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quinta-feira, 28 de setembro de 2017

KARL JENSEN E OS MOVIMENTOS SOCIAIS


KARL JENSEN E OS MOVIMENTOS SOCIAIS

Nildo Viana

Karl Jensen é um dos raros autores marxistas que busca desenvolver elementos para uma teoria dos movimentos sociais. Qual sua real contribuição para uma abordagem marxista dos movimentos sociais? Em suas Teses sobre os Movimentos Sociais[1], apresenta uma discussão teórico-conceitual que, embora breve, bastante interessante para compreender a análise marxista dos movimentos sociais. O autor apresenta uma compreensão desenvolvida do marxismo e usa tal domínio teórico para poder analisar os movimentos sociais. O resultado disso é um esboço de teoria dos movimentos sociais numa perspectiva marxista. Contudo, o estágio de “teses” de sua produção mostra que não se trata de uma obra desenvolvida e completa, fundamentada em pesquisas consolidadas. Não constituem uma teoria e sim alguns elementos que, uma vez desenvolvidos, se tornam uma teoria[2]. Isso explica alguns pontos problemáticos em sua análise e que é preciso explicitar e analisar.

Vamos ressaltar aqui os pontos problemáticos, o que significa um foco analítico, deixando de lado as contribuições. Assim, é preciso esclarecer que se trata de uma contribuição para uma teoria dos movimentos sociais com diversos aspectos fundamentais, mas não focalizaremos estes aspectos e sim os pontos problemáticos. Claro que uma crítica geral seria a necessidade de aprofundamento, mas seria uma pseudocrítica, como como são “teses”, então isto já está claro e os limites já foram definidos pelo próprio autor.

O conceito de movimentos sociais apresentado por Jensen poderia ser questionado. Ele define movimentos sociais como “movimento de grupos sociais”. Sem dúvida, enquanto tese, é suficiente. Mas seria necessário aprofundar e mostrar a especificidade desse movimento e o conceito de grupo social[3]. Mesmo sendo “teses”, esse elemento, por sua importância, precisaria pelo menos ser esboçado.

Um ponto problemático pode ser visto na comparação entre a Tese 03 e a Tese 05. A Tese 03 afirma que os movimentos sociais não são pré-políticos, como alguns autores colocam, e sim políticos, pois estão “envolvidos” nas lutas de classes. Já a Tese 05 afirma que os movimentos sociais são diferentes dos “movimentos políticos de classes sociais”, pois possuem bases sociais distintas: grupos sociais e classes sociais, respectivamente. A princípio, as duas teses estão corretas. No entanto, o problema aqui é formal. Se os movimentos sociais são movimentos políticos, então qual o sentido dizer que se diferencia dos movimentos políticos das classes sociais? A resposta está apenas no problema formal da expressão “movimentos políticos das classes sociais”. Tantos os movimentos sociais quanto os movimentos de classes sociais (e basta isto para denominá-los) são “políticos”, no sentido de manifestar as lutas de classes. A diferença seria que num caso é uma luta direta de classes e noutro uma luta indireta.

Aqui deveria intervir um terceiro elemento, que são os movimentos políticos, que são expressão das classes sociais (é o caso do movimento socialista, anarquista, etc.). Nesse caso teríamos uma diferenciação entre movimentos sociais, movimento políticos e movimento de classes sociais. A diferença entre movimentos políticos e movimentos de classes sociais seria a mesma existente, por exemplo, no chamado “movimento socialista” (que aglutinaria os partidos, organizações, indivíduos que se autodenominam “socialistas”) e o movimento operário (um movimento de classe social). No entanto, Jensen afirmou na Tese 01 que o movimento socialista seria um movimento social[4]. Isso significa considerar o movimento socialista um movimento social, bem como todos os que são similares (anarquismo, fascismo, nacionalismo, etc.) e traria a questão da diferenciação (os anarquistas, comunistas, social-democratas, entre outros, estariam integrados nesse movimento sendo suas subdivisões ou seriam, cada um, um movimento social específico? Como diferenciar? Etc.).

Consideramos que os movimentos políticos são distintos dos movimentos sociais e por isso esse problema não existe. Contudo, é preciso esclarecer tais questões. Os movimentos sociais são políticos pelo motivo já apresentado por Jensen: eles estão envolvidos nas lutas de classes. Essa afirmação tem o sentido apenas de combater os autores que querem dizer que alguns ou os movimentos sociais não são políticos, seriam “pré-políticos”. Os movimentos políticos são expressões culturais e organizativas das classes sociais, por isso possuem dinâmica, base, etc., diferente dos movimentos sociais. Esses movimentos políticos, em seu conjunto, formam blocos sociais (VIANA, 2015).

Porém, existem uma certa semelhança entre os movimentos sociais e os movimentos políticos. A semelhança existe quando se admite que entre os grupos sociais de base dos movimentos sociais existem aqueles que são formados tendo por base aquilo que Jensen (2014) denominou “visão de mundo” ou “projeto político”. O grupo social de base do movimento ecológico é os ecologistas e do movimento pacifista os pacifistas. Da mesma forma, poder-se-ia dizer, o movimento socialista tem como grupo de base os socialistas. Como recusamos essa indiferenciação entre movimentos sociais e movimentos políticos apresentada por Jensen, então precisamos esclarecer o que diferencia um de outro.

O que diferencia, fundamentalmente, um movimento social cujo grupo social de base é cultural e um movimento político é que a causa pela qual cada um luta é distinta e com uma diferença fundamental. A causa dos ecologistas é o meio ambiente; a causa dos pacifistas é a paz; a causa do movimento de libertação animal é os “direitos dos animais”. Aqui se nota que mesmo quando se tem uma percepção da totalidade da sociedade, a causa (“projeto político”) é sob um aspecto particular da mesma. Isso faz com que os grupos sociais de base desses movimentos sociais sejam semelhantes aos grupos sociais de base cuja unidade ocorre em torno da corporeidade ou da situação social. A causa dos socialistas (bem como dos anarquistas, “comunistas”, marxistas, nazistas, fascistas, liberais, etc.) é a conservação ou transformação social. Aqui, se referindo ou não às classes sociais, o que está em jogo é a totalidade da sociedade, uma concepção do que a sociedade deve ser e como deve se organizar. Não se trata de casusa específicas dentro da sociedade e sim de uma concepção e projeto sobre ela como um todo. Logo, está intimamente ligado às classes sociais, seja declarando representar uma ou outra ou não.

Isso não impede, por exemplo, do movimento ecológico gerar um projeto de sociedade, bem como os demais movimentos sociais (inclusive aqueles cuja base não são grupos sociais culturais, como o movimento feminino, negro, estudantil, etc.). Porém, quando alguns movimentos sociais geram projetos de sociedade (seja para conservar, reformar ou transformar numa outra forma de sociedade), é a partir de sua causa específica. Da mesma forma, quando um movimento político discute uma causa específica (seja para negar sua existência, para propor ações específicas ou alterações ou, ainda, sua mudança com a transformação social) é a partir do projeto global de sociedade. Se um coletivo marxista propõe uma análise da relação entre capitalismo e meio ambiente e discute essa questão específica e propõe a solução via transformação social e alguma ação imediata antes dessa ocorrer, isso não significa que se tornou “ecologista”.

Assim, temos dois elementos de diferenciação entre movimentos sociais e movimentos políticos (entre outros relacionados e derivados): os movimentos sociais são ligados indiretamente com as classes sociais e seus interesses (os interesses das classes se manifestam mais diretamente em determinadas ramificações) e os movimentos políticos possuem uma ligação direta com elas e isso remete ao segundo elemento, que é que os movimentos sociais lutam por causas específicas e os movimentos políticos lutam por causas gerais.

Um outro ponto problemático das teses de Jensen sobre os movimentos sociais pode ser encontrado na sua última tese: “Os movimentos sociais surgem graças à alienação generalizada do ser humano produzida pelo modo de produção capitalista” (JENSEN, 2014, p. 136). O problema aqui é, novamente, formal. O que significa alienação? O autor não afirmou o que entendia por tal termo, que, como todos os termos filosóficos, é polissêmico. Por isso a necessidade de definição, mas isso é inviável em determinadas produções intelectuais, pois seriam marcados por excesso de definições. Sem dúvida, o resta da afirmação que remete para as classes sociais aponta para o conceito de alienação de Marx, apesar das diversas interpretações deformantes do mesmo. A alienação generalizada do ser humano significa, no fundo, a reprodução da alienação do trabalho (a perda de controle do mesmo, o que gera a alienação dos resultados, ou seja, o controle sobre os mesmos pelos mesmos que controlam o trabalho) para todas as instâncias da vida privada, indo além do trabalho produtivo. Nesse sentido, é o caso dos intelectuais (cientistas, artistas, jornalistas, etc.) que não controlam seu trabalho intelectual e nem seus resultados, bem como todos os demais seres humanos que acabam sendo presos de uma grande engrenagem controlada pelo grande capital.

Assim, a conclusão é que Jensen oferece uma contribuição sintética e importante para o desenvolvimento de uma teoria dos movimentos sociais, mas num estágio ainda rudimentar, o que explica suas limitações e até mesmo as falhas, mas que, no entanto, não retira os seus méritos.

Referências

VIANA, Nildo. Os Movimentos Sociais. Curitiba: Primas, 2016.

JENSEN, Karl. Teses Sobre os Movimentos Sociais. Marxismo e Autogestão. Ano 01, num. 01, jan./jun. de 2014. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/9jensen1/63 Acessado em 31/12/2014.

VIANA, Nildo. Blocos Sociais e Luta de Classes. Enfrentamento. Ano 10, Num. 17, jan/jun. 2015. Disponível em: http://enfrentamento.net Acessado em: 31/12/2015.






[1] Esse texto foi publicado e republicado em diversas oportunidades. Aqui utilizamos a edição da Revista Marxismo e Autogestão (JENSEN, 2014).

[2] Isso pode ser vista em todas as “teses” produzidas por intelectuais e militantes. Basta citar as “Teses Sobre Feuerbach”, de Marx, para observar isto. Elas colocam afirmações que são o esboço de uma explicação mais ampla e profunda, o que pode ser realizado ou não pelo autor das mesmas. Assim, as teses não são “hipóteses”, pois são afirmações com certa fundamentação e desenvolvimento, mas não são ainda uma teoria, que só se consolida depois de um aprofundamento. Nesse sentido, podemos colocar que teses são um esboço de uma teoria. Para se transformar em tal, precisam ser desenvolvidas através do aprofundamento, composição e fundamentação.

[3] Uma tentativa nesse sentido já foi realizada (VIANA, 2016).

[4] Os movimentos sociais que se fundamentam num grupo social que tem como aspecto comum a todos os seus membros apenas a visão de mundo ou o projeto político são os mais frágeis e propensos a divisões internas. É isto que ocorre com o movimento ecológico e com o movimento socialista, por exemplo” (JENSEN, 2014, p. 130).

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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Karl Jensen e os Movimentos Sociais. Revista Posição. Vol. 03, num. 12, 2016.
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