Fim
do SUS?
Corte
de gastos no Sistema Único de Saúde
Nildo
Viana
O SUS –
Sistema Único de Saúde – é a face mais visível e concreta das políticas
estatais de saúde no Brasil. No entanto, a sua situação vem piorando
paulatinamente com o passar do tempo. Hoje, o SUS se encontra precarizado e
cada vez mais surgem reclamações e reivindicações, apontando para diversos
tipos de problemas, como qualidade do atendimento, longas filas de espera, falta
de equipamentos, má remuneração dos trabalhadores de saúde, entre inúmeras
outras. A explicação dessa situação do SUS remete às mudanças sociais,
especialmente a instauração do neoliberalismo em nosso país e suas
consequências, tais como a intensificação da mercantilização e precarização que
atinge principalmente os setores da saúde e educação.
O SUS foi produto
de um longo processo histórico, desde as reivindicações e pressões sociais para
a melhoria das políticas de saúde, incluindo propostas mais concretas, até a
constituição dos seus princípios fundamentais na Constituição Federal de 1988 e
sua implementação ocorreu através da Lei nº 8.080, de 1990 (chamada “Lei
Orgânica da Saúde”) e da Lei nº 8.142, de 1990. A constituição do SUS remete a
um determinado contexto político e social. O contexto era marcado pelo processo
de redemocratização e pela existência de movimentos sociais populares e outros
atuantes, além de forças políticas, e outros processos sociais que apontavam
para uma proeminência das concepções progressistas, apesar da tendência mundial
apontar para um sentido contrário.
A situação do SUS, no entanto, começa a se
alterar com a nova modalidade de política estatal que surge a partir da instauração
do Estado neoliberal no Brasil. Esse processo se inicia como governo Collor, em
1990, e se prolonga pelos governos seguintes (Itamar Franco, Fernando Henrique
Cardoso, Lula, Dilma). Para entender esse processo é necessário, portanto,
entender o que é o neoliberalismo e qual é a modalidade de política estatal que
lhe corresponde, para entender o seu processo de precarização e situação atual.
O
neoliberalismo é uma forma assumida pelo Estado, caracterizado por atender as
novas necessidades da acumulação de capital. O contexto explicativo é o do
final dos anos 1960, com o processo de crise da acumulação capitalista e
ascensão das lutas sociais, tal como no caso dos países europeus e Estados
Unidos. As lutas operárias e estudantis, radicalizadas nos EUA, França, Itália,
Alemanha, entre outros países, expressaram um momento de crise que não se
resolveu nesse período. As lutas sociais não geraram transformação social e
acabaram se enfraquecendo. Os anos 1970 foram marcados pela continuidade da
crise e por alguns processos de radicalização, como na Revolução Portuguesa de
1974 e a Revolução Polonesa de 1980. A crise do petróleo de 1974 promoveu um
reforço da crise que perdurou durante um bom tempo, caracterizado por altos
índices inflacionários, salários defasados, desemprego, etc. Essa crise atingiu
mais fortemente os países capitalistas subordinado, mas foi generalizada.
É nesse
contexto que ocorrem mudanças no que é denominado regime de acumulação. Um
regime de acumulação é uma forma pela qual o capitalismo organiza a acumulação
de capital, sendo que seus elementos fundamentais são: a) uma determinada
organização do trabalho; b) uma determinada forma de Estado; c) uma determinada
forma de relações internacionais (VIANA, 2009; VIANA, 2003). Derivado disso há
mutações culturais e gerais na sociedade. O regime de acumulação anterior, o regime
de acumulação conjugado, mantinha o fordismo como forma de organização do
trabalho, a expansão do capital oligopolista transnacional no plano das relações
internacionais, e uma forma estatal integracionista, denominado ideologicamente
como do “bem estar social”, providencial, keynesiano, entre outros nomes. Esse
regime de acumulação entrou em crise e as lutas sociais acabaram reforçando a
tendência por sua substituição por um novo regime de acumulação.
A partir dos
anos 1980 começa a se instituir os elementos constitutivos desse novo regime de
acumulação. É a partir desse momento que se inicia, em alguns países, a chamada
“reestruturação produtiva”, promovendo a substituição da hegemonia do fordismo
pela hegemonia do toyotismo. O fordismo era voltado para a produção massiva e o
consumo correspondente, enquanto que o toyotismo para as necessidades do
mercado (produção por demanda, personalizada, etc.). Muitos autores vão constatar
a “rigidez” do fordismo com a “flexibilidade” do toyotismo. Da mesma forma, as
relações internacionais passam a mudar, com a formação de blocos regionais,
ampliação do intervencionismo norte-americano, intensificação da exploração
internacional (Iraque, México, etc.).
A mudança
fundamental para entender as políticas estatais é a da forma estatal. O Estado
intervencionista vai sendo, paulatinamente, substituído pelo chamado Estado
neoliberal, em todo o mundo. No início dos anos 1980, inicia-se o Governo de
Margareth Thatcher na Inglaterra, de Ronald Reagan e de Helmutt Kohl, na
Alemanha. No final dessa década, o neoliberalismo já havia se generalizado na
Europa e avança para diversos outros países. No Brasil, o governo Collor foi o
primeiro que implementa políticas neoliberais, ainda que moderadamente, devido,
em parte, à fragilidade de suas bases de apoio, e, em parte, por causa da
resistência de setores da sociedade. O governo Itamar Franco dá continuidade às
políticas neoliberais, especialmente na política financeira, e o governo FHC
consolida o neoliberalismo, sendo que este permanece nos governos posteriores
(Lula e Dilma), com algumas variações formais.
O que
interessa destacar é que o neoliberalismo não é um modelo e sim uma forma de
organização estatal que implementa determinadas políticas estatais, sob formas
que variam de acordo com a época, país, situação, partidos no governo, etc. As
ideologias neoliberais, que foram produzidas por diversas escolas de pensamento
econômico, não são aplicadas e sim são retomadas quando é de interesse dos
governos. O neoliberalismo também não é estático. Ele assume formas distintas
de acordo com o desenvolvimento da acumulação capitalista (o que aparece na
imprensa geralmente como “crescimento econômico”). O neoliberalismo em seu
período inicial busca realizar privatizações, desregulamentar as relações de
trabalho, efetivar uma política financeira determinada (busca estabilidade
financeira e combater a inflação, por exemplo), diminuir os gastos estatais,
aumentar a política repressiva. Após sua consolidação, o seu foco é manter a
política de estabilidade financeira, evitar gastos estatais, manter a política
repressiva. Em épocas de desestabilização econômica e política, a tendência é
adotar políticas de austeridade. Esse processo varia de acordo com a relação de
forças no bloco dominante (conjunto de forças e partidos que predominam na
sociedade), especialmente quem detém o aparato governamental, bem como a capacidade
de pressão de setores da população.
A compreensão
do SUS e sua situação atual pressupõe a compreensão desse processo. O SUS foi
criado numa conjuntura política determinada, no qual os movimentos sociais
populares, os profissionais da área da saúde, a conjuntura política brasileira,
entra outras determinações, permitiu sua criação, tal como colocamos
anteriormente.
A criação do
SUS não correspondia à modalidade de política estatal neoliberal. A sua
existência correspondia ao Estado integracionista, ligado ao regime de
acumulação anterior. A modalidade de política estatal de assistência social
durante o regime de acumulação conjugado era a de políticas estruturais e universais,
enquanto que a modalidade neoliberal trabalha com políticas paliativas e
segmentares, entre outras diferenças. A conjuntura da época permitiu a criação
do SUS, mas a sua implementação não foi efetivada de acordo com o que seria
esperado, pois ocorreu já sob o signo do neoliberalismo. Os princípios
fundamentais presentes na Constituição Federal de 1988 (a universalidade, a
integralidade, a equidade, a descentralização e a participação social) foram
quase todos abandonados (VIANA, 2017).
A
implementação do SUS ocorreu através de um embate de concepções variadas a seu
respeito, sendo que predominou a concepção neoliberal, aproveitando alguns
aspectos do projeto original (como a descentralização). O SUS surge, portanto,
não como política universal e estrutural, como no projeto original, mas sim
como política paliativa e segmentar. O segmento social focalizado pelo SUS pode
ser localizado pelos programas implementados: PSF (Programa Saúde da Família),
depois denominado ESF (Estratégia Saúde da Família). Esse segmento social é
composto por aqueles que usam exclusivamente o SUS como serviço de saúde,
considerado “prioritário” pelo Ministério da Saúde.
A política
estatal de saúde de cunho neoliberal promove um processo de
hipermercantilização. Ou seja, os serviços de saúde se tornam cada vez mais
mercantilizados. Por isso se institui um processo de redução de gastos (ao
delimitar seu foco com apenas o segmento que realmente necessita do SUS) e se
estabelece um vínculo cada vez maior com o capital privado. Isso justifica o
foco naqueles que usam exclusivamente o mesmo, pois os que possuem acesso a
serviços de saúde particulares, podem ser excluídos e evitar gastos estatais.
Esse processo de intensificação da mercantilização pode ser visto no
desinvestimento em equipamentos diagnósticos e terapêuticos e tecnologia
ligados aos serviços de assistência à saúde, o que foi acompanhada pelo
crescimento dos serviços privados complementares ao SUS, através de contratos e
convênios. Esses serviços estatais de saúde já eram mercantilizados, mas isso
se intensifica com a remuneração por produção e fortalecimento do serviço
privado de saúde.
Ao lado
disso, a política de contenção de gastos aponta para precarização das relações
de trabalho, bem terceirização dos trabalhadores de saúde, chegando a 60% do
total (SANTOS, 2013). Os trabalhadores de saúde em geral possuem relações de
trabalho precarizadas e mal remuneradas. Junto com esse processo de
hipermercantilização dos serviços estatais de saúde, ocorre também uma
intensificação da prevaricação. A prevaricação é o processo no qual há
transferência da renda estatal para empresas privadas e indivíduos, seja
através da corrupção, convênios, doações, etc. (VIANA, 2016). No âmbito das
políticas estatais de saúde, isso se manifesta através da subvenção do setor
privado de saúde. Essa é outra forma de prevaricação, que ocorre através de
subvenção (renúncia fiscal, isenções, deduções, cofinanciamento de planos
privados de saúde, etc.). Os planos privados de saúde recebem cerca de 30% do
seu faturamento anual oriundo de tal subvenção (SANTOS, 2013). Reforçando esse
processo de hipermercantilização e prevaricação há também a terceirização da gestão
dos órgãos estatais de saúde, através das chamadas OS (Organizações Sociais) e
OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público).
Nesse
contexto, a situação do SUS é dramática, mas agora ela pode se tornar ainda
pior. A política estatal de saúde acompanha a dinâmica da acumulação
capitalista e da política institucional. A crise financeira de 2008 mostrou
algumas fragilidades do neoliberalismo e ainda promoveu um processo de crise
que atingiu, sob formas diferentes e em períodos diferentes, gerando
insegurança e desestabilização. Esse processo acabou se aprofundando e gerando
uma nova fase do neoliberalismo em diversos países (em especial na Grécia,
Portugal e Espanha), caracterizado por políticas de austeridade e aprofundamento
dos cortes de gastos, responsabilidade fiscal, etc. Neste contexto, a tendência
é que o SUS sofra uma precarização ainda maior, inclusive correndo o risco de
sua privatização. Esse processo não está definido, pois depende de diversos
elementos, desde a situação financeira, as políticas estatais mais gerais, o
processo de acumulação de capital, a situação mundial, a pressão da população,
a dinâmica governamental, etc.
Contudo, a
situação brasileira e seus diversos problemas tornam a tendência principal nada
favorável ao SUS. Em curto prazo, pelo menos, a tendência é de maior precarização.
Em longo prazo vai depender da situação do país em seus diversos aspectos. Assim,
a pressão e organização da população, dos trabalhadores e movimentos sociais
populares é um desses aspectos, bem como a dinâmica da acumulação de capital em
nível nacional, entre diversos outros. É nesse embate de forças e tendências,
no interior de um determinado contexto econômico e social, que se definirá o
futuro do SUS
Referências
CAMPOS, C. M. S.
Necessidades de saúde como objeto das políticas públicas: as práticas do
enfermeiro na Atenção Básica. 2014. Tese (Livre-docência) - Escola de
Enfermagem da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
CAMPOS,
Celia Maria Sivalli; VIANA, Nildo e SOARES,
Cassia Baldini. Mudanças no
capitalismo contemporâneo e seu impacto sobre as políticas estatais: o SUS em debate. Saúde
e Sociedade. [online]. 2015, vol.24, suppl.1,
pp.82-91. ISSN 0104-1290. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902015S01007.
SANTOS, Nelson
Rodrigues. SUS, Política Pública de Estado: Seu desenvolvimento instituído e
instituinte e busca de saídas. Ciência
& Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 273-280, 2013.
VIANA, N. A constituição das
políticas públicas. Revista Plurais,
Anápolis, v. 1, n. 4, p. 94-112, 2006. Disponível em: . Acesso em: 18 ago.
2013.
VIANA, N. Estado, democracia e cidadania. A dinâmica da política
institucional no capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.
VIANA, N. O capitalismo na era da acumulação integral. São Paulo: Idéias e
Letras, 2009.
VIANA, Nildo. A Mercantilização das Relações Sociais.
Rio de Janeiro: Ar Editora, 2016.
VIANA, Nildo. Representações e valores nas políticas de
saúde no Brasil (1990-2012). (tese de pós-doutorado). São Paulo: Programa
de Pós-Graduação em Enfermagem/USP, 2015.
Nildo Viana é Professor da
Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB, pós-doutor pela
Universidade de São Paulo e autor de diversos livros.
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