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quarta-feira, 14 de junho de 2017

A Constituição das Políticas Públicas


A Constituição das Políticas Públicas
The Constitution of the Public Politics

Nildo Viana*

Resumo:

A constituição das políticas públicas só pode ser compreendida a partir de uma visão da totalidade das relações sociais e, neste contexto, temos o papel do Estado como o agente deste processo e realizando sua ação no interior de suas contradições internas e pressões externas. A determinação fundamental das políticas públicas são os interesses gerais do capital e as necessidades da acumulação capitalista. A elaboração das políticas públicas não são produtos apenas da acumulação capitalista, mas também dos conflitos no interior do bloco dominante, a pressão popular, os lobbies extra-parlamentares, etc. Os conflitos no interior do bloco dominante fazem parte das múltiplas determinações do fenômeno. O bloco dominante é composto por setores (classes, frações de classes, grupos de interesse, partidos) que dominam o Estado capitalista. Tais conflitos são provocados por interesses opostos, tal como a busca de autonomização de determinados setores da burocracia estatal (poder judiciário, exército, etc.), entre frações do capital, entre a ação estatal e interesses imediatos de determinadas frações da burguesia. Este conflito é perpassado e reproduzido em outras instâncias, tal como nas disputas partidárias, de grupos de interesse.

Palavras-Chave: Estado Capitalista, Acumulação de Capital, Regime de Acumulação, Acumulação Integral, Bloco Dominante, Políticas Públicas, Políticas de Assistência Social.

Abstract: 
 
The constitution of the public politics can only be understood starting from a vision of the totality of the social relationships and, in this context, we have the paper of the State as the agent of this process and accomplishing your action inside your internal contradictions and external pressures. The fundamental determination of the public politics is the general interests of the capital and the needs of the capitalist accumulation. The elaboration of the public politics is not just products of the capitalist accumulation, but also of the conflicts inside the dominant block, the popular pressure, the extra-parliamentary lobbies, etc. The conflicts inside the dominant block are part of the multiple determinations of the phenomenon. The dominant block is composed by sections (classes, fractions of classes, groups of interest, parties) that dominate the capitalist State. Such conflicts are provoked by opposed interests, just as the search of autonomy certain sections of the state bureaucracy (to can judiciary, army, etc.), among fractions of the capital, among the state action and interest certain immediate fractions of the bourgeoisie. This conflict is marked and reproduced in other instances, just as in the supporting disputes, of groups of interest.

Word-key: Capitalist state, Accumulation of Capital, Regime of Accumulation, Integral Accumulation, Dominant Block, Public Politics, Politics of Social Attendance.




Pretendemos, no presente artigo, abordar o processo de constituição das políticas denominadas “públicas”. O nosso objetivo é abordar as determinações existentes na elaboração das políticas estatais de assistência social e, neste sentido, a nossa análise focalizará a formação destas políticas. No âmbito deste objetivo, a abordagem será de caráter teórico-explicativo e não focalizará nenhum caso específico, a não ser alguns exemplos históricos.
As políticas estatais de assistência social geralmente são denominadas “políticas públicas” ou “política social”. Sem dúvida, estas duas formas de denominar as políticas estatais de assistência social são as mais usuais, mas também são as mais equivocadas, pois “público” e “social” são termos vagos e imprecisos, bem como não explicitam, na imediaticidade da expressão, o seu real significado. As várias políticas estatais, tal como a política educacional, para citar um exemplo, tem seu objeto de ação bem delimitado na própria denominação, o que não ocorre com o caso aqui aludido. As políticas estatais de assistência social são aquelas que buscam promover a assistência a amplos setores da população, especialmente aos mais desfavorecidos e aos trabalhadores.
“As políticas sociais do Estado não são instrumentos de um bem-estar abstrato, não são medidas boas em si mesmas, como soem apresentá-las os representantes das classes dominantes e os tecnocratas estatais. Não são, também, medidas más em si mesmas, como alguns apologistas de esquerda soem em dizer, afirmando que as políticas sociais são instrumentos de manipulação, e de pura escamoteação da realidade da exploração da classe operária” (Faleiros, 1987, p. 55).
Esta análise está correta, desde que colocada em outros termos. Pois dizer que as políticas estatais de assistência social são “boas” ou “más” quer dizer muito pouco. Além de boa e má serem categorias valorativas, a questão reside em outro lugar. A grande questão é o que gera tais políticas e como elas são determinadas e beneficiando a quem. Existem três razões para a existência de políticas estatais de assistência social: 1ª) a necessidade das empresas capitalistas de terem garantido a reprodução da força de trabalho; 2ª) a pressão da classe trabalhadora e outros grupos sociais no sentido de ter suas demandas atendidas pelas políticas estatais de assistência social; 3ª) a necessidade de amortecimento dos conflitos sociais para evitar uma crise de governabilidade ou então a transformação social.
As políticas de assistência social estão diretamente relacionadas com as necessidades do capital. A força de trabalho precisa se locomover, assistência médica, nível educacional mínimo para o exercício de suas atividades, etc.
“A política social não é mera ‘reação’ do Estado aos ‘problemas’ da classe operária mas contribui de forma indispensável para a constituição dessa classe. A função mais importante da política social consiste em regulamentar o processo de proletarização. Não podemos conceber, em outras palavras, o processo de proletarização como um processo de massas, contínuo e relativamente sem regressões, sem pensar ao mesmo tempo a função constitutiva da política social do Estado” (Offe, 1994, p. 22);
A tese de Offe é a que o Estado tem um papel decisivo na passagem da proletarização passiva para a proletarização ativa e age para atingir estes objetivos sob as mais variadas formas. Segundo ele, a desapropriação da força de trabalho gera três problemas estruturais: a) a questão da integração da força de trabalho no mercado de trabalho, em relação à oferta, b) A institucionalização das esferas existenciais e riscos vitais, que não seriam cabíveis no interior da relação de trabalho assalariado; c) a regularização quantitativa da oferta e demanda no mercado de trabalho (Offe, 2004).
Neste contexto, as políticas educacionais, previdenciárias, habitacionais, etc., teriam o papel de preparar, mobilizar e beneficiar os indivíduos proletarizados. Consideramos que estes aspectos estão todos envolvidos no processo de reprodução da força de trabalho, que é uma necessidade do capital. Por conseguinte, o Estado capitalista, independentemente das pressões da classe trabalhadora e de outros grupos e movimentos sociais, executaria determinada política de assistência social devido sua necessidade para a reposição da força de trabalho.
Porém, a tese de Offe deixa de lado alguns aspectos. A pressão social promovida pela classe trabalhadora e demais grupos sociais, bem como o apoio de outros setores sociais, podem fazer o Estado investir em políticas de assistência social para além do necessário para a simples reposição da força de trabalho. É claro que isto depende da correlação de forças em dado momento histórico e lugar, mas é algo que ocorre. Isto pode ser mais ou menos localizado, atingindo os setores mais combativos da classe trabalhadora ou os movimentos sociais de maior poder de pressão, visibilidade ou acesso aos meios oligopolistas de comunicação.
Mas também há momentos históricos nos quais a classe trabalhadora pode ameaçar a governabilidade ou abrir a possibilidade de uma transformação do conjunto das relações sociais e, neste caso, tanto o Estado capitalista quanto a classe burguesa podem realizar concessões para não colocar em risco seus interesses fundamentais. A diferença entre este caso e o anterior reside apenas na radicalidade das lutas sociais e seus efeitos nas políticas estatais que são diferenciados. No primeiro caso, a pressão social faz com que o Estado realize algumas políticas de assistência social para atender a demanda, seja por motivos eleitorais, visibilidade social, etc., bem como pelo risco de haver uma radicalização dos conflitos sociais. No segundo caso, a ação das classes exploradas assume uma radicalidade que força o Estado a ceder e fazer concessões, inclusive a longo prazo, para evitar a crise de governo ou a transformação social e a mantém por cautela preventiva.
Todos estes aspectos são expressões da luta de classes, isto é, dos interesses antagônicos das classes sociais. O Estado capitalista, tal como havia colocado Marx e Engels (1988), representa os interesses da classe capitalista e assim tem que realizar a reposição da força de trabalho, bem como diminuir os conflitos sociais e evitar a derrocada do modo de produção capitalista, ou, em outras, palavras precisa garantir a reprodução das relações de produção capitalistas. Neste sentido, as políticas estatais de assistência social têm o objetivo de beneficiar a classe capitalista enquanto capitais individuais (reposição da força de trabalho, que não pode ser feita pelo capital) e enquanto interesse coletivo da classe capitalista (amortecimento das lutas de classes).
Além disso, precisa criar as condições estruturais de reprodução do capitalismo, o que implica em financiar a infra-estrutura para a produção capitalista e combater a tendência da queda da taxa de lucro média, que é uma tendência do capitalismo segundo Marx (1988). O estado é a principal forma de regularização das relações sociais nas sociedades de classes e se caracteriza por ser uma relação de dominação de classe mediada pela burocracia (Viana, 2003).
O Estado capitalista não é um instrumento neutro que pode ser apropriado por qualquer classe social. O caráter capitalista do Estado se revela não através da identificação de quem está no governo, mas sim na sua essência enquanto relação de dominação de classe. A dominação de classe, por sua vez, tem como razão de ser a exploração. Isto revela a ligação entre Estado e Modo de Produção. Esta relação, no caso específico da sociedade capitalista, foi teorizada de forma exemplar pela chamada “Escola Derivacionista” (Salama e Mathias, 1983; Carnoy, 1988), cujos principais representantes foram Pierre Salama, Gilbert Mathias e Joachim Hirst. Segundo esta escola, o Estado é derivado do modo de produção, o que mostra a relação indissolúvel entre ambos. Por conseguinte, em cada modo de produção existente, existe um estado correspondente. Tal tese, já enunciada por Marx, é aprofundada pelos representantes desta escola.
Hirsch, um dos mais importantes representantes da Escola Derivacionista, colocava que o Estado Capitalista possui três componentes: a) é uma forma histórica específica da dominação de classe, sendo um aparelho autônomo acima do processo de produção; b) ele rompe não apenas com os interesses da classe operária, mas com os interesses particulares dos capitais individuais ou seus grupos. A existência do estado capitalista deriva da estrutura básica da sociedade, o modo de produção capitalista, e isto significa sua manutenção, e esta exige a reprodução da acumulação de capital; c) A necessidade de intervenção estatal é resultado do fato de que o processo capitalista de reprodução não pode ser efetivado pelos capitais individuais, o que traz a necessidade de uma teoria da acumulação capitalista e das crises do capitalismo. Assim, a especificidade das formas e do conteúdo do Estado capitalista resulta da tendência declinante da taxa de lucro, proveniente do conflito capital-trabalho. O Estado possui um papel fundamental na produção de contra-tendências para combater a queda da taxa de lucro (Carnoy, 1988).
Pierre Salama e Gilbert Mathias, outros representantes da Escola Derivacionista, retomam a tese engelsiana segundo a qual o Estado é o “capitalista coletivo ideal”. Para eles, a sua natureza de classe é derivada da categoria capital. Estes autores criticam a ilusão da neutralidade do Estado, um produto derivado do fetichismo da mercadoria e sustentam que o Estado é o “garante da manutenção das relações de produção”. No capitalismo, há a generalização da mercadoria: a própria força de trabalho se transforma em mercadoria e isto instaura o conflito capital-trabalho. O Estado é derivado da categoria capital por duas razões: a) é o garantidor das relações de produção capitalistas e b) participa de modo decisivo na constituição destas relações. Os autores alertam para a diferença da formação estatal nos países subdesenvolvidos, pois nestes o Estado seria uma derivação da economia mundial constituída.
Porém, apesar de seus méritos, a escola derivacionista possui alguns problemas em sua abordagem. Apesar de realizar uma crítica do fetichismo da mercadoria, seus representantes não apresentam uma abordagem do processo de acumulação capitalista como reprodução espontânea da luta de classes e da irrupção da radicalização das lutas operárias, o que leva a crise capitalista (Viana, 2003; Viana, 2007). Desta forma, a acumulação capitalista é coisificada, deixando de ser relação social, relação de classes.
Além disso, nesta abordagem falta uma percepção mais abrangente do papel do Estado. Ele não se limita ao processo de reprodução do capital, mas ao processo social global, reproduzindo o conjunto das relações sociais e, por isto, assume também um papel repressivo e cultural, intervindo nas lutas de classes na sociedade civil e não somente no processo de valorização (lutas de classes na produção). No caso específico do Estado do capitalismo subordinado, o seu papel não se limita a seguir a dinâmica da Economia mundial constituída, embora a acumulação mundial e as empresas oligopolistas transnacionais sejam fundamentais neste processo, existem também as determinações internas[1].
É preciso complexificar a noção de que o estado é derivado do modo de produção, isto é, é preciso ir além da Escola Derivacionista no sentido de perceber que o modo de produção é mais do que se entende normalmente como “economia”. O modo de produção é um conceito fundamental da teoria marxista, mas foi, tal como tantos outros, coisificado e transformado em fetiche, sendo o ponto de partida para a substituição dos seres humanos e da luta de classes por uma entidade metafísica chamada “economia”. Daí torna-se necessário discutir o conceito de modo de produção e, após isto, observar sua relação com o Estado, bem como suas mutações no decorrer da história do capitalismo. O modo de produção capitalista, uma vez compreendido, é a chave para se compreender o Estado Burguês e seu desenvolvimento histórico, nas suas várias formas assumidas. Assim se torna necessário compreender a dinâmica do modo de produção capitalista no decorrer da história para compreender as mudanças estatais.
O capitalismo é um modo de produção que se caracteriza não pela produção de mercadorias, mas sim pela produção de mais-valor (ou mais-valia). É a produção de mais-valor que constitui as duas classes sociais fundamentais do capitalismo (o que significa que não são únicas, mas as fundamentais). De um lado, a classe capitalista; de outro, o proletariado. Uma produz o mais-valor, e a outra se apropria deste mais-valor produzido. Este processo de apropriação dá origem ao que Marx denominou “acumulação de capital”. Uma vez extraído determinado quantum de mais-valor, este é novamente reinvestido na produção, aumentando o capital e a produção em geral, que, por sua vez, gera mais lucro e mais investimento. Isto gera a reprodução ampliada do capital, e por isso o capitalismo é o único modo de produção na história da humanidade que é, por natureza, expansionista e universalizante.
O resultado disso é a concentração e centralização do capital, a nível regional, nacional e mundial. Porém, este processo não ocorre de forma linear e estável. Quanto mais ocorre o desenvolvimento capitalista, mais dificuldades existem para sua reprodução. Estas dificuldades são derivadas do desenvolvimento tecnológico, simultaneamente uma necessidade e um entrave para a classe capitalista, pois permite aumentar a produção e devido à concorrência inter-capitalista, é uma necessidade e, ao mesmo tempo, realiza uma alteração na composição orgânica do capital, utilizando cada vez mais o capital constante (meios de produção, tecnologia) e cada vez menos o capital variável (força de trabalho). Como a criação de mais-valor, a fonte do lucro, é produzida pela força de trabalho, então isto cria uma queda da taxa de lucro. Segundo Marx, o capitalismo cria várias contra-tendências para minimizar esta tendência e o Estado capitalista exerce um papel fundamental neste processo. Tal tese foi desenvolvida pelos representantes da escola derivacionista, tal como colocamos anteriormente.
A produção de mais-valor, por sua vez, é marcada por um constante conflito entre a classe capitalista e o proletariado. Uma visa, constantemente, aumentar a extração de mais-valor e, a outra, visa diminuir e/ou abolir tal extração. Este processo ocorre na esfera do processo de produção, sob as mais variadas formas (Viana, 2003; Viana, 2007). Este conflito se reproduz na esfera da sociedade civil, através das ações das classes sociais, da cultura, das organizações, etc. O Estado capitalista possui um papel fundamental no processo de reprodução do capital e, por isso, é necessário entender a tendência do modo de produção capitalista para ver as mudanças estatais e suas influências sobre as políticas de assistência social.
Em cada modo de produção, o estado assume uma forma diferenciada. O estado no capitalismo difere do estado no escravismo, por exemplo. A visão histórica deste processo é percebida com relativa facilidade por alguns pesquisadores. No entanto, o mesmo não ocorre no caso de mudanças estatais no interior de um mesmo modo de produção. É o caso do estado burguês, que assumiu diversas formas no decorrer da história do capitalismo. Isto é derivado, na maioria dos casos, da falta de uma teoria que proporcione uma periodização das diversas fases do capitalismo.
O conceito de regime de acumulação permite entender as diversas fases do modo de produção capitalista e assim entender as mudanças no estado burguês. O regime de acumulação é constituído por: determinada forma de organização do trabalho, determinada forma de organização estatal e determinada forma de exploração internacional (Viana, 2003; Viana, 2007). A forma de organização do trabalho mudou historicamente, passando do taylorismo para o fordismo e deste para o toyotismo e modelos similares, o mesmo ocorreu com o estado, que passou da forma liberal para a liberal-democrática e, posteriormente, para a forma integracionista (dita “do bem estar social”) até chegar ao atual neoliberalismo. As formas de exploração internacional, desde o colonialismo, passando para o neocolonialismo, o imperialismo financeiro, o imperialismo oligopolista transnacional e a sua atual fase, neo-imperialista (Viana, 2003; Viana, 2007)[2].
Temos uma sucessão de regimes de acumulação na história do capitalismo que tem como uma de suas características a mudança de forma do estado capitalista. O estado é considerado um elemento do regime de acumulação e muda de forma com a mudança deste. Neste sentido, a sucessão de regimes de acumulação foi marcada pela sucessão de formas estatais capitalistas. Após a acumulação primitiva e o estado absolutista, tivemos, exemplarmente na Europa, a passagem para a acumulação capitalista propriamente dita, no qual se sucederam os seguintes regimes de acumulação: extensivo (estado liberal), intensivo (estado liberal-democrático), intensivo-extensivo (estado integracionista, “bem estar social”) e integral (estado neoliberal) (Viana, 2003; Viana, 2007).
Na base desta sucessão de formas estatais está a luta de classes. Por conseguinte, a determinação fundamental das formas estatais são as lutas de classes. Cada forma estatal, por sua vez, determina determinada forma de organização interna e atuação na sociedade civil. Isto ocorre de acordo com as necessidades do regime de acumulação. Desta forma, as políticas estatais de assistência social possuem como determinação fundamental o regime de acumulação, que expressa uma determinada configuração das lutas de classes.
O estado integracionista, de “bem estar social”, que vigorou no pós-Segunda Guerra Mundial através do fordismo, imperialismo oligopolista transnacional e de uma ampla política de assistência social, foi produto das lutas sociais que agitaram o mundo a partir do início do século 20. Tais lutas se manifestaram nas diversas tentativas de revolução socialista e ações radicais, desde a Rússia de 1905, sua primeira manifestação, passando pelas tentativas de revolução em vários países (Alemanha, Hungria, Itália, etc.) até a Guerra Civil Espanhola de 1936, processo que afetou toda a Europa, e, em menor grau, países de outros continentes. O que possibilitou esta política de assistência social ampla foi, por um lado, a implantação do fordismo enquanto forma de organização do trabalho – que possibilitou o aumento de produtividade e incentivou o sistema de crédito; por outro, a expansão oligopolista transnacional – que proporcionou uma enorme transferência de mais-valor dos países capitalistas subordinados para os países capitalistas imperialistas, através das empresas transnacionais instaladas, tal como a remessa de lucro, os royalties, etc.
Porém, este regime de acumulação acabou entrando em crise nos anos 60, com a ascensão das lutas sociais e queda da taxa de lucro (Viana, 2003; Young, 2002; Viana, 2007). As lutas operárias e estudantis na Europa, tal como na França, Itália, Alemanha; ao lado do movimento de contracultura, ascensão de movimentos sociais (feminismo, movimento negro, etc.), estavam ligadas ao processo geral de queda da taxa de lucro que ocorreu no final dos anos 60. Isto ocorre pelo motivo de que a dificuldade da acumulação capitalista gera ações estatais, dificuldades financeiras, processos sociais e estes atingem diretamente a população. O caso francês esteve ligado ao problema da perda das colônias, a explosão do acesso ao ensino superior convivendo com pouca expectativa de absorção pelo mercado de trabalho, etc. O caso norte-americano esteve ligado à dificuldade do processo de acumulação, que gerou a necessidade de reaquecer a indústria bélica e inaugurar uma nova guerra, no caso a do Vietnã. Um amplo movimento grevista se espalhou pelos países do bloco imperialista e reforçou mais ainda as dificuldades da acumulação capitalista:
“No período 1968-73 houve um aumento significativo (em comparação com o período 1960-1967) do número de indivíduos, por mil trabalhadores não-agrícolas, que participaram de greves na Itália, Austrália, França, Finlândia, Nova Zelândia, Reino Unido, Japão, Estados Unidos, Islândia, Canadá, Bélgica, Dinamarca, Suécia, Alemanha, Holanda” (Navarro, 1995, p. 91).
Em geral, o declínio da taxa de lucro compromete as ações estatais e provoca processos de corrosão das bases da acumulação que, por sua vez, afetam diretamente a população. Esta, por sua vez, reage, e ao exigir melhorias nas condições de vida e realizar ações e greves, acaba, junto com os movimentos sociais, criando uma dificuldade adicional para a acumulação capitalista, já que o nível da acumulação cai com as greves e as concessões.
A queda da taxa de lucro a nível mundial ocorrida no final dos anos 60 (Harvey, 1992) e as lutas sociais colocaram em questão o regime de acumulação vigente e fez com que a década de 70 se tornasse uma tentativa de recuperação do capitalismo. Isto não se realizou neste período e teve que conviver com a crise do petróleo de 1973 e com a tentativa de revolução em Portugal em 1974, além de outros acontecimentos.
A Comissão Trilateral (comissão fundada em 1973, impulsionada por David Rockfeller, que reunia os países mais ricos do mundo) receitou algumas mudanças no interior do mesmo regime de acumulação, tal como o aumento do controle e da repressão, principalmente aos países capitalistas subordinados (Asmann, 1979), mas isto não deu os resultados esperados. Esta concepção era uma prefiguração do novo regime de acumulação, pois já pregava o “Estado forte” e a hegemonia absoluta dos norte-americanos, aceita pelos demais países imperialistas (Viana, 2007).
Daí a emergência do novo regime de acumulação nos anos 80. Trata-se do regime de acumulação integral, também chamado de “flexível” (Harvey, 1992), ou “modernidade recente” (Young, 2002), que se estrutura através da chamada “reestruturação produtiva”; o neoliberalismo e o neo-imperialismo (Viana, 2003; Viana, 2007). É uma nova época do capitalismo no qual se busca o aumento da exploração em todos os níveis.
A reestruturação produtiva visa aumentar a extração de mais-valor (seja absoluto ou relativo, isto é, aumentando a jornada de trabalho e a produtividade, além de formas secundárias de exploração capitalista, tal como se vê no trabalho domiciliar, terceirização, etc.). O Estado neoliberal, que emerge a partir dos anos 80 (Anderson, 1998), busca privatizar, conter os gastos estatais (inclusive diminuindo os gastos com a política de assistência social), corroer a legislação trabalhista, aumentar a repressão, etc.
“Se o Estado social foi um mediador ativo na regulação das relações capitalistas em sua fase monopolista, o período pós-1970 marca o avanço de ideais neoliberais que começam a ganhar terreno a partir da crise capitalista de 1969-1973. Os reduzidos índices de crescimento com altas taxas de inflação foram um fermento para os argumentos neoliberais criticarem o Estado social e o ‘consenso’ do pós-guerra, que permitiu a instituição do Welfare State” (Behring e Boschetti, 2006).
Suas propostas “são uma drástica redução do Estado e abertura total e irrestrita dos mercados”, isto tudo “em nome da concorrência que estimule produtividade-competitividade, isto é, em nome da soberania do mercado” (Carcanholo, 1998, p. 27). O neo-imperialismo visa aumentar a exploração internacional e a intervenção nos países subordinados, tal como vem realizando os Estados Unidos. O neoliberalismo é a outra face do neo-imperialismo, já que os países imperialistas propõem abertura dos mercados, mas para os países subordinados. Neste sentido, o neoliberalismo é protecionista nos países imperialistas e não-protecionista nos países subordinados.
Desta forma, as formas estatais assumidas a cada regime de acumulação determinam as linhas gerais das políticas de assistência social. Durante a vigência do Estado Integracionista, no contexto do regime de acumulação intensivo-extensivo, houve uma ampliação das políticas de assistência social, principalmente as estruturais, voltadas para a educação, saúde, emprego, etc. Na época do neoliberalismo, durante o regime de acumulação integral, temos a redução dos gastos com a política de assistência social. Além da redução dos gastos, ela passa a ser predominantemente políticas paliativas (bolsas, cestas, cotas, etc.) e direcionadas a setores específicos da população.
Assim, não é difícil perceber que as políticas estatais de assistência social são determinadas em linhas gerais pelo regime de acumulação, que expressa determina correlação de forças entre as classes sociais numa determinada época. Porém, as formas de aplicação desta política de assistência social possuem outras determinações, que depende do país, época, nível de ação dos trabalhadores e movimentos sociais, entre outras. Esta pressão social influi na forma como a política de assistência social é implantada e uma outra determinação, de importância fundamental, é a da composição e hegemonia do bloco dominante.
A origem do termo “bloco dominante” remonta à concepção gramsciana de “bloco histórico”. Existem diversas interpretações do que vem a ser bloco histórico para Gramsci (Portelli, 1977; Buci-Glucksmann, 1980). Não poderemos aqui apresentar tal discussão, mas tão-somente apresentar uma das mais convincentes interpretações do significado deste termo no pensamento gramsciano:
“Concreta e historicamente, com a ‘figura’ do bloco histórico, Gramsci define uma situação formada de uma estrutura econômica vinculada, dialética e organicamente, às superestruturas jurídico-políticas e ideológicas. Um bloco histórico realiza-se, efetivamente, quando um grupo social, economicamente ativo, consegue o consenso dos demais grupos sociais sobre o seu projeto de sociedade já em fase de realização prática. Forma-se, então, pela ação teórico-prática de uma classe fundamental, um sistema social complexo, cuja direção fica a cargo dos intelectuais orgânicos nascidos das entranhas dos grupos sociais dirigentes, no presente histórico, das várias frações da burguesia” (Staccone, 1991, p. 72).
Poulantzas é outro autor que desenvolveu teses que possuem proximidade com a idéia de bloco dominante. Ele desenvolveu a idéia de “bloco no poder”, que, em sua abordagem, é uma característica específica das “formações capitalistas”, que institui uma forma específica de relação entre as classes e frações de classes no interior do Estado:
“Com efeito, se essa coexistência de várias classes constitui um caráter geral de toda a formação social, ela assume, contudo, formas específicas nas formações capitalistas. Podemos estabelecer, nestas formações, a relação entre, por um lado, um jogo institucional particular inscrito na estrutura do Estado capitalista, jogo que funciona no sentido de uma unidade especificamente política do poder de Estado, e, por outro, uma configuração particular das relações entre as classes dominantes: essas relações, na sua relação com o Estado, funcionam no seio de uma unidade política específica recoberta pelo conceito do bloco no poder” (Poulantzas, 1977, p. 224).
A concepção gramsciana padece de uma visão pautada na idéia de hegemonia e consenso, que é destituída de realidade concreta, sendo mais uma especulação abstrata sem base real. Sua mistura de “base” e “superestrutura” acaba sendo ponto de partida para realizar uma interpretação superestrutural do marxismo. Desta forma, pode retirar os elementos fundamentais da luta de classe, tais como a questão da luta em torno do mais-valor e a acumulação de capital. Isso significa abandonar a totalidade das relações sociais, que supostamente havia tomando como ponto de partida, e tornando a hegemonia o elemento central da reprodução da dominação burguesa e assim enfatizando a superestrutura e deslocando a questão da transformação social para sua esfera.
Poulantzas parte da idéia de “classes dominantes”, o que é um equívoco conceitual, pois no capitalismo só existe uma classe dominante. Mas o principal ponto problemático de sua análise é a abordagem estruturalista, cujo formalismo desemboca numa visão de inúmeras classes e frações de classes, que, da mesma forma que Gramsci, não apreende a totalidade das relações sociais e fica preso neste nominalismo de grupos e classes. Assim, fica sem colocar a questão da acumulação de capital e a questão fundamental da luta em torno do mais-valor. É por isso que Poulantzas afirma que o bloco no poder é composto por classes e frações de classes, mas possui uma classe ou fração de classe que é hegemônica. A questão da hegemonia, no que se refere ao Estado capitalista, é destituída de sentido, pois ela se manifesta na esfera da sociedade civil e não na esfera estatal. No aparato estatal, a única classe que domina o Estado é a classe capitalista.
A concepção de Gramsci e Poulantzas rompe com o princípio metodológico fundamental do marxismo, que é o da totalidade (Lukács, 1989; Korsch, 1977). A sociedade é uma totalidade histórica e concreta e não é possível separar luta de classes, acumulação de capital, produção de mais-valor, cultura, ideologia, ação estatal, relações internacionais, entre diversos outros elementos constitutivos da realidade social. Na visão de Poulantzas e Gramsci, no entanto, vários destes elementos estão ausentes.
Por conseguinte, a idéia de bloco no poder, que tem suas origens em Gramsci e Poulantzas, deve ser reavaliada. É necessário entender que em cada regime de acumulação, independentemente das classes e frações de classes aquarteladas no Estado, segue a dinâmica da acumulação capitalista. Neste sentido, os setores da sociedade que se aquartelam no Estado formam o bloco dominante. Ele é formado por classes sociais (burguesia, burocracia estatal) e frações de classes e também por forças políticas, organizações e indivíduos. Estas forças políticas, organizações e indivíduos expressam interesses de uma ou outra classe social, mas possuem subdivisões que mostram diferenças ideológicas e modos de agir que são distintos.
A percepção disto é útil para analisar os aspectos mais detalhados do processo político estatal. Uma mesma classe social tem seus interesses expressos por diferentes partidos políticos, com diferenças em sua ideologia, etc. Tais partidos acabam formando seus próprios interesses e assim criam uma disputa no interior da classe dominante, sendo que, em alguns períodos históricos, alguns destes partidos, organizações, indivíduos, etc., são afastados do aparato estatal.
No que se refere ao processo de constituição das políticas estatais de assistência social, a determinação fundamental é o regime de acumulação. Porém, a forma sob a qual tais políticas serão implementadas não é unívoca, pois isto depende do país, da época, e, principalmente, da composição do bloco dominante e das lutas sociais. Na atualidade, na vigência do regime de acumulação integral, as políticas neoliberais marcam em linha geral a constituição de políticas de assistência social paliativas.
É neste contexto que surge, por um lado, políticas direcionadas para demandas específicas (pobres, negros, etc.), tal como as bolsas (universitária, escola, família) e política de cotas (para negros, indígenas, etc.). As políticas de assistência social estruturais vigentes durante o Estado Integracionista (welfare state) não são mais cabíveis no novo regime de acumulação. O Estado neoliberal realiza uma expansão de políticas paliativas visando conter os conflitos sociais e se legitimar (Viana, 2006; Viana, 2008) e alia a este processo uma forte política repressiva (Viana, 2006; Wacquant, 2002; Viana, 2008; Young, 2002).
No entanto, esta linha geral de políticas de assistência social não é aplicada de forma homogênea, pois dependendo do contexto (país, época, situação financeira, lutas sociais) e da composição do bloco dominante, sua aplicação pode ser diferente. Nos países imperialistas, por exemplo, as políticas estruturais de assistência social podem ser relativamente conservadas ou, para citar outro exemplo, um governo eleito de partido dito de esquerda pode, para se justificar e legitimar, apresentar alguns programas ou projetos mais amplos do que as políticas paliativas, embora sua concretização possa nunca ocorrer ou se realizar de forma precária.
Determinadas frações de classes ou setores da classe dominante podem usar sua influência e força no interior do bloco dominante para fazer valer seus interesses e assim intervir nas políticas de assistência social. Por exemplo, os empresários da educação podem pressionar o governo no sentido de incrementar as bolsas universitárias, o que significa um financiamento indireto por parte do Estado. Neste sentido, o Estado ao invés de promover o ensino superior público, financia o ensino superior privado, o que segue a lógica neoliberal de contenção de gastos e ainda beneficia determinado setor da classe dominante.
Neste contexto, as políticas estatais de assistência social seguem uma linha geral, mas realiza manifestações específicas. A compreensão desta especificidade pressupõe o estudo das determinações em cada caso concreto. A percepção disto é fundamental para a superação de concepções que atribuem a qualquer variação de pormenor na aplicação destas políticas uma outra política estatal, desvinculada da tendência geral.

Referências:

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Artigo publicado originalmente em: Revista Plurais. UEG. Vol. 1, num. 4, Jan./Dez. 2006.




* Sociólogo, Filósofo e Cientista Político; Professor dos departamentos de História e Geografia da UnUCSEH – Unidade Universitária de Ciências Sociais e Econômicas de Anápolis/UEG – Universidade Estadual de Goiás e Doutor em Sociologia pela UnB – Universidade de Brasília.
[1] Isto, obviamente, não retira os méritos da escola derivacionista, tais como a análise da relação capital-estado, a análise da acumulação capitalista e a percepção da especificidade do Estado no capitalismo subordinado.

[2] Sem dúvida, este processo é bastante complexo e precisaria de uma exposição mais longa e detalhada. Porém, devido à questão de espaço, não podemos realizar tal aprofundamento no presente artigo e por isso remetemos o leitor para as duas obras citadas no qual é realizada a análise da sucessão dos regimes de acumulação (Viana, 2003; Viana, 2007), principalmente a última, no qual se esboça uma teoria dos regimes de acumulação, bem como um histórico de sua existência. O conceito de regime de acumulação também traz mudanças sociais e culturais que são abordadas nesta obra.

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Artigo publicado originalmente em: Revista Plurais. UEG. Vol. 1, num. 4, Jan./Dez. 2006.

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