O QUE
SÃO MINORIAS?
Nildo Viana
O termo “minoria” voltou a ser utilizado contemporaneamente
após um bom tempo em desuso. O resgate do termo não é gratuito. A razão de ser
desse resgate é uma resposta para uma necessidade intelectual e política, coisas
que sempre andam juntas. Desde o seu surgimento, a noção de “minorias” nunca
foi muito clara e as definições muito menos. Esta noção nunca foi desenvolvida
a partir de uma base teórica e por isso nunca ultrapassou esse limite. Ela sempre
foi uma noção e não conseguiu se elevar ao nível de um conceito ou um construto[1].
Esse termo é compreendido sob duas formas distintas entre
aqueles que o utilizam. Para uns, as minorias são definidas quantitativamente,
ou seja, é uma minoria da população ou do Estado-nação[2]. Essa
definição de minorias é apenas descritiva e não possui relevância teórica. Não
é essa noção de minoria que o discurso jurídico e algumas concepções políticas vêm
retomando ultimamente. É uma outra concepção de minoria. É a que alguns chamam
de “minorias sociais” ou “minorias sociológicas”, visando diferenciar essa noção
do termo usado pela linguagem cotidiana e com significado descritivo e
quantitativo. Alguns usam simplesmente “minorias” (CHAVES, 2016), outros tentam
fugir do significado descritivo e quantitativo com o acréscimo de outro termo: “social”
ou “sociológico”. No entanto, mesmo nesses casos se continua nos limites de uma
noção. A ideia de minoria social se confunde com a de minoria nacional, que é
descrita como sendo grupos étnicos, religiosos, que seriam minorias no interior
de um determinado Estado-nação. Esse termo, além de continuar sendo
quantitativo e descritivo, nada acrescenta à discussão. A noção de “minorias
sociológicas”, por sua vez, não passa de produto da imaginação sociológica,
sendo que o termo imaginação, aqui, é mais no sentido de uma fantasia. Nesse
caso apenas se acrescenta um termo que é supostamente científico, por ser manifestação
de uma ciência particular, a sociologia, e assim se considera que se
desenvolveu uma concepção científica. As minorias sociológicas não passam de
fantasia sociológica. A cientificidade dessa construção lexical é inexistente e
se revela um cientificismo sem base científica.
O problema da maioria dos que insistem em usar tal termo é
querer encaixar a realidade nele. O termo ganha, assim, um caráter
classificador. O classificador, que pode ser um sociólogo adepto da criação de
tipos ideais, usa o termo e classifica aqueles que se enquadram no mesmo. As
minorias, segundo se pode ver através dos classificadores, são as mulheres,
negros, deficientes físicos, entre inúmeros outros. As mulheres, no entanto,
não são minoria no sentido quantitativo. Então seria “minoria” em qual sentido?
Em discriminação ou acesso ao poder, respondem alguns. Isso vale para todas as
mulheres? Margareth Thatcher foi discriminada e nunca teve acesso ao poder? Os
exemplos para diversos outros grupos classificados como “minorias” poderiam ser
citados. Acesso ao poder é determinado pela classe social e não por pertencimento
a grupos, embora, obviamente, indivíduos de alguns grupos tenham maior
dificuldade de acesso, o que geralmente ocorre, no entanto, mais por
pertencimento de classe do que de grupo. Outros grupos são minoritários no
sentido quantitativo e estão bem próximos do poder, como os maçons. De qualquer
forma, inúmeros outros grupos, além dos já citados, poderiam – e são – considerados
minorias – seja pelo critério quantitativo ou supostamente “sociológico”, como
os ciganos, crianças, idosos, ateus, homossexuais, “loucos”, etc. Isso se
complica ao reconhecermos que existiriam “minorias relativas”, pois alguns
grupos são “minorias” em determinados países e lugares, e são “maiorias”, em
outros, como judeus, nordestinos, etc. Além
disso, cada um desses grupos pode ser subdividido em diversos subgrupos. O
sistema classificatório de “minorias” é não só impreciso e inútil, como traz
mais problemas do que solução.
Nesse sentido, essa noção não tem utilidade na pesquisa e
análise da sociedade e, por conseguinte, os termos “minorias”, “minorias
sociais” e “minorias sociológicas” devem ser descartados. De certa forma, isso
já foi feito, pois apesar de sua longevidade, nunca se desenvolveu ao ponto de
se tornar um conceito ou um construto. Os usos desses termos são realizados
mais no âmbito jurídico e em contextos de pouco desenvolvimento científico. O
termo produz uma homogeneização que é inexistente na realidade (são grupos
muito distintos, com problemas, especificidades, condições de vida,
possibilidades de ação, diferentes, em alguns casos com grau elevado grau de
diferença).
Qual termo deve ser usado em seu lugar? Nenhum termo, pois
se ele não expressa nenhuma realidade, então não deve ser usado, nem
substituído. Deve simplesmente ser abandonado. Para casos concretos, é possível
usar termos que expressam sua concreticidade. Se quisermos abordar um grupo
social que sofre opressão, então se trata de grupo oprimido e se for mais de
um, devemos usar o plural. Se quisermos abordar grupos que sofrem segregação,
são grupos segregados. Os diversos grupos geralmente enquadrados como
“minorias” (e outros poderiam ser acrescentados e muitas vezes o são por
determinados classificadores) não são todos “oprimidos”, “segregados”,
“discriminados”, etc. Alguns não são como grupo, pois uma coisa é segregar um
indivíduo pertencente ao grupo X por razões individuais, outra coisa é segregar
todos do grupo por pertencer a ele. A situação dos judeus na Alemanha nazista é
bem distinta dos judeus em Israel ou nos Estados Unidos. A situação das
crianças tende a ser problemática em quase todos os lugares e épocas. Cada
grupo social concreto possui uma concreticidade que o termo “minorias” não
consegue abarcar e por isso sua definição sempre foi difícil e problemática.
O uso do termo “minorias” pode, em muitos casos, aparecer
para substituir classes sociais. Eis aqui uma questão importante. Um termo
genérico como “minorias” coloca em evidência uma divisão social, entre
“maioria” e “minoria” e deixa de lado a questão das classes sociais. No plano
das classes sociais, o condenável não é a maioria e sim a minoria, a classe
dominante. Mesmo quando se acrescenta a esta as suas classes auxiliares
(burocracia e intelectualidade), continua sendo minoria. A maioria é composta
pelas classes desprivilegiadas (proletariado, lumpemproletariado, subalternos,
camponeses, artesãos, etc.). O uso do termo minorias confunde essa situação e
ofusca não só as diferenças de grupos sociais, mas entre os grupos,
homogeneizando o que não é homogêneo. A homogeneização dos grupos é acompanhada pela homogeneização nos grupos. Assim é possível dizer que as mulheres burguesas são
parte de uma minoria, mesmo que subordine e até humilhe outras mulheres, como
pode fazer, por exemplo, com as trabalhadoras domésticas. Ao pertencer a essa
“minoria”, ela passa a ser vista como “oprimida”, tanto quanto as demais
integrantes do mesmo grupo, e o opressor é a “maioria”, no caso os homens. Da
mesma forma, as crianças burguesas são tão oprimidas quanto as crianças
proletárias e lumpemproletárias. As crianças norte-americanas, que individualmente
consomem 50 vezes mais que as crianças da Índia, são tão oprimidas quanto
estas. Afinal, elas são crianças e assim elas são pertencentes ao mesmo grupo
oprimido[3].
É aqui que entendemos que o discurso sobre as “minorias” é
produto de uma necessidade política e não mera necessidade intelectual ou simplesmente
produto da falta de rigor e cientificidade. Sem dúvida, também existem aqueles
que usam tais termos sem maior reflexão ou com boa intenção, mas sem a
suficiente reflexão crítica necessária no caso da produção intelectual. A
origem do uso jurídico internacional do termo data de 1947, sem definição do
mesmo, e cai em desuso e aparece poucas vezes nas décadas seguintes. O seu
retorno ocorre com a renovação da hegemonia burguesa que se inicia nos anos
1980 e se consolida nos anos 1990, a época do “pensamento único”[4]. A
ONU (Organização das Nações Unidas), como não poderia deixar de ser[5], é
a responsável pela retomada do termo em 1992: “em 18 de dezembro de 1992, a
Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Declaração sobre os Direitos de
Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e
Linguísticas” (MORENO, 2009, p. 144). Aqui se juntam as necessidades da
renovação hegemônica burguesa e interesses geopolíticos dos países
imperialistas.
Em síntese, a luta em torno dos signos (BAKHTIN, 1990) se
reproduz cotidianamente no mundo da produção cultural, especialmente no caso
das esferas sociais (nesse caso específico, nas esferas científica e jurídica).
O abandono do uso de noções reprodutoras da hegemonia burguesa é uma
necessidade, bem como sua compreensão, crítica e, quando necessário e possível,
elaboração de alternativas. Por fim, é preciso compreender que a noção de “minorias”
é uma criação fantasmática destituída de realidade concreta e que por isso deve
ser superada.
[1]
Sobre “noção”, “conceito” e “construto”, cf. Viana (2007). Basta recordar, para
os nossos objetivos aqui, a diferença entre linguagem cotidiana e linguagem
noosférica (ou seja, a linguagem complexa manifesta na ciência, filosofia,
marxismo, etc.). A noção é um esboço de um conceito ou um construto, sendo um
intermediário entre linguagem cotidiana e linguagem noosférica. A linguagem
noosférica é composta por conceitos, signos complexos que expressam a
realidade, ou construtos, signos complexos que deformam a realidade, sendo que
o primeiro é parte de uma teoria (um universo conceitual), e o segundo é parte
de uma ideologia (um sistema construtal).
[2] Esse
significado quantitativo e meramente descritivo também é usado para se tratar
de outras “minorias”, relativas a outros processos comparativos (pois minoria
sempre é comparada com “maioria”), tal como quando é o caso de minoria
parlamentar, minorias revolucionárias, etc.
[3] Da
mesma forma, os adultos são todos opressores (e curiosamente temos aqui as
mulheres, negros, ciganos, ateus, judeus, e mais uma infinidade de grupos como
oprimidos em determinadas relações e opressores em outras relações). Obviamente
que nenhum adulto ainda escreveu isso, pois seria pouco provável, e nem as
crianças, pois elas não geraram um movimento social por sua situação de grupo
social. Por isso os ideólogos não fizeram nenhuma denúncia sobre a “opressão
infantil” e a “dominação adulta” e nem geraram nenhum maniqueísmo nesse caso.
[4]
“Após os dramáticos acontecimentos na ex-União Soviética e na ex-Iugoslávia, ou
seja, após o colapso dos regimes comunistas, o tema minorias voltou a se
destacar na agenda internacional, situação que não ocorria desde o período
entreguerras (quando o debate se deu no âmbito da Liga das Nações)” (MORENO,
2009, p. 143). Assim, a crise do capitalismo estatal e a emergência do pensamento
único marcam a consolidação da nova hegemonia burguesa e da retomada da noção de
minorias, embora sem o impacto que outros elementos ideológicos e hegemônicos adquiriram
posteriormente.
[5] Ao
contrário da imagem idílica da ONU e outros organismos internacionais, como a
UNESCO (Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura), elas não são defensoras dos interesses
dos “oprimidos”, muito menos das classes desprivilegiadas. Esses organismos
internacionais são grandes organizações burocráticas a serviço dos países
imperialistas, do capital oligopolista transnacional e dos seus próprios interesses.
Aliás, a denúncia de envolvimento de funcionários da ONU com o tráfico
internacional de mulheres – e ela deveria ser uma das principais instituições
de combate a tal tráfico – revela um pouco do seu caráter. O que a ONU e outros
organismos internacionais fazem é o mesmo que o Banco Mundial e FMI, só que em
outra instância e de outra forma.
Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 5ª edição, São Paulo: Hucitec,
1990.
CHAVES, L. G.
Minorias e seu Estudo no Brasil. Revista
Ciências Sociais. vol. 2, num. 1, 1971. http://www.rcs.ufc.br/edicoes/v2n1/rcs_v2n1a8.pdf
MORENO, Jamile. Conceito
de minorias e discriminação. Revista USCS
– Direito, ano 10, num. 17 – jul./dez. 2009.
VIANA, Nildo. A Consciência da História. Ensaios Sobre
o Materialismo Histórico-Dialético. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.
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