são
pré-utópicas e se assemelham a pseudoutopias (BERNSTEIN, 2016). A primeira obra
utópica é, sem dúvida, a de Thomas Morus. “A Utopia é e continua sendo o
primeiro retrato mais recente de sonhos de ideais democrático-comunistas”
(BLOCH, 2006, p. 74). Apesar da formulação linguisticamente inadequada de Ernst
Bloch, a primeira utopia literária é a de Morus, enquanto que as primeiras
manifestações de utopias sociais são as dos camponeses rebelados, especialmente
a de Thomas Münzer (1978).
[2] As
utopias sociais são práticas e não meramente literárias, ou seja, elas são
projetos de sociedade que os utopistas buscam materializar na realidade
concreta. As utopias artísticas são manifestações utópicas em outras formas de
arte além da literatura, especialmente no cinema.
[3] A
alteração do título da obra tem pouca importância aqui. Do mesmo modo,
preferimos o uso do sobrenome latinizado, Morus, ao uso original inglês, More,
pois é na primeira forma que ele ficou conhecido.
[4]
Tal como Morus coloca: “desejo-o mais do que espero” (MORE, 2012).
[5]
“Até um período recente, as utopias sociais não deixaram de recuar, sob pressão
do pensamento marxista, que parecer ter a chave do único socialismo possível, o
‘socialismo científico’”(PETITFILS, 1977, p.18).
[6] Alguns
tentaram relacionar Marx e o socialismo utópico de forma positiva, mas através
de uma interpretação mecânica, como no caso de Russ (1991). Esse autor usa um
comparação abstratificada ao encontrar elementos em Marx e em Fourier ou
Proudhon para citar uma influência destes pensadores sobre o primeiro. Sem
dúvida, Marx se inspirou em elementos destes autores, mas esse procedimento
interpretativo é totalmente equivocado e por isso as inspirações reais são
substituídas por inspirações imaginárias. No caso da propriedade, por exemplo,
num primeiro momento Marx elogia Proudhon (quando este escreveu O Que é Propriedade? e é preciso
esclarecer que seu pensamento sofreu alteração em A Filosofia da Miséria, que, por sua vez, foi alvo de crítica de
Marx) e no caso da “antropologia” (entendida aqui como concepção de natureza
humana) é possível que ele tenha se inspirado em algo de Fourier, mas sua fonte
de inspiração fundamental, nesse aspecto, foi Feuerbach.
[7]
“Os comunistas franceses mais científicos, Dézany, Gay, etc., desenvolvem, como
Owen, a doutrina do materialismo enquanto doutrina do humanismo real e base
lógica do comunismo” (MARX Apud. ABENSOUR, 1990, p. 20).
[8]
McLelland (1993) percebe que Marx usa ciência num sentido mais amplo e
justifica isso pelo idioma alemão, mas Korsch (1983), conhecedor mais profundo
da filosofia alemã, acerta em entender a raiz hegeliana do termo em Marx.
Korsch, em outra obra (1977), coloca explicitamente que “no sentido burguês do
termo” (que é o sentido positivista), o marxismo não é uma ciência. O que ambos
não perceberam é que às vezes Marx usava o termo ciência no sentido negativo
(positivista ou burguês).
[9]
Existe uma extensa bibliografia mostrando o processo de burocratização dos
partidos de esquerda e do substitucionismo no caso do bolchevismo. É suficiente
citar a obra clássica de Robert Michels sobre a social-democracia (MICHELS,
1981) e a de Makhaïsky sobre o bolchevismo (MAKHAÏSKY, 1981).
[10]
As tentativas de Owen com as diversas cooperativas é um exemplo dessas
concepções e os planos de Fourier com seus 700 tipos de falanstérios é exemplar
de “planos imaginativos”.
[11]
Entenda-se, aqui, por “sentimentos simpáticos pelo proletariado”, uma expressão
do fenômeno que consiste em indivíduos de uma classe social expressar os sentimentos
de outra classe social, por compaixão.
[12] O
texto de Engels (1978), por sua vez, reproduz a ideia geral de Marx sobre a
relação entre socialismo utópico e luta proletária no contexto histórico.
Engels não era um pensador tão original quanto Marx e por isso pouco
acrescentou ao que este afirmou. O problema é que os acréscimos, muitas vezes,
são problemáticos. Um elemento desse processo é o uso, muito mais enfático, do
termo “socialismo científico”, entre outros problema que geram confusão,
simplificação e esquematização. É por isso que diversos autores distinguem
entre Marx e Engels (MONDOLFO, 1956; VIANA, 2016).
[13]
Marx distingue “classe em-si” e “classe para-si”, retomando linguagem hegeliana
(HEGEL, 1988), e que significa classe determinada, caracterizada por sua
posição na divisão social do trabalho (no caso do proletariado, por sua posição
nas relações de produção capitalistas) e classe autodeterminada, que se associa
e luta por seus interesses de classe (VIANA, 2016).
[14] A
monumental obra O Capital é um dos
capítulos de tal crítica do capitalismo e das ideologias legitimadoras do
mesmo.
[15]
Isso explica, parcialmente, o vínculo que alguns viram entre “esquerdismo”,
inclusive citando “autogestão” e “comunismo de conselhos”, com utopia
(PETITFILS, 1977), que é uma retomada da concepção expressa pelo bolchevismo
(“corrente fria do marxismo”) em relação ao marxismo revolucionário que é uma
continuação e desenvolvimento do marxismo original. Aqui a utopia é vista
pejorativamente e sua união com o comunismo de conselhos e a teoria da
autogestão tem o mesmo significado da tentativa de Lênin de desqualificar o
esquerdismo. Contudo, ao contrário do socialismo utópico, o comunismo de
conselhos e o marxismo autogestionário se fundamentam na teoria iniciada por
Marx e nas experiências históricas do proletariado e suas lutas concretas e
tendência histórica. Essa crítica é válida para as tendências que querem
congelar o comunismo de conselhos, mas não para sua versão original, e muito
menos para o marxismo autogestionário. Num caso, foram os conselhos operários e
a possibilidade histórica e concreta de transformação radical que alimentou a
teoria conselhista e, noutro caso, foram as experiências autogestionárias.
[16]
A expressão “socialismo teórico”, devido ao processo de deformação do termo
socialismo, é problemática e aqui tem apenas o papel de substituir o termo
ainda mais problemático que é “socialismo científico”. Da mesma forma, o termo
“comunismo crítico”, usado por Marx e retomado por Labriola (1979) é problemático
pela deformação da palavra “comunismo”, muito mais ampla. De resto, o nome
marxismo também foi deformado e por isso a necessidade de distinguir o marxismo
do pseudomarxismo e explicitar o que significa marxismo original, bem como
comunismo de conselhos e marxismo autogestionário, tendências distintas de
outras manifestações consideradas marxistas, como social-democracia e
bolchevismo.
[17]
“Marx designa como utópico todo projeto político-social que peque por defeito
de radicalidade, e permaneça volens nolens no interior dos limites da própria
ordem que pretende transformar” (ABENSOUR, 1990, p. 32). “Quem apenas nega o
sistema é uma negação do sistema, e, portanto, um apêndice preso ao sistema”
(TEIXEIRA, 1983, p. 30). Apesar do termo “sistema”, ao invés do conceito de
capitalismo, aqui apenas se deixa bem claro que o negacionismo não é utópico,
pois este é afirmativo. Marx supera a utopia abstrata e coloca em seu lugar a
utopia concreta, que é uma transformação radical da sociedade, o que significa abolição
do capitalismo e instauração do comunismo (autogestão).
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