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quarta-feira, 16 de novembro de 2016

O Marxismo Antidogmático de Karl Korsch


O Marxismo Antidogmático de Karl Korsch

Nildo Viana

Karl Korsch é um dos mais importantes pensadores da história do marxismo. A sua contribuição para o resgate do pensamento de Marx, deformado pela socialdemocracia e bolchevismo, e sua discussão sobre a dialética materialista, bem como outros aspectos do seu pensamento, são contribuições permanentes para a teoria marxista. Esse papel de enorme importância para o desenvolvimento do marxismo, no entanto, não recebeu o devido reconhecimento, obviamente pelo predomínio do pseudomarxismo expresso na socialdemocracia e no bolchevismo, duas posições criticadas por ele e em visível contradição com o mesmo. As suas obras foram fundamentais para se realizar outra interpretação do pensamento de Marx e aprofundar aspectos do marxismo e um dos elementos que se destaca em sua concepção é a busca de superação do dogmatismo. No presente artigo vamos discutir resumidamente seu pensamento e oferecer um destaque ao que ele denominou “marxismo não dogmático”, algo permanente em suas obras.
Karl Korsch nasceu em 1886 em Tolsted, Alemanha. Oriundo de uma classe social privilegiada, estudou direito, sociologia e filosofia.  Recebeu o título de doutor em Direito em 1911, pela Universidade de Iena. Morou na Inglaterra entre 1912 e 1914, praticando e estudando direito. Voltou à Alemanha graças à Primeira Guerra Mundial, sendo incorporado ao exército e ferido duas vezes. Até esse período ele era um simpatizante do socialismo fabiano e após a guerra torna-se socialista revolucionário, aderindo ao USPD (Partido Socialdemocrata Independente, dissidência recém formada do USP, Partido Socialdemocrata Alemão). Com a emergência da Revolução Alemã de 1918, ele radicaliza e adere à fusão dos socialistas independentes com os “comunistas” (KPD – Partido Comunista Alemão), sendo eleito deputado na época da República de Weimar, com a força dos conselhos operários e diversas tentativas de revoluções no período (a derrota final da revolução alemã foi praticamente em 1921, apesar de até 1923 ainda existir uma forte luta operária radicalizada). É nesse período da Revolução Alemã que ele produz algumas de suas principais obras e polêmicas, tal como Marxismo e Filosofia.
Korsch, a partir de 1924 torna-se professor titular na Universidade de Iena e nos anos seguintes um dos principais oposicionistas dentro do KPD, até sua expulsão em 1926. A partir de 1928 publica artigos e realiza outras atividades ligadas às posições de esquerda (comunismo de conselhos) e em 1933, com a ascensão do nazismo, é constrangido a mudar para a Inglaterra, onde atua como professor e escreve uma de suas obras mais importante, intitulada Karl Marx. Depois ele passa por diversos países, como a Suécia (morando perto do amigo alemão, o famoso teatrólogo Bertolt Brecht) e devido aos bolchevistas e falsas acusações de relações com Adolf Hitler, ele encontra dificuldades de permanência em um mesmo país e vive brevemente na Holanda e França, chegando aos Estados Unidos na segunda metade dos anos 1930. Nessa época, ele acompanha detidamente a última grande luta proletária antes da Segunda Guerra Mundial, a Revolução Espanhola, e apoia os anarcossindicalistas, bem como escreve vários artigos sobre a Guerra Civil na Espanha. Nos Estados Unidos, Korsch continua trabalhando e escrevendo, sendo que falece em 1961 neste país. Essa breve biografia serve para se ter uma noção mais contextualizada de sua produção que analisaremos a seguir.
A ideia de um marxismo não-dogmático emerge no pensamento de Korsch a partir de sua própria concepção de marxismo. A leitura que Korsch realiza do pensamento de Marx tem por base não somente uma análise rigorosa do mesmo, mas também uma formação erudita e um conhecimento aprofundado da obra de Hegel. Isto, sem dúvida, são as determinações formais do processo de constituição do marxismo de Korsch, que tem como determinação fundamental as lutas de classes, especialmente as revoluções proletárias do início do século 20 (especialmente a revolução alemã, da qual ele participou) e da Guerra Civil Espanhola, além da experiência da contrarrevolução fascista.
O impacto da luta de classes no pensamento de Korsch, aliado com sua leitura de Hegel e Marx, permitiu que ele apresentasse uma concepção de marxismo bem distinta da existente em sua época e que foi hegemônica graças à socialdemocracia e ao bolchevismo. A concepção hegemônica de marxismo remetia ao problema da ortodoxia e esta, tal como no mundo nebuloso da religião, remetia aos escritos sagrados, especialmente de Marx e Engels (sem diferenciação entre ambos). Assim, após a morte de Marx, o intérprete autorizado passou a ser Engels e, com a morte deste, a sua autoridade foi transferida para Karl Kautsky, pelo menos até 1914, depois disso esse papel é atribuído a Lênin, não sem resistências e heresias. Posteriormente, Trotsky e Stálin disputariam o “anel verdadeiro”, agora do novo dogma chamado “marxismo-leninismo” e ao lado de Marx e Engels, os textos de Lênin também seriam sacralizados (e novamente sem diferenciação).
A concepção de Korsch, retoma o materialismo histórico, e por isso resgata a importância da luta de classes e do movimento revolucionário do proletariado para entender o marxismo. Já no início dos anos 1920, ele busca compreender o que é o marxismo, não apenas lendo os escritos de Marx e Engels, mas através da compreensão do seu conteúdo e de sua formação histórica concreta. Em sua grande obra, Marxismo e Filosofia, conjunto de ensaios publicados posteriormente como livro, ele em sua polêmica com a socialdemocracia coloca a essência do marxismo: “expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado” (Korsch, 1977). Ou seja, o marxismo não é a obra de Marx e não é com leituras dogmáticas e citações deste autor que se compreende a realidade e realiza a luta proletária. Isso não deve fazer cair no erro oposto de pensar que a obra de Marx não tem nenhum significado ou importância. Obviamente que se a obra de Marx expressa teoricamente o movimento revolucionário do proletariado, então é o ponto de partida e elemento fundamental para o avanço da luta proletária e a compreensão da realidade da sociedade capitalista. O que muda aqui é que não se trata mais de apenas ler e citar Marx, é preciso entender os seus escritos e seu vínculo com a luta revolucionária do proletariado e entender esta e a luta de classes para avançar o pensamento marxista.
O dogmatismo criticado por Korsch consiste no processo de buscar resolver as questões práticas, entender a realidade, tão-somente com citações de alguns autores ou obras, sem uma análise mais profunda da mesma, sem contextualizá-la e ver de qual classe é expressão, e também sem entender sua historicidade e que diante de mutações das lutas de classes é preciso ir além dos escritos passados. É por isso que ele opunha, inspirando-se em Hegel, por um lado, a ideologia, pensamento congelado de uma época, e, por outro, a teoria, expressão da realidade (Gombim, 1972). Essa nova concepção de marxismo, oposta à concepção socialdemocrata e leninista (que Korsch, nos anos 1920, ainda não terá consciência até receber as críticas dos bolchevistas), que o compreende como um pensamento petrificado composto por teses fixadas e separadas (“filosofia materialista”; “doutrina econômica”, etc.), enfatizará o caráter crítico revolucionário do marxismo e seu vínculo indissolúvel com a luta revolucionária do proletariado, rompendo com toda ideologia científica pretensamente neutra e objetiva. Korsch retoma algumas categorias fundamentais da dialética materialista, tal como totalidade e historicidade, o que entra em contradição com os dogmatismos pseudomarxistas existentes. Nesse sentido, o pensamento de Korsch adquire uma radicalidade que já se encontrava em Marx, mas em outro contexto histórico e diante de outras problemáticas, inclusive da própria domesticação do marxismo nas universidades e partidos políticos.
Korsch sintetiza, em um texto bem posterior, justamente intitulado Uma Aproximação Não Dogmática ao Marxismo, sua oposição ao dogmatismo e o caráter de sua concepção não dogmática, remetendo ao problema da dialética:
“O primeiro resultado não dogmático desta forma distinta de considerar a dialética é que o estudo da dialética não nos converte em revolucionários, mas que, pelo contrário, é a transformação revolucionária da sociedade que atua entre outras coisas sobre o modo como os homens de determinado período tem a produzir e mudar seus pensamentos. A dialética materialista é, pois, o modo como em um determinado período revolucionário, e durantes as várias fases desse período, classes sociais, grupos e indivíduos particulares, criam e assumem novas palavras e ideias. É a busca das formas, frequentemente desusadas e surpreendentes, como vinculam seus pensamentos e os de outros, colaboram na dissolução de sistemas fechados existentes e os substituem por sistemas mais flexíveis, ou, no melhor dos casos, por nenhum sistema, mas por um novo movimento de pensamento livre, sem impedimentos, que atravessa rapidamente as fases mutantes de um processo mais ou menos continuou ou descontínuo (Korsch, 1982, p. 480).
A posição de Korsch se coloca frontalmente contra a concepção de dialética petrificada com suas “leis”. Este é o motivo pelo qual ele compara Hegel e Marx, apresentando o primeiro como expressão da revolução burguesa, após a restauracao, e o segundo como expressão da revolução proletária. O pensamento dialético é um pensamento revolucionário, inclusive formalmente (Korsch, 1979). Esse pensamento revolucionário é derivado de sua época e das classes em luta. É por isso que, ao discutir a filosofia de Hegel, Korsch afirma que “com a evolução posterior da sociedade burguesa inevitavelmente desaparece também na filosofia e ciências burguesas, uma vez cumprida sua tarefa revolucionária, o método dialético revolucionário” (Korsch, 1979, p. 144).
A fluidização dialética produzida por Hegel acompanha o movimento revolucionário de sua época, bem como seus limites, pois “não é uma filosofia da revolução burguesa em geral, mas da revolução burguesa dos séculos 17 e 18” (Korsch, 1979, p. 144) e não expressa ela em sua totalidade, mas sua conclusão final, não sendo a filosofia da revolução e sim da restauração. Korsch conclui:
“Esta dupla caracterização histórica aparece formalmente em uma dupla limitação do caráter revolucionário da dialética hegeliana: a) a dialética hegeliana, apesar da fluidização dialética de todas as cristalizações encontradas, produz como resultado uma nova cristalização: a absolutização do método mesmo e portanto de todo o conteúdo dogmático do sistema filosófico construído por Hegel sobre ele; b) a parte revolucionária contida na formulação do método dialético é artificialmente acomodada por Hegel na síntese até a “circularidade”, na restauração conceitual da realidade dada imediatamente e na conciliação com essa realidade, transfigurada do existente” (Korsch, 1979, p. 145).
O pensamento de Marx, ao contrário, retoma o caráter crítico e revolucionário da dialética (Korsch, 1977; Korsch, 1983). Essa retomada não se deve, obviamente, à genialidade de Marx (embora sua formação intelectual e erudição lhe permitiram constituir uma versão complexa e profunda que seria difícil ocorrer sem estas determinações, mas Korsch não realiza tal discussão) e sim à emergência do movimento revolucionário do proletariado. Essa vinculação de Marx e marxismo, por um lado, e movimento revolucionário do proletariado, por outro, chave do marxismo não dogmático de Korsch, já tinha sido anunciado pelo próprio Marx. Em vários momentos Marx anunciou que partia do ponto de vista do proletariado (Marx, 1988), que os teóricos do proletariado eram os comunistas (Marx, 1986) e que o socialismo utópico era uma expressão frágil de um momento em que o proletariado ainda não se constituiu como classe autodeterminada (Marx e Engels, 1988), o que Engels irá aprofundar posteriormente (Engels, 1980).
Nesse sentido, o caráter crítico revolucionário do marxismo é derivado de seu vínculo com o movimento revolucionário do proletariado e não devido às obras ou crenças cristalizadas. Marx se vincula à revolução proletária e por isso o método dialético assume, em suas obras, um caráter crítico-revolucionário.
Korsch sempre partiu do marxismo não dogmático para criticar a socialdemocracia, e, especialmente, Karl Kautsky (1971), tal como fez em várias oportunidades. Em certo período ele falou em nome do leninismo[1]. No fundo, a sua concepção de leninismo era bastante superficial. Ele concebia Lênin como um teórico dos sovietes e defensor dos mesmos. Essa era a imagem do bolchevismo na Europa, naquela época e com os meios de comunicação daquele período e a situação de oposição à Rússia e período de repressão e guerras. A sua percepção do leninismo foi se alterando. O seu combate na III Internacional contra os leninistas era feito em nome do leninismo e dos sovietes (conselhos operários). Korsch defendeu um Lênin ideal inexistente e os leninistas, que eram muito mais conhecedores e próximos das concepções leninistas, eram criticados por ele e um dos argumentos é que eles estariam em contradição com a teoria e prática do líder bolchevique.
Contudo, foi somente depois das críticas à obra Marxismo e Filosofia e a tradução de algumas obras de Lênin, tal como Materialismo e Empireocriticismo (1978), é que Korsch irá reavaliar o leninismo e qualificá-lo de “ideologia”, pseudomarxismo, ou, como às vezes colocava, marxismo, mas muitas vezes entre aspas. A sua percepção do verdadeiro caráter do leninismo gerou uma forte crítica ao mesmo, desde o Prefácio ao livro Marxismo e Filosofia, intitulado sugestivamente de Anticrítica, até seus escritos posteriores. No entanto, apesar de sua crítica ao leninismo, ainda manteve uma certa percepção ligada ao período hegemônico do leninismo mais radical (anterior ao stalinismo) e assim às vezes apresentava uma interpretação problemática na qual demonstrava acreditar em algum vínculo da obra de Lênin com Marx. Isso promoveu interpretações problemáticas do pensamento deste último, tal como a atribuição de jacobinismo (Korsch, 1979) e até mesmo “centralismo” (Korsch, 2011a; Korsch, 2011b), na análise da Comuna de Paris (Marx, 2011), influenciado pela interpretação leninista (Lênin, 1987; Viana, 2011a; Viana, 2011b).
Sem dúvida, além da influência da interpretação leninista, outra determinação para a leitura equivocada de Marx é fruto do antidogmatismo de Korsch. Nesse sentido, a crítica a Marx é uma demonstração de antidogmatismo. Contudo, o antidogmatismo pode virar o seu contrário ao se tornar um dogma ao invés de um antídoto contra o dogmatismo. Ou seja, com a intenção de ser antidogmático é possível exagerar a necessidade de crítica e desvinculação com o pensamento de um autor que é fundamental para a luta revolucionária, o que pode provocar discordâncias nem sempre com razão. Mesmo assim, as motivações de Korsch eram muito mais nobres do que as de outros, tais como aqueles que pretendem criticar Marx para substituí-lo, ou, como diria Freud, para “matar o pai” para ficar em seu lugar.
A proposta de um marxismo não dogmático reinsere essa concepção numa percepção que resgata a historicidade e a totalidade. O princípio do antidogmatismo de Korsch pode ser resumido na ideia defendida em Marxismo e Filosofia: “aplicação do materialismo histórico ao próprio materialismo histórico”. O que Korsch pretende com isso é defender a coerência do marxismo. Esta concepção realizou a desmistificação das ideologias e de todas as formas de consciência, que passaram a ser compreendidas como produtos sociais e históricos. Marx expôs isso em várias oportunidades e sintetizou em algumas fórmulas: “não é a consciência que determina a vida, mas a vida é que determina a consciência” (Marx, 1983). O mesmo disse Korsch em relação à dialética, que foi coisificada pelos pseudomarxistas, tal como na citação que realizamos anteriormente. Inclusive Korsch, assim como Lukács, Labriola, Mondolfo e outros, perceberam as diferenças entre o pensamento de Marx e Engels, especialmente no caso da dialética, dogmatizada e hegelianizada por este último. Quando Marx e Engels eram autores acima da crítica, Korsch não sucumbiu a este dogmatismo e apresentou uma concepção de dialética inspirada em Marx e em contraposição a Engels, embora nem sempre tenha admitido isso (Korsch, 1977).
Korsch não somente defendeu o princípio de aplicação do materialismo histórico ao marxismo, como o colocou em prática em Marxismo e Filosofia. Ele analisou a história do marxismo à luz da história do movimento revolucionário do proletariado e no conjunto da totalidade da luta de classes. Nessa análise, ele identificou três períodos na história do marxismo: o primeiro, o nascimento do marxismo como teoria revolucionária, quando o movimento operário havia avançado e radicalizado e Marx e Engels produziram obras fundamentais; o segundo, marcado após 1848 pelo recuo do movimento operário e nascimento da socialdemocracia; o terceiro, marcado pela retomada do movimento operário revolucionário e surgimento das obras de Rosa Luxemburgo e Lênin. Na sua Anticrítica, Korsch faz uma alteração nessa periodização no sentido de retirar Lênin, pois este era um representante da segunda fase e não da terceira, logo, sua posição era não marxista.
Esse procedimento analítico também foi utilizado para analisar outras tendências posteriores, A sua crítica a Stálin e Trotsky comprova isso. A base dessa crítica era a constatação, de certo modo óbvia, que tanto um quanto o outro bebiam na mesma fonte, a ideologia leninista. Esta não passava de um “instrumento legitimador” da União Soviética, fundada na escravização do proletariado, onde supostamente existiria “socialismo”[2]. Daí sua tese da necessidade de “ruptura total e imediata com o leninismo que – à margem do caráter que tivera no passado – se converteu atualmente em seu conteúdo e função em uma ideologia de estado aparentemente sem classes, porém, na realidade, burguesa e antiproletária” (Korsch, apud. Kellner, p. 66). Em seu artigo sobre A Crise do Marxismo, ele demonstra que o marxismo se encontra numa situação difícil devido ao movimento operário estar na mesma situação. O recuo do movimento operário significa o recuo do marxismo.
O combate ao leninismo e suas variantes é uma exigência revolucionária fundada no princípio da totalidade. Ao invés de conceber – como muitos pseudomarxistas e materialistas mecanicistas – as ideias como meros epifenômenos, Korsch compreendia que elas fazem parte da totalidade e atuam sobre ela, o que significa que as ideias são parte da luta de classes. É exatamente devido ao princípio da totalidade que Korsch afirmou que a luta de classes ocorre em todos os lugares (1973).
Em sua obra intitulada Karl Marx, ele aprofunda a concepção de especificidade histórica.  Ele mostra que para o pensamento de Marx, um elemento fundamental é o reconhecimento da especificidade de cada momento histórico, de cada modo de produção. Esse princípio contribui para entender o próprio marxismo, e a refutação do seu caráter de ciência e de filosofia, ocorre nesse bojo, pois a ciência é um produto social e histórico em contradição com o marxismo, da mesma forma que as filosofias especulativas. A expressão “socialismo científico” deve ser entendida em um uso específico e amplo, pois Marx não usava ciência no sentido habitual e hegemônico e sim no sentido hegeliano, um saber totalizante da realidade (sem a pretensão ideológica de construir “ciências particulares”, neutralidade, etc.). É por isso que ele afirmou que o marxismo não é uma ciência, “no sentido burguês do termo” (Korsch, 1977).
Nos seus últimos escritos, ele discutia o marxismo em termos críticos, de acordo com seu princípio antidogmático. Isso foi suficiente para alguns pseudomarxistas afirmarem que ele “abandonou o marxismo”. Isso se deve, em parte, ao seu texto sobre O Marxismo Hoje, no qual afirma ser reacionário querer restaurar a doutrina social de Marx e Engels e ressalta a importância de outras tendências socialistas, tais como o socialismo utópico e o anarquismo. Contudo, esse suposto abandono do marxismo é, no fundo, uma abordagem dogmática que se preocupa mais com as palavras do que com as coisas. Em seu último texto, O Tempo das Abolições, escrito após O Marxismo Hoje, ele coloca a necessidade de abolição do modo de produção capitalista, do Estado, do capital, do trabalho alienado. Ou seja, defende os princípios fundamentais do marxismo e da revolução proletária, elementos para ele inseparáveis.
É por isso que o vínculo político de Karl Korsch foi com o chamado “comunismo de conselhos”, tendência que emerge a partir das revoluções proletárias do início do século 20 através da formação dos conselhos operários e que expresssou aquele momento da luta revolucionária do proletariado contra as concepções supostamente marxistas expressas no reformismo socialdemocrata e no bolchevismo russo. Esse “marxismo” dos partidos políticos, dogmático, encontrou a oposição do movimento operário revolucionário e de sua expressão política e teórica, o comunismo conselhista. Sem dúvida, foi devido a estas revoluções que houver a ruptura entre “comunistas de partido”, tendência burocrático vanguardista e dirigista, e “comunistas de conselhos”, tendência que defendia a auto-organização e autoemancipação do proletariado. Sem dúvida, a última tendência resgatava o caráter crítico e revolucionário do marxismo e por isso estava mais de acordo com as ideias de Karl Marx. Korsch estava envolvido nesse processo de luta de classes, mas demorou algum tempo para romper e perceber a contradição entre teoria e prática nas concepções que ele denominou “pseudomarxistas” e ao perceber isso passou a se aproximar dos vários grupos remanescentes do comunismo de conselhos e realizar publicações nas revistas editadas por tais grupos, além de manter contato com Pannekoek e Mattick, dois dos principais teóricos dessa tendência. Por fim, é suficiente perceber que Korsch nunca abandonou seu princípio de que o marxismo é crítico-revolucionário e não dogmático, e apesar de algumas mutações no seu pensamento, manteve a coerência que exigia da concepção marxista e daí seu vínculo e proximidade com as tendências libertárias de sua época.


Referências

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ENGELS, F. Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. São Paulo: Global, 1980.
GOMBIN, Richard. As Origens do Esquerdismo. Lisboa, Dom Quixote, 1972.
KELLNER, D. El Marxismo Revolucionário de Karl Korsch. México, Premia, 1981.
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_____, K. El Joven Marx como Filósofo Activista. In: SUBIRATS, E. (org.). Karl Korsch o el Nacimiento de uma Nueva Época. Barcelona, Anagrama, 1973.
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MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo, Hucitec, 2002.
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_____, N. Karl Korsch e a Concepção Materialista da História. Florianópolis: Bookess, 2012.
_____, N. O Que é Marxismo? Rio de Janeiro, Elo, 2008.



[1] Isso foi suficiente para intérpretes apressados e nominalistas encontrarem uma “fase leninista” do pensamento de Korsch (Kellner, 1982; Buckmiller, 1973). Isso foi analisado e criticado mais pormenorizadamente em outra obra (Viana, 2012).
[2] Korsch foi um dos diversos autores marxistas que compreendia que a União Soviética era, no fundo, um capitalismo de Estado, nada tendo a ver com o comunismo. Quanto à ideia de “socialismo”, essa foi uma invenção leninista inexistente no pensamento de Marx e que, obviamente, não ocupou o pensamento de Korsch.
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