A “ESCOLA SEM PARTIDO” COMO DISPUTA
PARTIDÁRIA
Nildo
Viana
Vem ganhando espaço a discussão sobre o projeto de lei
“Escola sem Partido”. O nome pode enganar e ocultar o que realmente está em
jogo. Ao mesmo tempo, traz à tona uma discussão que precisa ser realizada, apesar
de que isso não será feito da forma como deveria. No fundo, o que está por
detrás do projeto da “Escola sem Partido” é uma determinada posição política,
que reúne vários partidos e concepções, que visa atacar outra posição política,
que também reúne vários partidos e concepções. No fundo, o projeto de uma
“Escola sem Partido” é tão-somente luta de determinadas forças políticas e
sociais contra outras, o que significa que o debate em torno desse projeto é
uma disputa de partidos, muito mais do que o enganoso discurso de deixar os
partidos de lado no processo educacional.
O projeto da “Escola sem Partido” só surge no Brasil. Eis
algo fantástico e como o complexo de falta de originalidade dos brasileiros
pode agora ser superado, bem como em seu lugar aparece a fantástica vergonha
mundial de uma originalidade que mostra o péssimo nível cultural e educacional
do país. Seja original, mesmo que seja vergonhoso! O projeto, ao contrário do
que o nome propõe, não está questionando a ação ou influência de partidos
políticos na escola e sim de determinados partidos. Se alguém barra um partido,
então beneficia outro, a não ser que todos fossem barrados. E não são apenas
“partidos” que são barrados, mas também concepções, moral, etc.[1]
Assim, é fundamental entender quais são os interesses e responsáveis pelos dois
lados litigiosos e como esse projeto “original” e “pioneiro” surgiu
historicamente.
De um lado, temos o bloco dominante, hegemonicamente
conservador, e, por outro, o bloco progressista, que agora conta com o PT –
Partido dos Trabalhadores, como novo componente depois de sua expulsão do
primeiro bloco. O filho pródigo retorna ao lar progressista. O responsável
indireto é o próprio PT. No Brasil, os governos petistas se sucederam e
realizaram um processo de aparelhamento partidário do aparato estatal e usaram
todos os recursos estatais para propagar suas ideologias, concepções, etc. O PT
importou dos Estados Unidos (não foi da Rússia...), e da Europa (em menor grau)
as “novas” ideologias e concepções “progressistas”, tais como as ideologias do
gênero, o politicamente correto, o pós-estruturalismo (“pós-modernismo”), o multiculturalismo,
etc. Sem dúvida, essa é a posição predominante da “esquerda” norte-americana,
no caso, os “democratas”, que na Europa e América Latina seriam considerados
até algum tempo atrás direitistas um pouquinho mais “democráticos”.
O PT, em matéria política, se vendeu para o neoliberalismo,
mas através do aparelhamento e de sua base social formada fundamentalmente pela
classe burocrática (apoiado por grande parte da classe intelectual) não só se
aliou ao setor mais “democrático” dessa corrente, como teve que manter
elementos do seu discurso anterior, para garantir votos e apoios, e por isso
manteve o seu neopopulismo. O produto híbrido e tupiniquim que resultou disso
foi o neoliberalismo neopopulista. O neoliberalismo foi importado dos Estados
Unidos com suas ideologias e o neopopulismo foi mais discurso (e por isso é
populista) social-democrático aliado a um forte burocratismo. Por isso o
aparato estatal não diminuiu tanto como ocorreu em outros governos neoliberais.
A oposição partidária ao PT e seus aliados ficou
relativamente enfraquecida. Em seu lugar, apareceu uma “nova velha direita”,
reunindo intelectuais conservadores e reacionários, desfilando figuras
intelectualmente risíveis, como supostos filósofos, jornalistas e outros. Os
setores mais conservadores dos Estados Unidos enviaram recursos e gerou
fundações que, por sua vez, financiaram uma “nova velha juventude”, que
engrossaram as fileiras do novo velho conservadorismo. As manifestações de 2013
mostraram a fragilidade da base social do neoliberalismo neopopulista e assim
as oposições cresceram, tanto as partidárias quanto as do novo velho
conservadorismo (o velho conservadorismo sob nova forma), bem como de certas
igrejas e concepções religiosas descontentes com o avanço do moralismo
progressista em detrimento do moralismo conservador. A força do novo velho
conservadorismo aumentou e o descontentamento, seja político com a corrupção e
crise pecuniária (“econômica”) ou com o moralismo progressista (gênero,
politicamente correto, etc.), de grande parte da população tende a reforçá-lo.
É nesse contexto que surge a chamada “Escola sem Partido”,
um projeto que visa defender os seguintes princípios:
“I - neutralidade política, ideológica e religiosa do
Estado; II - pluralismo de ideias no ambiente acadêmico; III - liberdade de
aprender, como projeção específica, no campo da educação, da liberdade de
consciência; IV - liberdade de crença; V - reconhecimento da vulnerabilidade do
educando como parte mais fraca na relação de aprendizado; VI - educação e
informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de
consciência e de crença; VII - direito dos pais a que seus filhos recebam a
educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”[2].
Esses princípios reúnem uma série de lugares-comuns do
pensamento conservador e do pensamento progressista. A concepção conservadora
sempre defendeu a neutralidade (“política” e “ideológica”) e a concepção
progressista sempre defendeu a laicidade do Estado e setores tanto de um quanto
de outro concordariam com o outro ponto. Progressistas e conservadores são tão “neutros”
que até concordam entre si a respeito da neutralidade! Mas fazem isso sob
formas diferentes, como mostraremos adiante. Tanto conservadores quanto
progressistas defendem o “pluralismo de ideias”, assim como existe pluralidade
de mercadorias no supermercado. O problema é que eles falam em pluralismo, mas
querem reserva de mercado e monopólio para as mercadorias progressistas ou
conservadoras. Cada um quer “vender seu peixe” e “puxar a brasa à sua sardinha”!
O pensamento progressista defende a ideia da “liberdade de
aprender e de consciência”, bem como grande parte dos conservadores. O
reconhecimento da vulnerabilidade do educando diante do professor e a educação
e informação do estudante quanto aos seus direitos de liberdade de crença e
consciência é uma novidade. Poucos progressistas concordariam com isso e menos
ainda conservadores. O novo velho conservadorismo conseguiu uma proeza, retomar
as análises críticas da escola e da educação, que vão desde o reprodutivismo
até as pedagogias libertárias! Não seria difícil relacionar esse tópico isolado
com a “pedagogia centrada no aluno”! O único adendo aqui seria, “aluno
protegido do professor, mas controlado pelos seus pais!”. O último ponto é
típico do conservadorismo, desde Augusto Comte e sua tese da “família como
célula da sociedade”, pois coloca o direito dos pais (e não mais dos alunos) de
que seus filhos recebam educação moral de acordo com suas convicções. Difícil é
saber o que é pior: a prisão moral dos professores ou a prisão moral dos pais!
Para começar, a neutralidade é impossível. A proposta de
“escola sem partido” é apenas e simplesmente uma proposta de “escola sem
progressistas”, pois a neutralidade proposta (da forma como se coloca adiante
nos demais elementos da lei) não seria concretizada. O que ela faria é substituir
a hegemonia progressista pela hegemonia conservadora. A troca de doutrinação é
o segredo oculto da doutrinação da troca! O resultado é o mesmo: a doutrinação
continua! Muda a doutrina, mantém-se a doutrinação. Para tanto, um material
deveria ser apresentado aos pais ou responsáveis com os temas e enfoques. Isso
até parece progressista: os pais participariam democraticamente do que é
ensinado. Os progressistas podem esbravejar dizendo que os pais não são os
educadores... mas é um dos principais pontos do progressismo atual combater a
“meritocracia”! Já que o mérito não é o fundamental, então deixem os pais
conservadores (ou não...) participarem! A contradição conservadora revela a
contradição progressista!
O projeto tem mais alguns elementos. Segundo ele, o
professor não pode, no exercício de suas funções:
“I - não se aproveitará da audiência cativa dos
alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política,
ideológica ou partidária; II - não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão
de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta
delas; III - não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem
incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas; IV
- ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos
alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas
concorrentes a respeito; V - respeitará o direito dos pais a que seus filhos
recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções; VI
- não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados
pela ação de terceiros, dentro da sala de aula”.
Novamente os novos velhos conservadores saem em defesa dos
alunos contra os professores que querem cooptá-los para “esta ou aquela
corrente política, ideológica ou partidária”. Sem dúvida, dito dessa forma,
isso não quer dizer nada ou então quer dizer que a escola deve ser fechada,
pois só assim ocorreria o que tal lei propõe. A não ser que fosse bem
explicitado e delimitado. Não “cooptar” (termo usado equivocadamente) para
“corrente política” é algo tão genérico que depende do conceito de política,
bem como “corrente ideológica”, dependendo da definição de ideologia (e o texto
usa a mais ampla, como “conjunto de ideias”), significa dizer que o professor
deve ficar em profundo silêncio, como se fosse um psicanalista lacaniano. Não
favorecer nem prejudicar os alunos por causa de suas convicções políticas,
ideológicas, religiosas e morais é algo nobre, mas que precisaria ser
garantido, em todos os sentidos e para todos os casos. A perseguição aos
estudantes marxistas, anarquistas, etc., é muito comum. Dificilmente se vê
perseguição aos estudantes liberais, fascistas, nazistas, mas pode existir. A maioria
dos alunos não são nada disso e podem ser perseguidos por outros motivos,
inclusive por qual partido vota ou por não votar em nenhum.
Não fazer propaganda político-partidária é algo também
aceitável, embora um mínimo de bom senso do professor já evitaria isso. Não
“incitar” alunos para manifestações, atos públicos e passeatas já é mais
polêmico, principalmente pelas interpretações que a afirmação pode gerar. A
ideia de apresentar de “forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e
perspectivas concorrentes” quando abordar “questões políticas, socioculturais e
econômicas” é quase impossível. Pois isso não só seria pouco didático (dificultaria
a compreensão e aumentaria drasticamente o conteúdo ensinado), como também a
maioria absoluta dos professores não tem preparo para isso e muito menos
domínio dos conteúdos (alguns mal sabem a doutrina/ideologia que defendem, como
saberiam as várias doutrinas e ideologias alheias?). Além de ser difícil saber
quem iria julgar se eles estariam sendo “justos”? Quem determinaria quais são
as principais correntes? Estas são apenas algumas entre milhares de outras
dificuldades. O item sobre educação moral é repetitivo e a ideia de “terceiros”
não violem esse direito na sala de aula é sem sentido, a não ser em casos
raros, e é problemático, pois isso poderia significar, por exemplo, que
organizações dos próprios estudantes não poderiam dar avisos e chamar para
manifestações, atos públicos, etc., tolhendo assim a liberdade dos alunos[3].
No fundo, o que está por detrás dessa proposta de lei é uma
luta pela hegemonia. Nessa luta, vale tudo. Nesse vale tudo pedagógico, ou
melhor, pouco pedagógico, os liberais antiestatistas querem maior intervenção
estatal na escola! Essa nova contradição conservadora ajuda a explicar a nova
contradição progressista, pois os progressistas estatistas criticam por que querem
menos intervenção estatal! O difícil é dormir com toda essa barulheira! Os
barulhentos conservadores e progressistas não percebem que estão corroendo suas
próprias bases e cada vez mais politizam a sociedade. Os conservadores
politizam em nome da neutralidade e os progressistas despolitizam em nome do
progresso! No primeiro caso, há uma politização despolitizada e no segundo uma
despolitização politizada! Embora aqui seja a pequena política, a da política
institucional, pois as classes sociais estão ausentes do debate, como se fosse
só uma questão de professores, estudantes e pais de alunos. Nenhum dos dois
lados diz o que realmente quer e o que realmente está em disputa.
O que eles realmente querem é a hegemonia. O que os novos
velhos conservadores querem com a conversa fiada de “educação moral dos pais”, “neutralidade
e não-doutrinação” é o monopólio moral, político e doutrinário. Os liberais a
favor do livre mercado querem o monopólio! Para isso, precisam do aparato
estatal e das famílias. Os liberais contra o estado querem que este lhes
garanta o monopólio! Assim também consegue maiores chances de vitórias
eleitorais. E para isso usa a predisposição da maioria da população contra a
homossexualidade, a ideologia do gênero e coisas semelhantes, para fortalecer
suas bases e enfraquecer as dos adversários.
Do outro lado, os novos velhos progressistas também querem a
hegemonia. Eles conseguiram, durante um bom tempo, criar a base para sua
hegemonia nas instituições estatais, incluindo escolas e universidades. O
pensamento progressista tomou conta dos setores intelectualizados da sociedade,
especialmente no período áureo dos governos petistas. Essa hegemonia, no
entanto, foi não a do velho progressismo da social-democracia antiga ou do
bolchevismo, que faziam seus apelos aos trabalhadores. A hegemonia conquistada
nos meios intelectualizados é a do moralismo progressista, importado dos
Estados Unidos, o berço do pensamento conservador! Os progressistas bebem nas
fontes conservadoras e se embriagam com o neoprogressismo que, no fundo, é um
neoconservadorismo! Contradições e mais contradições! A Rede Globo, demonizada
pelos progressistas, apoia o “novo velho progressismo”! Não no plano
político-partidário (o que já aconteceu por causa de interesses que deixaram de
existir e por isso a aliança foi desfeita), mas no moral. A Rede Globo é contra
Donald Trump, coloca em suas vinhetas (da Globo News) “evite as certezas”
(discurso pós-estruturalista), entre outros, e reforça diversos elementos da
moral progressista, de origem conservadora! A Globo e o PT, tudo a ver! A Globo
produz e o PT reproduz! Os progressistas querem manter a hegemonia setorizada
dos setores intelectuais e tem que agora enfrentar a oposição dos conservadores
que resolveram disputar a sociedade civil. Os conservadores passaram a ler
Gramsci e agora querem combater o gramscismo (às vezes chamado inadvertidamente
de “marxismo cultural”) com o gramscismo adaptado ao conservadorismo! Gramsci
se tornou leitura de cabeceira para os conservadores! Isso não é nada
espantoso, afinal, o pensamento semiburguês serve para qualquer ala da burguesia!
Logo, o discurso da “escola sem partido” e dos seus
opositores é apenas uma disputa pela hegemonia e por quais forças políticas, se
o bloco dominante (predominantemente conservador, especialmente a partir da
saída dos petistas do governo) ou o bloco progressista (que inclui não apenas o
PT, mas seus derivados, aliados e semelhantes, como o PSOL, PDT, PCdoB, etc.) e
que leva a reboque parte de sua ala extremista (PCB, PSTU, PCO, etc.). É por
isso que esse debate é inútil e apenas disfarça uma disputa política e
manipulação da população (inclusive eleitoral, afinal, quem ganha
eleitoralmente e quem perde com a aprovação ou não desse projeto, ou mesmo com
o debate em si...).
Não deixa de ser curioso como os novos velhos conservadores
apresentam uma agenda e os novos velhos progressistas aderem e fazem
estardalhaço em cima disso. Para a maior parte dos progressistas, os
eleitoralistas, isso é algo útil. Não é ingenuidade e sim oportunismo. A agenda
colocada é uma discussão superficial sobre educação e escola que evita
discussões mais profundas e importantes. Se os novos velhos conservadores são
espertos o bastante para usar a antipatia em relação ao PT e à moral
progressista existente na maior parte da população, os novos velhos
progressistas são espertos o bastante para comprar a briga nos termos
apresentados e assim ter argumento eleitoral, pois não podendo propor, como a
velha social-democracia, amplas reformas sociais, incluindo a educacional,
muito menos transformação mais profunda. Por isso os progressistas reduzem o
debate ao problema do moralismo, ideologismo e semelhantes, ou então atacando o
“fascismo” da proposta[4]. Os
conservadores conseguem ver “comunismo” em tudo e os progressistas,
inversamente, “fascismo” em tudo. Ambos usam um discurso ideologêmico e falso ao
acusar o adversário de ter posições consideradas extremistas e ditatoriais.
Curiosamente e contraditoriamente, essa é a forma do discurso dos regimes
ditatoriais! Os bolchevistas contra os “inimigos do povo” e os fascistas contra
os “comunistas”! Se os conservadores e progressistas aprofundarem seus
discursos do fascismo e do “comunismo” (bolchevismo) vão acabar transformando as
suas mentiras em verdades. Ambos estarão certos! Conservadores se tornarão
fascistas e progressistas se tornarão “comunistas” (bolchevistas)!
Uma reforma educacional não é possível sem recursos numa
situação de crise pecuniária e com diminuição da renda estatal e transformações
profundas não dão votos por ser coisa de “radicais” e que assusta as classes
privilegiadas, independente de sua “moral” (conservadora ou progressista). Daí
os progressistas reproduzirem os termos do discurso dos conservadores. É mais
fácil trocar a reflexão pelas acusações fáceis: fascistas! Gritam os
progressistas. Comunistas! Gritam os conservadores. Se fôssemos entrar na
gritaria, diríamos: manipuladores de opinião!
Escola sem partido? Claro, desde que seja “sem partido
político”, seja qual for a sigla. A escola não é lugar para disputa eleitoral.
Escola sem “ideologias, doutrinas, etc.”? Isso é impossível. O que se quer com
isso é apenas que devemos deixar a ideologia conservadora reinar absoluta,
apesar disso não ser possível. A ideia que está por detrás da proposta é
reducionista, abordando apenas dentro da sala de aula, imaginando que só há um
professor. São diversos professores, com diversas ideologias, doutrinas,
concepções, bem como aqueles que não possuem nenhuma ideologia, doutrina ou
concepção coerente e outros que conhecem pouco tais opções de pensamento.
Assim, ao invés de “escola sem partido”, o que precisa ser
defendido é a autonomia da escola. A proposta da escola sem partido é uma
proposta de uma escola controlada pelo aparato estatal central (ministérios,
secretarias, etc.), para controlar a burocracia escolar e essa controlar os
professores. Ora, isso já existe e é efetivado, a diferença é que o controle
seria mais explícito e sobre as concepções, ideologias, etc. e sob supervisão
dos pais[5]. Por
isso, a proposta de escola sem partido é agenda burguesa e palco de luta entre
o bloco dominante e bloco progressista. O controle estatal do ensino continua,
o que se disputa é quem manda nele e se quem está fora do aparato estatal pode
influenciar e disputar a hegemonia.
Ao invés de discutir “escola sem partido”, o fundamental é discutir
autonomia da escola. A escola, como os ideólogos reprodutivistas mostraram,
servem para reproduzir a sociedade. Tanto faz quem a controla, ela vai continuar
reproduzindo. O problema é que agora além de reproduzir a sociedade, querem
disputar a hegemonia no seu interior. Primeiro os progressistas a aparelharam
para reproduzir sua hegemonia e agora os conservadores querem substituí-los. Por
isso é necessário ir além dessa discussão e declarar a necessidade da autonomia
da escola, diminuindo a influência de conservadores e progressistas e suas
disputas hegemônicas e eleitorais, bem como diminuindo o controle estatal, peça
chave para definir quem detém hegemonia.
A autonomia da escola (e das universidades) pressupõe
liberdade de expressão e isso é contra o moralismo (tanto o conservador quanto
o progressista). Ela pressupõe autonomia organizacional, com maior presença de
professores, funcionários e estudantes nas tomadas de decisões, na organização
interna, etc. Ela também pressupõe maior autonomia intelectual do professor e
dos estudantes. Autonomia intelectual do professor significa, ao contrário do
que querem os progressistas, não sua liberdade para difundir suas ideologias
progressistas e sim em relação ao aparato estatal, partidos políticos, sindicatos,
etc., no sentido de poder empreender a livre pesquisa e desenvolver seu saber,
o que tem impacto na qualidade de ensino.
A baixa qualidade da formação dos professores e do ensino é
um grave problema escolar que ao invés de ser discutido é substituído por uma
exótica discussão sobre “ideologias e doutrinas”. Crianças são mal
alfabetizadas e o idioma português é pouco dominado[6].
Isso não é um problema de “ideologia” e sim de qualidade de ensino, de
professores mal formados, mal remunerados, com más condições de trabalho! Oras,
autonomia intelectual dos professores significaria terem formação suficiente
para não cairem na armadilha de conservadores e progressistas e ficarem
discutindo coisas superficiais ao invés das coisas fundamentais! É não “tomar
partido” nem de conservadores nem de progressistas, que só querem hegemonia,
voto, poder e nada para a formação real e de qualidade!
Autonomia intelectual do professor significa desenvolver um
senso crítico diante da realidade e do moralismo, seja conservador ou
progressista. Significa ter senso crítico suficiente para saber que a escola
não é lugar de moralismo, seja conservador (para impor religiões,
comportamentos, etc.), seja progressista (para impor ideologias, comportamentos,
etc.). A autonomia intelectual do professor significa ele fazer suas escolhas
intelectuais e buscar apoiar o desenvolvimento da autonomia intelectual dos
estudantes. Não se trata de moral, não se trata de ser contra ou a favor da
homossexualidade, contra ou a favor das religiões (ou de religião X ou Y).
Assim como a escola não é um lugar de moralismo, também não é um lugar de agressão
e preconceito. A escola, livre dessas influências nefastas do conservadorismo e
do progressismo, deveria ser um lugar de racionalidade e civilidade como
ambiente para o desenvolvimento do saber. Nenhuma forma de impedimento da
liberdade de pensamento, expressão e opinião (o que está presente, formalmente,
tanto no discurso conservador como progressista, mas o discurso é distante da
prática) na escola deveria ser realizada, desde que a liberdade esteja dentro
dos parâmetros da racionalidade e civilidade.
A autonomia da escola também significa, ao invés de discutir
qual ideologia e moral os livros didáticos repassam, desenvolver a livre pesquisa
e lutar contra a imposição de livros didáticos, impostos pelo aparato estatal e
grandes editoras, com lucros enormes, repassando ideologias conservadoras ou
progressistas. A autonomia intelectual dos professores apontaria para a
produção própria de material didático, a reflexão crítica sobre o material
didático existente. Inclusive uma boa proposta seria a criação de uma rede de
professores que, de forma colaborativa, elaborariam materiais didáticos
disponíveis gratuitamente na internet e que depois não teriam custo algum para
professores e estudantes (e seus pais) e nem para o estado (não querem cortar
gastos?). Obviamente, que os conservadores e progressistas não querem discutir
isso e nem apoiariam tal proposta, pois os governos possuem ligações com o
capital editorial (as grandes editoras)[7] e
querem o controle estatal do saber. Assim, ao invés de ficar refém das grandes
editoras e do aparato estatal, o saber poderia se desenvolver mais livremente.
A autonomia intelectual dos estudantes também só pode ser conquistada
via livre pesquisa e desenvolvimento da consciência. Isso não pode ser doado
pelo professor. O que ele pode fazer é apresentar ferramentas intelectuais
(como, por exemplo, o domínio da matemática, do idioma português, de métodos e
técnicas de pesquisa, etc.) e trabalhar conteúdos, de acordo com o que pensa e
sabe. A autonomia intelectual dos estudantes em sala de aula significa
tão-somente o respeito e o debate sobre as questões postas, por parte de
professores e estudantes. A autonomia intelectual dos estudantes se manifesta
mais amplamente nas reuniões estudantis, nos grupos de estudos, na pesquisa
individual, nas organizações estudantis. É nesse contexto que outras
informações e ferramentas são aprendidas para além das que são apresentadas nas
salas de aulas (com a diversidade de professores e ideias), bem como é onde a
formação ética (e não “moral”)[8],
política e cultural é realizada de forma mais adequada.
A autonomia da escola é mais que a autonomia intelectual de
professores e estudantes, significa que a escola passa a ser entendida como
espaço “público”, ou seja, não estatal e não privado. Por isso, a escola não
deve ser compreendida como espaço privado, propriedade privada, mesmo sendo
particular. Ela deve ser espaço público dotado de autonomia no âmbito do
ensino, aprendizagem, concepção pedagógica, aula, etc. Da mesma forma, não deve
ser compreendida como espaço estatal, e por isso deve, igualmente, ser
entendida como espaço público dotado de autonomia no que se refere ao ensino, sala
de aula, concepção pedagógica e aprendizagem.
Assim, a autonomia da escola significa autonomia pedagógica,
autonomia organizacional, autonomia intelectual dos professores, autonomia
intelectual dos estudantes e que, nesse âmbito, nem o Estado (escolas estatais,
supostamente “públicas”) nem o capital (escolas particulares), nem os
proprietários nem os burocratas, podem decidir o processo pedagógico, que deve
ser decidido pelos envolvidos nas relações pedagógicas, professores e
estudantes, de acordo com diretrizes pedagógicas mais gerais que devem ser
elaboradas não pelo aparato estatal e suas burocracias ministeriais e sim por
rede de professores e estudantes.
Sem dúvida, a concretização da autonomia escolar é algo
difícil e que cria muitos conflitos e contradiz interesses poderosos, tanto do
aparato estatal e organizações burocráticas em geral quanto do capital, seja o
educacional, o editorial ou qualquer outro. No entanto, se não se começar tal
luta, o barbarismo educacional tende a se ampliar, a qualidade tende a piorar,
a agressão física e intolerância tende a aumentar. E são reforçados pelos
discursos conservadores e progressistas, que não querem resolver nenhum
problema real, a não ser o do poder (eleições) e da hegemonia.
Ao invés de “escola sem partido” dos conservadores ou
“escola com partido” dos progressistas, lutemos pela autonomia escolar! Se isso
é muito utópico e o leitor quer ser mais “realista”, então pode lutar por mais
qualidade do ensino, melhores condições de trabalho para os professores e
condições de estudo para os estudantes, maior controle da sociedade civil sobre
a burocracia escolar e livros didáticos, entre diversas outras reivindicações
urgentes e não as disputas partidárias (seja do partido dos “sem” partido ou o dos
“com” partido) em torno da escola.
Em síntese, a disputa partidária em torno da “escola sem
partido” é uma luta de partidos. Até os velhos progressistas extremistas
esqueceram as lutas de classes. As classes desprivilegiadas estão, mais uma
vez, ausentes e ninguém luta por elas. No máximo, luta para doutriná-las (mesmo
falando contra as doutrinas), controlá-las, ou ganhar seus votos nas eleições.
É preciso sair desse mundo asfixiante que é o debate entre conservadores e
progressistas para ver que existe vida “lá fora”, pois só assim sairemos do
círculo vicioso da reprodução da polarização superficial existente entre o
bloco dominante e o bloco progressista. A polarização (partidária e moralista) muda
a forma e alguns personagens e temas, mas continua. O que as classes
desprivilegiadas precisam é de mudanças educacionais e melhoria da educação.
Mas será isso interesse dos detentores do poder ou dos seus aspirantes? O que
conservadores e progressistas querem são meias-verdades para as classes
privilegiadas e verdade nenhuma para as classes desprivilegiadas. Eis a lógica
de conservadores e progressistas. A consciência dessa realidade é o primeiro
passo para buscar sua superação e por isso ao invés de seguir a agenda do bloco
dominante e do bloco progressista e ficar debatendo a ridícula proposta de
“escola sem partido”, devemos colocar em evidência a agenda das classes
desprivilegiadas, dos professores e dos estudantes, e as necessidades concretas
e urgentes da educação e das escolas.
[1]
Tais concepções, moral, etc., sem dúvida, estão ligadas mais a determinados
partidos do que a outros e possuem efeito eleitoral e na disputa pelo poder e
por isso esse debate também está presente.
[3]
Outros elementos de estatismo podem ser visto no resto do projeto: “O disposto
nesta Lei aplica-se, no que couber: I - aos livros didáticos e paradidáticos;
II - às avaliações para o ingresso no ensino superior; III - às provas de
concurso para o ingresso na carreira docente; IV - às instituições de ensino
superior, respeitado o disposto no art. 207 da Constituição Federal”.
[4] O
discurso do fascismo, amplamente utilizado pelos progressistas atualmente, pode
ser visto num dos seus principais representantes ideológicos no campo da
educação, Gaudência Frigotto: https://avaliacaoeducacional.files.wordpress.com/2016/06/escola-sem-partido.pdf
[5] No
caso, pais conservadores para ajudar no controle dos professores progressistas,
o que é uma faca de dois gumes, pois também pode servir aos pais progressistas
para controlar os professores conservadores, afinal, não é possível dizer que o
fascismo, liberalismo, democratismo, não são ideologias tanto quando as
supostamente de “esquerda”.
[6]
Obviamente que este não é um grande problema para as classes privilegiadas que
geram essas propostas fantasmagóricas conservadoras ou progressistas, afinal,
isso atinge as classes desprivilegiadas. Não é interesse da classe dominante
uma formação mais ampla e um maior desenvolvimento da consciência, nem para
conservadores e progressistas. A ignorância é um dos sustentáculos da dominação,
seja a dos progressistas ou dos conservadores.
[7]
Basta ver o desperdício de milhares de livros didáticos, como alguns que foram
encontrados por estudantes que ocuparam recentemente uma escola em São Paulo
para ver como entre o capital e o Estado “uma mão lava a outra”. A mão do
capital editorial lava a mão do aparato estatal e vice-versa, não sem trocar
fluidos monetários. O livro didático é um filão de ouro para o capital editorial.
[8]
Sobre a diferença entre ética e moral, veja: http://informecritica.blogspot.com.br/2015/12/reflexoes-sobre-etica.html
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