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sábado, 25 de fevereiro de 2017

TIO PATINHAS: A SAGA DE UM CAPITALISTA


TIO PATINHAS: A SAGA DE UM CAPITALISTA

Nildo Viana*

Resumo:
O presente artigo apresenta uma análise do Tio Patinhas, personagem Disney. O objetivo é analisar as características do personagem, sua formação histórica e enredo, visando explicar o caráter do personagem e seu vínculo com o processo de legitimação do capitalismo, sua forma de reprodução dos valores dominantes e ideologemas, bem como a forma como isso é realizado.

Palavras-Chave: Capitalista, Dinheiro, histórias em quadrinhos.

Abstract:
This paper presents an analysis of Uncle Scrooge, Disney character. The goal is to analyze the character's traits, their historical background and plot, aiming to explain the character of the character and his relationship with the capitalist process of legitimation, its reproduction of the dominant values and ideologemes, as well as how this is accomplished.

Key-words: Capitalist, money, comics.


Tio Patinhas é um dos mais famosos personagens Disney. Ao mesmo tempo, em certos círculos, é o mais rejeitado. Essa rejeição é derivada do fato de Tio Patinhas ser um capitalista e seu enredamento girar em torno disso. Inúmeros outros personagens são capitalistas e não geram tal rejeição, pois o seu enredamento não gira em torno de seu pertencimento de classe. Basta citar Batman (Bruce Wayne) e o Homem de Ferro (Tony Stark), para observar essa diferença, pois ambos são capitalistas mas o enredamento é distinto, não sendo extensão do seu pertencimento de classe.

Análise das histórias em quadrinhos podem se dirigir para diversos temas e um deles é o personagem, que é a escolha aqui realizada. A análise do Tio Patinhas pressupõe entender a especificidade do foco em um personagem. Outros focos analíticos são possíveis, como, por exemplo, uma determinada história, um determinado período histórico, um conteúdo específico do personagem, etc. A análise do personagem permite uma percepção global do mesmo, que pode ou não ser complementada por análises de determinadas histórias específicas, dependendo de outras decisões do pesquisador, incluindo os seus objetivos. A opção aqui tomada é a de analisar o personagem e utilizamos algumas referências à histórias apenas para fundamentar a análise.

Nesse sentido, o processo analítico contará com uma análise das características do personagem, sua formação histórica e a estrutura do seu enredamento[1]. O objetivo é explicar as características essenciais do Tio Patinhas e seu vínculo com o processo de legitimação do capitalismo (através de valores e ideologemas), geralmente de forma inintencional e algumas vezes de forma intencional, bem como elementos que reforçam esse processo, como o que denominamos modus operandi da comicidade e fórmula aventurosa.

Tio Patinhas: Um Capitalista Selvagem

Um indivíduo capitalista é mal visto por certos setores da sociedade simplesmente por seu pertencimento de classe, por ser um burguês, o que significa ser explorador dos trabalhadores através da extração de mais-valor ou, no imaginário popular, ser rico. No entanto, certos indivíduos capitalistas são mais rejeitados ainda, seja por sua voracidade em busca da ampliação de sua riqueza e/ou por sua avareza. Esse até mesmo no plano da aparência perde a civilidade, se aproximando da selvageria. O protótipo é a figura do capitalista selvagem, devorador das riquezas do mundo para satisfazer sua ganância. O Tio Patinhas é um típico capitalista selvagem e não é preciso demonstrar isso para quem conhece o seu universo ficcional[2]. A mera constatação disso, no entanto, não é suficiente. É preciso entender suas características mais profundas além da sua busca incessante por mais riqueza (expressão figurativa simples de um processo real complexo: a reprodução ampliada do capital, tal como teorizada por Marx)[3] e avareza do personagem.

Um capitalista selvagem é aquele que o dinheiro se torna o seu valor fundamental. Os valores fundamentais são aqueles que não só estão acima na escala de valores dos indivíduos, mas também são critérios para escolhas dos demais valores (VIANA, 2007). Os desvalores também se manifestam constantemente. Aquilo que não leva ao dinheiro é desvalorado. O seu interesse é apenas no que pode gerar lucro e tudo que não serve para esse propósito é desvalor, algo sem interesse. O dinheiro como valor fundamental significa que ele está acima dos seres humanos, dos sentimentos, de outros valores, etc. Isso significa a coisificação e desumanização de um ser humano.

A vida de Tio Patinhas gira em torno do dinheiro, da conquista de mais dinheiro e da proteção do que já possui e vencer os concorrentes num processo competitivo incessante. Aqui temos os elementos definidores da estrutura do universo ficcional do Tio Patinhas, tanto de seu enredo quanto de seu enredamento.

Esses valores dominantes são complementados por um conjunto de concepções e representações que ajudam a caracterizar o personagem. O raciocínio do Tio Patinhas é uma réplica do cálculo mercantil, no qual os gastos (despesa) não devem superar os ganhos (renda).  No caso do Tio Patinhas, devido o efeito humorístico esperado, os gastos muitas vezes superam os ganhos. Em A Sopa de Pedra, na qual o Primo Nadinhas, o protótipo do primo pobre, aparece com a velha história de uma sopa feita de pedra e, tal como no folclore, vai solicitando ingredientes e acaba fazendo uma sopa normal.

                                                           Tio Patinhas e Primo Nadinhas, “A Sopa de Pedra”.

No entanto, o cálculo mercantil é sempre relacionado com a distribuição e nunca com a produção. O Tio Patinhas é um “quaquilionário” que se enriquece apenas com dinheiro e ouro, ou seja, no âmbito das relações de distribuição e raramente nas relações de produção. Este é um dos motivos para que os operários fiquem geralmente ausentes em suas histórias[4]. Dorfman e Mattelart afirmam que os operários estão presentes nas histórias em quadrinhos do Tio Patinhas:
O proletariado foi [...] omitido: na cidade é criminoso, no campo é o selvagem-bonzinho. Como a visão de Disney é emascular a violência e os conflitos sociais, inclusive malandros são enfocados como crianças travessas (na América Latina, Irmãos Metralha são “chicos malos”); como o antimodelo que sempre perdem, recebem surras, celebram suas estúpidas ideias dando-se as mãos e dançando em rodas. Sua monada dispersa sintomatiza o desejo da burguesia de substituir o aglutinamento de quatro gatos loucos pelas organizações da classe operária. (Assim, quando Donald aparece como um possível bandido, a reação de Tio Patinhas: “meu sobrinho, um assaltante? Diante de meus próprios olhos? Terei que chamar a polícia e o hospício. Deve ter enlouquecido”, é similar à redução de toda subversão política a uma enfermidade psicopática, para apagar a solidariedade de classe que explica o fenômeno). Convertem os defeitos do proletariado, produto da exploração burguesa, em taras, em objeto de riso e em argúcias para não perturbar essa exploração. Não lhes permite sequer ser originais em suas aspirações: a burguesia coloniza em última análise esses ladroes, impedindo-lhes as mesmas aspirações. Eles desejam o dinheiro para serem burgueses, para se converterem nos exploradores, e não para abolir a propriedade. A caricatura do proletariado, torcendo cada característica que poderia fazê-lo temível e digno e, portanto, identificá-lo como classe social, serve para oferecê-lo em público como um espetáculo de burla e escárnio. E, paradoxalmente, na era da tecnologia do mundo que os burgueses chamam moderno, a cultura massificada recorre e propala cotidianamente os mitos renovados da era da máquina (DORFMAN e MATTELART, 1980, p. 83).
Essa interpretação, no entanto, é arbitrária. Não há nenhum indício, nem ficcional nem extraficcional, de que o proletariado apareça travestido como um bando de criminosos. Isso só seria possível numa versão simplista e pseudomarxista das classes sociais, pensando na existência de apenas duas classes (burguesia e proletariado, o que levaria à conclusão lógica, apesar de absurda, de que quem não é burguês só pode ser proletário). Os criminosos se encaixariam, na terminologia marxista, no lumpemproletariado. Nesse sentido, é visível a ausência do proletariado, o que expressa a ausência da produção de mais-valor, a forma moderna de exploração. A produção ausente é substituída pela distribuição e o enriquecimento é apenas a aquisição de dinheiro e vantagens nas trocas comerciais criando um mundo ilusório e fetichista. Aí se encaixa a análise de Marx sobre o fetichismo da mercadoria (MARX, 1988). O universo ficcional do Tio Patinhas é totalmente fetichista. O pensamento econômico que expressa essa concepção fetichista, embora noutro contexto histórico, onde isso tinha maior racionalidade, seria a concepção mercantilista.
O Tio Patinhas é principalmente um capitalista comercial e bancário, não um capitalista industrial, o que justifica a relativa ausência do proletariado[5]. Assim, o mordomo Batista e outros funcionários (burocratas, intelectuais e subalternos) existem, mas o proletariado não. Raramente aparece a figura de um proletário. Curiosamente, a fonte mítica de toda riqueza do pato avarento tem origem em um operário:
Tio Patinhas, como muitos homens que se tornaram multimilionários ou ilustres, nasceu de uma família pobre. Assim, ainda menino, o pequeno Patinhas resolveu, por conta própria, trabalhar para ganhar algum dinheiro e aliviar a carga do pai. Como não tivesse capital nem tarimba para negócios maiores, foi ser engraxate. Arranjou algumas tábuas velhas e um caixote e construiu uma cadeira. Finalmente, instalou-se numa esquina, à sobra de uma árvore, à espera ansiosa do primeiro freguês. A cada homem que passava perguntava: - Vai graxa, moço? Até que, pouco depois, um velho operário parou e pediu para ser atendido. Os sapatos do homem, além de estar “pedindo aposentadoria” como o dono, estavam cobertos de lama ressecada. O pequeno Patinhas levou meia hora só para remover os cascões de terra. Depois, com muito entusiasmo, engraxou os sapatos, que ficaram limpos. O homem gostou do jeito do menino trabalhar e deu-lhe uma moedinha. O menino, emocionado, guardou aquele níquel com muito carinho. De engraxate passou a vendedor de lenha, e foi melhorando de negócio em negócio. Mas aquela primeira moeda ele a conservou sempre consigo como um amuleto da sorte (MANUAL DO TIO PATINHAS, 1988, p. 94)[6].
Assim, a origem da famosa moedinha número 01 remete a um “velho operário”. Isso poderia simbolizar a exploração capitalista, mas não há mais nada nas histórias do pato avarento que aponte para qualquer criticidade nesse sentido. No entanto, uma característica do Tio Patinhas é fundamental e revela a reação ambígua do público em sua relação. Diante do público mais intelectualizado ou rebelde sua popularidade é mais baixa, bem como diante dos trabalhadores[7]. As representações cotidianas apontam para duas interpretações do famoso pato burguês: a figura do capitalista, para alguns, uma minoria, seria objeto de crítica e, para outros, a imensa maioria, seria objeto de apologia, nas histórias em quadrinhos do Tio Patinhas. Essas representações cotidianas também recebem abordagens mais complexas defendendo uma ou outra posição.
As duas interpretações são mais atribuições de significado do que expressão real do significado original dos criadores das histórias em quadrinhos do Tio Patinhas. A figura do Tio Patinhas não é recusada e nem objeto de humor, crítica, rejeição, por ser um capitalista. No desenvolvimento histórico das suas histórias em quadrinhos não se vê nada nesse sentido. Muito pelo contrário, ele é o protagonista de suas próprias histórias, depois de um certo tempo como coadjuvante do Pato Donald, e a tendência dos leitores é a identificação com ele, momentânea ou permanente, dependendo do caso[8].
No caso da população em geral, a sua recusa é mais por causa de sua avareza e excessos. Ou seja, a rejeição do Tio Patinhas ocorre por ser um “capitalista selvagem”, tal como descrito anteriormente, e não por ser um capitalista. A sua avareza, amor pelo dinheiro, suas atitudes diante da riqueza, entre outras características exageradas do pato capitalista, são produtos dos seus criadores e é o que lhe permite o efeito humorístico, o seu modus operandi de comicidade. O seu banho matinal em dinheiro é um exemplo, embora sua graça seja limitada por sua repetição ao longo das histórias em quadrinhos. O rocambolesco é uma das formas mais comuns de despertar humor e o seu uso faz parte da estrutura das histórias em quadrinhos de humor. Os momentos mais criativos e com mais humor da Turma da Mônica, por exemplo, é quando Cebolinha encontra o personagem O Louco, pois é quando as ações mais rocambolescas acontecem. O seu uso pode ser recursivo ou criativo, ou ambos simultaneamente. O uso recursivo acaba diminuindo seu efeito humorístico (é o caso dos banhos em dinheiro do Tio Patinhas) enquanto que o uso criativo acaba surpreendendo e conseguindo tal efeito com sucesso[9]. Há casos em que o uso recursivo é simultaneamente criativo, pois apesar da repetição, de acordo com o contexto ou dependendo do que é repetido, acaba gerando o efeito humorístico[10]. No caso das histórias em quadrinhos do Tio Patinhas, coexistem usos recursivos e criativos.
As mudanças de criadores das histórias em quadrinhos de Tio Patinhas, como toda produção do capital editorial em alta escala e durante um período prolongado de tempo, expressa a permanência das características essenciais do personagem, mas ganhando diferenciação de acordo com quem são os criadores, o país, o contexto social e histórico, etc.[11] No entanto, a análise do Tio Patinhas pode conservar o essencial do personagem e a sua rejeição é esperada, bem como sua motivação é a mesma que provoca o efeito humorístico. No plano dos valores, não há contestação dos valores burgueses, mas tão-somente de sua subordinação absoluta dos demais valores, e por isso ser rico e capitalista não é problema e sim transformar isso em sentido da vida e passar por cima de tudo o mais. No plano das representações, se apresenta um ideologema[12], segundo o qual o problema não é ser capitalista e sim ser “selvagem” e por detrás dessa concepção há uma outra: a ficção do “bom burguês”, como se o problema fosse a bondade ou maldade pessoal do indivíduo capitalista, ao invés das relações de produção capitalistas e do constrangimento que ela cria para este no sentido de ter que garantir a produção de mais-valor e reprodução ampliada do capital.
Isso é perceptível na origem do Tio Patinhas. A fonte de inspiração para sua criação foi o avarento Ebenezer Scrooge[13], personagem de Um Conto de Natal, de Charles Dickens, que rendeu diversas adaptações, inclusive várias cinematográficas. O conto de Dickens mostra um avarento (scrooge é uma palavra inglesa que, em sua tradução para português, significa sovina e outras com mesmo significado), um rico de origem humilde e que se caracterizada pela poupança e acumulação sem gasto pessoal. A sua ganância e avareza acabam criando uma situação na qual três fantasmas o assombram quando está a beira da morte para transformá-lo.
A aparência física é a de um típico capitalista do século 19 e que permanece até início do século 20. As ilustrações de Ebenezer Scrooge também inspiraram a aparência física do Tio Patinhas.
Desde que foi publicada, em dezembro de 1843, a novela A Christmas Carol, de Charles Dickens (1812–1870), vem sendo constantemente transposta para outros suportes artísticos, que lidam com o som e com a imagem. Primeiro para as ilustrações e para o teatro, depois para as leituras públicas feitas pelo próprio autor e, posteriormente, para o cinema, a televisão, o rádio e os desenhos animados. A história de Ebenezer Scrooge, o velho avarento que é assombrado na véspera de Natal pelos espíritos dos Natais passado, presente e futuro, é a mais conhecida das obras de Dickens (ALMEIDA, 2012, p. 01).
A imagem clássica de Ebenezer Scrooge é a fonte de inspiração do Tio Patinhas, embora semelhante com a figura do indivíduo capitalista da época e trazendo as marcas do simbolismo associado aos burgueses. O filme A Christmas Carol (1910), bem como ilustrações do livro de Dickens mostram isso:
                       
                           Scrooge no cinema (2010)                                                         Ilustração do livro de Dickens.

No fundo, Ebenezer Scrooge tem sua aparência inspirada nos capitalistas do século 19 e Tio Patinhas em ambos, mas especialmente em Scrooge e nas formas como ele era retratado. O próprio nome do Tio Patinhas em inglês é Uncle Scrooge McDuck. A fonte de inspiração revela a fonte da ideia.
                      
Tio Patinhas: A aparência de um típico capitalista do século 19, recorrente até início do século 20.

A antipatia em relação a Ebenezer Scrooge não é devido ao fato dele ser um capitalista e sim de ser um avarento, um capitalista selvagem, que tão logo se torna um “bom burguês”, através do arrependimento, é perdoado e perde o seu caráter antipático. Os valores dominantes, burgueses, não podem se manifestar com crueldade, isso retira a humanidade do capitalista. O seu “lado humano” deve ser recuperado (e até mesmo Hitler já teve tal lado “recuperado” por determinada produção cinematográfica). Assim, se oculta o significado real de um capitalista ou da classe burguesa, o caráter de classe social e o que lhe caracteriza como tal, e em seu lugar temos os “bons” e os “maus”. Isso promove uma humanização e aceitação do “bom burguês”. Um capitalista civilizado e bondoso é bom. O que é inaceitável é um capitalista selvagem, que passa por cima dos demais valores culturais e coloca o vil metal como o sentido da vida.
A Fórmula Aventurosa do Tio Patinhas
Essa caracterização do Tio Patinhas não se esgota nisso. Existe um outro elemento que permite entender o personagem. Os enredos das histórias em quadrinhos do Tio Patinhas possuem uma fórmula aventurosa[14]. A fórmula aventurosa do Tio Patinhas tem três variantes. A primeira variante é a da conservação da riqueza; a segunda variante é a da conquista de mais riqueza; a terceira variante é a competição social com outros capitalistas (geralmente envolvendo a riqueza). Em termos populares, poderíamos denominá-los “defesa da propriedade contra os criminosos”, “busca do ouro” e “concorrência capitalista”.
A fórmula aventurosa do Tio Patinhas tem como eixo central o dinheiro. Esse é o sol em torno do qual gira Tio Patinhas e seus coadjuvantes. É em torno do dinheiro que a aventura se desenvolve: manter o dinheiro que já tem ou conseguir mais, ou ter mais que os outros. Aqui temos a revelação do valor fundamental por detrás da fórmula aventurosa: o dinheiro, a posse, a propriedade. O sentido da aventura é a busca do ouro, é isso que faz os personagens agirem. O objetivo é sempre o mesmo, até quando parece não o ser. Isso se revela desde o início da história e quando não ocorre, aparece no seu decorrer. Tio Patinhas vive para o dinheiro. Aqui retomamos o tema do fetichismo. O dinheiro é o motor da ação do Tio Patinhas. Este vive em sua função, ao invés de ser o contrário. A descrição abaixo, desde que se entenda que não é uma característica intencional fornecida por seus criadores, destaca isso:
É que a criatividade de Patinhas se torna impessoal na medida em que ele se submete ao querer objetivo representado pela “moeda n0 1”. Nesse processo, submetido ao reinado das coisas, ele se torna agente e não sujeito da reprodução das coisas e do universo coisificado. Patinhas não é o senhor do dinheiro, mas servo do dinheiro. Não é ele quem “diz” ao dinheiro o que deve ser feito, mas é o dinheiro que precisa do cérebro de Patinhas, de todos os seus músculos e sentidos, para cumprir a sua lei natural que é a reprodução crescente, incessante e inexorável. Por isso Patinhas é um homem atormentado com a segurança do seu dinheiro, pois está irremediavelmente e totalmente identificado com ele (MARTINS, 1978, p. 11).
Essa característica do Tio Patinhas se deve à própria estrutura dos enredos do personagem derivados de sua personalidade e da vida dos indivíduos reais nos quais ele se inspira. A personalidade do Tio Patinhas é a do capitalista selvagem, do avarento, como Scrooge de Dickens, no qual o dinheiro se tornou o objetivo e sentido da vida. Logo, os enredos vão girar em torno disso. Enredos fora disso seria humanizar demais o personagem e despersonalizá-lo, descaracterizá-lo. E a vida de um capitalista, retirando os exageros, gira em torno disso.
Assim, a fórmula aventurosa do Tio Patinhas pode ser resumida em “tudo por dinheiro”. Seria até possível dizer que o dinheiro é mais protagonista do que o Tio Patinhas, mas isso seria exagero. No fundo, nós temos o agente das histórias, Tio Patinhas, e o elemento passivo, o dinheiro. O agente gira em torno da coisa, mas é ele que dá vida as histórias em quadrinhos. O indivíduo (Tio Patinhas) é o agente e a coisa (dinheiro) é a motivação. Um exerce e o outro motiva a ação. Ele demonstra o que, no âmbito teórico, poderia ser chamado de irracionalidade do capital (como relação social) gerando a irracionalidade dos capitalistas[15].
A fórmula aventurosa da conservação da riqueza se manifesta quando Tio Patinhas tem seu caixa-forte, sua moedinha número 01, seu dinheiro, etc., ameaçados por criminosos. É nesse momento que surge seus principais inimigos e envolvidos em suas aventuras. Os eternos perdedores (pois “o crime não compensa”, como diria Batman, outro capitalista) Irmãos Metralhas são os principais e mais constantes inimigos do velho muquirana. A segunda grande ameaça para Tio Patinhas é a Maga Patolójica, uma bruxa que almeja roubar a sua moedinha número 01. O enredo apresenta sempre a mesma fórmula: os bandidos (Irmãos Metralha, Maga Patalójica, etc.) inventam alguma artimanha para roubar o Tio Patinhas, algumas vezes conseguindo, e ele se defende e geralmente com apoio de coadjuvantes (Pato Donald, sobrinhos do Donald, Peninha, Prof. Pardal, polícia, etc.), acaba derrotando seus inimigos e preservando (ou recuperando) sua riqueza (seja dinheiro ou a moedinha número 01). A fórmula é utilizada, às vezes, de forma criativa, tal como em Eu Quero Plutônio (TIO PATINHAS, 2013), quando o Tio Patinhas engana os Irmãos Metralha para fazerem o trabalho de estivadores em greve.
Nesse contexto, a primeira variante da fórmula aventurosa aponta para a defesa da propriedade privada. Tio Patinhas é o proprietário e está dentro da lei, tendo ao seu lado o aparato policial. Os Irmãos Metralhas e outros bandidos são criminosos que desrespeitam a propriedade privada, através do roubo e outros atos ilegais. O dinheiro aparece como a principal propriedade privada. Isso é muito semelhante ao autor das primeiras histórias do Tio Patinhas, Carl Barks. A mentalidade burguesa de Barks é evidente, inclusive por suas próprias afirmações apresentadas em entrevistas: “em entrevista concedida a Donald Aut, Barks afirma que gasta tempo aperfeiçoando as histórias motivado apenas pelo dinheiro. ‘Meu objetivo era esticar meus ganhos por muitos anos fazendo o trabalho mais vendável que eu podia’” (apud. SANTOS e CARDOSO, 2014, p. 44).
A segunda variante da fórmula aventurosa é da conquista da riqueza. Centenas de histórias poderiam ser citadas que manifestam a aventura baseada na “busca do ouro”, embora esse último também possa ser dinheiro, minério, petróleo, etc. A primeira aparição de Tio Patinhas, como coadjuvante do Pato Donald, em A Christmas Carol, de 1947, já revela o caráter do personagem e na aparição seguinte, em 1950, aparece numa caça ao tesouro. Nessa variante, ele se confunde com aspectos da história dos Estados Unidos:
As aventuras do Tio Patinhas encaixam-se perfeitamente na trajetória recente dos Estados Unidos e no arquétipo de sua gente, com situações que perpassam a obra do cartunista criador do personagem. Carl Barks, a qual ainda hoje influencia os quadrinhos Disney. Temos as atitudes do self made man, com princípios de egoísmo e individualidade – o que justifica a vida de classe média do Donald e dos patinhos trigêmeos, que não se beneficiam dos louros das vitórias do tio muquirana. Há aqui a presença do Mito da Fronteira, que contempla a história da conquista do Oeste. A fronteira (frontier) é uma linha imaginária que separa o mundo civilizado do selvagem (wilderness) – lugar onde a lei não existe e a natureza domina o espaço de inúmeras trasmas de ficção. Isso é tão forte no imaginário dos americanos que eles costumam chamar as fronteiras físicas de outro nome: borders em vez de frontiers (PEGORARO, 2013b, p. 7).
Assim, as aventuras se desenvolvem na Asia, África, América Latina, Lua, etc. Onde há riqueza (sob qualquer forma), Tio Patinhas aparece. O título das histórias demonstram isso: A Conquista de Patópolis, O Caubói das Terras Malditas, O Senhor do Mississipi, O Rei da Colina de Cobre, O Tesouro de Montezuma, etc. Assim, temos o agente (“Senhor”, “Rei”, “Caubói”, etc.), alguém “superior”, o “herói” na busca da fortuna, e o objetivo: cobre, tesouro, riqueza, etc., que deve ser “conquistada”, a ação do agente. A conquista do ouro se revela na biografia do Tio Patinhas e é uma variante de sua fórmula aventurosa, se misturando com a “vocação” norte-americana, tanto interna (a conquista do “velho oeste”) quanto externa (o imperialismo). Certamente, foi este elemento que permitiu o vínculo imediato entre Tio Patinhas e Imperialismo (CIRNE, 1981; DORFMAN E MATTELART, 1980).
Muitas vezes, em Disney, o discurso político (a serviço da direita americana) será direto. Um exemplo já clássico: a historieta O Tesouro de Marco Polo (in Edição Especial de O Pato Donald, num. 780, Abril, outubro de 1966). Como se dá o seu enredo? Antes de mais nada, sendo construído sobre o personagem Soja Pão, camponês estereotipado do Vietbang (!) que foge em direção a Patópolis para não ser convocado pelo exército de Ming Mao (!). E quem é este “famigerado” Ming Mao? Vejam bem: um “guerrilheiro rebelde que está querendo ser o ditador do Vietbang”. Os bandidões da estória são exatamente o general Ming Mao e o capitão Ching, ridicularizados através de um visual grotesco. No fim da aventura, os próprios guerrilheiros chegam “à conclusão de que seria ótimo para o Vietbang ter um rei de novo – como nos velhos bons tempos!” (os grifos são nossos [de Moaci Cirne]). Vã esperança! (CIRNE, 1982, p. 44).

Mao Tse-Tung retratado por Carl Barks, O Tesouro de Marco Polo, 1966.

O que Cirne revela aqui é que a propaganda ideologêmica (o que significa intencionalmente) via histórias em quadrinhos acontece efetivamente (“discurso político direto”). A imagem de Ming Mao, no fundo uma referência a Mao Tse-Tung, apoiador dos rebeldes vietnamitas (Vietnam, que aparece como “Vietbang”) misturado com referências a cidade de Maoming (o nome fica invertido) e à dinastia Ming, na versão portuguesa. Isso apenas mostra a versão mais nítida de uma presença existente nas histórias em quadrinhos de Tio Patinhas, pelo menos na época que era produção de Carl Barks[16]. Esse quadrinista que às vezes fazia “discurso direto”, ou melhor, propaganda ideologêmica, apenas manifestava seus valores e concepções de forma nítida e intencional. A sua concepção conservadora[17] se manifestou em outras histórias:
A visão conservadora do artista pode ser percebida em várias narrativas que realizou com os personagens Disney. Um exemplo é a história O elemento mais raro do mundo, criada em 1956: depois de comprar em um leilão uma substância desconhecida, Tio Patinhas precisa impedir que ela caia nas mãos dos agentes de Brutópia (uma alusão à União Soviética, rival dos Estados Unidos durante a Guerra Fria), que têm a aparência do líder russo Leonid Brejnev. Os espiões de Brutópia voltariam em outras aventuras dos patos, como Quando a dancite atacou Patópolis, de 1953, e A caixinha preta, de 1964 (SANTOS e CARDOSO, 2014, p. 44).
Assim, a fórmula aventurosa em sua variante de conquista da riqueza apresenta não apenas a “marcha para o oeste” americano, a conquista colonial, mas também a dominação imperialista nas regiões caracterizadas pelo capitalismo de Estado (vulgo “socialismo real”).
A terceira variante da fórmula aventurosa é a da competição intercapitalista, na qual Tio Patinhas estabelece concorrência com outros capitalistas, especialmente Pão Duro Mac-Mônei e Patacôncio (cujo nome original era Rockducker, paródia de John Rockfeller). Tal como nos demais casos, o protagonista sempre sai vitorioso e Patacôncio, o rival sempre derrotado, come sua cartola, tal como sua promessa. A Terra da Lua, entre milhares de exemplos, mostra esse processo. Nessa história, o noticiário anuncia que a terra existente na lua permite um desenvolvimento extraordinário das plantas, numa época de elevação exorbitante de preços das frutas e verduras. Tio Patinhas resolve ir para a lua para pegar terra e usar em suas plantações, pois os adubos estão caros demais. Para isso planeja construir um foguete e o Prof. Pardal o faria. No entanto, Patacôncio sequestra o cientista e Tio Patinhas tem que construir com Donald e seus sobrinhos, o próprio foguete. Ele chega tarde e Patacôncio consegue pioneiramente a terra da lua. O que ocorre depois é que Pardal, já libertado, descobre que tal terra capta e aumenta a luz do sol. Patacôncio acaba jogando a terra em suas plantações e perde tudo, tendo a proposta do Tio Patinhas de comprar sua terra. Após vender e achar que estava ganhando, Patacôncio descobre o uso que Tio Patinhas deu para a terra adquirida: espalhou por suas praias para atrair turistas durante todas as estações.
Aqui temos novamente uma estratégia de legitimar o capitalismo, pois o concorrente desleal sempre é derrotado. A terceira variante da fórmula aventurosa do Tio Patinhas complementa as demais, legitimando a acumulação de riquezas e jogando o problema do capitalismo para indivíduos e para a moral. Às vezes, duas ou três variaentes, podem aparecer em uma mesma história. Esse é o caso de uma história recente, A Batalha das Redes Sociais, na qual Tio Patinhas enfrenta os Irmãos Metralha e seu rival, Patacôncio, ou seja, através do uso da variante 01 e 03 da fórmula aventurosa. A história apresenta a competição entre Tio Patinhas e Patacôncio por maior popularidade no faceduck (paródia do facebook), sendo que o segundo sai na frente, já que o primeiro considerava as redes sociais inúteis, até descobrir seu potencial financeiro. A competição se desenrola entre ambos, até que os Irmãos Metralha atraem Tio Patinhas para uma negociação com Richard Money, mas era uma armadilha, ficando os dois empresários sob domínio dos criminosos. Patacôncio seguia Tio Patinhas e usando a internet avisa a polícia que os salva e prendem os Irmãos Metralha. Nesse momento, Richard Money e Tio Patinhas descobrem a afinidade de não gostar das redes sociais e do primeiro não querer negociar com Patacôncio, o mais popular no faceduck. Novamente Patacôncio perde e volta a comer sua cartola. Assim, a fórmula é novamente usada, apesar do tema contemporâneo das redes sociais. Outros exemplos poderiam ser citados, mas é suficiente para mostrar a fórmula aventurosa e suas variantes.
Tio Patinhas: Tema contemporâneo, fórmula antiga.

Considerações Finais
A síntese de nossa discussão aponta para a percepção de que Tio Patinhas é um personagem que reproduz a mentalidade dominante, os valores burgueses. É um personagem axiológico, ou seja, que materializa uma determinada configuração dos valores dominantes. O dinheiro é o valor fundamental por detrás das histórias em quadrinhos do Tio Patinhas. Além disso, a rejeição do personagem não expressa uma politização ou recusa do capitalismo e sim dos seus excessos, do capitalismo “selvagem”. O capitalismo selvagem, no entanto, apenas revela, pelo exagero, o que é comum no capitalismo em geral na sua essência. A fórmula aventurosa, em suas três variantes, reforça esse processo de legitimação do capitalismo.
Nesse sentido, as análises de Dorfman e Mattelart (1980), Martins (1978) e Cirne (1982) estão corretas, retirando o caráter intencional e maquiavélico que encontram no processo criativo de tais histórias em quadrinhos. Em alguns momentos esse caráter realmente existe e se manifesta, mas nem sempre. Na maioria dos casos, é apenas um desenvolvimento espontâneo do personagem, provocado pela reprodução espontânea dos criadores de seus valores e concepções, bem como pelo modus operandi de comicidade e fórmula aventurosa, que exercem uma função reprodutiva devido ao espaço social no qual se desenvolve, servindo, às vezes inintencionalmente, às vezes intencionalmente, para a legitimação do capitalismo.

Referências

ALENCAR, Marcelo. O Melhor da Disney – as Obras Completas de Carl Barks. Vol. 23, São Paulo: Abril Cultural, 2006.

ALMEIDA, Wilson F. R. O Cinema em Dickens: A Christmas Carol e as considerações de Sergei Eisenstein. Darandina Revisteletrônica – Programa de Pós-Graduação em Letras/ UFJF, vol. 5, num. 02, 2012.

CIRNE, Moacy. Uma Introdução Política aos Quadrinhos. Rio de Janeiro: Achiamé, 1982.

DORFMAN, Ariel e MATTELART, Armand. Para Ler o Pato Donald. Comunicacao de Massa e Colonialismo. 2ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

FROMM, Erich. Ter ou Ser? 4ª edição, Rio de Janeiro, Guanabara, 1987.

MARTINS, José de Souza. Tio Patinhas no Centro do Universo. In: Sobre o Modo Capitalista de Pensar. São Paulo: Hucitec, 1978.

MARX, Karl. O Capital. 3ª edição, 5 vols. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

PEGORARO, Celbi Vagner. Grandes Emprendimentos. In: Tio Patinhas 50 anos da Revista. Vol. 2. São Paulo: Abril Cultural, 2013b.

SANTOS, Roberto Elisio e CARDOSO, João Batista Freitas. Experimentação e autoralidade nos quadrinhos comerciais: uma análise semiótica da obra artística de Carl Barks. Comunicação & Inovação, São Caetano do Sul, v. 15, n. 28:(41-49) jan-jun 2014.

VIANA, Nildo. A Predominância Valorativa em O Racista, de Mortadelo e Salaminho. In: VIANA, Nildo (org.). Os Valores nas Histórias em Quadrinhos. Brasília: Kíron, 2015.

VIANA, Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasília: Thesaurus, 2007.

VIANA, Nildo. Quadrinhos e Crítica Social. O Universo Ficcional de Ferdinando. Rio de Janeiro: Azougue, 2013.



Revistas


MANUAL DO TIO PATINHAS. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

OS GRANDES NEGÓCIOS DO TIO PATINHAS. São Paulo: Abril Cultural, 1989.

TIO PATINHAS. 40 Anos da Revista. Vol. 01, São Paulo: Abril Cultural, 2003.

TIO PATINHAS. 40 Anos da Revista. Vol. 02, São Paulo: Abril Cultural, 2003.

TIO PATINHAS. 50 Anos da Revista. Vol. 01, São Paulo: Abril Cultural, 2013a.

TIO PATINHAS. 50 Anos da Revista. Vol. 02, São Paulo: Abril Cultural, 2013b.

TIO PATINHAS. Num. 578, São Paulo: Abril Cultural, 2013.

TIO PATINHAS. Num. 15, São Paulo: Abril Cultural, 1966.






* Professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFG – Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia/UnB.

[1] O enredo é a forma narrativa que desenvolve um universo ficcional (VIANA, 2013) e o enredamento é a forma como um elemento do universo ficcional se insere no enredo. O enredamento de um personagem mostra como é a dinâmica de sua ação e, por conseguinte, o seu significado no universo ficcional.

[2] Dorfman e Mattelart (1980, p. 16) citam um jornal que faz a seguinte descrição: “Tio Patinhas é um avaro milionário de qualquer país do mundo que entesoura dinheiro e tem um infarte cada vez que alguém tenta tomar-lhe um centavo; mas aquele que, apesar de tudo, costuma mostrar rasgos de humanidade que o redimem diante de seus sobrinhos-netos”.

[3] Em O Capital, Marx (1988) foi o autor que mais desenvolveu a teoria da acumulação de capital, como elemento essencial do modo de produção capitalista, o que muitos desconsideram por ler apenas o volume 01 de sua obra. A extração de mais-valor (trabalhada exaustivamente no volume 01) gera a apropriação capitalista sob a forma de renda (para o consumo dos capitalistas) e capital (cujo destino é o reinvestimento na produção) e este último elemento é o que é o fundamental. A renda dos capitalistas em contraste com os salários dos operários e a pobreza de outros setores da população pode gerar indignação, mas o fundamental é que o capital é elemento de sua reprodução permanente, pois significa reinvestimento, aumento de capital fixo e variável, que, uma vez concretizado, gera mais lucro e mais capital, e assim sucessivamente, numa eterna reprodução cada vez mais ampliada. Isso gera, no decorrer histórico, a centralização e concentração do capital, os oligopólios, inicialmente nacionais e depois transnacionais. Nesse sentido, a ampliação do capital é uma característica essencial do capitalismo e aspecto fundamental de sua dinâmica de reprodução.
[4] Dorfman e Mattelart afirmam que os operários estão presentes nas histórias em quadrinhos do Tio Patinhas: “O imaginário infantil é a utopia política de uma classe. nas histórias em quadrinhos de Disney jamais se poderá encontrar um trabalhador ou um proletário, jamais alguém produz industrialmente algo. Mas isto não significa que esteja ausente a classe proletária. Ao contrário: está presente sob as máscaras, como selvagem-bonzinho e como lumpencriminoso. Ambos os personagens destroem o proletariado como classe, mas resgatam desta classe certos mitos que a burguesia tem construído desde o princípio de sua aparição e até seu acesso ao poder, para ocultar e domestricar seu inimigo, para evitar sua solidariedade e fazê-lo funcionar fluidamente dentro do sistema, participando de sua própria escravização ideológica” (1980, p. 69). A interpretação dos autores parece remeter para a ideia de que a criação do universo ficcional Disney foi um plano intencional e maquiavélico dos seus produtores para servir à dominação burguesa. Interpretação simplista e pouco realista. No fundo, o que os criadores do universo ficcional Disney fazem é, inintencionalmente, reproduzir a sociedade capitalista, seus valores, suas representações, sem criticidade por não se opor a ela e compartilhando a sua mentalidade dominante, algo espontâneo e não intencional e maquiavélico. Esse é o caso de Martins (1978), que também apresenta uma concepção segundo a qual o universo ficcional do Tio Patinhas seria uma manifestação coerente e intencional do mundo burguês, sendo que sua análise é mais atribuição de significado do que interpretação rigorosa do mesmo.

[5] Segundo Miranda, teve uma época em que foi também um industrial, mas superada e substituída pelo magnata “operando no mundo financeiro” (MIRANDA, 1978, p. 148). Em algumas histórias aparecem proletários, geralmente com significado secundário. Esse é o caso da história Administração Científica (TIO PATINHAS, 1989), na qual se narra a queda de produtividade de uma empresa e Tio Patinhas contrata um especialista em administração de empresas (Peninha...) para resolver o problema. Apesar das inovações efetivadas, não há aumento de produtividade e Peninha e Donald precisam entrar na linha de montagem para descobrir o que está ocorrendo e descobrem que se trata de uma armação dos Irmãos Metralha para roubar o Tio Patinhas. Os operários, na história, aparecem como os desmotivados que se tornam motivados por inovações formais (a fábrica se torna colorida e com desenhos nas paredes, etc.), ou seja, uma representação dos operários como idiotas, para o leitor crítico, ou uma representação da felicidade através da aparência das coisas, para o leitor acrítico.

[6] “Eis aqui o mito básico da mobilidade social no sistema capitalista. É o self-made man. Igualdade de oportunidades, democracia absoluta, cada criança parte do zero e acumula o que merece. Donald malogra nestas escaladas do êxito a cada instante. Todos nascem com a mesma possibilidade de subida vertical, por meio da competência e do trabalho (sofrimento e aventura, e a única parte ativa, a genialidade). Tio Patinhas não leva nenhuma vantagem ao leitor a respeito do dinheiro, porque esse dinheiro não serve e é bem mais um impedimento, como um filho cego e aleijado” (DORFMAN e MATTELART, 1980, p. 102). Existem outras versões da origem de sua fortuna, mas a da origem da moedinha número 01 ganha força simbólica devido seu papel nas histórias em quadrinhos do Tio Patinhas.

[7] Essa é a tendência, tal como se pode observar através da pesquisa realizada por Miranda (1978).

[8] A identificação momentânea é um processo que ocorre com qualquer personagem de universo ficcional, pois é através do protagonista que se desenvolve a história e por isso é por suas lentes que o leitor (de quadrinhos e literatura), assistente (de filme), etc. desenvolve sua relação com o mesmo. A identificação permanente é extraficcional, o que remete para os processos psíquicos de identificação, no qual o personagem aparece como modelo/objetivo ou semelhante. Existem casos em que ambos os processos ocorrem simultaneamente, mas também em que há contradição entre ambos, o que significa que tão logo termine o acesso ao universo ficcional, a identificação seja superada.

[9] Obviamente que isso depende do tipo de elemento rocambolesco usado, bem como de qual é o público (diferenças culturais podem tornar incompreensível certos acontecimentos ou falas, por exemplo).

[10] Esse é o caso de histórias em quadrinhos como Mortadelo e Salaminho, Lucky Luke, Asterix. O uso recursivo do rocambolesco em Mortadelo e Salaminho, por exemplo, pode ser notado nos disfarces de Salaminho, pela forma como aparece. Da mesma forma, a violência é usada repetidamente, mas continua a manter sua graça por aparecer sob forma criativa derivada do contexto e expressões dos personagens. Afirmações inesperadas, como contar piada racista para um negro, é outro exemplo e retirado do contexto e modus operandi de comicidade, pode parecer expressão de racismo, o que é um equívoco interpretativo (cf. VIANA, 2015).

[11] “Uma demonstração da independência das centrais de produção foi dada pela Itália, onde os conflitos da família Pato, andaram assumindo contornos de uma violência aparentemente incompatível com os ‘ideais disneyanos’. Afinal, após uma cena em que Patinhas metralhava o Pato Donald, o estúdio californiano resolveu protestar. Mas a editora Mondadori, responsável pela criação italiana, respondeu simplesmente que seu público preferia dessa maneira. E episódio encerrado. Há também notícia (embora não tenhamos conseguido localizar as estórias dessa série) de que na Alemanha realizou-se a politização dos Irmãos Metralha que aderiram ao marxismo, sem que Burbank pudesse fazer mais do que lamentar a orientação dos produtores germânicos” (MIRANDA, 1978, p. 131-132).

[12] O conceito de ideologema e sua manifestação nos quadrinhos pode ser visto em Viana (2013).
[13] Segundo Carl Banks, o criador do personagem, o escritório da Western Publishing, responsável pela produção das histórias em quadrinhos de Walt Disney, queria ele produzisse uma história de natal e ele afirma que: “à procura de um elenco, comecei a pensar no grande conto natalino de [Charles] Dickens a respeito de Scrooge. Então, fui ladrão o bastante para surrupiar algumas daquelas ideias e, assim, dei um tio rico ao Donald” (apud. ALENCAR, 2013, p. 11).

[14] Apresentamos a ideia de fórmula anteriormente para explicitar a crítica social apresentada por Al Capp em sua criação ficcional de Ferdinando (VIANA, 2013). Uma fórmula, no caso das histórias em quadrinhos, é uma forma convencional (e por isso repetitiva) de exprimir um determinado enredo. A fórmula de Al Capp é crítica, graças ao seu objetivo de apresentar crítica social. No caso do Tio Patinhas, a fórmula é aventurosa, ou seja, uma forma convencional de exprimir um enredo que narra determinadas aventuras. Isso é mais adequado para uma produção coletiva e massiva (tendo diversos criadores em vários países), pois gera um esqueleto que os roteiristas e desenhistas colocam a “carne” e lhe dá vida, mas sempre com base nessa anatomia da fórmula. O exemplo clássico (e mais pobre) de uso de fórmula, no caso de séries de TV, é o dos seriados japoneses ou de inspiração nos mesmos: Jaspion, Changeman, Power Rangers, etc. A fórmula é a vida cotidiana dos protagonistas sendo abalada por ameaça dos inimigos (“monstros”), o que reúne o grupo ou faz o herói agir, derrotando o monstro (e seus aliados coadjuvantes), que se torna gigante, assim como os heróis, sendo derrotado novamente. Quem assistiu um, assistiu todos, pois só muda a forma (aparência do monstro, conversas, etc.). A história tem um enredo repetitivo que revela sua fórmula, que é o esqueleto da mesma, sendo que o resto é “recheio”, o que se diferencia mas não tem grande importância.

[15] No plano da mentalidade, isso gera o predomínio do ter sobre o ser, já tematizado por Fromm (1987).

[16] Sobre o caso de O Tesouro de Marco Polo, ele mesmo afirma: “Eu estava furioso como todo mundo com as idiotices que as pessoas aprontavam em diferentes partes do mundo, mas o que podia fazer a respeito? Eu não tinha como contratar um exército para ir lá e dar uma lição nelas. Só podia ver TV e esperar notícias melhores. Eu achava que a pessoas eram contra o conflito no Vietnã e que precisávamos deter os comunistas ou eles tomariam conta de tudo. Então tentei fazer graça com a guerra. Em O Tesouro de Marco Polo, procurei trazer as coisas de volta ao seu estágio anterior, fazendo as pessoas pensarem nos bons tempos que antecederam todo o ódio e os combates em tempo integral. A história foi escrita numa época em que eu andava sem ideias e precisava me esforçar um bocado para desenvolver roteiros sobre assuntos que não conhecia a fundo”. É claro que o Homem dos Patos se saiu bem, embora a aventura tenha um tom diferente das demais de Tio Patinhas. Mas uma guerra não é um tema fácil de se explorar. O desenho no alto da página reproduz o esboço de Barks rejeitado pelos editores. A chuva de balas e o fuzil na mão do vietcongue justificam a recusa. Já a capa aprovada (ao lado) apela para o humor. O Tesouro de Marco Polo é uma trama polêmica mesmo nos dias de hoje. Ela sofreu uma atenuante em republicações recentes nos Estados Unidos: a passagem em que o guerrilheiro cita a má qualidade dos relógios fabricados no Paraíso dos Trabalhadores – uma óbvia alusão à extinta União Soviética – dá lugar a uma piada sobre as Indústrias Patinhas. Neste volume, a tradução respeita o texto original do quadrinista (ALENCAR, 2006, p. 129).

[17] De nossa perspectiva, que fique claro, o seu conservadorismo não se revela na crítica dos regimes ditatoriais do “socialismo real” (capitalismo de Estado) e sim na defesa da propriedade privada, do dinheiro como valor fundamental, do imperialismo norte-americano, etc.

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Artigo publicado origialmente na Revista Nona Arte:
http://www2.eca.usp.br/nonaarte/ojs/index.php/nonaarte/article/view/155/147

domingo, 19 de fevereiro de 2017

ETHOS SEXUAIS E SOCIEDADE


ETHOS SEXUAIS E SOCIEDADE
Nildo Viana

Contemporaneamente, reina uma grande confusão em torno da questão do masculino e feminino. Essa confusão tem a ver com determinadas mudanças sociais e com a emergência da ideologia do gênero e sua matriz paradigmática, o subjetivismo. O processo de mudanças sociais e comportamentais, por um lado, e a mutação ideológica, por outro, acabam promovendo um obscurecimento das relações sociais reais.

Os intelectuais, das mais variadas áreas da divisão social do trabalho intelectual ou do “saber” teriam a responsabilidade de elevar o nível da discussão trazendo contribuições para a superação dessa verdadeira balbúrdia em torno da questão dos ethos sexuais[1]. No entanto, submetidos ao mercado, à pressão da corrente predominante de opinião (“opinião pública”) nos meios intelectualizados, aos processos sociais de constituição de hegemonia cultural (política cultural, capital comunicacional, fundações, partidos políticos, etc.) acabam caindo em modismos, descompromisso com a verdade, etc. O intelectual que possui compromisso com a verdade não busca agradar ao “grande público” ou ao “público intelectualizado” e sim dizer o que considera verdade, doa a quem doer. Essa é a função do intelectual no sentido ético e compromissado, o que, sem dúvida, se diferencia da maioria dos intelectuais em carne e osso, que exercem sua profissão visando interesses pessoais e de classe (e suas subdivisões), muito mais que o compromisso com a verdade.

Nesse sentido, o nosso objetivo aqui é contribuir com o esclarecimento da relação entre “ethos sexuais” e sociedade, visando superar a confusão reinante e a hegemonia do generismo nos meios intelectualizados[2]. O masculino e o feminino, de acordo com o generismo (a ideologia do gênero), seriam “construções culturais” e se diferenciaram do “sexo biológico”, e isso justificaria a escolha do indivíduo, que poderia, independente do sexo, escolher ser “masculino” ou “feminino”. Essa tese, curiosa e contraditória, inverte a realidade ao abandonar a totalidade da realidade e gerar um reducionismo culturalista. Por isso torna-se necessário aprofundar tal reflexão sobre os ethos sexuais e a sociedade.

O masculino e o feminino são constituídos socialmente (e não culturalmente, como quer a ideologia do gênero) e esse processo não é arbitrário, tal como alguns concebem. O ser humano é um ser biopsíquicossocial e a constituição dos ethos sexuais tem uma base que é orgânica, psíquica e social. Apenas no mundo invertido da ideologia o aspecto orgânico (“biológico”) poderia ser desconsiderado. Uma das determinações dos ethos sexuais é o organismo e sua especificidade no caso de homem e mulheres. O sexo masculino é diferente do feminino e a questão é como essas diferenças, que são naturais, são interpretadas e tratadas socialmente. Somente no mundo fantasmagórico da ideologia é que o corpo poderia ser desconsiderado na discussão sobre os ethos sexuais[3]. Se não existissem diferenças orgânicas, não existiriam as noções de masculino e feminino. A diferença orgânica gera diferenças sociais (e, de forma derivada, culturais) e psíquicas. No entanto, as relações sociais entre homens e mulheres interferem nesse processo e em cada sociedade, com suas especificidades, vai realizar esse processo de forma peculiar e ele pode ser mais ou menos rígido, relacionado com processos de opressão ou não, o que ocorre geralmente nas sociedades divididas em classes sociais. O excesso de rigidez e distinção nos ethos sexuais e outros processos sociais e culturais correlatos estão ligados a relações sociais concretas.

Nesse contexto, os ethos sexuais são perpassados por processos psíquicos que reforçam sua existência e permanência e se relacionam com outros processos psíquicos mais amplos. A base dessa formação psíquica está ligada tanto a corporeidade quanto às relações sociais concretas. Logo, esse processo é complexo, perpassado por questões históricas, sociais, psíquicas, etc. e a sua compreensão não pode ser efetivada através da ideologia do gênero[4]. E o apelo ao complemento de outra ideologia, a da identidade, muito menos tem força explicativa, o que faz, como toda produção ideológica, é inverter a realidade. A identidade é constituída social e historicamente e é uma autoimagem, muitas vezes ilusória[5] e, embora isso seja uma obviedade para a concepção marxista[6], e a sua naturalização é um procedimento ideológico ligado a interesses de reprodução dessa sociedade. A concepção hegemônica de identidade cria sua naturalização e até essencialização[7] e assim algo que deveria ser explicado aparece magicamente como sendo a explicação e, comicamente, em certas abordagens simplificadoras, cai do céu de paraquedas sem ter paraquedista e aeronave, como num passe de mágica. A identidade individual, que não deve ser confundida com outros processos e nem pode ser descontextualizada e separada da base teórica que lhe explica e fornece o seu sentido, é constituída socialmente e não é uma “essência”, da mesma forma que tende a ser ilusória. A juventude, por exemplo, é constituída socialmente, o que significa que esse grupo social e as relações sociais concretas que o materializa, é um produto social e caracterizado por relações sociais específicas. Uma vez existindo esse grupo social – e é nesse contexto que abordamos a questão da identidade, bem diferente da ideologia da identidade – ele acaba gerando uma autoimagem que, por sinal, também é constituída socialmente, pelo capital comunicacional, legislação, ideologias (discursos científicos), etc. (VIANA, 2015).

Assim, a chamada “identidade de gênero” é uma criação ideológica fundada em dois construtos equivocados que em nada contribuem para a compreensão de relações sociais reais. Se se quer saber por qual motivo um indivíduo do sexo masculino desenvolve um ethos sexual feminino, não é através desses construtos que se pode descobrir isso, pois a suposta explicação derivada de seu uso seria mera extensão ideológica (naturalizante e essencialista) ou então apenas palavreado vazio. Esse processo pode ser explicado pela força da hegemonia burguesa que promove determinadas ideologias e gera sua reprodução simplificadora nos meios intelectualizados e tenta chegar ao conjunto da população, através de termos-chave[8], como “gênero”, “identidade”, “desconstrução”, etc.

E como se poderia compreender essa discrepância entre sexo e ethos sexual? Isso remete ao processo de análise da história de vida do indivíduo no qual isso se manifesta. O marxismo e a psicanálise[9] oferecem a base analítica desse processo. A compreensão dessa discrepância remete a necessidade de análise do processo histórico de vida do indivíduo, sua socialização (que inclui relações familiares e outras relações sociais da pessoa em questão), sua formação psíquica, etc. Assim, há vários processos envolvidos (incluindo a sexualidade), e os traumas, a repressão sexual, a violência sexual, a relação com o pai e a mãe (e os processos de identificação estabelecidos nessa relação), entre diversos outros elementos que metodologicamente a dialética denomina “múltiplas determinações” e que a psicanálise explorou diversos aspectos. No entanto, também não adianta remeter ao processo de socialização se este é apenas um termo esvaziado e substituído por “identidade”, termo usado num sentido ideológico. Pior ainda os usos oportunistas do conceito de socialização, que pode ser apenas “repressão” quando se quer defender algo supostamente reprimido e que perde a negatividade no momento em que trata desse algo, já não sendo mais “repressão”. O uso de dois pesos e duas medidas só ocorre no reino da ideologia, que deve evitar a verdade a qualquer custo vinculado aos interesses que expressa.

Logo, não são as “palavras mágicas” identidade e gênero que podem explicar tal fenômeno. Aliás, a contradição é demasiadamente visível nessas expressões ideológicas, pois ao mesmo tempo colocam que gênero é uma “construção cultural” acabam essencializando a “identidade de gênero”, como se essa suposta identidade surgisse do nada e não fosse uma “construção cultural”. Assim, não é difícil ver os defensores dessa ideologia afirmarem que “gênero é uma construção cultural” e ao mesmo tempo naturalizar e essencializar a “identidade de gênero”. Essa contradição apenas revela o limite de toda ideologia: ela nunca pode chegar à verdade e para evitar esta muitas vezes nem pode levar até as últimas consequências suas próprias teses. A criação de falsos problemas e falsas soluções é bem comum no reino das ideologias. As questões reais e concretas são substituídas por palavreado vazio e pseudoexplicações.

Em síntese, a compreensão dos ethos sexuais e da constituição de um modo de ser masculino e feminino, nos seus variados aspectos (tanto positivos quanto negativos) só é possível superando as ideologias hegemônicas, especialmente a de gênero e a de identidade, e inserindo esses fenômenos na sociedade e na história, bem como observando as diversas determinações e relações existentes, com destaque, nesse caso, para a formação psíquica. No caso da sociedade capitalista, isso traz a necessidade de análise dessa sociedade, o seu processo específico de formação social do indivíduo e dos ethos sexuais, bem como o desenvolvimento psíquico no seu interior. Fora disso, o que temos são formulações imaginárias e ideológicas que, devido à força da hegemonia, são pressões poderosas que fazem os incautos ou seguidores de modismos ideológicos, reproduzirem afirmações absurdas e sem fundamentação na realidade concreta. Por isso a crítica da ideologia do gênero e da ideologia da identidade é necessária e significa remover mais um obstáculo para compreender o significado e dinâmica dos ethos sexuais e assim contribuir com a transformação social.

Referências

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RUCK, Richard. A Razoabilização como Principal Mecanismo de Defesa. Revista Sociologia em Rede, vol. 6 num. 6, 2016. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rsr/article/view/464/422

VIANA, Nildo. Emancipação Feminina e Emancipação Humana. Revista Espaço Acadêmico. Num. 107, abril de 2010. Disponível em: http://ojs.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/9767/5466

VIANA, Nildo. Espontaneidade e Liberdade. Revista Posição. Ano 2, Vol. 2, num. 6, abr./jun. 2015. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rpo/article/view/2viana6/222

VIANA, Nildo. Gênero e Ideologia. In: VIANA, N. (org.). A Questão da Mulher. Opressão, Trabalho, Violência. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2006b.  Disponível em: http://informecritica.blogspot.com.br/2014/11/genero-e-ideologia.html

VIANA, Nildo. Imaginário e ideologia. As ilusões nas representações cotidianas e no pensamento complexo. Revista Espaço Livre. Ano 7, num. 15, 2013. Disponível em: http://informecritica.blogspot.com.br/2015/01/imaginario-e-ideologia-as-ilusoes-nas.html

VIANA, Nildo. Juventude e Sociedade. Ensaios sobre a Condição Juvenil. São Paulo: Giostri, 2015.

VIANA, Nildo. Método Dialético e Questão da Mulher. In: VIANA, N. (org.). A Questão da Mulher. Opressão, Trabalho, Violência. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2006b. Disponível em: http://informecritica.blogspot.com.br/2014/12/metodo-dialetico-e-questao-da-mulher.html  

VIANA, Nildo. Naturalização e Desnaturalização: O Dilema da Negação Prático-crítica. Revista Espaço Livre. Vol. 8, num. 15, jan. jun./2013. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/viewFile/51/46

YOUNG, Jock. A Sociedade Excludente. Exclusão Social, Criminalidade e Diferença na Modernidade Recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002.





[1] O termo “ethos sexuais” foi definido em artigo publicado anteriormente (VIANA, 2010) e significa um modo de ser de cada sexo, que é constituído socialmente (e não apenas “culturalmente” e muito menos “arbitrariamente”, pois é um processo que possui múltiplas determinações, e entre elas a corporeidade). Assim, há um modo de ser masculino e um modo de ser feminino e ambos são produtos sociais e históricos, ligados ao conjunto das relações sociais (incluindo, nas sociedades complexas, as classes sociais, interesses, etc., e tendo como principal força regularizadora a classe dominante com seus aparatos, especialmente o estatal).

[2] Entenda-se por “meios intelectualizados” os setores da sociedade composta por uma parte significativa das classes sociais privilegiadas que possuem maior acesso a informações, produções intelectuais, etc., incluindo os indivíduos da classe intelectual e setores da burguesia, burocracia, etc. Isso quer dizer que “meios intelectualizados” não quer dizer que se trata de “pessoas inteligentes” e sim de indivíduos em situação social determinada que possui acesso a determinadas produções intelectuais, o que significa que foram submetidos ao processo de intelectualização e isso gera “razoabilização” (RUCK, 2016) e submissão à ideologia, doutrinas, etc., que, geralmente são formas de pensamento ilusório. Por conseguinte, a expressão não conota nenhum sentido positivo ou superior, apenas um processo social que esconde os limites intelectuais de uma sociedade decadente marcada pela mercantilização, burocratização e competição social. A utilização do termo tem o objetivo de distinguir entre esse setor da sociedade e o chamado “grande público”, a maioria da população que é composta majoritariamente pelas classes sociais desprivilegiadas.

[3] Não deixa de ser curioso como supostos marxistas caem no mesmo erro. Ao invés de analisarem a realidade e os fenômenos como totalidade, geram falsas totalizações ou se prendem a princípios abstratos: “A falsa totalização e sintetização manifesta-se no método [sic] do princípio abstrato [leia-se “modelo” - NV] que despreza a riqueza do real, isto é, levar em conta apenas aqueles fatos que estão de acordo com o princípio abstrato [modelo - NV]. O princípio abstrato, erigido em totalidade, é totalidade vazia, que trata a riqueza do real como “resíduo” irracional e incompreensível. O método [sic] do ‘princípio abstrato’ deforma a imagem total da realidade (acontecimentos históricos, obras de arte) e ao mesmo tempo se mostra destituído de sensibilidade em face dos particulares. Está a par dos fatos particulares, registra-os mas não os compreende, porque não entende o seu significado. Não revela o sentido objetivo [real] dos fatos [acontecimentos] (particulares) mas o obscurece. Assim fazendo rompe a integridade do fenômeno em causa porque o cinde em duas esferas independentes: uma parte que convém ao princípio [modelo - NV] e que por ele é explicada; e uma outra parte que contradiz o princípio [modelo - NV] e que, portanto, permanece na sombra (sem explicação e compreensão racional), como ‘resíduo’ não explicado e inexplicável do fenômeno” (KOSIK, 1986, p. 49). O problema metodológico é essencial para compreender questões correlatas e mostra a diferença entre a perspectiva marxista e a perspectiva ideológica do gênero (VIANA, 2006a; VIANA, 2006b).

[4] É necessário ressaltar que o problema não é a palavra gênero e sim a ideologia do gênero (VIANA, 2006). A ideologia, no sentido marxista, é um “sistema de pensamento ilusório” e retirar um construto do sistema construtal em que foi constituído é algo destituído de sentido se o objetivo é analisar a concepção originária do mesmo. Quando se faz a crítica da ideologia do gênero (e não “de” gênero, como colocam os opositores religiosos dessa concepção com sua pouca profundidade analítica) não é a uma mera palavra, que isolada nada significa, e sim a uma concepção que é um todo e fora desse todo o termo é destituído de importância. Logo, se alguns ingênuos “críticos críticos” (que querem criticar a crítica da ideologia do gênero), pensam que refutam a análise crítica da ideologia do gênero retirando o termo do seu contexto ideológico, apenas mostram que não entenderam nem a posição defendida nem a sua crítica.

[5] Por isso não tem nenhum sentido considerar que “identidade” tem algo a ver com “positividade” ou “autonomia”. Aliás, a própria “autonomia” é constituída social e historicamente e não significa algo positivo em si. Isso já foi abordado em outro momento (2015) e basta um exemplo clássico para explicar isso: um psicopata pode ser espontâneo e autônomo, o que não tem nada de positivo. No nebuloso mundo da ideologia e do paradigma subjetivista reinante, a reificação da linguagem é fonte de justificativa ideológica e reprodução da sociedade atual e suas ideologias e necessidades de reprodução, tal como o hedonismo, o neoindividualismo, o narcisismo, ligados ao que Erich Fromm denominou Homo Consumens e ao processo de liberação individual de indivíduos problemáticos e numa sociedade que gera milhares de desequilíbrios psíquicos. Dê a liberdade para um monstro e ele fará monstruosidades. A apologia da liberdade individual no interior da sociedade capitalista é anti-humanista e desumanizante. A verdadeira e autêntica liberdade individual só pode surgir numa sociedade humanizada. Numa sociedade desumanizada, a liberdade individual abstrata e absolutizada é mais um problema do que uma solução.

[6] O materialismo histórico se distingue das ideologias burguesas por colocar a necessidade de analisar as relações sociais concretas e não as representações derivadas delas para compreender e explicar a realidade. Isso é ainda mais importante na sociedade moderna, uma sociedade na qual o imaginário e a ideologia são hegemônicos (VIANA, 2013).

[7] Uma crítica a esse processo pode ser visto em Young (2002) e Viana (2013).

[8] Um termo-chave é uma palavra que é deslocada da ideologia da qual ela surgiu e é difundida e popularizada reforçando a hegemonia existente. Muitas vezes ele aparece como uma palavra mágica, cuja pronúncia resolveria as coisas magicamente ou fariam coisas aparecerem do nada. O construto globalização é um termo-chave, onde se “explicava” tudo (sem explicar nada) com o apelo para tal palavra, mal compreendida e que os seus utilizadores, em sua maioria, nem sequer sabiam defini-la.

[9] Claro que não se trata do marxismo e da psicanálise domesticados e submetidos à hegemonia burguesa. A psicanálise é essencial para compreender processos psíquicos individuais e a sociedade contemporânea, mas ela vem sendo deformada e domesticada, perdendo o seu potencial crítico e capacidade explicativa, e isso tem a ver também com a perda da coragem dos psicanalistas de dizerem a verdade ao invés de enfeitar a prisão do desequilíbrio psíquico, generalizada na contemporaneidade em grau elevado.