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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Fim do SUS? Corte de gastos no Sistema Único de Saúde

Fim do SUS?
Corte de gastos no Sistema Único de Saúde


Nildo Viana

O SUS – Sistema Único de Saúde – é a face mais visível e concreta das políticas estatais de saúde no Brasil. No entanto, a sua situação vem piorando paulatinamente com o passar do tempo. Hoje, o SUS se encontra precarizado e cada vez mais surgem reclamações e reivindicações, apontando para diversos tipos de problemas, como qualidade do atendimento, longas filas de espera, falta de equipamentos, má remuneração dos trabalhadores de saúde, entre inúmeras outras. A explicação dessa situação do SUS remete às mudanças sociais, especialmente a instauração do neoliberalismo em nosso país e suas consequências, tais como a intensificação da mercantilização e precarização que atinge principalmente os setores da saúde e educação.
O SUS foi produto de um longo processo histórico, desde as reivindicações e pressões sociais para a melhoria das políticas de saúde, incluindo propostas mais concretas, até a constituição dos seus princípios fundamentais na Constituição Federal de 1988 e sua implementação ocorreu através da Lei nº 8.080, de 1990 (chamada “Lei Orgânica da Saúde”) e da Lei nº 8.142, de 1990. A constituição do SUS remete a um determinado contexto político e social. O contexto era marcado pelo processo de redemocratização e pela existência de movimentos sociais populares e outros atuantes, além de forças políticas, e outros processos sociais que apontavam para uma proeminência das concepções progressistas, apesar da tendência mundial apontar para um sentido contrário.
 A situação do SUS, no entanto, começa a se alterar com a nova modalidade de política estatal que surge a partir da instauração do Estado neoliberal no Brasil. Esse processo se inicia como governo Collor, em 1990, e se prolonga pelos governos seguintes (Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma). Para entender esse processo é necessário, portanto, entender o que é o neoliberalismo e qual é a modalidade de política estatal que lhe corresponde, para entender o seu processo de precarização e situação atual.
O neoliberalismo é uma forma assumida pelo Estado, caracterizado por atender as novas necessidades da acumulação de capital. O contexto explicativo é o do final dos anos 1960, com o processo de crise da acumulação capitalista e ascensão das lutas sociais, tal como no caso dos países europeus e Estados Unidos. As lutas operárias e estudantis, radicalizadas nos EUA, França, Itália, Alemanha, entre outros países, expressaram um momento de crise que não se resolveu nesse período. As lutas sociais não geraram transformação social e acabaram se enfraquecendo. Os anos 1970 foram marcados pela continuidade da crise e por alguns processos de radicalização, como na Revolução Portuguesa de 1974 e a Revolução Polonesa de 1980. A crise do petróleo de 1974 promoveu um reforço da crise que perdurou durante um bom tempo, caracterizado por altos índices inflacionários, salários defasados, desemprego, etc. Essa crise atingiu mais fortemente os países capitalistas subordinado, mas foi generalizada.
É nesse contexto que ocorrem mudanças no que é denominado regime de acumulação. Um regime de acumulação é uma forma pela qual o capitalismo organiza a acumulação de capital, sendo que seus elementos fundamentais são: a) uma determinada organização do trabalho; b) uma determinada forma de Estado; c) uma determinada forma de relações internacionais (VIANA, 2009; VIANA, 2003). Derivado disso há mutações culturais e gerais na sociedade. O regime de acumulação anterior, o regime de acumulação conjugado, mantinha o fordismo como forma de organização do trabalho, a expansão do capital oligopolista transnacional no plano das relações internacionais, e uma forma estatal integracionista, denominado ideologicamente como do “bem estar social”, providencial, keynesiano, entre outros nomes. Esse regime de acumulação entrou em crise e as lutas sociais acabaram reforçando a tendência por sua substituição por um novo regime de acumulação. 
A partir dos anos 1980 começa a se instituir os elementos constitutivos desse novo regime de acumulação. É a partir desse momento que se inicia, em alguns países, a chamada “reestruturação produtiva”, promovendo a substituição da hegemonia do fordismo pela hegemonia do toyotismo. O fordismo era voltado para a produção massiva e o consumo correspondente, enquanto que o toyotismo para as necessidades do mercado (produção por demanda, personalizada, etc.). Muitos autores vão constatar a “rigidez” do fordismo com a “flexibilidade” do toyotismo. Da mesma forma, as relações internacionais passam a mudar, com a formação de blocos regionais, ampliação do intervencionismo norte-americano, intensificação da exploração internacional (Iraque, México, etc.).
A mudança fundamental para entender as políticas estatais é a da forma estatal. O Estado intervencionista vai sendo, paulatinamente, substituído pelo chamado Estado neoliberal, em todo o mundo. No início dos anos 1980, inicia-se o Governo de Margareth Thatcher na Inglaterra, de Ronald Reagan e de Helmutt Kohl, na Alemanha. No final dessa década, o neoliberalismo já havia se generalizado na Europa e avança para diversos outros países. No Brasil, o governo Collor foi o primeiro que implementa políticas neoliberais, ainda que moderadamente, devido, em parte, à fragilidade de suas bases de apoio, e, em parte, por causa da resistência de setores da sociedade. O governo Itamar Franco dá continuidade às políticas neoliberais, especialmente na política financeira, e o governo FHC consolida o neoliberalismo, sendo que este permanece nos governos posteriores (Lula e Dilma), com algumas variações formais.
O que interessa destacar é que o neoliberalismo não é um modelo e sim uma forma de organização estatal que implementa determinadas políticas estatais, sob formas que variam de acordo com a época, país, situação, partidos no governo, etc. As ideologias neoliberais, que foram produzidas por diversas escolas de pensamento econômico, não são aplicadas e sim são retomadas quando é de interesse dos governos. O neoliberalismo também não é estático. Ele assume formas distintas de acordo com o desenvolvimento da acumulação capitalista (o que aparece na imprensa geralmente como “crescimento econômico”). O neoliberalismo em seu período inicial busca realizar privatizações, desregulamentar as relações de trabalho, efetivar uma política financeira determinada (busca estabilidade financeira e combater a inflação, por exemplo), diminuir os gastos estatais, aumentar a política repressiva. Após sua consolidação, o seu foco é manter a política de estabilidade financeira, evitar gastos estatais, manter a política repressiva. Em épocas de desestabilização econômica e política, a tendência é adotar políticas de austeridade. Esse processo varia de acordo com a relação de forças no bloco dominante (conjunto de forças e partidos que predominam na sociedade), especialmente quem detém o aparato governamental, bem como a capacidade de pressão de setores da população.
A compreensão do SUS e sua situação atual pressupõe a compreensão desse processo. O SUS foi criado numa conjuntura política determinada, no qual os movimentos sociais populares, os profissionais da área da saúde, a conjuntura política brasileira, entra outras determinações, permitiu sua criação, tal como colocamos anteriormente.
A criação do SUS não correspondia à modalidade de política estatal neoliberal. A sua existência correspondia ao Estado integracionista, ligado ao regime de acumulação anterior. A modalidade de política estatal de assistência social durante o regime de acumulação conjugado era a de políticas estruturais e universais, enquanto que a modalidade neoliberal trabalha com políticas paliativas e segmentares, entre outras diferenças. A conjuntura da época permitiu a criação do SUS, mas a sua implementação não foi efetivada de acordo com o que seria esperado, pois ocorreu já sob o signo do neoliberalismo. Os princípios fundamentais presentes na Constituição Federal de 1988 (a universalidade, a integralidade, a equidade, a descentralização e a participação social) foram quase todos abandonados (VIANA, 2017).
A implementação do SUS ocorreu através de um embate de concepções variadas a seu respeito, sendo que predominou a concepção neoliberal, aproveitando alguns aspectos do projeto original (como a descentralização). O SUS surge, portanto, não como política universal e estrutural, como no projeto original, mas sim como política paliativa e segmentar. O segmento social focalizado pelo SUS pode ser localizado pelos programas implementados: PSF (Programa Saúde da Família), depois denominado ESF (Estratégia Saúde da Família). Esse segmento social é composto por aqueles que usam exclusivamente o SUS como serviço de saúde, considerado “prioritário” pelo Ministério da Saúde.
A política estatal de saúde de cunho neoliberal promove um processo de hipermercantilização. Ou seja, os serviços de saúde se tornam cada vez mais mercantilizados. Por isso se institui um processo de redução de gastos (ao delimitar seu foco com apenas o segmento que realmente necessita do SUS) e se estabelece um vínculo cada vez maior com o capital privado. Isso justifica o foco naqueles que usam exclusivamente o mesmo, pois os que possuem acesso a serviços de saúde particulares, podem ser excluídos e evitar gastos estatais. Esse processo de intensificação da mercantilização pode ser visto no desinvestimento em equipamentos diagnósticos e terapêuticos e tecnologia ligados aos serviços de assistência à saúde, o que foi acompanhada pelo crescimento dos serviços privados complementares ao SUS, através de contratos e convênios. Esses serviços estatais de saúde já eram mercantilizados, mas isso se intensifica com a remuneração por produção e fortalecimento do serviço privado de saúde.
Ao lado disso, a política de contenção de gastos aponta para precarização das relações de trabalho, bem terceirização dos trabalhadores de saúde, chegando a 60% do total (SANTOS, 2013). Os trabalhadores de saúde em geral possuem relações de trabalho precarizadas e mal remuneradas. Junto com esse processo de hipermercantilização dos serviços estatais de saúde, ocorre também uma intensificação da prevaricação. A prevaricação é o processo no qual há transferência da renda estatal para empresas privadas e indivíduos, seja através da corrupção, convênios, doações, etc. (VIANA, 2016). No âmbito das políticas estatais de saúde, isso se manifesta através da subvenção do setor privado de saúde. Essa é outra forma de prevaricação, que ocorre através de subvenção (renúncia fiscal, isenções, deduções, cofinanciamento de planos privados de saúde, etc.). Os planos privados de saúde recebem cerca de 30% do seu faturamento anual oriundo de tal subvenção (SANTOS, 2013). Reforçando esse processo de hipermercantilização e prevaricação há também a terceirização da gestão dos órgãos estatais de saúde, através das chamadas OS (Organizações Sociais) e OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público).
Nesse contexto, a situação do SUS é dramática, mas agora ela pode se tornar ainda pior. A política estatal de saúde acompanha a dinâmica da acumulação capitalista e da política institucional. A crise financeira de 2008 mostrou algumas fragilidades do neoliberalismo e ainda promoveu um processo de crise que atingiu, sob formas diferentes e em períodos diferentes, gerando insegurança e desestabilização. Esse processo acabou se aprofundando e gerando uma nova fase do neoliberalismo em diversos países (em especial na Grécia, Portugal e Espanha), caracterizado por políticas de austeridade e aprofundamento dos cortes de gastos, responsabilidade fiscal, etc. Neste contexto, a tendência é que o SUS sofra uma precarização ainda maior, inclusive correndo o risco de sua privatização. Esse processo não está definido, pois depende de diversos elementos, desde a situação financeira, as políticas estatais mais gerais, o processo de acumulação de capital, a situação mundial, a pressão da população, a dinâmica governamental, etc.
Contudo, a situação brasileira e seus diversos problemas tornam a tendência principal nada favorável ao SUS. Em curto prazo, pelo menos, a tendência é de maior precarização. Em longo prazo vai depender da situação do país em seus diversos aspectos. Assim, a pressão e organização da população, dos trabalhadores e movimentos sociais populares é um desses aspectos, bem como a dinâmica da acumulação de capital em nível nacional, entre diversos outros. É nesse embate de forças e tendências, no interior de um determinado contexto econômico e social, que se definirá o futuro do SUS

Referências

CAMPOS, C. M. S. Necessidades de saúde como objeto das políticas públicas: as práticas do enfermeiro na Atenção Básica. 2014. Tese (Livre-docência) - Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

CAMPOS, Celia Maria Sivalli; VIANA, Nildo  e  SOARES, Cassia Baldini. Mudanças no capitalismo contemporâneo e seu impacto sobre as políticas estatais: o SUS em debate. Saúde e Sociedade. [online]. 2015, vol.24, suppl.1, pp.82-91. ISSN 0104-1290.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902015S01007.

SANTOS, Nelson Rodrigues. SUS, Política Pública de Estado: Seu desenvolvimento instituído e instituinte e busca de saídas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 273-280, 2013.

VIANA, N. A constituição das políticas públicas. Revista Plurais, Anápolis, v. 1, n. 4, p. 94-112, 2006. Disponível em: . Acesso em: 18 ago. 2013.

VIANA, N. Estado, democracia e cidadania. A dinâmica da política institucional no capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.

VIANA, N. O capitalismo na era da acumulação integral. São Paulo: Idéias e Letras, 2009.

VIANA, Nildo. A Mercantilização das Relações Sociais. Rio de Janeiro: Ar Editora, 2016.

VIANA, Nildo. Representações e valores nas políticas de saúde no Brasil (1990-2012). (tese de pós-doutorado). São Paulo: Programa de Pós-Graduação em Enfermagem/USP, 2015.

Nildo Viana é Professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB, pós-doutor pela Universidade de São Paulo e autor de diversos livros.

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