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segunda-feira, 8 de agosto de 2016

A “ESCOLA SEM PARTIDO” COMO DISPUTA PARTIDÁRIA


A “ESCOLA SEM PARTIDO” COMO DISPUTA PARTIDÁRIA

Nildo Viana

Vem ganhando espaço a discussão sobre o projeto de lei “Escola sem Partido”. O nome pode enganar e ocultar o que realmente está em jogo. Ao mesmo tempo, traz à tona uma discussão que precisa ser realizada, apesar de que isso não será feito da forma como deveria. No fundo, o que está por detrás do projeto da “Escola sem Partido” é uma determinada posição política, que reúne vários partidos e concepções, que visa atacar outra posição política, que também reúne vários partidos e concepções. No fundo, o projeto de uma “Escola sem Partido” é tão-somente luta de determinadas forças políticas e sociais contra outras, o que significa que o debate em torno desse projeto é uma disputa de partidos, muito mais do que o enganoso discurso de deixar os partidos de lado no processo educacional.

O projeto da “Escola sem Partido” só surge no Brasil. Eis algo fantástico e como o complexo de falta de originalidade dos brasileiros pode agora ser superado, bem como em seu lugar aparece a fantástica vergonha mundial de uma originalidade que mostra o péssimo nível cultural e educacional do país. Seja original, mesmo que seja vergonhoso! O projeto, ao contrário do que o nome propõe, não está questionando a ação ou influência de partidos políticos na escola e sim de determinados partidos. Se alguém barra um partido, então beneficia outro, a não ser que todos fossem barrados. E não são apenas “partidos” que são barrados, mas também concepções, moral, etc.[1] Assim, é fundamental entender quais são os interesses e responsáveis pelos dois lados litigiosos e como esse projeto “original” e “pioneiro” surgiu historicamente.

De um lado, temos o bloco dominante, hegemonicamente conservador, e, por outro, o bloco progressista, que agora conta com o PT – Partido dos Trabalhadores, como novo componente depois de sua expulsão do primeiro bloco. O filho pródigo retorna ao lar progressista. O responsável indireto é o próprio PT. No Brasil, os governos petistas se sucederam e realizaram um processo de aparelhamento partidário do aparato estatal e usaram todos os recursos estatais para propagar suas ideologias, concepções, etc. O PT importou dos Estados Unidos (não foi da Rússia...), e da Europa (em menor grau) as “novas” ideologias e concepções “progressistas”, tais como as ideologias do gênero, o politicamente correto, o pós-estruturalismo (“pós-modernismo”), o multiculturalismo, etc. Sem dúvida, essa é a posição predominante da “esquerda” norte-americana, no caso, os “democratas”, que na Europa e América Latina seriam considerados até algum tempo atrás direitistas um pouquinho mais “democráticos”.

O PT, em matéria política, se vendeu para o neoliberalismo, mas através do aparelhamento e de sua base social formada fundamentalmente pela classe burocrática (apoiado por grande parte da classe intelectual) não só se aliou ao setor mais “democrático” dessa corrente, como teve que manter elementos do seu discurso anterior, para garantir votos e apoios, e por isso manteve o seu neopopulismo. O produto híbrido e tupiniquim que resultou disso foi o neoliberalismo neopopulista. O neoliberalismo foi importado dos Estados Unidos com suas ideologias e o neopopulismo foi mais discurso (e por isso é populista) social-democrático aliado a um forte burocratismo. Por isso o aparato estatal não diminuiu tanto como ocorreu em outros governos neoliberais.

A oposição partidária ao PT e seus aliados ficou relativamente enfraquecida. Em seu lugar, apareceu uma “nova velha direita”, reunindo intelectuais conservadores e reacionários, desfilando figuras intelectualmente risíveis, como supostos filósofos, jornalistas e outros. Os setores mais conservadores dos Estados Unidos enviaram recursos e gerou fundações que, por sua vez, financiaram uma “nova velha juventude”, que engrossaram as fileiras do novo velho conservadorismo. As manifestações de 2013 mostraram a fragilidade da base social do neoliberalismo neopopulista e assim as oposições cresceram, tanto as partidárias quanto as do novo velho conservadorismo (o velho conservadorismo sob nova forma), bem como de certas igrejas e concepções religiosas descontentes com o avanço do moralismo progressista em detrimento do moralismo conservador. A força do novo velho conservadorismo aumentou e o descontentamento, seja político com a corrupção e crise pecuniária (“econômica”) ou com o moralismo progressista (gênero, politicamente correto, etc.), de grande parte da população tende a reforçá-lo.

É nesse contexto que surge a chamada “Escola sem Partido”, um projeto que visa defender os seguintes princípios:

“I - neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado; II - pluralismo de ideias no ambiente acadêmico; III - liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de consciência; IV - liberdade de crença; V - reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado; VI - educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença; VII - direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”[2].
Esses princípios reúnem uma série de lugares-comuns do pensamento conservador e do pensamento progressista. A concepção conservadora sempre defendeu a neutralidade (“política” e “ideológica”) e a concepção progressista sempre defendeu a laicidade do Estado e setores tanto de um quanto de outro concordariam com o outro ponto. Progressistas e conservadores são tão “neutros” que até concordam entre si a respeito da neutralidade! Mas fazem isso sob formas diferentes, como mostraremos adiante. Tanto conservadores quanto progressistas defendem o “pluralismo de ideias”, assim como existe pluralidade de mercadorias no supermercado. O problema é que eles falam em pluralismo, mas querem reserva de mercado e monopólio para as mercadorias progressistas ou conservadoras. Cada um quer “vender seu peixe” e “puxar a brasa à sua sardinha”!

O pensamento progressista defende a ideia da “liberdade de aprender e de consciência”, bem como grande parte dos conservadores. O reconhecimento da vulnerabilidade do educando diante do professor e a educação e informação do estudante quanto aos seus direitos de liberdade de crença e consciência é uma novidade. Poucos progressistas concordariam com isso e menos ainda conservadores. O novo velho conservadorismo conseguiu uma proeza, retomar as análises críticas da escola e da educação, que vão desde o reprodutivismo até as pedagogias libertárias! Não seria difícil relacionar esse tópico isolado com a “pedagogia centrada no aluno”! O único adendo aqui seria, “aluno protegido do professor, mas controlado pelos seus pais!”. O último ponto é típico do conservadorismo, desde Augusto Comte e sua tese da “família como célula da sociedade”, pois coloca o direito dos pais (e não mais dos alunos) de que seus filhos recebam educação moral de acordo com suas convicções. Difícil é saber o que é pior: a prisão moral dos professores ou a prisão moral dos pais!

Para começar, a neutralidade é impossível. A proposta de “escola sem partido” é apenas e simplesmente uma proposta de “escola sem progressistas”, pois a neutralidade proposta (da forma como se coloca adiante nos demais elementos da lei) não seria concretizada. O que ela faria é substituir a hegemonia progressista pela hegemonia conservadora. A troca de doutrinação é o segredo oculto da doutrinação da troca! O resultado é o mesmo: a doutrinação continua! Muda a doutrina, mantém-se a doutrinação. Para tanto, um material deveria ser apresentado aos pais ou responsáveis com os temas e enfoques. Isso até parece progressista: os pais participariam democraticamente do que é ensinado. Os progressistas podem esbravejar dizendo que os pais não são os educadores... mas é um dos principais pontos do progressismo atual combater a “meritocracia”! Já que o mérito não é o fundamental, então deixem os pais conservadores (ou não...) participarem! A contradição conservadora revela a contradição progressista!

O projeto tem mais alguns elementos. Segundo ele, o professor não pode, no exercício de suas funções:

“I - não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária; II - não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas; III - não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas; IV - ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito; V - respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções; VI - não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula”.
Novamente os novos velhos conservadores saem em defesa dos alunos contra os professores que querem cooptá-los para “esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária”. Sem dúvida, dito dessa forma, isso não quer dizer nada ou então quer dizer que a escola deve ser fechada, pois só assim ocorreria o que tal lei propõe. A não ser que fosse bem explicitado e delimitado. Não “cooptar” (termo usado equivocadamente) para “corrente política” é algo tão genérico que depende do conceito de política, bem como “corrente ideológica”, dependendo da definição de ideologia (e o texto usa a mais ampla, como “conjunto de ideias”), significa dizer que o professor deve ficar em profundo silêncio, como se fosse um psicanalista lacaniano. Não favorecer nem prejudicar os alunos por causa de suas convicções políticas, ideológicas, religiosas e morais é algo nobre, mas que precisaria ser garantido, em todos os sentidos e para todos os casos. A perseguição aos estudantes marxistas, anarquistas, etc., é muito comum. Dificilmente se vê perseguição aos estudantes liberais, fascistas, nazistas, mas pode existir. A maioria dos alunos não são nada disso e podem ser perseguidos por outros motivos, inclusive por qual partido vota ou por não votar em nenhum.

Não fazer propaganda político-partidária é algo também aceitável, embora um mínimo de bom senso do professor já evitaria isso. Não “incitar” alunos para manifestações, atos públicos e passeatas já é mais polêmico, principalmente pelas interpretações que a afirmação pode gerar. A ideia de apresentar de “forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes” quando abordar “questões políticas, socioculturais e econômicas” é quase impossível. Pois isso não só seria pouco didático (dificultaria a compreensão e aumentaria drasticamente o conteúdo ensinado), como também a maioria absoluta dos professores não tem preparo para isso e muito menos domínio dos conteúdos (alguns mal sabem a doutrina/ideologia que defendem, como saberiam as várias doutrinas e ideologias alheias?). Além de ser difícil saber quem iria julgar se eles estariam sendo “justos”? Quem determinaria quais são as principais correntes? Estas são apenas algumas entre milhares de outras dificuldades. O item sobre educação moral é repetitivo e a ideia de “terceiros” não violem esse direito na sala de aula é sem sentido, a não ser em casos raros, e é problemático, pois isso poderia significar, por exemplo, que organizações dos próprios estudantes não poderiam dar avisos e chamar para manifestações, atos públicos, etc., tolhendo assim a liberdade dos alunos[3].

No fundo, o que está por detrás dessa proposta de lei é uma luta pela hegemonia. Nessa luta, vale tudo. Nesse vale tudo pedagógico, ou melhor, pouco pedagógico, os liberais antiestatistas querem maior intervenção estatal na escola! Essa nova contradição conservadora ajuda a explicar a nova contradição progressista, pois os progressistas estatistas criticam por que querem menos intervenção estatal! O difícil é dormir com toda essa barulheira! Os barulhentos conservadores e progressistas não percebem que estão corroendo suas próprias bases e cada vez mais politizam a sociedade. Os conservadores politizam em nome da neutralidade e os progressistas despolitizam em nome do progresso! No primeiro caso, há uma politização despolitizada e no segundo uma despolitização politizada! Embora aqui seja a pequena política, a da política institucional, pois as classes sociais estão ausentes do debate, como se fosse só uma questão de professores, estudantes e pais de alunos. Nenhum dos dois lados diz o que realmente quer e o que realmente está em disputa.

O que eles realmente querem é a hegemonia. O que os novos velhos conservadores querem com a conversa fiada de “educação moral dos pais”, “neutralidade e não-doutrinação” é o monopólio moral, político e doutrinário. Os liberais a favor do livre mercado querem o monopólio! Para isso, precisam do aparato estatal e das famílias. Os liberais contra o estado querem que este lhes garanta o monopólio! Assim também consegue maiores chances de vitórias eleitorais. E para isso usa a predisposição da maioria da população contra a homossexualidade, a ideologia do gênero e coisas semelhantes, para fortalecer suas bases e enfraquecer as dos adversários.

Do outro lado, os novos velhos progressistas também querem a hegemonia. Eles conseguiram, durante um bom tempo, criar a base para sua hegemonia nas instituições estatais, incluindo escolas e universidades. O pensamento progressista tomou conta dos setores intelectualizados da sociedade, especialmente no período áureo dos governos petistas. Essa hegemonia, no entanto, foi não a do velho progressismo da social-democracia antiga ou do bolchevismo, que faziam seus apelos aos trabalhadores. A hegemonia conquistada nos meios intelectualizados é a do moralismo progressista, importado dos Estados Unidos, o berço do pensamento conservador! Os progressistas bebem nas fontes conservadoras e se embriagam com o neoprogressismo que, no fundo, é um neoconservadorismo! Contradições e mais contradições! A Rede Globo, demonizada pelos progressistas, apoia o “novo velho progressismo”! Não no plano político-partidário (o que já aconteceu por causa de interesses que deixaram de existir e por isso a aliança foi desfeita), mas no moral. A Rede Globo é contra Donald Trump, coloca em suas vinhetas (da Globo News) “evite as certezas” (discurso pós-estruturalista), entre outros, e reforça diversos elementos da moral progressista, de origem conservadora! A Globo e o PT, tudo a ver! A Globo produz e o PT reproduz! Os progressistas querem manter a hegemonia setorizada dos setores intelectuais e tem que agora enfrentar a oposição dos conservadores que resolveram disputar a sociedade civil. Os conservadores passaram a ler Gramsci e agora querem combater o gramscismo (às vezes chamado inadvertidamente de “marxismo cultural”) com o gramscismo adaptado ao conservadorismo! Gramsci se tornou leitura de cabeceira para os conservadores! Isso não é nada espantoso, afinal, o pensamento semiburguês serve para qualquer ala da burguesia!

Logo, o discurso da “escola sem partido” e dos seus opositores é apenas uma disputa pela hegemonia e por quais forças políticas, se o bloco dominante (predominantemente conservador, especialmente a partir da saída dos petistas do governo) ou o bloco progressista (que inclui não apenas o PT, mas seus derivados, aliados e semelhantes, como o PSOL, PDT, PCdoB, etc.) e que leva a reboque parte de sua ala extremista (PCB, PSTU, PCO, etc.). É por isso que esse debate é inútil e apenas disfarça uma disputa política e manipulação da população (inclusive eleitoral, afinal, quem ganha eleitoralmente e quem perde com a aprovação ou não desse projeto, ou mesmo com o debate em si...).

Não deixa de ser curioso como os novos velhos conservadores apresentam uma agenda e os novos velhos progressistas aderem e fazem estardalhaço em cima disso. Para a maior parte dos progressistas, os eleitoralistas, isso é algo útil. Não é ingenuidade e sim oportunismo. A agenda colocada é uma discussão superficial sobre educação e escola que evita discussões mais profundas e importantes. Se os novos velhos conservadores são espertos o bastante para usar a antipatia em relação ao PT e à moral progressista existente na maior parte da população, os novos velhos progressistas são espertos o bastante para comprar a briga nos termos apresentados e assim ter argumento eleitoral, pois não podendo propor, como a velha social-democracia, amplas reformas sociais, incluindo a educacional, muito menos transformação mais profunda. Por isso os progressistas reduzem o debate ao problema do moralismo, ideologismo e semelhantes, ou então atacando o “fascismo” da proposta[4]. Os conservadores conseguem ver “comunismo” em tudo e os progressistas, inversamente, “fascismo” em tudo. Ambos usam um discurso ideologêmico e falso ao acusar o adversário de ter posições consideradas extremistas e ditatoriais. Curiosamente e contraditoriamente, essa é a forma do discurso dos regimes ditatoriais! Os bolchevistas contra os “inimigos do povo” e os fascistas contra os “comunistas”! Se os conservadores e progressistas aprofundarem seus discursos do fascismo e do “comunismo” (bolchevismo) vão acabar transformando as suas mentiras em verdades. Ambos estarão certos! Conservadores se tornarão fascistas e progressistas se tornarão “comunistas” (bolchevistas)!

Uma reforma educacional não é possível sem recursos numa situação de crise pecuniária e com diminuição da renda estatal e transformações profundas não dão votos por ser coisa de “radicais” e que assusta as classes privilegiadas, independente de sua “moral” (conservadora ou progressista). Daí os progressistas reproduzirem os termos do discurso dos conservadores. É mais fácil trocar a reflexão pelas acusações fáceis: fascistas! Gritam os progressistas. Comunistas! Gritam os conservadores. Se fôssemos entrar na gritaria, diríamos: manipuladores de opinião!

Escola sem partido? Claro, desde que seja “sem partido político”, seja qual for a sigla. A escola não é lugar para disputa eleitoral. Escola sem “ideologias, doutrinas, etc.”? Isso é impossível. O que se quer com isso é apenas que devemos deixar a ideologia conservadora reinar absoluta, apesar disso não ser possível. A ideia que está por detrás da proposta é reducionista, abordando apenas dentro da sala de aula, imaginando que só há um professor. São diversos professores, com diversas ideologias, doutrinas, concepções, bem como aqueles que não possuem nenhuma ideologia, doutrina ou concepção coerente e outros que conhecem pouco tais opções de pensamento.

Assim, ao invés de “escola sem partido”, o que precisa ser defendido é a autonomia da escola. A proposta da escola sem partido é uma proposta de uma escola controlada pelo aparato estatal central (ministérios, secretarias, etc.), para controlar a burocracia escolar e essa controlar os professores. Ora, isso já existe e é efetivado, a diferença é que o controle seria mais explícito e sobre as concepções, ideologias, etc. e sob supervisão dos pais[5]. Por isso, a proposta de escola sem partido é agenda burguesa e palco de luta entre o bloco dominante e bloco progressista. O controle estatal do ensino continua, o que se disputa é quem manda nele e se quem está fora do aparato estatal pode influenciar e disputar a hegemonia.

Ao invés de discutir “escola sem partido”, o fundamental é discutir autonomia da escola. A escola, como os ideólogos reprodutivistas mostraram, servem para reproduzir a sociedade. Tanto faz quem a controla, ela vai continuar reproduzindo. O problema é que agora além de reproduzir a sociedade, querem disputar a hegemonia no seu interior. Primeiro os progressistas a aparelharam para reproduzir sua hegemonia e agora os conservadores querem substituí-los. Por isso é necessário ir além dessa discussão e declarar a necessidade da autonomia da escola, diminuindo a influência de conservadores e progressistas e suas disputas hegemônicas e eleitorais, bem como diminuindo o controle estatal, peça chave para definir quem detém hegemonia.

A autonomia da escola (e das universidades) pressupõe liberdade de expressão e isso é contra o moralismo (tanto o conservador quanto o progressista). Ela pressupõe autonomia organizacional, com maior presença de professores, funcionários e estudantes nas tomadas de decisões, na organização interna, etc. Ela também pressupõe maior autonomia intelectual do professor e dos estudantes. Autonomia intelectual do professor significa, ao contrário do que querem os progressistas, não sua liberdade para difundir suas ideologias progressistas e sim em relação ao aparato estatal, partidos políticos, sindicatos, etc., no sentido de poder empreender a livre pesquisa e desenvolver seu saber, o que tem impacto na qualidade de ensino.

A baixa qualidade da formação dos professores e do ensino é um grave problema escolar que ao invés de ser discutido é substituído por uma exótica discussão sobre “ideologias e doutrinas”. Crianças são mal alfabetizadas e o idioma português é pouco dominado[6]. Isso não é um problema de “ideologia” e sim de qualidade de ensino, de professores mal formados, mal remunerados, com más condições de trabalho! Oras, autonomia intelectual dos professores significaria terem formação suficiente para não cairem na armadilha de conservadores e progressistas e ficarem discutindo coisas superficiais ao invés das coisas fundamentais! É não “tomar partido” nem de conservadores nem de progressistas, que só querem hegemonia, voto, poder e nada para a formação real e de qualidade!

Autonomia intelectual do professor significa desenvolver um senso crítico diante da realidade e do moralismo, seja conservador ou progressista. Significa ter senso crítico suficiente para saber que a escola não é lugar de moralismo, seja conservador (para impor religiões, comportamentos, etc.), seja progressista (para impor ideologias, comportamentos, etc.). A autonomia intelectual do professor significa ele fazer suas escolhas intelectuais e buscar apoiar o desenvolvimento da autonomia intelectual dos estudantes. Não se trata de moral, não se trata de ser contra ou a favor da homossexualidade, contra ou a favor das religiões (ou de religião X ou Y). Assim como a escola não é um lugar de moralismo, também não é um lugar de agressão e preconceito. A escola, livre dessas influências nefastas do conservadorismo e do progressismo, deveria ser um lugar de racionalidade e civilidade como ambiente para o desenvolvimento do saber. Nenhuma forma de impedimento da liberdade de pensamento, expressão e opinião (o que está presente, formalmente, tanto no discurso conservador como progressista, mas o discurso é distante da prática) na escola deveria ser realizada, desde que a liberdade esteja dentro dos parâmetros da racionalidade e civilidade.

A autonomia da escola também significa, ao invés de discutir qual ideologia e moral os livros didáticos repassam, desenvolver a livre pesquisa e lutar contra a imposição de livros didáticos, impostos pelo aparato estatal e grandes editoras, com lucros enormes, repassando ideologias conservadoras ou progressistas. A autonomia intelectual dos professores apontaria para a produção própria de material didático, a reflexão crítica sobre o material didático existente. Inclusive uma boa proposta seria a criação de uma rede de professores que, de forma colaborativa, elaborariam materiais didáticos disponíveis gratuitamente na internet e que depois não teriam custo algum para professores e estudantes (e seus pais) e nem para o estado (não querem cortar gastos?). Obviamente, que os conservadores e progressistas não querem discutir isso e nem apoiariam tal proposta, pois os governos possuem ligações com o capital editorial (as grandes editoras)[7] e querem o controle estatal do saber. Assim, ao invés de ficar refém das grandes editoras e do aparato estatal, o saber poderia se desenvolver mais livremente.

A autonomia intelectual dos estudantes também só pode ser conquistada via livre pesquisa e desenvolvimento da consciência. Isso não pode ser doado pelo professor. O que ele pode fazer é apresentar ferramentas intelectuais (como, por exemplo, o domínio da matemática, do idioma português, de métodos e técnicas de pesquisa, etc.) e trabalhar conteúdos, de acordo com o que pensa e sabe. A autonomia intelectual dos estudantes em sala de aula significa tão-somente o respeito e o debate sobre as questões postas, por parte de professores e estudantes. A autonomia intelectual dos estudantes se manifesta mais amplamente nas reuniões estudantis, nos grupos de estudos, na pesquisa individual, nas organizações estudantis. É nesse contexto que outras informações e ferramentas são aprendidas para além das que são apresentadas nas salas de aulas (com a diversidade de professores e ideias), bem como é onde a formação ética (e não “moral”)[8], política e cultural é realizada de forma mais adequada.

A autonomia da escola é mais que a autonomia intelectual de professores e estudantes, significa que a escola passa a ser entendida como espaço “público”, ou seja, não estatal e não privado. Por isso, a escola não deve ser compreendida como espaço privado, propriedade privada, mesmo sendo particular. Ela deve ser espaço público dotado de autonomia no âmbito do ensino, aprendizagem, concepção pedagógica, aula, etc. Da mesma forma, não deve ser compreendida como espaço estatal, e por isso deve, igualmente, ser entendida como espaço público dotado de autonomia no que se refere ao ensino, sala de aula, concepção pedagógica e aprendizagem.

Assim, a autonomia da escola significa autonomia pedagógica, autonomia organizacional, autonomia intelectual dos professores, autonomia intelectual dos estudantes e que, nesse âmbito, nem o Estado (escolas estatais, supostamente “públicas”) nem o capital (escolas particulares), nem os proprietários nem os burocratas, podem decidir o processo pedagógico, que deve ser decidido pelos envolvidos nas relações pedagógicas, professores e estudantes, de acordo com diretrizes pedagógicas mais gerais que devem ser elaboradas não pelo aparato estatal e suas burocracias ministeriais e sim por rede de professores e estudantes.

Sem dúvida, a concretização da autonomia escolar é algo difícil e que cria muitos conflitos e contradiz interesses poderosos, tanto do aparato estatal e organizações burocráticas em geral quanto do capital, seja o educacional, o editorial ou qualquer outro. No entanto, se não se começar tal luta, o barbarismo educacional tende a se ampliar, a qualidade tende a piorar, a agressão física e intolerância tende a aumentar. E são reforçados pelos discursos conservadores e progressistas, que não querem resolver nenhum problema real, a não ser o do poder (eleições) e da hegemonia.

Ao invés de “escola sem partido” dos conservadores ou “escola com partido” dos progressistas, lutemos pela autonomia escolar! Se isso é muito utópico e o leitor quer ser mais “realista”, então pode lutar por mais qualidade do ensino, melhores condições de trabalho para os professores e condições de estudo para os estudantes, maior controle da sociedade civil sobre a burocracia escolar e livros didáticos, entre diversas outras reivindicações urgentes e não as disputas partidárias (seja do partido dos “sem” partido ou o dos “com” partido) em torno da escola.

Em síntese, a disputa partidária em torno da “escola sem partido” é uma luta de partidos. Até os velhos progressistas extremistas esqueceram as lutas de classes. As classes desprivilegiadas estão, mais uma vez, ausentes e ninguém luta por elas. No máximo, luta para doutriná-las (mesmo falando contra as doutrinas), controlá-las, ou ganhar seus votos nas eleições. É preciso sair desse mundo asfixiante que é o debate entre conservadores e progressistas para ver que existe vida “lá fora”, pois só assim sairemos do círculo vicioso da reprodução da polarização superficial existente entre o bloco dominante e o bloco progressista. A polarização (partidária e moralista) muda a forma e alguns personagens e temas, mas continua. O que as classes desprivilegiadas precisam é de mudanças educacionais e melhoria da educação. Mas será isso interesse dos detentores do poder ou dos seus aspirantes? O que conservadores e progressistas querem são meias-verdades para as classes privilegiadas e verdade nenhuma para as classes desprivilegiadas. Eis a lógica de conservadores e progressistas. A consciência dessa realidade é o primeiro passo para buscar sua superação e por isso ao invés de seguir a agenda do bloco dominante e do bloco progressista e ficar debatendo a ridícula proposta de “escola sem partido”, devemos colocar em evidência a agenda das classes desprivilegiadas, dos professores e dos estudantes, e as necessidades concretas e urgentes da educação e das escolas.





[1] Tais concepções, moral, etc., sem dúvida, estão ligadas mais a determinados partidos do que a outros e possuem efeito eleitoral e na disputa pelo poder e por isso esse debate também está presente.

[3] Outros elementos de estatismo podem ser visto no resto do projeto: “O disposto nesta Lei aplica-se, no que couber: I - aos livros didáticos e paradidáticos; II - às avaliações para o ingresso no ensino superior; III - às provas de concurso para o ingresso na carreira docente; IV - às instituições de ensino superior, respeitado o disposto no art. 207 da Constituição Federal”.

[4] O discurso do fascismo, amplamente utilizado pelos progressistas atualmente, pode ser visto num dos seus principais representantes ideológicos no campo da educação, Gaudência Frigotto: https://avaliacaoeducacional.files.wordpress.com/2016/06/escola-sem-partido.pdf

[5] No caso, pais conservadores para ajudar no controle dos professores progressistas, o que é uma faca de dois gumes, pois também pode servir aos pais progressistas para controlar os professores conservadores, afinal, não é possível dizer que o fascismo, liberalismo, democratismo, não são ideologias tanto quando as supostamente de “esquerda”.

[6] Obviamente que este não é um grande problema para as classes privilegiadas que geram essas propostas fantasmagóricas conservadoras ou progressistas, afinal, isso atinge as classes desprivilegiadas. Não é interesse da classe dominante uma formação mais ampla e um maior desenvolvimento da consciência, nem para conservadores e progressistas. A ignorância é um dos sustentáculos da dominação, seja a dos progressistas ou dos conservadores.

[7] Basta ver o desperdício de milhares de livros didáticos, como alguns que foram encontrados por estudantes que ocuparam recentemente uma escola em São Paulo para ver como entre o capital e o Estado “uma mão lava a outra”. A mão do capital editorial lava a mão do aparato estatal e vice-versa, não sem trocar fluidos monetários. O livro didático é um filão de ouro para o capital editorial.
[8] Sobre a diferença entre ética e moral, veja: http://informecritica.blogspot.com.br/2015/12/reflexoes-sobre-etica.html

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