Gavril Miasnikov,, do "Grupo Operário" |
A Esquerda
Dissidente e a Revolução Russa
(1900-1923)
Nildo Viana*
O movimento socialista dissidente na Rússia antes e durante a
revolução bolchevique é pouco conhecido. Esta ala dissidente, composta por
aqueles que tinham posições divergentes das concepções dominantes nos
principais partidos e organizações políticas de esquerda na Rússia, teve uma
parte que atuou no interior do bolchevismo, outra parte esteve temporariamente
no seu interior e se afastou, enquanto que alguns nunca participaram em tais
organizações[1].
No entanto, a esquerda dissidente teve um papel fundamental na história das
lutas de classes na Rússia antes e pós-revolucionária.
A esquerda marxista dissidente antes da Revolução Russa teve
como grandes representantes, na Rússia, Parvus, Trotsky e Makhaïsky. Durante o
processo da Revolução de 1917 (Revolução de Fevereiro e Revolução de Outubro),
ela foi representada por Alexandra Kollontai, Schiliapnikov e outros
integrantes da Oposição Operária, bem como os representantes dos grupos
“Comunistas de Esquerda” e “Centralismo Democrático”. Esta era uma dissidência
que surgiu no interior do próprio Partido Bolchevique. No entanto,
externamente, havia a atuação intelectual e prática de Makhaïsky, que, ao
contrário de Trotsky, não se aliou ao bolchevismo. Já no final do período,
surgem novas tendências, tal como o “Grupo Operário” de Miasnikov e também “Verdade
Operária”, este último animado por Bogdanov e outros dissidentes. O nosso
propósito é apresentar, resumidamente, algumas das principais concepções
políticas desta esquerda dissidente, englobando todos estes grupos e
indivíduos.
Parvus e o “Jovem
Trotsky”:
Crítica da
Social-Democracia e Bolchevismo
Aleksander Helphand, mais conhecido pelo seu pseudônimo
Parvus, foi uma figura de primeira grandeza intelectual no movimento socialista
do final do século 19 e início do século posterior. As disputas e divergências
no meio das tendências que atuam junto ao movimento operário e camponês eram
enormes e isto provocava a polêmica e os embates teóricos. As diversas
tendências, tal como o populismo russo, o chamado “marxismo legal”, e outras
correntes, foram sendo substituídas pelo menchevismo, bolchevismo, socialismo
revolucionário, e outras, além de posições individuais que não se enquadravam em
nenhuma delas. Este é o caso de Parvus. Ele se opôs tanto ao menchevismo (o
equivalente russo, um pouco mais à esquerda em certo período, da
social-democracia) quanto ao bolchevismo. Para ele, o menchevismo era um
“oportunismo claro” e o bolchevismo um “oportunismo inverso” (Salvadori, 1985).
Mas Parvus se destacou por seu pioneirismo intelectual, ao
fazer previsões (tal como a da Primeira Guerra Mundial) e assumir posições que
mais tarde seriam desenvolvidas por outras correntes. Podemos dizer que Parvus
se adiantou ao momento histórico e esboçou posições que posteriormente seriam
defendidas por Rosa Luxemburgo e pelos comunistas conselhistas (Pannekoek,
Gorter, Rühle, Korsch), além da teoria da revolução permanente, desenvolvida
por Trotsky. No entanto, enquanto Rosa Luxemburgo e os conselhistas elaboraram
suas teses após a luta operária dizer o caminho da revolução, Parvus antes já
predizia a forma de emancipação proletária. Ele desenvolveu o que o marxista
alemão Ernst Bloch chamou de “consciência antecipadora”, mas realizando uma
antecipação visionária.
Parvus se dedicou com especial atenção ao problema da tática
revolucionária do movimento operário e à estratégia da greve de massas. Ele
comentou a deformação social-democrata da Introdução
de Engels ao livro de Marx, As Lutas de Classes na França, chamando-as
de má interpretação. Engels estava certo, afirma Parvus, ao pensar que a
“revolução de barricadas” estava ultrapassada, pois as mudanças na organização
urbana e nas forças repressivas tornavam tal estratégia inviável. No entanto,
isto não é motivo para se pensar que a revolução em si se tornou inviável. A
nova estratégia do movimento operário é a greve de massas (Parvus, 1978).
“A
greve geral não é nenhuma panacéia. Isolada das interações políticas carece de
efetividade e pode levar à derrota da classe operária. Porém, não se trata
disso e sim de greve de massas com fins políticos, do que a Bélgica nos dá o
exemplo. Dissemos premeditadamente “greve de massas”, pois neste caso não tem
nenhuma importância que toda a classe trabalhadora do país sem exceções faça a
greve. A greve de massas política se diferencia das outras no sentido de que
sua finalidade não é a obtenção de melhores condições de trabalho mas a
consecução de certas modificações políticas, e que, portanto, não se dirige
contra um capitalista individual mas contra o governo” (Parvus, 1978, p. 48).
A greve de massas não tem os inconvenientes das barricadas e
atinge em cheio o processo de produção capitalista. Mas a greve revolucionária
não é uma greve econômica e sim uma greve política, ou seja, não se trata de
atacar um capitalista individual em sua empresa e sim atacar o estado
capitalista. A greve de massas política vai corroer as forças do estado e
promover a formação dos conselhos operários, o “embrião da democracia
operária”, ou seja, do socialismo. Parvus irá, depois da Revolução Russa de
1905, um dos poucos intelectuais da esquerda e perceber o caráter
revolucionário dos conselhos operários. Segundo ele, esta revolução gerou uma
novidade histórica radical, o soviete, que, para ele, era o germe de uma nova
forma de organização estatal.
Para Parvus, a Rússia era um país atrasado que convivia com
lutas políticas avançadas e a greve geral era a forma nova assumida pela
revolução operária. Devido ao atraso russo, seria necessário articular
objetivos imediatos e objetivos revolucionários para distinguir a fase burguesa
da futura revolução russa, da fase posterior, que a suplantaria. O novo regime
político a ser criado seria a democracia operária e não um estado burguês. O
proletariado, neste processo, cria suas próprias organizações, que superam as
organizações burguesas (Salvadori, 1985).
Este é o caso dos conselhos operários, os sovietes, que
possuem, para Parvus, um caráter simultaneamente destrutivo e construtivo. Os
conselhos operários seriam a base real sob o qual se ergueria a democracia
operária, sendo elemento de organização permanente do proletariado, articulando
partido e greve geral, formando os três elementos que Parvus via no processo
revolucionário proletário. O soviete, neste sentido, seria o germe do novo
poder proletário, exercendo o papel de garantir a hegemonia política do
proletariado sobre outros setores da sociedade, tal como os soldados e
camponeses (Salvadori, 1985).
Aqui se retoma temas abordados posteriormente por Rosa
Luxemburgo e pelo esquerdismo ocidental. A greve de massas, preconizada por
Parvus, com a Revolução Russa de 1905, passou a ser debatida e defendida
ardentemente por Rosa Luxemburgo (Luxemburgo, 1979; Guérin, 1969), embora ela
já o fizesse anteriormente, desde as greves na Bélgica (Luxemburgo, 1978). No
meio do debate várias figuras se apresentaram, tal como Kautsky em polêmica com
Rosa Luxemburgo, bem como o social-democrata belga E. Valdeverde, também
polemizando com Rosa Luxemburgo, bem como Mehring, Parvus, Bernstein,
Pannekoek, e diversos outros[2].
De um lado, a ala esquerda da social-democracia, representada
por Parvus, Rosa Luxemburgo, Pannekoek, e, de outro, a ala reformista,
representada por diversos nomes, entre os quais, Bernstein, Kautsky,
Valdeverde. Nesta época histórica, os socialistas radicais atuavam junto com os
social-democratas nos mesmos partidos, mas entravam em conflito e polêmicas
constantemente, sendo que os primeiros constituíam a ala esquerda dos partidos
social-democratas. Parvus escrevia artigos para diversas revistas
social-democratas, entre elas a Neue Zeit,
dirigida por Kautsky, mais tarde exerceria influência sobre o “jovem Trotsky”[3], no qual criticava a
tendência dominante da social-democracia mundial. O silenciamento posterior
sobre sua obra foi possível justamente devido a isso, pois ele não agradava às
tendências dominantes e não tinha conseguido muita repercussão, o que permitia
“fazer de conta” que ele não existiu. Aliás, o mesmo ocorreu com Trotsky, sendo
que no seu caso até ele mesmo “esqueceu” do seu passado[4].
Este Trotsky pouco conhecido, se destacou pela sua polêmica
feroz com Lênin. Ele, tal como Rosa Luxemburgo, criticou o vanguardismo e
centralismo de Lênin. Sua crítica fundamental pode ser denominada teoria do
substitucionismo. O substitucionismo se caracteriza pela substituição da classe
operária pelo partido, tal como preconizado por Lênin. Em dois textos pouco
conhecidos, As Nossas Tarefas Políticas e Relatório da Delegação Siberiana,
Trotsky irá refutar Lênin, acusando-o de jacobinismo e substitucionismo
(Guérin, 1969; Knei-Paz, 1985; Trotsky, 1976; Deutscher, 1968). Em outros
textos também irá dar continuidade às críticas (Trotsky, 1989), mas estes dois
tomam o leninismo como foco.
Segundo ele, as teses de Lênin eram produto do atraso russo,
o que produzia o seu “messianismo político” e “jacobinismo”. A concepção de
Lênin era substitucionista por provocar a substituição da classe operária pela
organização do partido, da organização do partido pelo partido, do partido por
seu comitê central, e deste por um “ditador único” (Guérin, 1969; Howe, 1981;
Knei-Paz, 1985; Deutscher, 1968).
“O
‘estado de sítio’ sobre o qual Lênin insistiu com tanta energia exige um ‘poder
forte’. A prática da desconfiança organizada exige uma mão de ferro. O sistema
de Terror é coroado por um Robespierre. O camarada Lênin passou mentalmente em
revista os membros do Partido e chegou à conclusão que essa mão de ferro só
podia ser ele” (Trotsky, 1976, p. 109)[5].
Daí sua teoria da vanguarda e do centralismo democrático e
sua “lógica burocrática” em substituição à “lógica do movimento de classe”.
Este substitucionismo, no qual o partido substitui a classe, provocaria não uma
ditadura do proletariado e sim uma ditadura sobre o proletariado, tal como
Trotsky pode constatar nos Urais, onde discípulos de Lênin afirmaram isto em um
relatório, afirmando textualmente que não se trata de uma “ditadura do
proletariado”, mas “sobre o proletariado”:
“Dir-se-á
que isto é, simplesmente, uma demonstração de inépcia por parte de um grupo
local. Mas não chama a atenção que esta inépcia coincida, ponto por ponto, com
as críticas que os mencheviques formularam a Lênin? Por acaso não se recorda
que muito tempo antes da aparição do documento dos Urais e delegação da Sibéria
havia proclamado a hegemonia de um único indivíduo no seio do partido? Será que
Lênin o ignorava, para quem se prepara o papel de protagonista no sistema de
‘boulangismo’ dos Urais? Protesta ele contra tal documento? Nada disso, ele se
cala... O manifesto dos Urais não é uma brincadeira, mas o sintoma de um perigo
já antigo que ameaça o partido. É preciso, ao contrário, felicitar os camaradas
dos Urais por ter levado sua lógica até o fim” (Trotsky apud. Guérin, 1969, p.
92).
Lênin e o bolchevismo, assim, eram uma ameaça concreta ao
processo da revolução proletária.
“A
dificuldade consiste em que os bolcheviques só visualizam a luta de classes do
proletariado até o momento do triunfo da revolução, depois do qual a enxergam
como temporariamente dissolvida a coalizão ‘democrática” para tornar a
reaparecer em sua forma pura – desta vez como uma luta discreta pelo socialismo
– só depois do estabelecimento definitivo de um sistema republicano. Enquanto
os mencheviques, partindo da noção abstrata de que ‘nossa revolução é uma
revolução burguesa’, chegam à idéia de que o proletariado deve adaptar todas as
suas táticas ao comportamento da burguesia liberal, como o objetivo de
assegurar a essa burguesia a transferência do poder estatal, os bolcheviques
partem de uma noção igualmente abstrata – ‘ditadura democrática, não ditadura
socialista’ – e chegam à idéia de um proletariado de posse do poder estatal que
se impõe a si mesmo uma limitação democrática burguesa. É verdade que a
diferença entre eles nessa questão é muito considerável: enquanto os aspectos
anti-revolucionários do menchevismo já se tornaram plenamente evidentes, os do
bolchevismo só se tornarão uma séria ameaça em caso de vitória” (Trotsky, 1989,
p. 317).
Trotsky colocaria que Lênin, ao substituir a luta de classes
por “querelas de facção” (Figuéres, 1971) e colocar os intelectuais como
superiores à classe operária, criando uma “teocracia ortodoxa” (Howe, 1981;
Deutscher, 1968) abria caminho para a contra-revolução. Assim, Trotsky, antes
de se tornar ele mesmo um bolchevique, realizou uma previsão sombria sobre o
resultado da vitória do bolchevismo.
Makhäisky e a
Contra-Revolução Intelectual
Makhäisky assume um papel singular no processo revolucionário
russo. Ele, ao contrário dos demais representantes da esquerda dissidente, nunca
se aliou ao bolchevismo ou à social-democracia. Makhäisky começou efetuando uma
forte crítica à social-democracia e, posteriormente, ao bolchevismo. Sua
crítica à social-democracia e ao bolchevismo possui o mesmo caráter. Segundo
Makhaïsky, as duas ideologias expressam os interesses da intelligentsia. Sua obra vai girar principalmente em torno desta
nova classe social. Em 1900 publica O Socialismo de Estado e em 1905
publica O Trabalhador Intelectual e exerce certa influência entre
círculos operários russos até 1907, quando a perseguição czarista o faz ir para
outros países, só retornando em 1917, devido ao processo revolucionário. Neste
período, ele passa a editar, na Rússia, a revista Revolução Operária, que logo é fechada pela burocracia bolchevista.
Sua tese sobre a intelligentsia se inspira no
economista socialista Rodbertus, amplamente criticado por Marx e Engels e hoje
jogado ao esquecimento. Makhäisky reconhece que o socialismo de Rodbertus
também é um socialismo de estado e, portanto, também é uma ideologia da intelligentsia.
No entanto, ele apresenta alguns elementos para se compreender a
intelectualidade na sociedade moderna com seu conceito de renda nacional. A
renda nacional é o produto nacional em sua totalidade e esta é a “riqueza
primária”. Desta riqueza primária, que é a soma de mais-valia produzida, vem a
renda de todos os grupos sociais que não são capitalistas nem proletários,
principalmente a intelligentsia.
A riqueza secundária é adquirida por esta seja através de
salários pagos pelos capitalistas ou pelo estado. A intelligentsia busca aumentar os seus salários cada vez mais,
adquirindo para si uma maior parte da renda nacional. É isto que possibilita o
aumento da produção cultural, artística etc. nos países mais desenvolvidos.
Quanto maior a riqueza secundária, afirma Rodbertus, maior é a produção
cultural, intelectual, artística etc. Assim, a intelligentsia seria beneficiária do modo de produção capitalista.
O seu ideal de socialismo, por conseguinte, nas suas frações mais combativas,
seria o “socialismo de estado”. Makhäisky utiliza esta abordagem para explicar
tanto a social-democracia quanto o bolchevismo, antes de ambos chegarem ao
poder, isto é, antes da social-democracia alemã chegar ao poder do estado no capitalismo
privado e do bolchevismo chegar ao poder do estado no capitalismo estatal.
Em 1905 Makhaïsky havia escrito:
“Somente
pela supressão dos capitalistas privados, a classe operária moderna, os
escravos contemporâneos, não deixam de serem escravos, condenados a um trabalho
manual durante toda a vida; conseqüentemente, a mais-valia nacional criada por
eles não desaparece, mas passa pelas mãos do Estado democrático, como fundo de manutenção
para a existência parasitária de todos os extorsionários, de toda a sociedade
burguesa. Esta última, depois da supressão dos capitalistas, continua a ser uma
sociedade dominante, tal como anteriormente era a dos dirigentes e governantes
cultos, a sociedade dos ‘colarinhos brancos’; ela fica com a posse do lucro
nacional, que se partilha da mesma forma que antigamente: ‘honorários’ dos
‘trabalhadores intelectuais’; pois graças à propriedade e ao modo de vida
familiar, este sistema se conserva e reproduz de geração em geração” (Makhaïsky,
1981a, p. 97).
Esta posição de Makhaïsky será mantida em vários escritos
posteriores. Assim, após o que Makhäisky denominou “golpe de estado de
outubro”, a sua crítica ao bolchevismo continua. O bolchevismo revela a velha
tendência da social-democracia em “alimentar os operários com fábulas e não com
pão”. O bolchevismo busca subjugar os problemas econômicos aos políticos e
assim ludibriar o proletariado. A contra-revolução intelectual ocorrida na
Rússia significa apenas que a intelligentsia que realizou greves e
boicotes ao domínio bolchevique porque queria se unificar com a intelligentsia
bolchevique, o que ocorreu no final das contas.
“A
Revolução de Outubro mostrou muito bem que o inimigo da revolução operária e o
defensor do regime de pilhagem não é apenas o capitalista possuidor das
fábricas, mas também o intelectual, que detém conhecimentos trocáveis por um
salário privilegiado. A intelligentsia
saciada com a fartura, defendendo sua posição dominante, não quis tolerar a
dominação dos operários; recusou assumir a direção técnica sem a qual os
operários não podem organizar a produção” (Makhaïsky, 1981b, p. 165).
A análise de Makhäisky foi a mais profunda do socialismo
radical russo. Makhaïsky fez uma análise da social-democracia e seus desdobramentos,
apresentando o seu caráter de classe, isto é, demonstrando que ela é, sob suas
variadas formas, uma ideologia da intelligentsia
e que, por isso, realizaria, tal como posteriormente ele viu na revolução
bolchevique, mas havia anunciado antes, uma contra-revolução intelectual. Assim
sua teoria de que a intelligentsia é
uma classe social privilegiada que retira seus rendimentos da renda nacional,
isto é, do produto da exploração da classe operária, permite perceber suas
ideologias políticas e seu papel na revolução proletária, que é, segundo Makhaïsky,
contra-revolucionário.
Os “Comunistas de
Esquerda”:
Contra o Capitalismo de
Estado
No ano de 1918, em oposição à política econômica de Lênin,
surge o grupo dos “Comunistas de Esquerda”, que formaram uma tendência no
interior do Partido Bolchevique. Alguns de seus representantes foram Osinsky,
Radek, Bukhárin, Preobajensky, Obolensky e Smirnov.
É através do periódico Kommunist (Comunista) que os
representantes desta tendência irão manifestar suas teses. A sua divergência
com a liderança do partido foi iniciada com a implementação da “disciplina do
trabalho”, que, segundo eles expuseram em seu jornal Kommunist, que teve apenas
quatro números produzidos, iria “subjugar o proletariado” e ceder a gestão aos
“especialistas”. Eles acusaram Lênin de fomentar a introdução de um capitalismo
de estado na Rússia e propuseram em substituição o controle operário. Os
comunistas de esquerda exigiram a gestão operária partindo da base.
Osinsky defende a autonomia proletária como essência do
socialismo. Ele define o capitalismo como um regime de subordinação do
proletariado através da extração de mais-valor, tal como estava ocorrendo e
tendia se aprofundar na Rússia, e o socialismo como a autogestão operária
(gestão operária da produção).
Osinsky desenvolveu estas teses nos dois primeiros números de
Kommunist, em um artigo que foi dividido em duas partes. Trata-se de uma obra
fundamental para entender a posição dos comunistas de esquerda, embora Osinsky
fosse o mais sólido representante teórico desta posição, bem como o mais
radical. A sua obra Sobre a Construção do
Socialismo é um documento fundamental para se compreender o processo da
revolução russa e a burocratização crescente não como resultado inesperado do
processo, pois já percebido e denunciado no interior do próprio Partido
Bolchevique.
Osinsky critica o acordo de paz com a Alemanha, a política
econômica de Lênin, a valorização da intelligentsia,
que antes boicotava o proletariado, a implantação do taylorismo nas fábricas,
entre vários outros pontos. Segundo Osinsky:
“Sem
dúvida, todas essas novas tendências aparecem, de modo surpreendente,
justamente no momento da assinatura do acordo de paz, com esse retrocesso ante
o capital mundial, que era aceito como fundamento da paz imposta, com essas
amplas concessões ao imperialismo estrangeiro que emanam dela. A guerra foi
realizada não só para a conquista do país, do território, mas também para levar
a estes territórios os tentáculos econômicos do capital. Os imperialistas abrem
as portas para essa paz-conquista para obter proveito da economia do país
vencido. E inclusive, apesar disto, este novo período orgânico ‘socialista’,
segundo o camarada Lênin mesmo, termina com a aliança e o estabelecimento de
relações com o capital estrangeiro, do qual quer obter dinheiro, engenheiros,
armas, experts militares e talvez também apoios militares. Envolve-se com a
construção de um exército próprio, a que chama de ‘exército vermelho’, o qual,
sem dúvida, está em um estreito (demasiado estreito e perigoso)
colaboracionismo com oficiais czaristas e generais” (Osinsky, 1971, p. 83).
Osinsky também questiona a idéia do truste estatal, ou, em
outras palavras, a estatização e a confusão entre este processo e a instauração
do socialismo[6].
O papel da intelligentsia não deve
ser menosprezado, segundo ele, mas não se pode – nem é necessário – integrar
toda esta camada social no novo regime. Uma parte da intelligentsia é inútil para o novo regime. Uma parte, que é
justamente a mais próxima do proletariado, é possível de se conquistar para o
socialismo. Porém, isto não pode ser feito da forma burguesa. Osinsky ironiza a
proposta de Lênin e do setor majoritário do partido bolchevique: “Portanto,
devemos deixar trabalhar para nós a intelligentsia
que nos sabotava anteriormente. Por dinheiro, ela servia ao capital. Por
dinheiro também vamos comprá-la para nós” (Osinsky, 1971, p. 82).
Não se trata, segundo Osinsky, de utilizar toda a intelligentsia e nem de comprá-la. Uma
parte da intelligentsia é mais próxima
do proletariado e esta é justamente a mais útil para o processo de
transformação social e ela, devido sua própria inserção neste processo, não
precisa ser “comprada”. A idéia de usar os capitães da indústria para construir
o socialismo é tão falha quanto utilizar a organização do truste estatal para
tal construção.
Da mesma forma, os trabalhadores, que são os produtores de
riquezas, não devem estar submetidos ao mesmo processo de trabalho da sociedade
capitalista, não devem sofrer exploração, não devem ser mera massa de manobra,
“marionetes mortas”.
“Nosso
ponto de partida não é o trabalho material passivo, sob a direção dos antigos
servidores do capital, nem a organização do ‘socialismo’ engendrado por ele,
segundo os métodos da organização do truste, mas a construção ativa do socialismo, através dos
trabalhadores sob a colaboração técnica da intelligentsia, e a luta do proletariado
pelo socialismo e contra os inimigos de fora e de dentro (segundo as
circunstâncias na de forma de uma defesa ativa ou de ataque)” (Osinsky, 1971, p.
85).
Osinsky recorda Marx e a teoria da exploração capitalista, a
questão da mais-valia, para demonstrar que existem duas estratégias
capitalistas de evitar a luta operária. A primeira é a transformação do
proletário em possuidor da mercadoria força de trabalho que recebe em troca um
salário. A ilusão salarial é a primeira estratégia, pois oculta o processo de
exploração. A segunda estratégia é a organização do trabalho – tal como o
taylorismo – e os incentivos materiais, tal como o salário por peças. Estas
propostas são retomadas pelo setor majoritário do Partido Bolchevique. Isto se
concretiza num grande truste estatal.
Osinsky cita o exemplo das empresas de construção de vagões e
locomotivas. Todos os serviços ligados a tal construção passam a ser
propriedade estatal, formando uma única empresa, isto é, um truste, porém
estatal. Ele funciona como uma sociedade anônima, por ações, no qual os
acionistas se tornam credores e o Estado é aquele que irá pagar.
“Como
é construída a direção de um truste semelhante? Não há nenhuma dúvida de que
antes de tudo se tratará de uma organização absolutamente organizada. Se
concentrará em um centro, em um núcleo, no qual se compõe dos representantes do
Estado, dos ‘senhores capitães da indústria’ (estes são também os
representantes dos credores, dos possuidores de ações) e dos representantes dos
sindicatos. A iniciativa total na organização e direção da empresa dependerá
dos ‘organizadores do truste’: nós não queremos ensiná-los e levá-los aos trabalhos
costumeiros, mas aprender com eles. Naturalmente, em cada fábrica particular a
direção será autocrática e centralista desde baixo. Os diretores serão
escolhidos a dedo pelo centro, ao lado dos quais talvez os ‘arcanjos’, como
disse o camarada Krylenko, os comissários de controle, terão o lugar que
merecem. Seu poder não será limitado pela intromissão dos trabalhadores das
fábricas em questão: os comitês de trabalhadores terão no melhor dos casos o
direito a queixar-se sobre o centro sobre as medidas dos diretores e
comissários de controle. O controle dos trabalhadores em sua forma orgânica não
são mais necessários: o controle pode ser realizado a partir do centro. Ali
terão seu lugar tanto os representantes da força proletária e camponesa como os
das mais altas camadas sindicais em uma mesa redonda. Eles se deixam ensinar,
certamente e antes de tudo, pelos
senhores capitalistas; porém, isto não é grave, pois os alunos podem controlar
seus mestres” (Osinsky, 1971, p. 88-89).
Isto irá repercutir na organização do trabalho. A partir
deste momento, “nada de assembléias e resolução de conflitos”. A palavra de
ordem passa a ser: “trabalho!” Ninguém além do centro deve se preocupar com a organização
da produção. Daí o salário por peças e o taylorismo devem ser implantados. O
efeito negativo do sistema salarial sobre a consciência de classe do
proletariado é reforçado pela implantação do sistema Taylor. Caso os
trabalhadores aceitem isso, não irá significar nada mais do que o
fortalecimento da burguesia destronada e da intelligentsia.
A organização dos serviços estatais sob a forma de truste,
com a conseqüente emissão de ações, centralização burocrática, a faixa de
sociedade anônima, beneficiará o capital estrangeiro, seja o bom ou o mau, isto
é, seja o americano ou o alemão.
“A
força absoluta do alto estado maior, que em torno de 50 por 100 se encontra na
mão dos negociantes de patentes, se transformará pouco a pouco na força do
estado maior do capital. Se tivermos em conta as outras circunstâncias
simultâneas com uma tal linha política, se compreenderá que todo o sistema pode
evidenciar uma etapa para a ressurreição do capitalismo de estado na Rússia,
que não podia desenvolver-ser sobre o solo putrefato da autocracia czarista
(...) e que agora pode ressuscitar sobre o solo desinfetado pela atual servidão
(ao capital estrangeiro)” (Osinsky, 1971, p. 94-95).
Assim, Osinsky encerra a primeira parte do seu texto
colocando o perigo do capitalismo de estado e colocando a necessidade de um
outro caminho, visando fortalecer a força ativa do proletariado. Na segunda
parte, Osinsky não só volta a condenar a posição do Partido Bolchevique como
propõe novas relações com a intelligentsia,
que deve servir a toda a sociedade, bem nova forma de encaminhar as medidas
necessárias para a construção do socialismo. Um dos pontos mais importantes é a
construção de instituições similares ao conselho operário de Kharkov. O sistema
de sovietes de economia popular deve ter seu fundamento numa total socialização
da produção.
A direção das fábricas socializadas devem se organizar por
alguns princípios, a saber: a) a classe operária possui a maioria definitiva da
direção, não apenas em relação aos capitalistas mas também em relação a todo o
resto; b) os trabalhadores das fábricas não podem ter a maioria da direção, já
que o proprietário é a totalidade do proletariado, através da divisão da
direção entre os trabalhadores da fábrica e os representantes dos sovietes de
economia popular do distrito, ou governo, dos sovietes de trabalhadores e sindicatos;
c) os técnicos e os empregados em geral devem possuir autonomia em suas funções
executivas (ou seja, não incluindo funções legislativas e diretivas).
Assim, Osinsky não só realiza a crítica da política leninista
como aponta para uma saída: a autonomia proletária. A sua abordagem realiza uma
análise completa da política bolchevique, relacionando todos os pontos, desde a
política externa à organização do trabalho, passando pelas ideologias, o papel
da intelligentsia, as organizações
operárias. É uma das poucas análises de conjunto da política bolchevique. Porém,
a crítica de Osinsky foi, apesar disso, limitada. Esta limitação será percebida
e superada pelo Grupo Operário, do qual trataremos adiante.
Os Centralistas Democráticos:
Contra a Burocracia
O conflito entre a direção partidária comanda por Lênin e os
comunistas de esquerda se radicaliza durante o 1º Congresso dos Conselhos
Econômicos, ocorrido em maio/junho de 1918. Lênin defende a “gestão por um só
homem” e acusa os adversários de “infantilismo esquerdista” e de “mentalidade
pequeno-burguesa”. Osinsky e Smirnov, entre outros, defendem a administração
operária não só por cima mas também pela base e para isso tinham um amplo apoio
dos delegados de província. Depois de vários conflitos, os comunistas de
esquerda conseguiram aprovar uma resolução em uma subcomissão do Congresso
segundo a qual dois terços dos representantes dos conselhos de administração
das empresas industriais fossem eleitos pelos trabalhadores. Lênin conseguiu reverter
a decisão (“estúpida”, segundo ele), diminuindo para um terço os representantes
eleitos (Solidarity, 1977).
“Houve
então uma cisão entre os comunistas ‘de esquerda’: Radek encontrava-se pronto a
entender-se com os leninistas. Estava pronto a aceitar o princípio da ‘gestão
por um só homem’, em troca dos decretos de nacionalização de 1918, que
inauguravam o período do Comunismo de Guerra e que, na sua opinião, garantiam a
base proletária do regime. Bukharin também abandonou Osinsky” (Solidarity,
1977, p. 100)
Radek e Bukhárin, aderindo ao leninismo e suas concepções
burocráticas, abandonaram a tendência dos comunistas de esquerda, que simplesmente
deixou de existir. Isto, ao lado da implantação da política do “comunismo de
guerra” em 1919 e da centralização crescente que lhe acompanha, fez com que
Osinsky e mais alguns remanescentes deste grupo buscasse formar uma nova oposição.
Esta tinha o nome de “Centralismo Democrático” e contava com Sapronov, Smirnov,
Bubnov, entre outros.
Os “Centralistas Democráticos”, também chamados “decemistas”
(de DC, letras iniciais da tendência), continuaram a árdua luta contra o
bolchevismo, mas não conseguiram grandes sucessos. A crítica dos centralistas
democráticos, o que justifica seu nome, é ao centralismo burocrático de Lênin e
dos demais líderes bolcheviques[7]. Neste contexto, propondo
a descentralização, apresentam suas concepções nas “Teses Sobre a Direção Colegial e a Direção Individual”, na IX
plenária do partido em 1920, e no jornal Pravda, em 1921, do texto coletivo
intitulado As Futuras Tarefas do Partido.
Nas Teses eles
questionam as posições extremas entre a “decisão colegial e decisão
individual”. Nenhum dos dois sistemas pode ser considerado válido em qualquer
circunstância, pois ambos possuem vantagens e desvantagens. Porém, os
decemistas defendem a direção colegial no caso concreto da Rússia:
“Do
ponto de vista sociopolítico a direção colegial possui algumas vantagens que a
constituem no mais importante principio da construção organizativa soviética, e
fomentam no atual período de trabalho militante sua perseverança e
consolidação. A direção colegial é o grau mais alto da escola de direção
estatal. Somente ela ensina a resolução de perguntas específicas em relação com
os interesses da totalidade. O trabalho colegial é igualmente também o melhor
método para recuperar os antigos especialistas burgueses por meio de um
trabalho conjunto no novo estilo de camaradagem e para imbuí-los de psicologia
proletária, é também o melhor método para controlar aos especialistas burgueses
enquanto este não tiverem superado seus velhos costumes e psicologia anterior.
Finalmente, e isto é o mais importante, somente a direção colegial preserva aos
funcionários responsáveis de alienar-se em trabalhos especializados de visão estreita.
Nesta ou naquela forma, nesta ou naquela medida, a direção colegial proporciona
os fundamentos necessários para o sucesso do sistema do centralismo
democrático, assim como as melhores armas contra a ressurreição da mentalidade
estreita do especialista e a irremovível burocracia do aparato dos sovietes. O
sucesso e o fortalecimento da direção colegial é a garantia do êxito em nossa
luta econômica, que só pode realizar-se em conexão dos métodos militares com a
iniciativa criadora dos trabalhadores conscientes” (Osinsky, Sapronov e
Maximovsky, 1971, p.115-116).
No texto As Futuras
Tarefas do Partido, os decemistas declaram a existência de uma crise no
partido e a necessidade de superá-la. Eles identificam vários elementos que
caracterizariam a crise do partido bolchevique, entre as quais o declínio da
vida geral do partido; a paralisação dos órgãos coletivos internos; a ampliação
da mentalidade burocrática orientada para interesses de grupos, principalmente
nas elites do partido; a entrada de numerosas pessoas estranhas à classe
proletária no partido; a concessão de privilégios para diversas classes que
assumem formas intoleráveis; o aumento do descontentamento dos simples membros
do partido, gerando ações contrárias ao próprio partido. Como solução, os
decemistas propõem várias medidas, todas apontando para uma reformulação da
organização partidária, da forma de tratamento dos setores privilegiados e para
a democracia proletária.
Oposição Operária:
Autonomia Operária e Burocratismo
Alexandra Kollontai é o nome mais conhecido da esquerda
dissidente russa. Mas isto se deve ao fato dela ter dedicado grande parte de
sua obra à “questão da mulher” (Kollontai, 1982a; Kollontai, 1982b; Kollontai,
1982c), o que não entrava em conflito direto com o bolchevismo. Poucos, no
entanto, conhecem sua obra política de crítica ao bolchevismo e sua ação
concreta durante o período crítico da revolução russa. Em seu texto A Oposição Operária, ela
apresenta uma forte crítica aos caminhos da revolução russa devido ao
bolchevismo. Porém, outros representantes de destaque pertenciam a este grupo,
principalmente Schiliapnikov. A tomada de poder pelos bolcheviques em 1917 não
realizou as promessas do socialismo e a formação do grupo Oposição Operária em
1920-1921 foi expressão do crescente descontentamento do proletariado russo.
Alexandra Kollontai e a Oposição Operária realizam, tal como
os demais grupos (não custa lembrar que quando a Oposição Operária surgiu ainda
existia o grupo Centralismo Democrático) uma crítica da burocracia e das concepções
organizativas de Lênin e Trotsky. Um dos pontos criticados é a tese leninista
de gestão individual:
“O
princípio da ‘direção de um só homem é um produto da concepção individualista
da classe burguesa. A ‘direção de um só homem’ corresponde, como princípio, à
vontade livre, ilimitada e isolada de um só homem desligado da coletividade.
Esta concepção reflete-se em todos os aspectos da atividade humana, começando
pela nomeação dum soberano à cabeça do Estado e acabando no diretor
todo-poderoso da fábrica. Eis a suprema sabedoria do pensamento burguês. A
burguesia não acredita no poder de um órgão coletivo. Para ela, as massas não
são mais do que um rebanho fácil de chicotear e de encaminhar para onde ela
quer” (Kollontai, 1977, p. 30-31).
O ponto de vista de Kollontai é oposto:
“A
classe operária e os seus porta-vozes, pelo contrário, têm consciência de que
as novas aspirações comunistas só podem ser realizadas pelo esforço coletivo
dos próprios trabalhadores. Quanto mais as massas desenvolverem a capacidade de
exprimir uma vontade coletiva e um pensamento comum, mais rápida e mais
completa será a realização das aspirações da classe operária: porque então será
criada uma nova indústria comunista, homogênea, unificada e bem preparada. Só
os que estão ligados à produção podem introduzir nela inovações que a animem”
(Kollontai, 1977, p. 31).
Kollontai destacava a divergência em relação ao partido por
parte da Oposição Operária, que se manifestava na posição bolchevista de
“desconfiança” em relação à classe operária e ao papel atribuído aos
“diretores”. Os sindicatos, na concepção bolchevista, teriam apenas o papel de
“educador”, de “escola”[8]. Assim, a divergência
reside em quem será responsável pela construção do comunismo, o Conselho
Superior de Economia Nacional e seus organismos burocráticos ou os sindicatos
da indústria. Obviamente, as lideranças bolcheviques tomavam partido da
burocracia enquanto que a Oposição Operária defendia a primazia dos sindicatos
(baseados nos comitês de fábrica) no processo de formação do comunismo.
Em seu texto, Alexandra Kollontai dedica um capítulo
fundamental intitulado “Sobre a Burocracia e a Atividade Autônoma das Massas”.
Ela faz a pergunta: “burocracia ou atividade autônoma das massas?” Esta
oposição manifesta a questão da possibilidade da classe operária realizar o
processo de autogestão social, e revela o obstáculo da burocracia.
“Na
Rússia soviética qualquer criança sabe que o problema vital é o de preparar
largas massas operárias, camponesas e outras para a reconstrução da economia no
estado proletário e o de modificar as condições de vida em conformidade com
essa reconstrução. A tarefa é clara: despertar a iniciativa e atividade
autônoma das massas. Mas o que é que se faz para encorajar e desenvolver esta
iniciativa? Absolutamente nada. Pelo contrário. Em todas as reuniões incitam-se
os operários, homens e mulheres, a ‘criar uma nova vida, a construir e a ajudar
as autoridades soviéticas’. Mas, logo que as massas ou grupos de operários
isolados tomam este incitamento a sério e tentam aplicá-lo na vida real, surgem
certas instituições burocráticas que, sentindo-se ignoradas, se apressam a
cortar pela raiz os esforços destes iniciadores demasiado zelosos” (Kollontai,
1977, p. 76).
Alexandra Kollontai opõe, em seguida, a atividade autônoma
das massas ao sistema burocrático. Esta é uma repetição da discussão anterior
sobre os sindicatos. Ela revela que a constituição do comunismo deve ser obra
dos próprios produtores e que a discussão sobre burocracia na esfera do Partido
Bolchevique é superficial, apelando para a discussão sobre “papelada” enquanto
que o fundamental da burocracia são as decisões tomadas pelas instituições
centrais. As decisões são apenas “transmitidas” à base. Mas para eliminar a
burocracia nas instituições soviética é preciso aboli-la no interior do próprio
Partido Bolchevique.
“Para
escorraçar a burocracia que encontrou abrigo nas instituições soviéticas,
devemos em primeiro lugar desembarcar-nos ela no interior do próprio partido. É
aí que se trava a luta imediata. Logo que o Partido reconheça a atividade
autônoma das massas como base de nosso Estado – não em teoria, mas na prática –
as instituições soviéticas tornar-se-ão então, automaticamente, instituições
com vida, destinadas a pôr em execução o programa comunista. Deixarão de ser as
instituições das papeladas, os laboratórios de decretos natimortos, em que tão
rapidamente degeneraram” (Kollontai, 1977, p. 80).
Alexandra Kollontai e a Oposição Operária apresentam diversas
medidas visando barrar o processo de crescente burocratização e o domínio da
burocracia e resgatar a atividade autônoma das massas, inclusive propondo o
afastamento das instituições soviéticas de elementos não-operários, tais como
os especialistas e representantes das “classes médias”.
Schiliapnikov também ressaltou o papel fundamental dos
sindicatos no processo de construção do comunismo e apresentou uma proposta
piramidal no qual os sindicatos e suas células, os comitês de trabalhadores,
organizariam de forma planificada e organizada o processo de produção, além de
outras propostas, tais como a gratuidade de habitação, alimentação, acesso ao
teatro, etc. (Schiliapnikov, 1971).
A oposição operária iria desaparecer com a decisão do setor
majoritário do Partido Bolchevique em abolir as frações, tal como os
Centralistas Democráticos. De sua ala esquerda, entretanto, surgiria um
coletivo ainda mais radical, o Grupo Operário, que, juntamente com outro grupo,
o Verdade Operária, manteria a posição dissidente viva na Rússia.
“Verdade Operária”:
Bolchevismo e Capitalismo de Estado
A proibição das frações dentro do Partido Bolchevique, em
1921, decretou o fim da Oposição Operária e do Centralismo Democrático, sendo
que este já estava praticamente destruído antes disso. O massacre de Kronstadt,
a rebelião dos marinheiros que exigiam “mais sovietes” e “menos partido”,
marcou um radical enfraquecimento da oposição (Arvon, 1984). Um pouco antes
disso, surgiram dois outros grupos. Um era chamado “Grupo Operário”, cujo
principal representante era Miasnikov; o outro era chamado “Verdade Operária”,
que surgiu em 1921, cujo principal representante foi Bogdanov[9]. A principal diferença
entre estes e os demais grupos de oposição ao bolchevismo reside no fato deles
terem se formado fora do Partido Bolchevique, embora uma parte de seus
integrantes tenham passado por este partido, tal como seus principais
representantes, Miasnikov e Bogdanov, respectivamente.
O grupo Verdade Operária iniciam sua análise do processo de
luta de classes na Rússia através de uma reflexão sobre o desenvolvimento do
capitalismo. A tese exposta por este grupo é a de que a economia internacional
e as relações de classes no interior dos países explicam a evolução da Rússia.
A guerra interrompeu as relações econômicas entre os países, que passou a ter
que retirar do seu próprio interior as condições para uma existência autônoma.
Isto trouxe a necessidade de regulação e organização a partir da lógica da
guerra, criando um “capitalismo de guerra”. Isto nada tem a ver com o
socialismo e sim com o capitalismo de Estado, já que a repartição do produto
nacional permanece a mesma.
Neste contexto, a burguesia privada perdia a capacidade de
dirigir a produção, enquanto que o proletariado não estava preparado para
organizar a produção sob novas bases. É devido a isto que os técnicos avançavam
cada vez mais como substituto da burguesia na direção do processo produtivo. A
intelligentsia se torna a nova força dirigente do processo de produção.
Foi isto que aconteceu durante a Guerra Mundial e nos
pós-guerra. Na Rússia, o mesmo se sucedia, sendo que a nova burguesia estatal
foi o resultado da fusão dos bolcheviques com os capitalistas comerciais da
Nova Política Econômica. A burocracia dos sovietes, dos sindicatos e do
partido, junto com os organizadores do capitalismo de Estado (burocracia
estatal), possuem um elevado nível de renda em contraposição aos trabalhadores,
criando um abismo entre partido comunista e classe operária. O partido
comunista se tornou um “partido da intelligentsia”. A burocracia sindical, por
sua vez, com seu oportunismo realiza uma mediação e amortecimento das lutas de
classes e assim favorece a manutenção do capitalismo de Estado.
O grupo Verdade Operária propõe, por conseguinte, a formação
de um Partido dos Trabalhadores Russos. Tal partido deveria encaminhar um
conjunto de propostas sobre política internacional (aliança com os países de
capital avançado, tal como EUA e Alemanha e se posicionar contra a França,
qualificada de “reacionária”), liberdade interna (de imprensa, reunião, etc.),
política cultural (luta contra as tendências autoritárias e pequeno-burguesas,
trabalho cultural, etc.).
A relação com os demais partidos socialistas é pautada pela
crítica, tanto ao menchevismo quanto aos social-revolucionários. Isto também
ocorre no que se refere ao grupo Oposição Operária, que se limitava a propor
coisas já superadas, como o comunismo de guerra e acabou assumindo um papel
reacionário[10].
Grupo Operário:
Sovietes
contra Burocracia
Gavril Miasnikov tinha origem operária e era militante do
partido bolchevique desde 1905. Com o processo da revolução russa, participou
dos debates, se aliando, inicialmente, aos “Comunistas de Esquerda” e,
posteriormente, atuou conjuntamente com os Centralistas Democráticos e a Oposição
Operária (Avrich, 1984). Miasnikov se
manifestou várias vezes contra a política leninista, tanto no que se refere ao
acordo do tratado de Brest-Litovski quanto à questão da liberdade de imprensa.
Miasnikov foi um dos primeiros a problematizar o papel dos sindicatos e sua
relação com os sovietes. Em 1920, ele escrevia que os sindicatos não tinham
nenhum papel relevante no processo da revolução russa e da organização da nova
sociedade. Os Sovietes cumpriam o papel de órgão revolucionário, bem como de
organização do trabalho. Os sindicatos sobreviveram devido ao costume da classe
operária de considerá-los representantes dos trabalhadores e para não criar
desconfiança nos demais países. Porém, o papel dos sindicatos e sovietes se
confundiam e os últimos são os mais adequados para organizar a produção e
reorganização social (Miasnikov, 1971).
Miasnikov foi ameaçado de expulsão, até que depois de várias ameaças,
isto ocorre em fevereiro de 1922. Em 1923 funda uma oposição clandestina,
chamado Grupo Operário do Partido Comunista da Rússia. Apesar da referência, o
referido grupo não tinha nenhuma ligação com o PC russo. O Grupo Operário
reivindicava ser a voz autêntica do proletariado. O grupo contava com um grande
número de operários e alguns ex-militantes bolcheviques e da Oposição Operária.
Assim, além de Miasnikov, haviam outros integrantes atuantes como Kuznetsov,
Moiseev, Treyozhnye, Tyiunov, entre outros.
Em 1923 lançam o Manifesto
do Grupo Operário. Neste, há a defesa da autogestão dos trabalhadores, a
remoção dos especialistas burgueses, a liberdade de imprensa, a eleição direta
dos sovietes nas fábricas. Um dos elementos fundamentais do Manifesto residia
na defesa da autonomia proletária e na crítica da burocracia e da intelligentsia. A política econômica
bolchevique também é criticada: os autores do Manifesto perguntam: a NEP – Nova
Política Econômica – não teria se transformado em Nova Exploração do Proletariado? Esta política teria beneficiado,
na verdade, o fortalecimento da burguesia e proliferação de burocratas e da
corrupção.
A NEP era um símbolo da deterioração do ideal socialista e da
revolução. A abolição da propriedade privada não aboliu as demais
características do capitalismo: sistema salarial, diferença de renda e status, autoridade hierárquica,
burocratismo. Miasnikov via a NEP como um recuo do socialismo, recuo iniciado
no período da guerra civil (Avrich, 1984). As raízes deste processo teriam
surgido no 9º Congresso do Partido Comunista Russo, quando se decidiu pela
“gestão individual” e pela utilização dos técnicos especializados. Lênin e o
Partido Bolchevique privaram os trabalhadores russos da conquista fundamental,
a organização da produção pela classe operária, e em seu lugar instituiu uma
direção burocrática. A produção deveria voltar a ser gerida pelo proletariado,
bem como os burocratas e a intelligentsia,
preocupada apenas com seus privilégios, deveriam ser afastados. O reino de
hipocrisia dominava a sociedade russa devido ao domínio burocrático-intelectual
estabelecido. Uma nova classe social usurpava o lugar que pertencia aos
trabalhadores, a burocracia.
A única solução para a degeneração da revolução seria a
restauração da democracia proletária. Somente a iniciativa proletária poderia
mudar o rumo do processo social, pois a liderança bolchevique era incapaz de
tal tarefa. Os trabalhadores em cada empresa e local de trabalho, deveriam
retomar o controle do processo revolucionário. Lênin não tinha confiança nas
ações da classe operária e se refugiou em soluções administrativas, pregando
reformas burocráticas da burocracia. A ditadura do partido único só poderia ser
combatida através da ação do proletariado.
A política externa deveria mudar de direção e a Internacional
Comunista deveria abandonar sua política de frente única. Seria necessário
romper com as idéias de reformas parciais, aliança com socialistas moderados, e
busca de ganhos econômicos limitados. Era preciso ir direto ao combate ao
capitalismo, para não enfraquecer a esperança e animo do proletariado. A
revolução social nos países avançados deveria ocorrer agora e não num futuro
distante e esta deveria ser a política da Internacional Comunista. O Manifesto
faz observações sobre a necessidade de unificar a esquerda revolucionária e
cita o Partido Comunista Operário da Alemanha (KAPD) – a dissidência do Partido
Comunista Alemão (KPD), pró-soviético – e Partido Operário Comunista da
Holanda, ambos anti-bolcheviques e que optaram pelo “comunismo de conselhos” ao
invés do “comunismo de partido”, como as referências do processo revolucionário
mundial. O contato entre Miasnikov e KAPD irá preocupar a direção bolchevique.
Pouco depois, o primeiro iria para o exílio e a prisão, e o segundo será
expulso da Internacional Comunista.
O Manifesto do Grupo
Operário teve repercussão. O grupo era formado por uns 300 indivíduos em
Moscou, onde possuía maior força, a maioria operários, e contava com alguns
militantes antigos e novos forjados na nova situação e em outras cidades. As
greves nos centros industriais em 1923 estiveram, de certa forma, ligado ao
Grupo Operário, que foi o animador de algumas delas. Leon Trotsky denunciaria o
Manifesto do Grupo Operário como
sendo makhaiskismo, revelando a influência de Makhaïsky e da tese do
“socialismo de estado”, no qual a classe operária é explorada pela intelligentsia. Zinoviev diria que toda
crítica ao partido, mesmo de esquerda, seria, doravante, menchevismo. Miasnikov
foi preso em maio de 1923. Depois conseguiu sair do país e foi para Berlim,
onde se encontrou com os integrantes do KAPD e com o apoio destes publicou o Manifesto na Europa. O Grupo Operário
conseguiu manter suas atividades através de outros militantes, entre eles Makh
e Kuznetsov. Alguns foram ameaçados e vários outros expulsos do partido, entre
eles Moiseev, Tyiunov, Berzina, Demidov, Kotov, e Shokhanov. Miasnikov volta
para a Rússia no final de 1923, com a garantia de Zinoviev e Kritinsky que nada
lhe aconteceria. Apesar da garantia, foi preso por Dzerzhinsky tão logo pisou
em solo russo. O grupo foi silenciado a partir de então.
A repressão se tornava cada vez mais forte, já antes da morte
de Lênin. Miasnikov faria protestos na prisão, greve de fome, crítica e
comparação das ações bolchevistas com as fascistas, até conseguir fugir em
1928. Mais tarde, na Europa, encontraria Trotsky, agora exilado e na oposição à
Stálin, e apesar de algumas concordâncias, não entraram em acordo, pois, para
Miasnikov, a idéia trotskista do “Estado Operário com deformações burocráticas”
era insustentável, pois o que existia na Rússia era um Capitalismo de Estado
dominado por uma elite burocrática[11].
Esquerda Dissidente e Luta de Classes na Rússia
Os diversos grupos e indivíduos dissidentes que existiram na
Rússia, desde o início do século e das lutas operárias radicais de 1905 até a
morte de Lênin, sempre abordaram alguns temas recorrentes, tais como a intelligentsia, o bolchevismo, o
capitalismo de estado, a burocracia.
Sem dúvida, é possível distinguir entre os dissidentes
pré-revolucionários e os pós-revolucionários. Os dissidentes
pré-revolucionários criticam as tendências dominantes, a social-democracia e o
bolchevismo, criticavam o burocratismo no partido e os perigos que
representava. Este foi o caso de Parvus e o jovem Trotsky.
Os dissidentes pós-revolucionários, por sua vez, criticavam a
gestão das fábricas (a gestão individual preconizada por Lênin e Trotsky), o
burocratismo, a direção bolchevique, a intelligentsia,
e as características capitalistas do regime, colocando a tendência ao
capitalismo de Estado. Este é o caso dos Comunistas de Esquerda, Centralismo
Democrático e Oposição Operária. Já o Grupo Operário e Verdade Operária, devido
ao período de seu surgimento, no qual houve um aprofundamento da burocratização
e ficava mais claro o caráter do regime, a análise da sociedade russa já era
mais clara, reconhecendo o caráter capitalista estatal e a impossibilidade da
direção bolchevique realizar as mudanças necessárias.
A única exceção foi Makhaïsky que, antes da revolução
bolchevique já havia anunciado o processo contra-revolucionário e o denunciou
depois de estabelecido. A diferença fundamental era que de todos eles o único
que não tinha nenhuma ligação com o Partido Bolchevique era Makhaïsky. Assim,
nunca se iludiu com a idéia de que o partido poderia resolver os problemas dos
quais era a própria causa.
As críticas dos Comunistas de Esquerda, dos Centralistas
Democráticos e da Oposição Operária eram, geralmente, lançadas ao partido, e
pedindo deste a solução, tal como a liberdade de imprensa, ou a mudança da
política econômica, externa ou de gestão das fábricas. Embora as críticas
tenham se radicalizado com o passar do tempo (as exigências e críticas dos
Comunistas de Esquerda foram radicalizados pelos grupos posteriores, os
decemistas e a Oposição Operária, e, mais ainda, pelo Grupo Operário e Verdade
Operária), elas nunca ultrapassaram certos limites.
A história da esquerda dissidente também é curiosa. Parvus
abandonaria sua concepção radical e se tornaria integrante do governo
social-democrata na Alemanha; Trotsky abandonaria seu radicalismo
anti-bolchevique e se tornaria um leninista; Bukhárin, Radek e outros
integrantes do grupo Comunistas de Esquerda abandonariam a oposição e se
tornariam defensores da direção partidária; muitos outros abandonariam a luta e
se tornariam burocratas estatais. Muitos outros resistiriam e seriam presos,
exilados ou assassinados. A linha divisória ocorre entre os que abandonam suas
teses críticas e os que as aprofundam. No entanto, existe uma linha divisória
mais importante.
Os Comunistas de Esquerda realizavam uma crítica mais
moderada ao bolchevismo e ao regime, isto pelo motivo de que a situação ainda
se agravaria e a percepção de alguns aspectos não estava clara, bem como pelos
integrantes do grupo. Não havia unidade entre os representantes desta
tendência, e existiam os mais moderados, como Bukhárin e Radek, e os mais
radicais, como Osinsky. A cisão do grupo foi provocada justamente por esta
diferença interna diante do confronto com a direção bolchevique.
Os decemistas possuíam uma maior radicalidade, tanto por seus
componentes quanto pela evolução dos acontecimentos. Porém, eles lutaram contra
o bolchevismo no campo dele, na esfera partidária, uma das instituições da nova
dominação de classe, ao invés de se aliar ao movimento operário. No entanto,
também não havia unidade no interior
deste grupo:
“Uns
continuavam a pensar que Lênin, depois de outubro, mesmo cometendo alguns
erros, tinha tido uma posição justa e que a linha só se tinha começado a
desviar com Stálin; os outros julgavam que já no tempo de Lênin com a
instauração da NEP, a estrutura democrático-burguesa
da revolução se tinha sobreposto à estrutura socialista e que o próprio Lênin
não sabia o que fazia. Os terceiros declaravam que apesar de todas as
proclamações, a estrutura socialista da revolução tinha sido sempre mais fraca
que a estrutura pequeno-burguesa. A revisão do leninismo assentava desde aí não
só sobre o capitalismo de Estado mas também na ditadura do partido. Ao
princípio, quando Lênin em 1920 defende a tese do partido único e da sua
ditadura, o grupo decemista tinha-lhe dado a sua aprovação, e imediatamente se
separaram da Oposição Operária que logo a seguir tinha virado contra.” (Ciliga,
1975, p. 15-16).
Segundo Ciliga, após a prisão, muitos decemistas
radicalizaram seu posicionamento. Para Jacques Kosman, a forma que Lênin
trabalhou a organização da indústria a colocava inteiramente nas mãos da
burocracia. Os decemistas foram contra a proposta do Grupo Operário segundo a
qual os operários deveriam ter a liberdade de escolher o seu partido. Para
Damidov, o proletariado é homogêneo e por isso seus interesses somente através
de um único partido seus interesses podem ser representados, e esta proposta
seria “menchevista”. Porém, na ala radical dos decemistas, Smirnov afirmava:
“Nunca
houve revolução proletária na Rússia, nem ditadura do proletariado. Houve,
apenas, uma ‘revolução popular’ na base, e, no topo, uma ditadura burocrática. Lênin
nunca foi um ideólogo do proletariado. Do princípio ao fim, não passou de um
ideólogo da intelligentsia” (Smirnov,
apud. Ciliga, 1975, p. 20).
Smirnov defendia a tese de que o mundo se dirigia a uma nova
formação social, o capitalismo de Estado, tal como ocorria na Rússia, na
Turquia, na Itália Fascista e na Alemanha Nazista. Segundo ele, “o comunismo é
um fascismo extremista, o fascismo é um comunismo moderado”. Ciliga coloca que
a perspectiva do socialismo fica de lado neste tipo de abordagem. Smirnov foi
expulso do grupo.
A limitação das primeiras oposições no interior do
bolchevismo, representada tanto pelos Comunistas de Esquerda quanto pelos
Centralistas Democráticos, estava em sua filiação ao partido bolchevique.
“O
grupo do Centralismo Democrático encontrava-se numa situação difícil quando se
punha em causa Lênin. Diferindo dos trotskistas, este grupo tinha as suas
origens na velha guarda bolchevique. Assim, tanto nas suas concepções gerais
como no seu enunciado, ele era ‘leninista’. Na sua origem, representa a oposição
do aparelho local, a oposição de Sua Magestade” contra o centro. Em nome do
‘centralismo democrático’ opunha-se ao centralismo burocrático do comitê
central de Lênin. Sem querer reconhecê-lo, opunha ao leninismo do período
decadente da revolução, o Lênin do período ascendente. Criticava a política
prática de Lênin apoiando-se nos princípios leninistas de O Estado e a Revolução.
Mas por mais profunda que tenha sido esta obra de 1917 de Lênin, ela não dava
todavia respostas imediatas aos novos problemas provocados pelo evoluir da
Revolução. Finalmente, o grupo ficou no impasse durante 10 anos (1919-1929),
quer capitulando perante um ultimato de Lênin, quer apoiando os trotskistas na
sua luta contra Stálin. A sua orientação mais papista do que o papa foi
estéril” (Ciliga, 1975, p. 11).
Assim, estes dois grupos, apesar de seus representantes mais
radicais (Osinsky, Smirnov), realizaram uma luta que não assumiu a radicalidade
necessária, isto é, de chamar o proletariado para a ação revolucionária. Embora
defendessem, especialmente os mais radicais, a iniciativa operária e a
democracia proletária, o faziam através do partido bolchevique e não junto à
própria classe operária.
A Oposição Operária realizou um trabalho um pouco mais
radical, contestando mais diretamente Lênin e Trotsky e defendendo a iniciativa
das massas com certa ligação com indivíduos proletários. Porém, a sua defesa dos
sindicatos era problemática. O decemista Schapiro já alertava que a Oposição
Operária “não representava os interesses do proletariado mas os da burocracia
sindical”. Neste sentido, a passagem da direção das fábricas para os sindicatos
significaria tão-somente a substituição do domínio da burocracia do partido
para a burocracia sindical (Ciliga, 1975).
Apesar disso, é preciso esclarecer que também na Oposição
Operária não havia unidade e que os sindicatos eram bastante fracos na Rússia.
Porém, sem dúvida a Oposição Operária realizou uma crítica à direção
bolchevique e colocou o processo de burocratização crescente, fornecendo
informações sobre a situação que mostram que o caminho de Stálin já havia sido
preparado pelo próprio bolchevismo[12]. Mas não se pode esquecer
que a Oposição operária fazia uma crítica apenas à direção bolchevique e não ao
bolchevismo enquanto ideologia e prática[13]. Apesar disso,
Schiliapnikov, um dos mais radicais componentes da Oposição Operária, anunciava
que havia uma dualidade de poderes na Rússia, o poder dos burocratas e o poder
proletário, e seria necessária uma decisão radical: o socialismo ou o
capitalismo de Estado (Ciliga, 1975).
O grupo Verdade Operária avançava no sentido de caracterizar
o regime russo como um capitalismo de Estado, mas se equivocava, como Smirnov,
em não ver as diferenças entre o bolchevismo e o fascismo, bem como defender a
tese problemática da incapacidade da classe capitalista de gerir o capital
aumentava a importância crescente da burocracia. Esta tese iria desembocar em
concepção análoga a de Smirnov, e posteriormente o ex-trotskista James Burnham,
de uma tendência ao capitalismo de Estado em nível mundial. Esta concepção
acaba deixando de lado a questão fundamental do desenvolvimento capitalista e
se ilude com uma visão empiricista do processo histórico do capitalismo. O
Verdade Operária também avançou no sentido de não fazer apelos ao Partido
Bolchevique, mas se mostrou limitado ao não ultrapassar a ideologia de um
“partido dos trabalhadores”.
O Grupo Operário, formado por militantes que alguns chamavam
miasnikovistas, foi o grupo que mais avançou na análise da revolução
bolchevique e das propostas políticas. O seu mérito não só estava em buscar a liberdade e
autonomia proletária de forma mais ampla, como buscar se fundamentar nos
conselhos operários e não nos sindicatos, como também numa crítica e oposição
mais radical em relação ao bolchevismo. A caracterização da Rússia como
capitalismo de Estado e a busca de incentivar as lutas diretas do proletariado,
bem como a defesa de seu direito de depor qualquer partido, inclusive os
intitulados “comunistas”, também são fundamentais. A percepção da formação de
uma nova classe dominante e privilegiada, a crítica da burocracia, é outro
mérito deste grupo. O seu maior defeito, na época de seu surgimento, foi se
colocar como sendo ligado ao Partido Comunista (ligação meramente fictícia, já
que era um grupo clandestino, não reconhecido e combatido pelo partido), mas
depois vai, paulatinamente, se afastando desta posição.
A obra de Makhaïsky assume uma radicalidade e capacidade de
síntese maior do que a de todas as demais tendências. Makhaïsky discutiu todos
os problemas que mais tarde os grupos dissidentes iriam colocar: a intelligentsia, o papel do Estado, a
insuficiência da abolição da propriedade privada individual, a necessidade da
própria classe operária comandar o processo revolucionário, etc. Porém, o
grande mérito de Makhaïsky foi ter, pioneiramente, ter observado que a luta de
classes no capitalismo envolve além da burguesia e do proletariado uma terceira
classe, a intelligentsia. Desde suas
primeiras obras, no final do século 19, ele denunciava esta nova classe
privilegiada que tinha altos rendimentos e servia ao capital e que criava suas
próprias ideologias, a social-democracia e, em seus setores mais radicais, como
notará em 1917, cria também uma tendência que busca substituir a burguesia
enquanto classe dominante, o bolchevismo.
Assim, a obra de Makhaïsky significou um alerta para o
proletariado da ameaça da “terceira classe”, a intelligentsia, para o processo
revolucionário. A implantação do capitalismo de Estado na Rússia não foi
produto de acasos ou, como alguns colocam, da falta de desenvolvimento das
forças produtivas ou, ainda, devido à guerra civil e desorganização do processo
de produção. Sem dúvida, estes acontecimentos também influenciaram os rumos da
sociedade russa, mas não determinaram a formação do capitalismo de Estado, pois
outras alternativas seriam possíveis, tal como o capitalismo privado e o
comunismo. A grande questão é que a luta de classes colocam as tendências
históricas nas mãos de determinadas classes. O bolchevismo, desde sua origem,
tal como já alertava Makhaïsky, expressava não os interesses do proletariado e
sim da burocracia. As origens da burocratização da sociedade russa estavam
presentes na ideologia e prática do Partido Bolchevique. Makhaïsky é, devido a
ter sido o primeiro a perceber isto de forma mais adequada e cristalina, o
maior teórico da contra-revolução burocrática na Rússia. Também devido a isso
superou todas as tendências oposicionistas existentes, do ponto de vista
teórico. Porém, a sua influência acabou sendo pequena e assim não armou os
militantes de uma compreensão clara do processo contra-revolucionário, o que fortaleceu
a tendência de implantação do capitalismo de Estado, chamado de “socialismo de
Estado” por Makhaïsky.
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2007.
* Professor da UEG –
Universidade Estadual de Goiás e Doutor em Sociologia/UnB. Autor de Escritos
Metodológicos de Marx (Goiânia, Alternativa, 2007); Estado, Democracia e
Cidadania (Rio de Janeiro, Achiamé, 2003); O Fim do Marxismo e outros Ensaios
(São Paulo, Giz Editorial, 2007), entre outros.
[1] Não abordaremos aqui o anarquismo, que se enquadraria
entre os que nunca participaram do bolchevismo e organizações semelhantes, mas
tão-somente os representantes da esquerda dissidente marxista. Há um extenso
material sobre a participação anarquista na Revolução Russa (Guérin, 2007;
Lehning, 2004; Machnó, 1988; Archinov, 1976; Skirda, 2001; Woodcock, 1984). Na
Europa, os socialistas radicais que formavam a ala esquerda da
social-democracia européia era a tendência mais próxima politicamente destas
correntes do socialismo russo, tal como Rosa Luxemburgo na Alemanha e Anton
Pannekoek, na Holanda.
[2] Estes textos foram publicados em língua espanhola (Parvus,
1978; Luxemburgo, 1978).
[3] Deutscher, apesar do seu livro extremamente
problemático e carregado de equívocos, aborda a influência de Parvus sobre
Trotsky, mostrando a admiração deste pela formação intelectual do primeiro.
“Não é fácil, porém, definir as proporções exatas de sua influência sobre
Trotski. Até hoje, os detratores deste atribuem a autoria exclusiva da teoria
da ‘revolução permanente’, a marca peculiar do trotskismo, a Parvus, e insinuam
que Trotski a copiou ou plagiou ou que uma teoria vinda de uma fonte tão
contaminada deveria ser inútil. O próprio Trotski jamais negou sua dívida para
com Parvus, embora o calor com que admitisse variasse com a época e as
circunstâncias. O que ambos escreveram no auge de sua associação revela quantas
das idéias e opiniões formuladas primeiramente por Parvus deixaram marca
profunda em Trotski, e quantas este repetira durante sua vida, em forma não
muito diferente daquela em que seu amigo mais velho as apresentara” (Deutscher,
1968, p. 115).
[4] Anweiler, depois de citar uma frase de Trotsky
pregando o domínio do partido e que a última palavra deveria pertencer ao
comitê central do partido, em 1920, afirma: “Trotsky havia esquecido seus
ataques anteriores contra tais frases de Lênin” (Anweiler, 1971, p. 54).
[5] “Num pós-escrito, Trotski acrescentava,
zombeteiramente, que não pretendera comparar Lênin com Robespierre: o líder
bolchevique era uma simples paródia do francês, ao qual se assemelhava tal como
‘uma farsa vulgar se assemelha à tragédia histórica’” (Deutscher, 1968, p. 97).
[6] Segundo Osinsky, isto é muito perigoso: “Antes de
tudo, para aquele que pensa que a transição ao socialismo é uma simples
estatização dos serviços, há que dizer que tal estatização, considerada em si
mesma, como transição de uma indústria à propriedade estatal, não é, todavia,
socialismo algum. Na Prússia, as ferrovias em sua totalidade passaram a mãos do
Estado, porém, ninguém crê que semelhante medida signifique transição ao socialismo”
(Osinsky, 1971, p. 90).
[7] “Os grupos comunistas de extrema-esquerda não temiam o
confronto com o conjunto da experiência revolucionária na Rússia,
contrariamente à oposição trotskista para a qual a época de Lênin permanecia
sacrossanta. Mais ainda: desde 1919-21 todos esses grupos extremistas se tinham
constituído em oposição mais ou menos nítida à política de Lênin” (Ciliga, 1977,
p. 72). A posição de Lênin era antagônica à idéia defendida por estas oposições
internas que preconizava a democracia proletária: “O partido tivera de
controlar os sindicatos, afastar seus líderes recalcitrantes, vencer ou
diminuir a resistência popular e impedir a livre formação da opinião dentro dos
sovietes. Somente assim, pensava Lênin, podia ser salva a Revolução” (Deutscher,
1968, p. 543).
[8] “O problema é que Lênin, Trotsky, Bukharin e outros
encaram as funções dos sindicatos não do ponto de vista do controle da produção
ou da gestão das indústrias, mas simplesmente como escola de educação das
massas. (...). ... os sindicatos não são apenas escolas para o comunismo, mas
igualmente os seus criadores” (Kollontai, 1977, p. 59-60).
[9] Bogdanov também foi um bolchevique da velha guarda.
Porém, entrou em conflito com Lênin no partido, o que rendeu as críticas deste
em Materialismo e Empiriocriticismo
(Lênin, 1990). A relação entre Bogdanov e Lênin continuou conflituosa no
período em que Bogdanov defendia o Prolekult (Cultura Proletária). Um resumo
das teses de Bogdanov pode ser visto em Scherrer (1984), embora não faça referência
ao período de formação do Verdade Operária (Scherrer, 1984).
[10] O documento “Chamada
do Grupo Verdade Operária ao Proletariado Revolucionário”, onde tais teses
estão expostas, se encontram em Kool e Oberlander (1971).
[11] Para o Grupo Operário: “O socialismo só pode ser obra
de livre criação dos trabalhadores. Enquanto que o que [o bolchevismo – NV] edificava,
com o nome de socialismo, não era para eles, desde o princípio, senão um
capitalismo burocrático de Estado” (Ciliga, 1975, p. 16).
[12] “Trotsky não quer compreender que os ‘desvios’ e
defeitos contra os quais protesta não passam da conseqüência lógica e
inevitável da totalidade do sistema que ele defende com ardor. Trotsky é, no
fundo, o teórico de um regime que Stálin põe em prática” (Ciliga, 1977, p. 71);
“Coletivamente, a única instância real de poder é o partido, e, já muito cedo,
as cúpulas do partido. Os sovietes são reduzidos, logo após a tomada do poder,
a instituições puramente decorativas” (Castoriadis, 1985, p. 237). Apesar de
todos os seus equívocos, Castoriadis acerta no fato de que o processo de
burocratização é concomitante à revolução bolchevique, tal como coloca Makhaïsky
e os documentos recolhidos por Brinton mostram claramente a política
bolchevique sobre os conselhos operários (Brinton, 1975).
[13] “Por parte da Oposição Operária se reproduzia não era
outra coisa que a pergunta pela democracia proletária dentro do sistema de
ditadura do proletariado, coisas idênticas segundo a teoria oficial
bolchevique. A Oposição Operária queria realizar a auto-administração do
proletariado com a participação dos sindicatos na direção do processo
econômico. Porém, todavia, não pensava em uma democratização do Estado, isto é,
dos sovietes, nem em evitar o monopólio do partido comunista. Porém, exigia dentro
do partido uma mais ampla liberdade e abertura de discussão, conseqüente
realização do princípio de eleição e exclusão do partido de todos os elementos
não-proletários” (Anweiler, 1971, p. 63).
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