KARL
JENSEN E OS MOVIMENTOS SOCIAIS
Nildo
Viana
Karl Jensen é um dos raros
autores marxistas que busca desenvolver elementos para uma teoria dos
movimentos sociais. Qual sua real contribuição para uma abordagem marxista dos
movimentos sociais? Em suas Teses sobre
os Movimentos Sociais[1],
apresenta uma discussão teórico-conceitual que, embora breve, bastante
interessante para compreender a análise marxista dos movimentos sociais. O
autor apresenta uma compreensão desenvolvida do marxismo e usa tal domínio
teórico para poder analisar os movimentos sociais. O resultado disso é um
esboço de teoria dos movimentos sociais numa perspectiva marxista. Contudo, o
estágio de “teses” de sua produção mostra que não se trata de uma obra
desenvolvida e completa, fundamentada em pesquisas consolidadas. Não constituem
uma teoria e sim alguns elementos que, uma vez desenvolvidos, se tornam uma
teoria[2]. Isso
explica alguns pontos problemáticos em sua análise e que é preciso explicitar e
analisar.
Vamos ressaltar aqui os pontos
problemáticos, o que significa um foco analítico, deixando de lado as
contribuições. Assim, é preciso esclarecer que se trata de uma contribuição
para uma teoria dos movimentos sociais com diversos aspectos fundamentais, mas
não focalizaremos estes aspectos e sim os pontos problemáticos. Claro que uma
crítica geral seria a necessidade de aprofundamento, mas seria uma
pseudocrítica, como como são “teses”, então isto já está claro e os limites já
foram definidos pelo próprio autor.
O conceito de movimentos sociais
apresentado por Jensen poderia ser questionado. Ele define movimentos sociais
como “movimento de grupos sociais”. Sem dúvida, enquanto tese, é suficiente.
Mas seria necessário aprofundar e mostrar a especificidade desse movimento e o
conceito de grupo social[3]. Mesmo
sendo “teses”, esse elemento, por sua importância, precisaria pelo menos ser
esboçado.
Um ponto problemático pode ser
visto na comparação entre a Tese 03 e a Tese 05. A Tese 03 afirma que os
movimentos sociais não são pré-políticos, como alguns autores colocam, e sim
políticos, pois estão “envolvidos” nas lutas de classes. Já a Tese 05 afirma
que os movimentos sociais são diferentes dos “movimentos políticos de classes
sociais”, pois possuem bases sociais distintas: grupos sociais e classes
sociais, respectivamente. A princípio, as duas teses estão corretas. No
entanto, o problema aqui é formal. Se os movimentos sociais são movimentos
políticos, então qual o sentido dizer que se diferencia dos movimentos
políticos das classes sociais? A resposta está apenas no problema formal da
expressão “movimentos políticos das classes sociais”. Tantos os movimentos
sociais quanto os movimentos de classes sociais (e basta isto para denominá-los)
são “políticos”, no sentido de manifestar as lutas de classes. A diferença
seria que num caso é uma luta direta de classes e noutro uma luta indireta.
Aqui deveria intervir um
terceiro elemento, que são os movimentos políticos, que são expressão das
classes sociais (é o caso do movimento socialista, anarquista, etc.). Nesse
caso teríamos uma diferenciação entre movimentos sociais, movimento políticos e
movimento de classes sociais. A diferença entre movimentos políticos e
movimentos de classes sociais seria a mesma existente, por exemplo, no chamado
“movimento socialista” (que aglutinaria os partidos, organizações, indivíduos
que se autodenominam “socialistas”) e o movimento operário (um movimento de
classe social). No entanto, Jensen afirmou na Tese 01 que o movimento
socialista seria um movimento social[4].
Isso significa considerar o movimento socialista um movimento social, bem como
todos os que são similares (anarquismo, fascismo, nacionalismo, etc.) e traria
a questão da diferenciação (os anarquistas, comunistas, social-democratas,
entre outros, estariam integrados nesse movimento sendo suas subdivisões ou
seriam, cada um, um movimento social específico? Como diferenciar? Etc.).
Consideramos que os movimentos
políticos são distintos dos movimentos sociais e por isso esse problema não
existe. Contudo, é preciso esclarecer tais questões. Os movimentos sociais são
políticos pelo motivo já apresentado por Jensen: eles estão envolvidos nas
lutas de classes. Essa afirmação tem o sentido apenas de combater os autores
que querem dizer que alguns ou os movimentos sociais não são políticos, seriam
“pré-políticos”. Os movimentos políticos são expressões culturais e
organizativas das classes sociais, por isso possuem dinâmica, base, etc.,
diferente dos movimentos sociais. Esses movimentos políticos, em seu conjunto,
formam blocos sociais (VIANA, 2015).
Porém, existem uma certa
semelhança entre os movimentos sociais e os movimentos políticos. A semelhança
existe quando se admite que entre os grupos sociais de base dos movimentos
sociais existem aqueles que são formados tendo por base aquilo que Jensen
(2014) denominou “visão de mundo” ou “projeto político”. O grupo social de base
do movimento ecológico é os ecologistas e do movimento pacifista os pacifistas.
Da mesma forma, poder-se-ia dizer, o movimento socialista tem como grupo de
base os socialistas. Como recusamos essa indiferenciação entre movimentos
sociais e movimentos políticos apresentada por Jensen, então precisamos
esclarecer o que diferencia um de outro.
O que diferencia,
fundamentalmente, um movimento social cujo grupo social de base é cultural e um
movimento político é que a causa pela qual cada um luta é distinta e com uma
diferença fundamental. A causa dos ecologistas é o meio ambiente; a causa dos
pacifistas é a paz; a causa do movimento de libertação animal é os “direitos
dos animais”. Aqui se nota que mesmo quando se tem uma percepção da totalidade
da sociedade, a causa (“projeto político”) é sob um aspecto particular da
mesma. Isso faz com que os grupos sociais de base desses movimentos sociais
sejam semelhantes aos grupos sociais de base cuja unidade ocorre em torno da
corporeidade ou da situação social. A causa dos socialistas (bem como dos
anarquistas, “comunistas”, marxistas, nazistas, fascistas, liberais, etc.) é a
conservação ou transformação social. Aqui, se referindo ou não às classes
sociais, o que está em jogo é a totalidade da sociedade, uma concepção do que a
sociedade deve ser e como deve se organizar. Não se trata de casusa específicas
dentro da sociedade e sim de uma concepção e projeto sobre ela como um todo.
Logo, está intimamente ligado às classes sociais, seja declarando representar
uma ou outra ou não.
Isso não impede, por exemplo, do
movimento ecológico gerar um projeto de sociedade, bem como os demais
movimentos sociais (inclusive aqueles cuja base não são grupos sociais
culturais, como o movimento feminino, negro, estudantil, etc.). Porém, quando
alguns movimentos sociais geram projetos de sociedade (seja para conservar,
reformar ou transformar numa outra forma de sociedade), é a partir de sua causa
específica. Da mesma forma, quando um movimento político discute uma causa
específica (seja para negar sua existência, para propor ações específicas ou
alterações ou, ainda, sua mudança com a transformação social) é a partir do
projeto global de sociedade. Se um coletivo marxista propõe uma análise da
relação entre capitalismo e meio ambiente e discute essa questão específica e
propõe a solução via transformação social e alguma ação imediata antes dessa
ocorrer, isso não significa que se tornou “ecologista”.
Assim, temos dois elementos de
diferenciação entre movimentos sociais e movimentos políticos (entre outros
relacionados e derivados): os movimentos sociais são ligados indiretamente com
as classes sociais e seus interesses (os interesses das classes se manifestam
mais diretamente em determinadas ramificações) e os movimentos políticos
possuem uma ligação direta com elas e isso remete ao segundo elemento, que é
que os movimentos sociais lutam por causas específicas e os movimentos
políticos lutam por causas gerais.
Um outro ponto problemático das
teses de Jensen sobre os movimentos sociais pode ser encontrado na sua última
tese: “Os movimentos sociais surgem graças à alienação generalizada do ser
humano produzida pelo modo de produção capitalista” (JENSEN, 2014, p. 136). O
problema aqui é, novamente, formal. O que significa alienação? O autor não afirmou
o que entendia por tal termo, que, como todos os termos filosóficos, é
polissêmico. Por isso a necessidade de definição, mas isso é inviável em
determinadas produções intelectuais, pois seriam marcados por excesso de
definições. Sem dúvida, o resta da afirmação que remete para as classes sociais
aponta para o conceito de alienação de Marx, apesar das diversas interpretações
deformantes do mesmo. A alienação generalizada do ser humano significa, no fundo,
a reprodução da alienação do trabalho (a perda de controle do mesmo, o que gera
a alienação dos resultados, ou seja, o controle sobre os mesmos pelos mesmos
que controlam o trabalho) para todas as instâncias da vida privada, indo além
do trabalho produtivo. Nesse sentido, é o caso dos intelectuais (cientistas,
artistas, jornalistas, etc.) que não controlam seu trabalho intelectual e nem
seus resultados, bem como todos os demais seres humanos que acabam sendo presos
de uma grande engrenagem controlada pelo grande capital.
Assim, a conclusão é que Jensen
oferece uma contribuição sintética e importante para o desenvolvimento de uma
teoria dos movimentos sociais, mas num estágio ainda rudimentar, o que explica
suas limitações e até mesmo as falhas, mas que, no entanto, não retira os seus
méritos.
Referências
VIANA, Nildo. Os Movimentos Sociais. Curitiba: Primas,
2016.
JENSEN, Karl.
Teses Sobre os Movimentos Sociais. Marxismo
e Autogestão. Ano 01, num. 01, jan./jun. de 2014. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rma/article/view/9jensen1/63
Acessado em 31/12/2014.
VIANA, Nildo.
Blocos Sociais e Luta de Classes. Enfrentamento.
Ano 10, Num. 17, jan/jun. 2015. Disponível em: http://enfrentamento.net Acessado em:
31/12/2015.
[1]
Esse texto foi publicado e republicado em diversas oportunidades. Aqui
utilizamos a edição da Revista Marxismo e Autogestão (JENSEN, 2014).
[2]
Isso pode ser vista em todas as “teses” produzidas por intelectuais e
militantes. Basta citar as “Teses Sobre
Feuerbach”, de Marx, para observar isto. Elas colocam afirmações que são o
esboço de uma explicação mais ampla e profunda, o que pode ser realizado ou não
pelo autor das mesmas. Assim, as teses não são “hipóteses”, pois são afirmações
com certa fundamentação e desenvolvimento, mas não são ainda uma teoria, que só
se consolida depois de um aprofundamento. Nesse sentido, podemos colocar que
teses são um esboço de uma teoria. Para se transformar em tal, precisam ser
desenvolvidas através do aprofundamento, composição e fundamentação.
[3]
Uma tentativa nesse sentido já foi realizada (VIANA, 2016).
[4] Os
movimentos sociais que se fundamentam num grupo social que tem como aspecto
comum a todos os seus membros apenas a visão de mundo ou o projeto político são
os mais frágeis e propensos a divisões internas. É isto que ocorre com o
movimento ecológico e com o movimento socialista, por exemplo” (JENSEN, 2014,
p. 130).
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Karl Jensen e os Movimentos Sociais. Revista Posição. Vol. 03, num. 12, 2016.
Disponível em:
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