MARX E A BUROCRACIA
Marx and Bureaucreacy
Nildo Viana
Resumo:
O presente artigo apresenta uma reflexão sobre a
burocracia no pensamento de Karl Marx, objetivando entender a sua concepção no
interior do conjunto do seu pensamento. Os procedimentos foram resgatar os
textos de Marx nos quais ele faz referências diretas à burocracia e inseri-las
no conjunto do seu pensamento, ou seja, no contexto do materialismo histórico e
teoria do capitalismo. É neste contexto que a burocracia ganha significado no
pensamento de Marx e torna-se compreensível sua abordagem da mesma. Nesse
sentido, percebe-se que para Marx, a burocracia é uma classe social e ele
identifica sua existência no aparato estatal e nas empresas capitalistas, sendo
que já vislumbra sua existência também na sociedade civil.
Palavras-chave: Burocracia, classe social, Estado,
Capital, Marx, Capitalismo.
Abstract:
This article
focuses on the bureaucracy in the thought of Karl Marx, in order to understand
its design within the range of his thought. Procedures texts of Marx in which
he makes direct references to bureaucracy and insert them in all their
thinking, ie, in the context of historical materialism and theory of capitalism
were rescuing. It is in this context that the bureaucracy becomes meaningful in
Marx's thought, and it is understandable their approach to it. In this sense,
it is noticed that for Marx, bureaucracy is a class and it identifies its
existence in the state apparatus and the capitalist enterprises, and also
foreshadowing its existence in civil society.
Keywords:
Bureaucracy, social class, State Capital, Marx, Capitalism.
Karl Marx escreveu diversos textos nos quais faz referências à
burocracia, embora não tenha deixado nenhuma obra sistemática sobre este tema.
Desde os seus escritos de juventude, ele abordou o problema da burocracia e
voltou a ele ao analisar a empresa capitalista e o Estado burguês. O presente
artigo visa reconstituir sua análise da burocracia no contexto de sua produção
intelectual geral, ou seja, remetendo tanto ao método dialético e materialismo
histórico, quanto à sua teoria do capitalismo, pois é no interior desse
conjunto é que é possível entender sua concepção de burocracia. Isto quer dizer
que não realizaremos uma análise cronológica de seus textos sobre esse tema,
como geralmente se faz em relação a diversos outros casos, e sim buscaremos
articular sua análise da burocracia no interior de seu universo conceitual e
explicativo da história e do capitalismo.
Burocracia e
História
Marx abordou a burocracia em diversos textos, sem deixar uma teoria
articulada sobre ela. No entanto, além de suas análises sobre a burocracia no
capitalismo, geralmente se atribui a ele uma discussão sobre esse fenômeno em
outras sociedades, pré-capitalistas. É o caso, por exemplo, da suposta
burocracia no modo de produção asiático. Contudo, uma leitura atenta dos textos
de Marx referentes a este modo de produção deixa claro que ele não usa o termo
burocracia nesse contexto (MARX, apud. GODELIER, 1966). Para entender o
significado de um conceito no interior de uma teoria, ou seja, no bojo de um
universo conceitual, é necessário ver seu uso efetivo e as diversas
manifestações de seu significado, para saber, neste último caso, se é possível
o mesmo significado se manifestar sob termos distintos. Essa análise semântica
é muito pouco realizada e isso provoca diversas confusões. Marx não utiliza o
termo burocracia para se referir às sociedades pré-capitalistas e por isso é
necessário entender que em sua abordagem ela é um fenômeno da sociedade
moderna, embora tivesse antecedentes semelhantes em sociedades passadas.
Segundo os procedimentos do materialismo histórico, é necessário perceber a
especificidade histórica (KORSCH, 1983) de cada sociedade e assim buscar
compreender os fenômenos particulares no interior de uma totalidade (VIANA,
2007).
Para reconstituirmos a concepção de burocracia em Marx, iremos, em
primeiro lugar, observar sua primeira análise do fenômeno, pois possui
elementos esclarecedores que serão retomados sob outra forma e ampliados no
contexto de uma maior precisão da especificidade histórica do capitalismo e,
portanto, abrem caminho para sua elaboração teórica sobre o fenômeno
burocrático.
A discussão de Marx sobre a burocracia se inicia com sua crítica da
filosofia do direito de Hegel. Para Hegel, o Estado é a realização do “espírito
absoluto” e por isso a burocracia é composta pelos “funcionários do universal”.
Marx cita Hegel para depois refutá-lo: “Na classe média, a que pertencem os
funcionários, reside a consciência do Estado e a mais eminente cultura. É por
isso que ela constitui o fundamento de honestidade e inteligência do Estado” (HEGEL,
apud. MARX, 1976, p. 68). Segundo Hegel, “o Estado tem o maior interesse a
formação desta classe média” (apud. MARX, 1976). Marx afirma que para Hegel, “o
poder governativo não será mais que a administração”, que "ele desenvolve
sob o nome de burocracia” (MARX, 1976, p. 69). As “corporações” da sociedade
civil representam esferas privadas. Acima de tais esferas, existem, segundo
Hegel, representantes do poder governativo, que são os funcionários executivos
e as autoridades constituídas em conselhos, cujo papel é salvaguardar os
interesses gerais do Estado e da legalidade, e convergem para o monarca.
Essa concepção hegeliana aponta para a compreensão de que a burocracia é
parte da classe média, uma classe geral, que representa os interesses
universais em contraposição aos interesses particulares existentes nas classes
privadas da sociedade civil. A burocracia, em Hegel, é perpassada por positividade,
os funcionários são representantes do universal, os indivíduos precisam provar
sua idoneidade para poder executar as tarefas do Estado, se submeter ao sistema
de exames e sua função pública constitui um dever e por este motivo necessitam
ser pagos. Marx acrescenta mais um aspecto da burocracia segundo Hegel:
a garantia contra os abusos da burocracia repousa,
em parte, na hierarquia e na responsabilidade dos funcionários, e em parte nos
direitos das comunidades, das corporações; a sua humanidade tem que ver com a
'formação moral e intelectual direta' e com a 'grandeza do Estado'. Os
funcionários constituem a 'parte principal' da classe média' (MARX, 1976, p.
69-70).
A classe média, seria, na concepção hegeliana, a classe da cultura. Logo,
os vínculos com o espírito absoluto e a realização da ética no Estado segundo a
filosofia hegeliana, com a burocracia ficam explicitados. Marx acrescenta que
Hegel apenas descreve empiricamente a burocracia e acrescenta que tal descrição
remete, em parte, ao que ela realmente é e, em parte, a como ela diz
ser. Ou seja, Hegel revela aspectos do que a burocracia realmente é e ao
mesmo tempo a confunde com sua autoimagem ilusória, ou como diz Marx, sua
“identidade imaginária”. Ele também não apresenta nenhum conteúdo da
burocracia, mas apenas “algumas determinações genéricas da sua organização
formal”. Obviamente, ela é, segundo Marx, o “formalismo do Estado” da sociedade
civil. É neste contexto que ele começa a apresentar sua concepção de
burocracia. Ela é a consciência, vontade e poder do Estado enquanto corporação.
Nesse contexto é necessário compreender o que é corporação e sua relação com a
burocracia. A corporação, tal como apontada por Hegel, é uma instância da
sociedade civil, da vida privada. As corporações são organizações da sociedade
civil. Segundo Marx, “A corporação é a burocracia da sociedade civil; a
burocracia é a corporação do Estado” (MARX, 1976, p. 70); “o mesmo espírito que
cria a corporação na sociedade civil cria a burocracia no Estado”. Assim, Marx
parte da distinção hegeliana de sociedade civil e Estado para mostrar como
surgem corporações na sociedade civil que são seu equivalente da burocracia no
Estado e como essa é uma espécie de corporação no Estado. Por isso a burocracia
é uma corporação, particular e fechada, no Estado. “A burocracia é portanto
obrigada a proteger a generalidade imaginária do interesse particular a fim de
proteger a particularidade imaginária do interesse geral, ou seja, o seu
próprio espírito”.
Mas
a burocracia deseja a corporação como um poder imaginário. É certo que cada
corporação também possui esse desejo, para defender seu interesse particular
contra a burocracia; mas deseja uma burocracia que lute contra outra
corporação, contra outro interesse particular. A burocracia, corporação
completa, triunfa sobre a corporação, burocracia incompleta (MARX, 1976, p.
71-72).
A corporação é uma tentativa da sociedade civil visando se tornar Estado.
A burocracia é o formalismo do Estado e isso constitui o seu poder real,
transformando o formalismo em seu conteúdo real.
Dado
que a burocracia, de acordo com a sua essência, é o 'estado enquanto
formalismo', também o é de acordo com a sua finalidade. A verdadeira finalidade
do Estado surge portanto à burocracia como uma finalidade contra o Estado. O
espírito da burocracia é o 'espírito formal do Estado'; logo, transforma em
imperativo categórico o 'espírito formal do Estado' ou a falta de espírito real
do Estado. Aos seus próprios olhos a burocracia é a finalidade última do
Estado. Dado que a burocracia assume como conteúdo os seus objetivos 'formais',
entra sistematicamente em conflito com os objetivos 'reais'. É assim obrigada a
dar o formal como conteúdo e conteúdo como formal. Os objetivos do Estado
transformam-se em objetivos da burocracia e os objetivos da burocracia em
objetivos do Estado. A burocracia é um círculo ao qual nada pode escapar. Esta
hierarquia é uma hierarquia do saber. A cabeça remete para os círculos
inferiores a preocupação de compreender os detalhes, e os inferiores julgam que
a cabeça pode compreender o geral. Assim se enganam mutuamente (MARX, 1976, p.
72-73).
Marx discorda de Hegel ao se iludir com a autoimagem da burocracia. Esse
processo significa ficar em um nível ilusório, imaginário. A burocracia é o
corpo de funcionários, o conjunto daqueles que exercem cargos de direção na
estrutura estatal e o burocrata é o indivíduo, que vai criando seus interesses
próprios dentro dessa estrutura:
A
burocracia constitui o Estado imaginário, paralelo ao Estado real, é o espiritualismo
do estado. Tudo tem, portanto, dois significados, um real e outro burocrático
(o mesmo acontece com a vontade). Mas o ser real é tratado de acordo com o seu
ser burocrático, irreal, espiritual. A burocracia 'possui' o ser do Estado; o
ser espiritual da sociedade é sua propriedade privada. O espírito geral da
burocracia é o segredo, o mistério, guardado no seu seio pela hierarquia e no
exterior pelo seu caráter de corporação fechada. O espírito do Estado, se for
conhecido por todos, assim como a opinião pública, surgem à burocracia como uma
traição ao seu mistério. A autoridade é consequentemente o princípio de sua
sabedoria e a idolatria da autoridade constitui o seu sentimento. Mas no seio
da burocracia o espiritualismo transforma-se em materialismo sórdido, no
materialismo da obediência passiva, da fé na autoridade, do mecanismo de uma
atividade formal rígida, de princípios e ideias e tradições rígidas. Para um
burocrata tomado individualmente a finalidade do estado transforma-se na sua
finalidade privada sob a forma de luta pelos postos mais elevados; é necessário
abrir caminho. Começa por considerar a vida real como uma vida material, dado
que o espírito desta vida tem na burocracia a sua existência para si, a sua
existência peculiar. A burocracia deve portanto tornar a vida tão material
quanto for possível. Em segundo lugar, e para esse burocrata, ela é uma vida
material na medida em que se transformou em objeto da atividade burocrática; de
fato, o seu espírito próprio escapa-lhe, a sua finalidade situa-se fora de si,
a sua existência transforma-se na existência do bureau. O Estado já existe
apenas sob a forma de espíritos burocráticos diferentes e rígidos, que mantêm
entre si um vínculo de subordinação e de obediência passiva. A ciência real parece
vazia, assim como a vida real parece morta; de fato, estas ciências e vida
imaginárias apresentam-se como o ser. Portanto, a burocracia é obrigada a
comportar-se jesuiticamente perante o Estado, quer este jesuitismo seja
consciente ou inconsciente. Mas, quando o seu opositor é o saber, é também
necessário que chegou à consciência e se transforme em jesuitismo intencional
(MARX, 1976, p. 73-74).
Marx, no início, se refere à burocracia em
geral e depois especifica o burocrata individual, ou seja, a burocracia é o
corpo de funcionários e o burocrata é o indivíduo que faz parte desse corpo.
Essa burocracia, esse conjunto de funcionários, se organiza sob a forma de
hierarquia, formando uma “corporação fechada”, guardada pelo segredo e mistério
ao mundo externo e que transforma a sua finalidade em finalidade do Estado,
promovendo para si um processo de saber burocrático geral convivendo com
diversos “espíritos burocráticos diferentes e rígidos”, vinculados pela
subordinação e obediência passiva. Essas características da burocracia são as
formas de relações sociais dos burocratas entre si e com o exterior.
Um último elemento, e mais importante, é
que Marx define a burocracia como classe social. Ao contrário da concepção
leninista e de todas as derivadas, que querem distinguir entre classes sociais
e camadas (HARNECKER e URIBE, 1980; ERMAKOVA e RÁTNIKOV, 1986)[1],
o que é uma deformação do pensamento de Marx (VIANA, 2014), a posição de Marx
sobre a burocracia, e outros setores, é de que se caracteriza como classe social.
No interior da discussão hegeliana sobre classes privadas e classe geral (a
burocracia, os “funcionários do universal”), Marx avança ao colocar a origem
histórica da classe burocrática:
ao
ocorrer um determinado progresso histórico, as classes políticas
transformaram-se em classes sociais, e de tal modo que os diferentes membros do
povo – assim como os cristãos são iguais no céu do mundo político e desiguais
na existência terrestre da sociedade. A transformação propriamente dita das
classes políticas em classes sociais realizou-se no seio da monarquia absoluta.
A burocracia fazia valer a ideia da unidade contra os diferentes estados
existentes no Estado. Mas paralelamente a essa burocracia do poder governativo
absoluto, a distinção social das classes permanecia, no entanto, como uma
distinção política no interior e paralela à burocracia do poder governativo
absoluto. Foi a Revolução Francesa que consumou a transformação das classes
políticas em classes sociais ou, por outras palavras, que transformou as
diferentes classes da sociedade civil em simples diferenças sociais, diferenças
na vida privada, sem importância na vida política” (MARX, 1976, p. 123).
A burocracia é uma classe na qual sua
posição civil e política coincidem: “a classe propriamente dita em que
coincidem a posição política e a posição civil é a dos membros do poder
governativo” (MARX, 1976, p. 124). Assim, Marx concorda com Hegel com o fato da
burocracia ser uma classe social, a classe “geral” ou “universal”, utilizando
expressões hegelianas. Contudo, ele discorda de Hegel ao afirmar que o caráter
“universal” da burocracia é ilusório, é mera expressão de sua identidade
imaginária. Além de denunciar a identidade ilusória da burocracia, Marx também
coloca que ela cria seus próprios interesses, e transforma seus interesses
particulares em interesses do Estado e disso deriva todas as demais
características da burocracia acima elencados.
Em síntese, a abordagem de Marx sobre a
burocracia nessa obra é exemplar no sentido de colocar o processo de gênese
histórica da burocracia, do seu caráter de classe e de que é não uma forma de
administração, embora também o seja, e sim indivíduos reais, que compartilham o
mesmo modo de vida, interesses e oposição a outras classes, submetida à divisão
social do trabalho na sociedade capitalista. Em obras posteriores ele
aprofundará a relação entre burocracia e sociedade capitalista, tal como
mostraremos adiante.
Nesse texto, Marx já anuncia o seu conceito
de classes sociais, que desenvolverá especialmente em A Ideologia Alemã.
Segundo Marx, “A classe, de um modo geral, significa que a diferença, a
separação, constituem a existência do indivíduo. A sua maneira de viver,
trabalhar, etc., em lugar de fazer dele um membro, uma função da sociedade,
forma uma exceção à sociedade e constitui privilégio seu” (MARX, 1976, p. 125).
Essa diferença não é individual, pois se estabelece “como comunidade, classe,
corporação, além de não suprimir a sua natureza exclusiva constitui-se até como
sua expressão” (MARX, 1976, p. 126). Logo, o que futuramente será definido como
modo de vida, aparece aqui como “maneira de viver e trabalhar”, e os indivíduos
que pertencem a uma mesma classe social possuem isso em comum. Marx também
aborda a contradição essencial, irreconciliável e a oposição na sociedade
civil, ou seja, entre as classes sociais, e ainda discute, posteriormente, a
questão dos interesses particulares, sendo este conjunto estabelecido pela
divisão das classes na sociedade civil, ou seja, pela divisão social do
trabalho, como irá colocar em suas obras posteriores. Assim, há nessa obra
alguns elementos que mais tarde serão unificados e trabalhados no sentido de
constituir o seu conceito de classe social.
De qualquer forma, o que é evidente é que a
burocracia é apresentada como classe social, mesmo que ainda não esteja
estruturado em sua forma final como conceito. E nas obras posteriores isso irá
reaparecer. A burocracia estatal é uma classe, mas também há uma burocracia
incompleta na sociedade civil. Esta, com o desenvolvimento histórico, tende a
aumentar quantitativamente. O que Marx observa é a existência, num primeiro
momento, da burocracia estatal e de elementos semelhantes na sociedade civil.
Contudo, não se deve pensar que em Marx a burocracia é algo metafísico,
uma “entidade” ou ser abstrato pairando acima das relações sociais ou da
história. A sua Crítica à Filosofia do Direito de Hegel tem justamente o
objetivo de romper com a metafísica hegeliana e colocar na terra o que o
filósofo alemão colocou no céu. Por isso é importante entender que, para Marx,
a burocracia é um corpo de funcionários que constitui uma hierarquia e
organização formal, que cria interesses próprios, transformando seus interesses
em interesses do Estado. A especificação de quais são esses interesses próprios
não é apresentada por Marx nesta obra, pois ele apenas apresenta os interesses
individuais dos burocratas, a luta por cargos e por estar no cume da
hierarquia. Nessa obra, a burocracia é fundamentalmente estatal. Mas uma
leitura atenta observa que ele se refere à “burocracia incompleta” representada
pelas corporações.
Daí vem a dúvida sobre o que significa “corporações”. No texto de Hegel,
comentado por Marx, as corporações são expressões da sociedade civil, das
classes sociais. A classe agrícola tem sua unidade na vida familiar e a classe
universal (burocracia) no Estado, enquanto que, a classe industrial realiza a
mediação entre ambas e está voltada para a particularidade e “por isso a
corporação lhe é própria” (HEGEL, 1990, p. 220). Hegel afirma que a natureza do
trabalho no interior da sociedade civil remete à particularidade e o divide em
vários ramos. Por isso o membro da sociedade civil se torna membro da
corporação e não ultrapassa os limites comuns dos “negócios e interesses
privados da indústria” (HEGEL, 1990, p. 220).
Esta
função confere à corporação o direito de gerir os seus interesses sob a
vigilância dos poderes públicos, admitir membros em virtude da qualidade
objetiva da opinião e probidade que têm e no número determinado pela situação geral
e encarregar-se de proteger os seus membros, por um lado, contra os acidentes
particulares, por outro lado, na formação das aptidões para fazerem parte dela.
Numa palavra, a corporação é para eles uma segunda família, missão que é
indefinida para a sociedade civil em geral, mais afastada como esta está dos
indivíduos e das suas particulares exigências (HEGEL, 1990, p. 221).
As corporações, ao lado da família, são os
principais elementos da sociedade civil. Elas possuem um caráter ligado à
atividade profissional e ao que Hegel denomina “classe industrial”, que, no
fundo, é a divisão entre a vida rural e a vida urbana, sendo nesta que
ocorreria o processo de formação das classes sociais modernas e das formas de
organização típicas delas, tais como as associações, clubes, etc. e por isso
possuem membros, proteção aos mesmos e outras características de uma
organização (mais tarde isso seria muito mais desenvolvido com os sindicatos,
associações profissionais e patronais, etc.). É essas corporações que Marx chamaria
de “burocracia incompleta”, antecedendo o futuro, no qual se formaria uma
“sociedade civil organizada” e “burocrática”. Esse ponto de partida de Marx
será desenvolvido posteriormente em outras obras, tal como demonstraremos a
seguir.
Burocracia, modo
de produção capitalista e Estado burguês
A burocracia, portanto, é um fenômeno da sociedade moderna segundo Marx.
Resta, então, saber por qual motivo ela emerge no capitalismo. Marx, num
primeiro momento, irá analisar a burocracia estatal e somente depois irá
avançar no sentido de perceber a existência de uma burocracia civil. Vamos, no
entanto, começar por sua análise da gênese da burocracia na sociedade moderna.
Já colocamos que um de seus primeiros textos a relação entre burocracia e
monarquia absolutista e sua consolidação após a Revolução Francesa. Mas não há,
nessa obra, nenhuma explicação de sua razão de ser. Em outros textos, Marx
avança nesse processo explicativo:
à
medida que os progressos da moderna indústria desenvolviam, ampliavam e aprofundavam
o antagonismo de classe entre o capital e o trabalho, o poder do Estado foi
adquirindo cada vez mais o caráter de poder nacional do capital sobre o
trabalho, de força pública organizada para a escravização social, de máquina do
despotismo de classe (MARX, 2011, p. 14).
Em outro trecho, Marx retoma a mesma
afirmação já presente em Crítica à Filosofia do Direito de Hegel:
O
poder centralizado do Estado, com os seus órgãos onipresentes: exército
permanente, polícia, burocracia, clero e magistratura – órgãos forjados segundo
o plano de uma sistemática e hierárquica divisão do trabalho – tem origem nos
dias da monarquia absoluta, ao serviço da classe burguesa nascente como arma
poderosa nas duas lutas contra o feudalismo. Contudo, o seu desenvolvimento permanecia
obstruído por toda a espécie de entulhos medievais, direitos senhoriais,
privilégios locais, monopólios municipais e de guilda e constituições
provinciais. A escova gigantesca da Revolução Francesa do século dezoito levou
todas estas relíquias de tempos idos, limpando assim, simultaneamente, o
terreno social dos seus últimos embaraços para a superestrutura do edifício do
Estado moderno erguido sob o primeiro Império, ele próprio fruto das guerras de
coalizão da velha Europa semifeudal conta a França moderna (MARX, 2011, p. 14).
Por conseguinte, o desenvolvimento da
burocracia estatal está intimamente ligado ao desenvolvimento do capitalismo. A
gênese da burocracia estatal se encontra no modo de produção capitalista e seu
desenvolvimento. Ele gera uma divisão “hierárquica” e “sistemática” do trabalho
e forma uma ampla burocracia no aparato estatal. Contudo, a relação entre modo
de produção capitalista e burocracia não se limita ao processo de constituição
da máquina burocrática estatal a partir da ampliação da divisão social do
trabalho derivada das relações de produção capitalistas e das lutas de classes
que são sua essência. No próprio processo de produção capitalista emerge
pessoas com funções análogas à da burocracia estatal. A divisão social do trabalho
geral e na manufatura (forma inicial da produção capitalista) possuem
semelhanças, apesar de suas diferenças, e que uma tem influência sobre a outra,
pois “na sociedade do modo de produção capitalista a anarquia da divisão social
do trabalho e o despotismo da divisão manufatureira do trabalho se condicionam
reciprocamente” (MARX, 1988, p. 207).
Sem dúvida, Marx não usa a palavra
“burocracia” para qualificar o que ele chama de “gerentes”, entre outros nomes.
Ele usa a terminologia utilizada no próprio local de trabalho.
“se
portanto a direção capitalista é, pelo seu conteúdo, dúplice, em virtude da
duplicidade do próprio processo de produção que dirige, o qual por um lado é
processo social de trabalho para a elaboração de um produto, por outro,
processo de valorização do capital, ela é quanto à forma despótica. Com o
desenvolvimento da cooperação em maior escala, esse despotismo desenvolve suas
formas peculiares. Como o capitalista, de início, é libertado do trabalho
manual, tão logo seu capital tenha atingido aquela grandeza mínima, com a qual
a produção verdadeiramente capitalista apenas começa, assim ele transfere agora
a função de supervisão direta e contínua dos trabalhadores individual ou de
grupos de trabalhadores a uma espécie particular de assalariados. Do mesmo modo
que um exército precisa de oficiais superiores militares, uma massa de
trabalhadores, que cooperam sob o comando do mesmo capital, necessita de
oficiais superiores industriais (dirigentes, managers) e suboficiais
(capatazes, foremen, overlookers, contre-maîtres) durante
que o processo de trabalho comandam em nome do capital. O trabalho de
superintendência se cristaliza em sua função exclusiva. Comparando o modo de
produção de camponeses independentes ou de artífices autônomos com a economia
das plantações, baseada na escravatura, o economista político considera esse
trabalho de superintendência como um dos fax frais de production [falsos custos
de produção – NV]. Ao considerar o modo de produção que deriva da natureza do
processo de trabalho coletivo e, com a mesma função na medida em que é
condicionada pelo caráter capitalista e, por isso, antagônico, desse processo.
O capitalista não é capitalista porque ele é dirigente industrial, ele torna-se
comandante industrial porque ele é capitalista. O comando supremo na indústria
torna-se atributo do capital como no tempo feudal o comando supremo na guerra e
no tribunal era atributo da propriedade fundiária” (MARX, 1988, p. 250-251).
Aqui Marx não usou o termo burocracia e por
isso pode parecer uma extrapolação, apesar de alguns autores entenderem que se
trata de um fenômeno burocrático e uma manifestação da classe burocrática no
processo de produção capitalista[2].
Nesse mesmo capítulo ele aborda a questão da divisão social do trabalho e na
sociedade e como se pode ver no Dezoito Brumário, quando ele afirma que
a burocracia estatal apresenta na sociedade a mesma divisão do trabalho
existente na fábrica.
Os gerentes e outros setores dentro da
fábrica ou de qualquer outra empresa ou instituição, exerce a mesma função de
direção e uma parte realiza um processo de mediação entre sociedade civil e
Estado. Contudo, Marx não abordou de forma mais ampla diversos aspectos destas
relações, tão-somente esclarece a existência de “burocracias incompletas” na sociedade
civil e posteriormente, observa a existência de uma nova classe social de
trabalhadores assalariados improdutivos no processo de produção capitalista[3],
chamados como gerentes e outros nomes, ao qual não denomina como burocratas. No
entanto, reconhece neles características que atribuiu à burocracia estatal:
“como simples soldados da indústria, são postos sob a vigilância de uma
completa hierarquia de suboficiais e oficiais” (MARX e ENGELS, 1988, p. 73).
Nesse trecho se observa o papel de
vigilância e hierarquia, função da burocracia estatal reproduzida no processo
de produção capitalista. Nesse sentido, podemos concluir que se trata da
burocracia da sociedade civil. Claro que em Marx não há uma definição clara a
este respeito, tendo em vista que o não uso da palavra não é apenas uma questão
terminológica, pois seria possível se pensar, devido à divisão social do
trabalho, que a burocracia estatal (que seria, nesse caso, a única burocracia)
seria uma classe e os gerentes e outros funcionários das empresas capitalistas
com funções dirigentes fosse outra classe. Contudo, na divisão social do
trabalho tudo aponta para uma função semelhante em instâncias diferentes da
sociedade e que, portanto, poderia significar mais uma divisão no interior de
uma classe social, tal como existem as frações da burguesia (industrial,
comercial, agrária, etc.) e do proletariado (fabril, da construção civil,
agrícola, etc.).
A sua discussão inicial sobre “corporações”
e “burocracia incompleta” aponta para essa concepção, ou seja, que na sociedade
civil e nas empresas capitalistas há a emergência de uma burocracia
diferenciada, mas possuindo o mesmo caráter burocrático. Além disso, a
burocracia estatal aparece como “corpo de funcionários”, com determinadas
características, que aparecem na descrição que Marx realiza em algumas
passagens de O Capital, bem como em outros lugares, como é o caso da
citação anterior do Manifesto Comunista. O uso da expressão
“funcionários” em algumas passagens de O Capital, ao lado de “gerentes”
e outras expressões, também revela uma similitude entre os funcionários
estatais e os das empresas capitalistas privadas. Outro elemento semelhante é o
fato de que tanto uns quanto os outros estão a serviço do capital. Esse é um
elemento fundamental que retomaremos agora ao discutir a abordagem da
burocracia no Estado capitalista.
A respeito da burocracia no Estado capitalista, as passagens mais
significativas encontram-se em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel,
A Guerra Civil na França e no Dezoito Brumário. O que ele afirmou
na primeira destas obras, em 1843, ele retoma nas duas outras obras.
“Esse
poder executivo, com sua imensa organização burocrática e militar, com sua
engenhosa máquina do Estado, abrangendo amplas camadas com um exército de
funcionários totalizando meio milhão, além de mais meio milhão de tropas
regulares, esse tremendo corpo de parasitas que envolve como uma teia o corpo
da sociedade francesa e sufoca todos os seus poros, surgiu ao mesmo da
monarquia absoluta, com o declínio do sistema feudal, que contribuiu para
apressar. Os privilégios senhoriais dos senhores de terras e das cidades
transformaram-se em outros tantos atributos do poder do Estado, os dignitários
feudais em funcionários pagos e o variegado mapa dos poderes absolutos feudais
em conflito entre si, o plano regular de um poder estatal suja tarefa está
dividida e centralizada como em uma fábrica. A primeira Revolução Francesa, em
sua tarefa de quebrar todos os poderes independentes – locais, territoriais,
urbanos e provinciais – a fim de estabelecer a unificação civil da nação, tinha
forçosamente que desenvolver o que a monarquia absoluta começara: a
centralização, mas ao mesmo tempo o âmbito, os atributos e os agentes do poder
governamental. Napoleão aperfeiçoara essa máquina estatal. A monarquia
legitimista e a monarquia de julho nada mais fizera do que acrescentar maior
divisão do trabalho, que crescia na mesma proporção em que a divisão do
trabalho dentro da sociedade burguesa criava novos grupos de interesses
e, por conseguinte, novo material para a administração do Estado” (MARX, 1986,
p. 114).
Marx retoma aqui a questão da origem da
burocracia estatal e sua consolidação após a Revolução Francesa, bem como sua
expansão com o crescimento da divisão social do trabalho no interior da
sociedade capitalista. O processo histórico irá promover um crescimento cada
vez maios da máquina burocrática estatal. Ela é uma manifestação de uma
excrescência parasitária da sociedade civil e, no capitalismo, gera uma classe
social parasitária, a burocracia, e essa está a serviço do capital[4].
Nesse contexto, é necessário entender que a burocracia (estatal) é parte das
classes assalariadas improdutivas. Em seu texto sobre O Governo da Índia,
Marx mostra como no caso de uma sociedade marcada pela exploração colonial, o
governo local e outros aparatos da sociedade colonizadora (Junta de Controle,
Tribunal Administrativo) estão sob o controle de uma outra burocracia:
“O
verdadeiro Tribunal Administrativo e o verdadeiro Governo Interno da Índia,
etc., é a burocracia permanente e
irresponsável, ‘as criaturas das secretarias e as criaturas dos favores’,
residentes em Leadenhall Street. Dominando um imenso império, temos, portanto,
uma corporação, não formada, como em
Veneza, por eminentes patrícios, mas por velhos e obstinados funcionários e
outros que tais” (MARX, 1978a, p. 80).
O caso indiano apenas revela que a burocracia pode se dividir em diversos
grupos e um desses possui o poder efetivo, ou seja, a direção efetiva dos
negócios. Isso é comum na burocracia, com sua hierarquia, mas, nesse caso, há
algo mais: há uma suposta hierarquia oficial e uma outra hierarquia, oculta. E,
no fundo, é o aparato estatal central (da sociedade inglesa) que define qual
burocracia comanda efetivamente (a Índia) e é o capital que determina as
decisões estabelecidas, bem como o jogo de interesses das classes sociais
privilegiadas (burguesia, burocracia, etc.)[5].
É por isso que Marx afirmará que “não é de admirar, portanto, que não exista
nenhum governo que tanto tenha escrito e tão pouco tenha feito, como o Governo
da Índia” (MARX, 1978a, p. 80). Os funcionários de Leadenhall Street, um setor
da burocracia, transformaram “os administradores e a Junta em seus dependentes”
(MARX, 1978a, p. 81) e o governo da Índia em “uma imensa máquina de escrever”,
com suas 45 mil páginas de despachos a serviço do capital. A burocracia forma
uma “corporação”, tal como Marx coloca no trecho citado, ou seja, como um
“corpo” de funcionários com interesse próprios.
Contudo, o fundamental da contribuição de
Marx é a percepção que, oriunda do modo de produção capitalista, a burocracia
estatal emerge com o absolutismo e se consolida após a Revolução Francesa e,
nesse processo, é não só produto do capital e serve a ele, mas também é
reprodutor e incentivador do mesmo. O chamado sistema colonial, bem como o
incentivo às manufaturas e depois para a grande indústria mostra o papel da
burocracia estatal no processo de expansão capitalista.
Resta saber qual é interesse dessa classe
social. Marx já havia colocado, como vimos anteriormente, que o interesse do
burocrata individual é a luta por cargos, ascender na hierarquia. O interesse
da burocracia como classe social é a sua reprodução[6]
e sua autonomização, inclusive ao ponto de desejar superar a classe capitalista
e implantar sua própria dominação[7],
o que é mais visível na burocracia estatal.
A Presciência da
Burocracia Civil
Se Marx percebeu e analisou a burocracia estatal de forma mais
aprofundada e analisou a burocracia empresarial, nas fábricas capitalistas, de
forma menos aprofundada, resta refletir sobre suas considerações sobre outras
manifestações da burocracia civil. Contudo, antes de realizar tais reflexões é
fundamental não esquecer que ele escreve num determinado contexto histórico e
neste a burocracia civil está em status
nacendi. A burocracia estatal já estava relativamente desenvolvida,
contando com meio milhão de pessoas no caso francês, o que não passou despercebido
por Marx, embora o seu crescimento quantitativo e sua importância social e política
aumentasse no período histórico posterior ao vivido por ele. A burocracia
empresarial já era vislumbrada nas fábricas e nas sociedades por ações, apesar
de seu caráter ainda incipiente, principalmente em algumas fábricas, bem como
as “sociedades anônimas” e o capital acionário ainda estivesse num estágio
ainda rudimentar.
A sociedade civil, no entanto, é outra
fonte de formação da burocracia. Na época de Marx, isso ainda era pouco
visível. A burocracia na sociedade civil vai se expandir com o próprio
desenvolvimento capitalista, que amplia a divisão social do trabalho, cria
novas necessidades, novas organizações na sociedade. As instituições estatais
vão produzir novas frações da burocracia, mas na época de Marx isso ainda era
muito incipiente. As escolas ainda tinham forte influência da Igreja, tal como
ele cita no caso da Comuna de Paris, o caso dos padres e sua relação com o
ensino ainda presente e que os comunardos destruíram. As universidades, no
sentido mais preciso e atual da palavra, surgem no século 19, e Marx não teve
tempo de perceber (e nem teve relação mais profunda com ela) para ver que era
fonte de mais burocracia. Contudo, ele teve a presciência[8]
do crescimento e diversificação da burocracia estatal ao colocar que a
monarquia legitimista na França acrescentou maior divisão do trabalho que
acompanhava o mesmo crescimento da divisão do trabalho no interior da sociedade
capitalista, tal como citado anteriormente, criando novos grupos de interesses
e “novo material para administração do Estado”. Essa percepção de maior divisão
social do trabalho é uma presciência do crescimento da burocracia civil. Esta
presciência se manifestará com mais clareza no caso dos setores da burocracia
civil gerados a partir do próprio desenvolvimento do movimento operário e que
Marx pôde perceber justamente por estar próximo desse fenômeno.
Esse é o caso, por exemplo, da burocracia
dos sindicatos e partidos nascentes. A luta dos trabalhadores contra a
democracia censitária e pela participação proletária nas lutas políticas e por
seus interesses imediatos (salários, condições de trabalho, etc.) acabam
gerando formas de organização que mais tarde seriam os sindicatos e partidos
políticos. Num primeiro momento, Marx fornece grande importância aos sindicatos
e apoia a formação do Partido Socialdemocrata Alemão, que emergem após a
segunda metade do século 19. Os sindicatos aparecem como formas de organização
do proletariado e, portanto, elementos fundamentais na luta dessa classe e os
partidos políticos, especialmente os próximos ao proletariado, aparecem como
instrumentos de apoio dessa luta. Com o passar do tempo, no entanto, Marx vai
mudar sua posição diante de sindicatos e partidos, no sentido de perceber seu
processo de burocratização e seu distanciamento dos interesses de classe do
proletariado. Na época histórica em que Marx escreveu sobre partidos e
sindicatos, no entanto, o seu processo de burocratização estava, no caso dos
últimos, se iniciando e não era tão visível assim, pois além do grau de
burocratização ser infinitamente menor que assumiu posteriormente, o discurso
(e, em menor grau, a prática) tinha, inclusive devido a isso, muito mais
radicalidade e posição combativa do que hoje.
Em relação aos sindicatos logo Marx
apresenta os seus limites. Eles não são organizações revolucionárias do
proletariado, mas tão somente formas do proletariado lutar por seus interesses
imediatos, especialmente negociar com o capital o preço da força de trabalho,
ou seja, os salários. Embora tivessem um papel “educativo” por ser um instrumento
de luta e por isso incentivar esta, não ultrapassavam os limites da sociedade
burguesa e a exigência de melhores salariais é limitada, pois o que se deve
realizar é a abolição do trabalho assalariado (MARX, 1980). É por isso que Marx
previa a superação dos sindicatos por formas de organização mais amplas do
proletariado. Com o passar do tempo, no entanto, o papel dos sindicatos na luta
do proletariado vai ficando mais claro para Marx e por isso ele começa a
vislumbrar seu caráter burocrático. Em carta a Schweitzer, em 1968, ele afirma:
Creio
possuir tanta experiência sindical quanto qualquer um de meus contemporâneos;
julgo por isso que o projeto dos estatutos está errado, a começar pelos
princípios. Sem entrar aqui em detalhes, direi somente que esse tipo de
organização, com toda a comodidade que oferece às sociedades secretas e à união
dos sectários, contradiz a própria essência das trade-unions. Mas mesmo supondo que há possibilidade para essa
organização, devo declarar que a 'toute
bonement' considero-a francamente impossível, indesejável, sobretudo para a
Alemanha. Aqui onde o trabalhador sofre desde o nascimento um adestramento
burocrático, e tem fé nos superiores, o mais importante é que aprenda a
caminhar sem o auxílio de ninguém (Apud. LOSOVSKI, 1989, p. 40).
Marx acrescenta, na mesma carta, que tal
plano é impraticável também sob outros aspectos, entre os quais a existência de
poderes independentes de distintas origens na organização, tal como o comitê
eleito por profissões, o Presidente (“uma figura completamente inútil, eleita
por sufrágio universal”) e um Congresso eleito por localidades. Isso seria,
segundo Marx, fonte de conflitos “por qualquer coisa” e conclui: “e é esta a
organização que se destina às ações rápidas” (apud. LOSOVSKI, 1989, p. 40). E
encerra suas observações mostrando o vínculo entre a mercantilização (“questões
monetárias”) e burocracia (“poder ditatorial”):
Lassalle
cometeu um erro profundo ao querer imitar 'ao eleito pelo sufrágio universal'
(da constituição francesa de 1852). E isto para as trade-unions! Estas vêm-se obrigadas a se ocupar principalmente de
questões monetárias; por isso, não tardaríeis em verificar que, nestas
questões, se resume todo o poder ditatorial (apud. LOSOVSKI, 1989, p. 40).
Em 1878, em carta a Liebknecht, Marx
observa a corrupção dos sindicatos através de sua direção:
Devido
ao período de corrupção iniciado a partir de 1848, a classe proletária inglesa
foi-se desmoralizando cada vez mais, e chegou por fim ao estado de simples
apêndice do grande partido liberal, isto é, do partido de seus próprios
opressores capitalistas. Sua direção passou inteiramente às mãos dos chefes
venais das trade-unions e dos
agitadores profissionais (apud. LOSOVSKI, 1989, p. 61).
Aqui há uma presciência da burocracia sindical,
ligado ao processo de corrupção e seu papel de servir de apêndice do capital.
Engels também já havia colocado a questão da “aristocracia operária” (LOSOVSKI,
1989). No entanto, isso não é uma consciência clara do fenômeno da burocracia
sindical e sim uma presciência e por isso o problema parece ser determinados
dirigentes (embora se aponte a origem de classe dos mesmos e seu papel de
“chefes”) e não a direção em si e por isso ele pôde afirmar em carta a
Kugelmann: “os operários industriais têm que se livrar, antes de mais nada, de
seus dirigentes atuais” (apud. LOSOVSKI, 1989, p. 62).
Assim, os sindicatos eram considerados
organizações do proletariado que possuíam a limitação de não ultrapassar as
relações de produção capitalistas e ficar no nível dos interesses imediatos e,
posteriormente, mostravam ser dominadas por “chefes venais” e direção
ditatorial. Esse processo de burocratização era relacionado, corretamente, com
o processo de subordinação da direção sindical ao capital, mas sem perceber claramente
que é um processo derivado das relações sociais capitalistas e, portanto, que
não se trata de “corrupção de indivíduos” e sim das organizações sindicais em
sua própria lógica de existência a partir de certo estágio do desenvolvimento
capitalista. A posição de Engels[9],
que relaciona a “aristocracia operária” com o imperialismo inglês tende a
desviar dessa percepção, embora existam relações entre esses processos, mas um
não é mera consequência do outro, mesmo porque o processo de burocratização dos
sindicatos acabou ocorrendo em todos os países, inclusive os submetidos ao
imperialismo. O caráter incipiente da burocratização sindical é um dos
elementos para a não percepção da burocracia sindical num primeiro momento e a
mutação dos sindicatos abriu espaço para a sua presciência, que, no entanto,
devido ao processo que era ainda muito distante do que ocorreria
posteriormente, não se constituiu como uma consciência clara do fenômeno.
Uma outra manifestação da burocracia civil
que Marx teve presciência foi o partido político. A crítica de Marx, nesse
caso, teve dois obstáculos fundamentais para ser percebido. Um deles é o
significado que ele forneceu ao termo “partido” em contraposição ao uso comum
do termo, principalmente com a emergência dos partidos políticos modernos, que
surgem com a instauração da democracia partidária (VIANA, 2003). O outro
obstáculo foi a apropriação do pensamento de Marx por Lênin e sua
“bolchevização”, que se tornou sua interpretação dominante, tornando óbvio o
que nem sequer se manifestava em sua obra, uma concepção de partido político
formal e burocrático. Contudo, para demonstrar a presciência de Marx sobre a
burocracia partidária, apresentaremos alguns trechos de suas obras em que isso
se manifesta.
O primeiro elemento pode ser visto no
próprio Manifesto Comunista, no qual, na parte dedicada para criticar o
socialismo e comunismo críticos-utópicos, Marx contextualiza seu período de
nascimento, num momento em que o proletariado está em formação e, por
conseguinte, emerge as seitas que querem substituir a atividade autônoma e espontânea
do proletariado, bem como sua própria auto-organização, em planos e projetos
inventados por eles. Se no período do socialismo utópico isto era relativamente
progressista, no momento posterior, quando o proletariado já começa sua própria
luta e ação espontânea, tais seitas se tornam reacionárias. “Embora os
fundadores daqueles sistemas fossem sob muitos aspectos revolucionários, seus
discípulos formam sempre seitas reacionárias” (MARX e ENGELS, 1988, p. 97);
“pouco a pouco caem na categoria dos socialistas reacionários ou conservadores
acima descritos […], deles se distinguindo apenas por um pedantismo mais
sistemático e por uma fé fanática e supersticiosa na eficácia milagrosa de sua
ciência social” (MARX e ENGELS, 1988, p. 97).
Aqui Marx apresenta um processo de evolução
histórica daqueles que, não sendo proletários, querem se aliar ao proletariado:
do socialismo utópico ao socialismo conservador. Essa percepção, no entanto, já
aponta para algo mais: a percepção da formação de “seitas reacionárias”,
embriões de futuros partidos políticos, e já antecipa sua justificativa
ideológica: ser portador de uma ciência social, o que legitima e justifica a
direção do proletariado pelo partido. A fé fanática e supersticiosa na ciência
social revela que a chave para entender a burocracia partidária posterior, tal
como se observa em Lassalle, Kautsky, Lênin. A ironia de Marx aponta para a
concepção de controle e recusa do movimento espontâneo e independente do
proletariado: “por isso, opõem-se encarniçadamente a todo movimento político
dos operários, pois ele apenas poderia provir de uma cega falta de fé no novo
evangelho” (MARX e ENGELS, 1988, p. 97).
Sem dúvida, aqui a percepção da existência
de uma burocracia partidária ainda não se desenvolveu. Dois anos depois essa
presciência avança ao tratar dos “conspiradores profissionais”. Estes, por
serem “profissionais”, já mostram um processo de especialização e submissão à
divisão social do trabalho. Eles são “alquimistas da revolução”, segundo os
quais “a única condição para a revolução é que seu complô esteja organizado de
maneira suficiente” (MARX, 1974, p. 76). “Ocupados em imaginar esses projetos,
só pensam em derrubar de modo imediato o governo existente, enquanto guardam o
mais profundo desprezo pela educação propriamente teórica dos operários,
destinada a esclarecê-los sobre seus interesses de classe” (MARX, 1974, p. 76).
Tais “conspiradores profissionais”, quando unidos e armados, se familiarizam
com seus “prefeitos e oficiais”, formando um “corpo bastante turbulento”.
Porém, tal presciência se aprofunda com a
formação dos partidos políticos propriamente ditos. A Crítica ao Programa de Gotha é uma recusa do programa do partido
alemão e mostra as divergências entre as concepções marxista e lassalista
(MARX, 2012). Contudo, além desse processo de divergências intelectuais, há
algo mais e o próprio Marx esclareceu alguns destes pontos:
há
quase quarenta anos, colocamos em primeiro plano a luta de classes como força
motriz direta da história e, em particular, a luta de classes entre burguesia e
proletariado como a mais poderosa alavanca da revolução social. Portanto, é-nos
impossível caminhar junto com pessoas que tendam a suprimir do movimento esta
luta de classes. Quando fundamos a Internacional lançamos em termos claros seu
grito de guerra: ‘a emancipação da classe operária será obra da própria classe
operária’. Não podemos evidentemente caminhar com pessoas que declaram aos
quatro cantos que os operários são muito pouco instruídos para poder emancipar
a si mesmos, e que eles devem ser libertados pelas cúpulas, pelos filantropos
burgueses e pequeno-burgueses. Se o novo órgão do partido toma uma atitude que
corresponda às ideias destes senhores, se essa orientação é burguesa e não
proletária, não nos restará mais nada para fazer, por mais lamentável que seja,
do que debater abertamente e romper a solidariedade da qual demos prova até
agora, na qualidade de representantes do partido alemão no exterior (MARX, 1978b,
p. 30).
A posição de Marx é contra a concepção
lassalista, mas, ao mesmo tempo, é uma oposição de fundo, pois a perspectiva de
Marx é a autoemancipação do proletariado, tal como se vê na passagem acima
citada e por isso é contrária à ideia de que os proletários devam ser
libertados “pelas cúpulas”. Em Carta a
Sorge, Marx afirma a existência de um espírito malsão nos chefes do partido
e conclui:
O
compromisso com os lassalianos conduziu a um igual compromisso com outras
facções similares, particularmente (veja Most) com Dühring e seus
'administradores' e também com todo um bando de estudantes semiamadurecidos e
doutores ultrassabios que querem dar ao socialismo uma forma 'ideal superior',
ou seja, substituir sua base materialista (que exige um sério e objetivo estudo
quando se quer operar sobre ela) por uma mitologia moderna com suas deusas da
Justiça, da Liberdade, da Igualdade e da 'Fraternidade' (MARX, 1978b, p. 27).
Mas, voltando à Carta anterior, escrita
quatro anos antes da morte de Marx, ele afirma que é um processo evolutivo normal
que pessoas que tenham pertencido “à classe dirigente” e posteriormente se
ligam ao proletariado forneçam elementos de educação. Contudo, Marx afirma que
é necessário que forneçam “verdadeiros elementos de instrução” e não é isso que
ocorre, pois o que fazem é “conciliar as ideias socialistas mal e mal
assimiladas com os diferentes pontos de vista teóricos que esses senhores
trouxeram da Universidade ou de outras partes” (MARX, 1978b, p. 29), são
“criadores de ciências próprias” que logo buscam “ensinar” aos demais, e o
partido pode perfeitamente passar sem estes elementos, “cujo primeiro princípio
é ensinar aquilo que não aprenderam”. Uma outra exigência é que, quando pessoas
provenientes de outras classes se aliam ao movimento operário, “não tragam
consigo nenhum resquício de preconceitos burgueses ou pequeno-burgueses, mas
que assimilem sinceramente a concepção proletária” (MARX, 1978b, p. 29). Essas
pessoas, no entanto, “são impregnadas de ideias burguesas e pequeno-burguesas”.
É um direito deles formar um partido pequeno-burguês, mas não estar num partido
operário, onde eles são um “elemento estranho”.
Se
existem razões para tolerá-los, e impedir que tenham qualquer influência na
direção do partido e ter sempre em vista que a ruptura com essa gente é apenas
uma questão de tempo. Esse momento parece, aliás, ter chegado. Não
compreendemos como o partido ainda pode tolerar os autores deste artigo […].
Mas se essas pessoas chegam a tomar nas mãos a direção do partido, este será
castrado e privado para sempre de seu ímpeto revolucionário (MARX, 1978b, p.
30).
A posição diante dos partidos vai se
tornando cada vez mais crítica, sem, no entanto, criar uma concepção clara do
problema da burocracia partidária, apenas uma presciência desse processo. No
caso dos sindicatos, o seu papel limitado no processo de luta de classes e sua
burocratização já são percebidos e no caso dos partidos esta percepção é menos
visível. As razões disso remetem ao caso que os sindicatos ingleses, referência
fundamental de Marx, já estavam num processo mais avançado de burocratização,
pois se manifestava no país capitalista mais avançado da época, enquanto que os
partidos políticos surgiam um pouco depois e sua referência fundamental era o
Partido Socialdemocrata Alemão, em seu processo de nascimento e, portanto, com
um grau de burocratização ainda pequeno. Outro elemento é que no que se refere
aos sindicatos, havia uma separação cada vez maior entre suas concepções e a
teoria revolucionária de Marx, enquanto que no caso do partido alemão havia
influência do marxismo, principalmente na ala dos aliados de Marx e Engels que
realizaram a fusão com os lassalistas (e que eram mais distantes de ambos do
que eles pensavam e com o passar do tempo, os lassalistas foram substituídos
pelos “marxistas”, que, no entanto, realizaram os temores de Marx sobre a
posição dos chefes provenientes de outras classes sociais). Sem dúvida, o
caráter ainda incipiente dessa burocracia civil nascente foi um dos motivos
para tal, bem como, devido a isso, sua pouca importância política.
É por isso também que a classe burocrática
também não foi percebida pelos pretensos seguidores de Marx, a não ser com
raras exceções. As críticas ao Partido Socialdemocrata, por exemplo, eram
direcionadas geralmente aos líderes por serem burgueses e pequeno-burgueses e
isso vale até para os mais radicais e que depois romperam com a socialdemocracia
e com o bolchevismo, como Rosa Luxemburgo (LUXEMBURGO, 1986; VIANA, 2013),
Anton Pannekoek (2011) e outros. A grande importância política da burocracia
partidária foi essencialmente o reformismo e por isso foi confundido com
concepções burguesas e pequeno-burguesas. Até o sociólogo Robert Michels, em
sua obra clássica sobre os partidos políticos, que tematizou a “lei férrea da
oligarquia” e analisou a burocracia partidária, ainda caia em confusão ao
colocar que os partidos socialistas criam “camadas pequeno-burguesas” (MICHELS,
1982) ao invés de nomear corretamente: classe burocrática ou uma fração
específica dessa classe, a partidária.
A Abolição da Burocracia
A posição antiburocrática de Marx desemboca
na tese da necessidade de abolição da burocracia. Essa posição está explicitada
no conjunto da sua obra, desde as primeiras, tal como Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, até as suas últimas
obras. Nessa primeira obra Marx aponta para o fim da burocracia:
A
supressão da burocracia só é possível quando o interesse geral se transforma
realmente em interesse particular e não, como afirma Hegel, simplesmente no
pensamento, na abstração, onde tal só poderia acontecer quando o interesse
particular se transformasse em interesse geral (MARX, 1976, p. 74).
A supressão da burocracia é aqui
apresentada de forma abstrata, mas é reapresentada de forma mais concreta em Introdução à Crítica da Filosofia do Direito
de Hegel, na qual esboça o materialismo histórico e desenvolve, pela
primeira vez, sua teoria da luta de classes. Nesta obra afirma que toda classe
social que aspira se tornar classe dominante deve apresentar seus interesses
particulares como sendo os interesses gerais da sociedade, interesses
universais. No entanto, uma vez conquistado o poder, tal classe manifesta seus
verdadeiros interesses, particulares, a instauração de uma nova forma de
dominação. Na sociedade burguesa, contudo, emerge uma classe social na qual
interesses particulares e interesses universais são idênticos, e, portanto, a
sua revolução significa a emancipação humana em geral. Esta classe social é o
proletariado que ao se emancipar, liberta toda a humanidade, já que seu
objetivo não é instituir uma nova forma de dominação e sim abolir as classes
sociais em geral, inclusive a si mesma enquanto classe (MARX, 1968). Esta
concepção estará presente em outras obras e sempre ele aponta para a criação de
uma associação operária, livre associação de produtores ou autogoverno dos
produtores (BERGER, 1977), como forma de superação do Estado e sua burocracia[10].
Em obras posteriores, como no Dezoito
Brumário, A Guerra Civil na França, entre outras, retoma a ideia da
abolição da burocracia estatal. Na
primeira obra citada, ele afirma: que na “luta contra a revolução, a
república parlamentar viu-se forçada a consolidar, juntamente com as medidas
repressivas, os recursos e centralização do poder governamental. Todas
as revoluções aperfeiçoaram essa máquina ao invés de destroçá-la” (MARX,
1986, p. 114). Já no célebre texto A Guerra Civil na França, sobre a
revolução inacabada da Comuna de Paris, ele afirma que “Uma vez estabelecido o
regime comunal em Paris e nos centros secundários, o antigo governo
centralizado teria de dar lugar, inclusive nas províncias, ao autogoverno dos
produtores" (MARX, 2011, p. 13).
Assim, a posição antiburocrática de
Marx aponta para a abolição da burocracia estatal. No entanto, a ideia de
“livre associação dos produtores” é basilar em seu pensamento, o que significa,
evidentemente, a abolição da burocracia empresarial, mesmo porque esta existe
para servir ao capital e com o processo de revolução proletária, esta deixa de
existir. No que se refere aos sindicatos, Marx previa sua superação pela
associação política revolucionária do proletariado, o que, em outros textos,
chama de “proletariado organizado em partido político”, ou seja, como classe autônoma
e independente das demais classes sociais. A sua concepção é a de que ao invés
de lutar por melhores salários e diminuição da jornada de trabalho, a classe
operária já começa a perceber que o necessário é abolir o salariato e se tal
consciência se desenvolver no proletariado, os sindicatos “não gozarão muito tempo
do privilégio de serem as únicas organizações da classe operária. Ao lado ou
acima dos sindicatos de cada ramo da indústria surgirá uma união geral, uma
organização política da classe operária em conjunto” (MARX, 1980, p. 43). Essa
ideia da ação do proletariado como classe, ou em “conjunto”, a sua totalidade,
perpassa toda a concepção de Marx sobre abolição da burocracia, seja estatal ou
qualquer outra. É por isso que ele também afirma, ao criticar os “alquimistas
da revolução” que a lição que a corrupção destes deixou ao proletariado é que
“não basta uma parte do proletariado”, pois “só o proletariado em seu conjunto
pode levar a cabo” a revolução moderna (MARX, 1974, p. 77).
Nesse sentido, a ideia do proletariado
auto-organizado, como classe independente e autônoma (o que às vezes Marx
expressa como “organizado em partido político”, ou como “classe”), através de
sua “união geral”, de sua “associação”, é que se pode abolir o capitalismo e a
máquina estatal burocrática. E isso vale para as demais manifestações
burocráticas da sociedade civil.
Considerações Finais
O presente texto fez o percurso de mostrar
a análise marxista da burocracia numa época de pouco desenvolvimento dessa
classe. Marx conseguiu perceber e apontar a existência da classe burocrática,
mas não conseguiu prever todas suas manifestações futuras e nem conseguiu
identificar suas primeiras formas de existência na sociedade civil de forma
clara e consequente, inclusive devido seu caráter incipiente.
A obra de Marx foi produzida durante a fase
do capitalismo liberal, comandado pelo regime de acumulação extensivo[11],
período que antecede a verdadeira burocratização na instância da sociedade
civil, criando a “sociedade civil organizada”. A formação da burocracia na
sociedade civil ocorria de forma incipiente, constituindo a “fase A”, segundo
periodização de Lapassade (1989). A consolidação da burocracia na sociedade
civil, através de partidos e sindicatos, entre outras organizações, ocorre
durante a chamada “fase B” (LAPASSADE, 1989). Esse processo ocorre no
capitalismo oligopolista, comandado pelo regime de acumulação intensivo,
período em que Marx viveu parcialmente. É durante esse regime de acumulação que
expressa uma nova fase do capitalismo é que ocorre o processo de consolidação
da burocracia, ou a “fase B”, segundo Lapassade (1989).
A concepção de Marx sobre a burocracia
aponta para a formação de uma nova classe social da sociedade capitalista, cuja
primeira e fundamental manifestação é a burocracia estatal. A burocracia
empresarial é percebida também e uma presciência de outras formas de
manifestação da burocracia na sociedade civil ocorre, principalmente no caso de
partidos e sindicatos. A burocracia, como classe, tem o interesse em se
perpetuar e reproduzir, e, em alguns momentos históricos, busca implantar seu
próprio domínio. Entre suas características formais está a disputa por cargos,
o segredo, a hierarquia, etc.
A burocracia é uma classe auxiliar da
burguesia, pois é esta que, no fundo, detém o poder real, a palavra final, além
de estar a serviço desta. Enquanto classe social da sociedade capitalista, a
burocracia é uma classe de trabalhadores assalariados improdutivos. A sua renda
vem do Estado ou do capital. A partir da teoria marxista da produção de
mais-valor, que ocorre no processo de produção capitalista, e seu processo de
realização no mercado, o que promove a repartição do mais-valor global, temos
as raízes da renda das classes sociais improdutivas, tal como a burocracia. Os
seus rendimentos são oriundos do mais-valor produzido pelo proletariado, ou
seja, do processo de exploração capitalista. A realização do mais-valor no
mercado e, por conseguinte, a repartição do mais-valor global promove a
sustentação das classes improdutivas (VIANA, 2014).
A burocracia é produto da ampliação da
divisão social do trabalho e se amplia com o desenvolvimento desta. Ao ser uma
classe que serve ao capital, obviamente que não tem a simpatia de Marx, que a
considera uma “excrescência parasitária”. As diversas críticas de Marx deixam
claro sua oposição à burocracia. A sua defesa da abolição da burocracia deixa
isso mais que evidente. Desta forma, a posição de Marx diante da burocracia
nada tem a ver com as interpretações dominantes do seu pensamento. A conclusão
final só pode ser, após uma leitura rigorosa do pensamento de Marx, a de que
ele é essencialmente antiburocrático.
Referências
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[2] Para citar apenas um exemplo: “Marx
insiste no Tomo III de 'O Capital' sobre a aparição dos diretores, burocratas,
fiscais, na grande indústria, é o caso de perguntar se todos esses grupos não
podem unificar-se e se, mesmo sob a ditadura do proletariado, essa classe
virtual não poderia tornar-se parcial ou totalmente independente?” (GURVITCH,
1960, p. 115).
[3] “Todo o trabalhador produtivo é um
assalariado mas nem todo assalariado é um trabalhador produtivo” (MARX, 1982,
p. 111).
[4] A crítica de João Bernardo a Marx,
nesse quesito (assim como em outros, mas isso será discutido em outra
oportunidade), é totalmente equivocada. A suposta “não-concepção” dos gestores
em O Capital é destituída de sentido, a começar pelo isolamento de uma
obra, que focaliza o modo de produção capitalista e não a sociedade capitalista
como um todo, o que incluiria o Estado, que ficou incompleta, já que só o
primeiro volume foi publicado em vida por Marx. João Bernardo afirma que
“procurarei definir se Marx faz ou não corresponder ao Estado uma camada social
própria” (BERNARDO, 1977, p. 41) e ao isolar O Capital, desconsiderar
seu caráter incompleto (inclusive esquecer ou desconhecer que Marx pretendia
escrever um capítulo sobre o Estado e que não o pode fazê-lo devido esta
incompletude da obra), mostra apenas que o seu compromisso com a verdade é
passível de questionamento.
[5] “Ora, é evidente que o espírito do
Tribunal Administrativo tem que penetrar toda a Administração Indiana Superior,
treinada, como é, nas escolas de Addiscombe e Haileybury, e nomeada, como é,
pelo seu patrocínio. Não é menos evidente que este Tribunal Administrativo, que
tem que distribuir, ano após ano, nomeações no valor de cerca de £400 000 entre
as classes superiores da Grã-Bretanha, encontrará pouca ou nenhuma oposição por
parte da opinião pública dirigida por essas mesmas classes” (MARX, 1978a, p.
78).
[6] “A oligarquia envolve a Índia em
guerras, de forma a arranjar emprego para
os seus filhos mais novos; a plutocracia confia-a ao maior licitador; e a burocracia subordinada paralisa a sua
administração e perpetua os seus abusos, como condição vital para se perpetuar a si própria” (MARX, 1978a, p.
83).
[7] “Mas sob a monarquia absoluta,
durante a primeira Revolução, sob Napoleão, a burocracia era apenas o meio de
preparar o domínio de classe da burguesia. Sob a Restauração, sob Luís Felipe,
sob a república parlamentar, era o instrumento da classe dominante, por muito que
lutasse por estabelecer seu próprio domínio” (MARX, 1986, p. 114).
[8] Presciência aqui é um
desenvolvimento da ideia de “preconcepção”, que seria uma intuição ou uma
manifestação ainda não claramente consciente de uma percepção da realidade. Ao
invés de usar o termo “inconsciente”, que poderia provocar confusão com o uso
psicanalítico dessa palavra, preferimos o termo presciência. Em síntese,
presciência é uma consciência parcial e intuitiva que precede uma consciência
clara do fenômeno, o que pode ocorrer com um pensador antes dele mesmo avançar
no desenvolvimento de sua consciência ou antecipar de forma rudimentar o que
outros desenvolverão. A presciência pode ser mais ou menos elaborada, mais ou
menos desenvolvida, dependendo do caso. Pode ser também uma consciência
não-teórica que abre espaço para o desenvolvimento de uma teoria, sua forma
mais clara e desenvolvida, pois já consciente, apesar de sob uma forma ainda
rudimentar, ou envolvido em preceitos ideológicos ou outras formas de
consciência imaginária ou, ainda, muito preso ao imediato e particular.
[9] Não custa recordar aqui, que, ao
contrário da maioria dos escritos sobre Marx, principalmente na antiga União
Soviética e para determinadas concepções políticas (incluindo a obra aqui
citada de Losovski), que confunde Marx com Engels e interpreta o primeiro a
partir do que diz o segundo, partimos da concepção de que embora houvesse
pontos em comum entre ambos os autores, também existiam diversas diferenças e
que nenhuma interpretação do primeiro pode ser feita apelando para escritos do
segundo, a não ser quando fica explicitado e fundamentado que há concordância
entre ambos. As divergências entre Marx e Engels já foram tematizadas por
diversos autores (MONDOLFO, 1956; LABRIOLA, 1979).
[10]
Há uma interpretação dominante sobre a obra O Manifesto Comunista,
segundo a qual Marx faria uma defesa do estatismo e, segundo alguns, até mesmo
do burocratismo. A fonte de tal interpretação dominante é Lênin, que transforma
até mesmo o texto de Marx sobre a Comuna de Paris em obra que defende a
necessidade da burocracia (LÊNIN, 1987). Contudo, apesar de certa ambiguidade e
imprecisões, principalmente em relação à questão do Estado, não há nenhum
estatismo nessa obra, muito menos se entender no sentido da defesa de um processo
no qual se mantenha a burocracia estatal, pois Marx sempre defende a
perspectiva da luta de classes e do proletariado, como classe social, como o
concretizador da revolução e não grupos ou partidos.
[11]
Existem diversas teorias que trabalham com a tese dos regimes de acumulação,
mas apenas utilizamos a que consideramos mais adequada (VIANA, 2009; VIANA,
2003; BRAGA, 2013).
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Publicado originalmente em: http://www.revista.ueg.br/index.php/revistapluraisvirtual/article/view/5728/3951
Leia Mais:
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