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quarta-feira, 20 de julho de 2016

Violência, Conflito e Controle



VIOLÊNCIA, CONFLITO E CONTROLE

Nildo Viana


Um dos temas mais complexos e difíceis para a teoria social contemporânea é o da violência. A complexidade e dificuldade se encontram, em primeiro lugar, na própria definição do termo violência. Além disso, a explicação do fenômeno da violência possui inúmeras dificuldades, tendo em vista a sua multiplicidade de formas de manifestação. O presente ensaio busca desenvolver uma determinada concepção deste fenômeno partindo da tese de que a violência é uma relação social e de que sua compreensão nos remete ao problema do conflito e do controle social.

O que é a violência? Responder esta questão não é tarefa fácil, tendo-se em vista, tal como muitos autores perceberam, a multiplicidade de formas de violência, sendo que alguns até preferem utilizar a expressão no plural: “violências”[1]. Mas nem tudo é trevas. Existe uma luz no fim do túnel. Apesar de até hoje não se ter produzido uma teoria e nem uma análise sintética e explicativa deste fenômeno, muitos autores nos forneceram contribuições que nos ajudam a pensar a questão da violência.

Porém, antes de continuarmos, devemos apresentar uma concepção de violência, já que isto é necessário para podermos dar continuidade ao nosso trabalho. Existem inúmeras definições de violência, tal como demonstrou Yves Michaud[2]. Algumas destas definições são tão abrangentes que incluem até mesmo fenômenos da natureza. A nosso ver isto não se justifica, pois a explosão de um sistema solar, por exemplo, não constitui um ato de violência, mas tão-somente um fenômeno natural ou, como bem diz o nome, uma explosão, um ato de destruição/abolição e não de violência, pois nem toda destruição ou abolição pressupõe violência. Mas tal ideia só ganha verdadeiramente um sentido a partir da definição de violência.

A etimologia do termo nos diz o seguinte: “‘violência’ vem do latim violentia, que significa violência, caráter violento ou bravio, força. O verbo violare significa tratar com violência, profanar, transgredir”[3]. As ideias de profanação (do que é sagrado ou puro) e transgressão (infração) nos fornecem uma pista para uma definição que julgamos mais adequada de violência. Tanto a ideia de profanação (de origem religiosa) quanto a ideia de infração (de origem jurídica) nos remete à existência de algo (o sagrado, o puro, a lei) que possui uma natureza própria que é atingida (violada) pela profanação ou infração, o que significa uma ofensa (lesão, injúria, ultraje, desconsideração, menosprezo ou postergação de preceitos) ou o ato de ofender (fazer mal, lesar, ferir, causar mal físico, atacar, injuriar, contrariar, ir contra as regras ou preceitos).

A partir disto podemos desenvolver nossa definição de violência. Em primeiro lugar, violência é uma relação. A violência é uma relação onde algo é atingido por outra coisa. Neste sentido, a modificação interna ou endógena de um ser não constitui violência. A destruição de um ser a partir de seu próprio desenvolvimento interno não é um ato de violência. A violência pressupõe uma ação exógena. Toda ação sobre algo é uma relação, ou seja, pressupõe a existência do agente e daquele que é o “objeto” da ação. De um lado existe o agente da violência e de outro existe a vítima da violência. Esta relação é uma relação social, pois tal conceito é destituído de valor explicativo para os fenômenos da natureza e por isso limitaremos seu uso ao mundo animal, embora aqui deixemos de lado sua manifestação fora do mundo humano. Podemos então definir a violência como relação social caracterizada pela imposição realizada por um indivíduo ou grupo social a outro indivíduo ou grupo social contra sua vontade ou natureza[4].

Este conceito amplo de violência nos permite pensar as suas diversas formas de manifestação: violência física, simbólica, sexual, etc. Porém, a classificação das formas de violência é bastante problemática, pois ela pode variar de acordo com o critério utilizado e existem diversos critérios. A violência pode ser classificada de acordo com as características comuns de suas vítimas (violência contra a criança, contra a mulher, etc.), pelas características comuns dos agentes da violência (violência policial, realizada pelos policiais; violência criminal, realizada pelos criminosos; violência estatal ou institucional, realizada pelo Estado, etc.), pelo local onde ela ocorre (violência urbana, violência no campo, violência doméstica, etc.), pela forma como ela se realiza (simbólica, sexual, física, etc.), pelos seus objetivos (violência revolucionária, cujo objetivo é a revolução; violência repressiva, cujo objetivo é a repressão, etc.), pelos grupos sociais envolvidos (violência racial, étnica, de classe, etc.), pelas suas “motivações inconscientes”[5] (violência reativa, violência vingativa, violência compensatória, violência recreativa).

Notamos, assim, a complexidade da questão da violência. A maioria das análises da violência centra sua atenção sobre suas causas. Etologistas, psicanalistas, filósofos, psicólogos, sociólogos, antropólogos, entre outros cientistas, se debruçaram sobre a questão da causa da violência. Encontramos nessas abordagens duas posições divergentes: uma apontará os instintos ou a natureza humana como causa da violência e outros apontam como causa fatores sociais, culturais e históricos.
No primeiro grupo encontramos Freud e os instintualistas (ou instintivistas), Konrad Lorenz, Éric Weil, entre muitos outros. Freud irá postular a existência de um instinto de agressividade (ou “instinto de morte”) convivendo com os instintos sexuais. Na mente humana haveria a disputa entre Eros e Tanatos, os instintos da vida e o instinto de morte. Sendo assim, a causa da agressividade humana seria o instinto de morte e, neste sentido, seria algo “natural”. Depois de Freud muitos passaram a defender, sob outras formas, a ideia de que a agressividade possui caráter instintual[6].

Outra variante da corrente que “naturaliza” a violência se encontra na filosofia de Hobbes e Éric Weil. Para esses filósofos a causa da violência se encontra na natureza humana, definida especulativamente. Para Hobbes, o “homem é o lobo do homem” — ou seja, é mal por natureza — e por isso é necessário a existência de um Estado absolutista para que a sociedade seja possível e a “guerra de todos contra todos” não dilacere a convivência social. Uma posição mais “moderna” é apresentada por Éric Weil. Segundo este filósofo, a violência e a razão são “possibilidades radicais” existentes na natureza humana e que expressam a liberdade do homem. Desta forma, tanto a razão quanto a violência fazem parte da natureza humana[7].

Outros irão enfatizar a origem social da violência. Para os defensores desta tese a raiz da violência se encontra em fatores sociais, que varia de acordo com o pesquisador, e itens como pobreza, dominação, “direito inato”[8], conflito, controle, etc., seriam os apontados como causadores da violência.

Porém, afirmar que a causa da violência se encontra na pobreza, na dominação, nos instintos, na natureza humana, etc., acaba se tornando um reducionismo que não consegue dar conta da complexidade e multiplicidade de formas de violência. Sem dúvida, a violência sexual nos remete aos desequilíbrios psíquicos (e não aos “instintos”) do indivíduo que é o agente da violência mas seria deslocado dizer que a violência simbólica realizada nas escolas, segundo a abordagem de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron[9] possui a mesma “fonte”. Neste sentido, é interessante a colocação de Jean-Marie Domenach, “a violência apresenta uma multiplicidade de aspectos concretos que obrigam a definições precisas e que requerem respostas particulares. A violência da greve não é da mesma natureza da violência da bomba atômica. Analogamente, a violência ‘institucional’ ou ‘estrutural’, que se oculta atrás das máscaras legais e se exerce pacificamente, é muito distinta da violência revolucionária ou militar”[10].

A multiplicidade de formas de violência faz surgir a tese da “multiplicidade de causas”[11]. Porém, consideramos que aqui a contribuição metodológica de Marx é fundamental, pois nos permite superar a problemática simplista da causa-efeito. Para Marx, a compreensão de um fenômeno pressupõe a descoberta de suas múltiplas determinações e principalmente sua determinação fundamental, ou seja, a determinação que é constituinte do fenômeno mas que é acompanhada por outras determinações que nos permitem apreendê-lo em seu caráter concreto[12].

Desta forma a questão passa a ser: qual é a determinação fundamental da violência? Para responder a estas questões podemos lançar mão das contribuições da sociologia clássica, bem como da contemporânea. No interior da tradição sociológica houveram, desde os clássicos, diversas tentativas em analisar o fenômeno da violência e suas determinações. Tal como observou José Vicente Tavares dos Santos, retomando Grossi Porto, existe uma dualidade na sociologia: uns privilegiam o controle e outros o conflito[13]. Neste sentido, as ideias de controle social e conflito social tornam-se paradigmáticas para se explicar a determinação social do fenômeno da violência.

Segundo este mesmo autor, Durkheim contribui com a compreensão deste fenômeno através do paradigma do controle social e das ideias de solidariedade social, consciência coletiva, crime a anomia. A solidariedade social se fundamenta na coesão e integração dos indivíduos na totalidade da sociedade e a consciência coletiva (que mais tarde Durkheim denominará representações coletivas) expressa esta solidariedade. É a partir da ideia da primazia do todo sobre as partes (da sociedade sobre o indivíduo) que Durkheim elabora sua definição de crime: um ato é considerado criminoso quando é condenado pela sociedade, quanto ofende os elementos fortes e definidos da consciência coletiva. Mas se houver falhas na regulamentação da solidariedade social ocorre a anomia e desta forma a violência pode ser considerada como a configuração de um estado de anomia[14].

Peter Berger, representante da sociologia contemporânea, também fundamentará sua explicação da violência na ideia de controle social. Segundo este autor, controle social “refere-se aos vários meios usados por uma sociedade para enquadrar seus membros recalcitrantes. Nenhuma sociedade pode existir sem controle social”; “o meio supremo e, sem dúvida, o mais antigo, de controle social é a violência física. Na sociedade selvagem das crianças ainda é o mais importante. Entretanto, até mesmo nas polidas sociedades das modernas democracias, o argumento final é a violência. Nenhum Estado pode existir sem uma força policial ou seu equivalente em poderio armado. Essa violência final pode não ser usada com frequência. Poderá haver inúmeras medidas antes de sua aplicação, à guisa de advertência e reprimenda”[15].

Este autor acrescenta que nas democracias ocidentais a ênfase recai na submissão voluntária ao sistema legal instituído pelo processo eleitoral e representativo. Neste caso, a violência é menos visível e utilizada. O importante reside no reconhecimento por todos de sua existência e possibilidade de uso, mas geralmente o uso da violência é o último recurso, só utilizado quando todas as outras formas de controle social, tal como a pressão econômica, o ridículo, o opróbrio, etc., falharem.

Outros sociólogos lançaram mão da ideia de controle social[16] para explicar a questão da violência, mas nos limitaremos a estes dois. Resta saber se estes autores conseguiram realizar tal explicação de forma satisfatória. A nosso ver a resposta é negativa. Isto se deve ao fato de ambos tratarem de determinadas formas de violência e sua extensão à violência em geral seria um reducionismo. Durkheim nos remete à violência criminal e Berger à violência estatal (em apenas uma de suas formas de manifestação: a violência física).

A ideia de controle social nos remete à sociedade em seu conjunto ou ao Estado como órgão central de controle. A ideia de controle social nos remete à violência estatal ou institucional para manter este controle ou à violência criminal como forma de se romper com ele. Porém, a partir desta concepção fica difícil explicar, por exemplo, a violência doméstica (agressão contra crianças ou contra a mulher no espaço doméstico). Por isso podemos dizer que a noção de controle social não consegue dar conta da multiplicidade das formas de violência e, por conseguinte, de fornecer uma explicação deste fenômeno, embora apresentem elementos que colaboram com sua compreensão, no que se refere a algumas formas específicas de manifestação da violência.

Outros sociólogos contribuem com a compreensão do fenômeno da violência com a ideia de conflito social. Este é o caso de Georg Simmel e Lewis Coser. Para Simmel, o conflito é uma forma de “sociação”[17]. Ele surge devido aos fatores de dissociação existentes na sociedade, tais como o ódio, a inveja, a necessidade, os desejos. O conflito surge devido a isto e com o papel de resolver os dualismos divergentes, pois a dissociação produz duas partes que vivem em antagonismo. Ele cria um tipo unidade, mesmo que aniquilando uma das partes. Neste sentido, o conflito não é patológico nem nocivo à sociedade, sendo condição para sua manutenção e processo fundamental para a mudança de uma forma de organização para outra[18].

Uma posição idêntica é apresentada por Lewis Coser que afirma que o conflito sustenta a coesão e a unidade de um grupo. O conflito é, então, um mecanismo estabilizador da estrutura social. Segundo ele, “o conflito dentro de um grupo frequentemente ajuda a revitalizar as normas existentes, ou contribui para a aparição de novas normas. Neste sentido, o conflito social é um mecanismo de ajuste de normas adequadas à novas situações. Uma sociedade flexível obtém vantagens do conflito, enquanto contribui a criar e modificar normas, assegura sua continuidade sob as novas condições. Este mecanismo de ajuste de normas dificilmente se apresenta em sistemas rígidos: ao evitar conflitos, sufocam um sinal de alarme que poderia ser-lhe útil, aumentando assim o perigo de uma ruptura catastrófica”[19].

A ideia de conflito social apresentada por estes autores não consegue fornecer uma explicação adequada do fenômeno da violência. Sem dúvida, o conflito gera violência e é por isso que Ted Gurr afirmará que Simmel e Coser não consideram, ao contrário de Huntington, Burke e Sorokin, o conflito violento como patológico[20]. Esta concepção de conflito apresenta dois problemas fundamentais. Em primeiro lugar, a causa do conflito não é apresentada de forma satisfatória; em segundo lugar, a própria ideia de conflito social aparece como uma forma de divergência que leva à coesão e não à transformação, o que é bastante semelhante à concepção funcionalista[21].

Simmel afirma que o conflito é gerado pelos fatores de dissociação, tais como o ódio, a inveja, os desejos, as necessidades, que provocam repulsa e hostilidade e Coser se fundamenta nas mesmas premissas, ou, segundo suas próprias palavras, nos “sentimentos de hostilidade e repulsão”, ou seja, os mesmos abordados por Simmel. Tais premissas, segundo Coser, foram confirmados pela psicologia genética de Piaget e pela psicanálise. Aqui temos de volta as teses que buscam “naturalizar” a violência, pois suas causas últimas seriam os sentimentos humanos. Há aqui duas questões: por um lado, sentimentos como o ódio e a inveja não são “naturais” e sim produtos sociais, pois inveja significa desejar algo alheio, pertencente a outro e não pertencente a quem inveja, o que remete ao problema da desigualdade social ou à situação concreta de um indivíduo na sociedade e o ódio não ocorre gratuitamente, mas apenas no contexto de determinadas relações sociais[22]; por outro lado, desejos e necessidades só são “causas” da violência quando sua satisfação é impedida ou reprimida e como a violência é exercida por uma parcela da população, então novamente estamos diante do problema da desigualdade social. Portanto, a “causa última” da violência não seriam os sentimentos e sim a desigualdade social provocada por relações de exploração e dominação.

A concepção de conflito social apresentada por Simmel e Coser é funcional, ou seja, o conflito possui uma funcionalidade para a manutenção da estrutura social. Assim deixa-se de lado as formas de conflito que levam à ruptura, tal como o conflito de classes, como observou Mészaros. Neste sentido, esta concepção não abarcaria determinadas formas de violência, tal como a violência revolucionária. Além disso, ao deixar de lado o problema da opressão, da dominação e da exploração, acaba ofuscando a percepção de que a violência e o conflito são uma relação entre desiguais, onde uns detém o poder e outros são submetidos a ele. Desta forma, os objetivos de diversas formas de violência são esquecidos e em seu lugar aparece uma vaga referência aos “sentimentos humanos”.

Desta forma observamos que as ideias de “controle social” e de “conflito social” são insuficientes para explicar o fenômeno da violência, pelo menos na perspectiva dos autores aqui trabalhados. Porém, existe uma teoria do conflito que ao mesmo tempo engloba uma teoria do controle e que por isso pode nos fornecer o fio condutor para explicar o fenômeno da violência. A teoria da sociedade de Marx apresenta a ideia de que o controle é gerado pelo conflito. Segundo Marx, a instituição das sociedades de classes e dos conflitos entre elas faz necessário emergir instituições voltadas para o controle social, em especial o Estado, para assim amortecer os conflitos sociais. O Estado, o direito, as ideologias, as instituições privadas, a cultura, a sociabilidade, etc., são formas de regularização das relações sociais, ou, em outras palavras, são formas de controle social. Os conflitos de classe dilacerariam a sociedade civil sem a emergência destas formas de controle social.

O Estado e as demais formas de regularização das relações sociais não abolem o conflito de classes e os demais conflitos sociais derivados dele[23] mas apenas realiza o seu amortecimento. Os conflitos sociais continuam existindo e gerando formas de violência, porém não se radicalizam ao ponto de se realizar uma revolução social. Quando ocorre uma radicalização das classes exploradas e as demais formas de controle social falham, tal como colocou Berger em outro contexto, a violência física, ou seja, a repressão estatal, incide sobre os dominados e explorados. Porém, este conflito também se reproduz nas formas de regularização, nas instituições privadas, na cultura, na sociabilidade, etc., mas de forma menos intensa. Esta é uma diferença radical entre a concepção marxista e a concepção funcionalista.

A partir desta teoria podemos compreender diversas formas de violência. Mas deste ponto em diante nos limitaremos ao caso específico da sociedade moderna, capitalista, pois a teoria acima citada é uma teoria geral das sociedades humanas e sua generalidade deve ser substituída por um caso concreto para facilitar nossa exposição. Também passaremos a utilizar a contribuição de pensadores que buscaram desenvolver a teoria de Marx, tornando mais complexa e ampla a sua teoria da sociedade.

Em primeiro lugar, temos uma abordagem da violência estatal ou institucional. O Estado emerge para garantir a reprodução das relações de produção, que são relações de classes fundamentadas na exploração e na dominação. A razão de ser da violência estatal se encontra na resistência e luta dos explorados contra a exploração e dominação. Contudo, o Estado não usa apenas a violência física, mas também outras formas de violência, tal como a violência cultural.

Em segundo lugar, temos uma abordagem da violência revolucionária e da violência criminal[24]. A violência revolucionária surge apenas em momentos de acirramento das lutas de classes, ou seja, quando os conflitos de classes se radicalizam ao ponto de se colocar em questão as relações de produção e de dominação. A violência criminal aparece, em parte, devido ao processo de separação entre o trabalhador e seus meios de produção, por um lado, e ao processo de separação entre unidade de produção e unidade de consumo que transforma a unidade doméstica em unidade voltada apenas para o consumo, o que gera a necessidade de uma renda monetária para garanti-la, tendo em vista a mercantilização de tudo na sociedade capitalista, inclusive dos alimentos, vestuário, etc.

A separação entre o trabalhador e os meios de produção produziu uma grande quantidade de força de trabalho disponível que não foi absorvida pelo mercado de trabalho. Desta forma não se consegue a renda monetária sob a forma de salário e por conseguinte não há como conseguir os meios de sobrevivência, já que parte da força de trabalho está destituída dos meios de produção e da renda monetária que permite adquirir os meios de sobrevivência. Surge, assim, uma população trabalhadora excedente, um exército industrial de reserva, ou em outras palavras, o lumpemproletariado[25], que não possui os meios de sobrevivência e por isso precisa garantir sua sobrevivência adquirindo renda monetária sob outras formas, tais como o roubo, a mendicância, etc.[26]. Desta forma se compreende a criminalidade e a violência criminal como produto, principalmente, da lumpemproletarização.

Outras formas de violência criminal têm suas raízes na mentalidade e sociabilidade desenvolvidas na sociedade capitalista — baseada na competição, na mercantilização e na burocratização das relações sociais — que criam uma intensa luta por ascensão social, status, etc., visando ficar numa posição cada vez mais elevada na pirâmide social, o que leva diversos setores da sociedade a aderir à violência criminal sem que isto esteja diretamente ligado com a mera sobrevivência.

As diversas formas de violência política também são derivadas do conflito fundamental existente entre as classes sociais. O terrorismo, a guerra, etc., são consequências das lutas de classes sob a forma como se manifesta para indivíduos e grupos na instância das ideologias, nas divisões internas da classe dominante, na estratégia de desviar o conflito interno para um conflito externo, no seu entrelaçamento com outras questões sociais, etc. Assim tais conflitos se manifestam concretamente nas ações políticas de indivíduos e grupos. A violência no campo, por exemplo, tem como determinação fundamental a luta pela terra, o que opõe diversos grupos sociais: índios, grileiros, garimpeiros, latifundiários, etc.

Mas como explicar, a partir desta teoria, a violência de pais contra filhos, de marido contra mulher, a violência sexual, a violência racial, étnica, urbana, policial, etc.? Podemos dizer que o conflito de classes é a determinação fundamental destas formas de violência, mas é preciso acrescentar que em cada caso concreto existem “múltiplas determinações” que complexificam a explicação de cada uma destas formas concretas de manifestação da violência. A violência do pai contra o filho pode remeter ao conjunto de relações sociais que este possui e do conjunto de frustrações derivadas daí; a violência sexual remete aos desequilíbrios psíquicos do agente da violência, problemas originários de sua inserção histórica e específica nas relações sociais. O mesmo procedimento de busca das determinações do fenômeno, entrelaçadas com a determinação fundamental, fornecem o núcleo metodológico para se compreender as diversas formas de violência na sociedade contemporânea.

Por fim, observamos que a violência é uma relação social que possui como razão de ser outras relações sociais, que alguns denominaram conflito e controle. As concepções que buscam “naturalizar” a violência se revelam ideológicas e acabam justificando novas formas de violência, tal como a ideologia da doença mental, que justifica a violência psiquiátrica[27].  Desta forma, a compreensão da violência como relação social é fundamental não só do prisma teórico e explicativo, mas também do prisma político. Daí a necessidade de encaminharmos análises sobre a violência a partir desta perspectiva.


 NOTAS




[1] Grossi Porto, Maria Stella. Apresentação. In: Revista Estado e Sociedade. vol. X, nº 2, Julho/Dezembro de 1995.

[2] Cf. Michaud, Yves. A Violência. São Paulo, Ática, 1989.

[3] Michaud, Yves. Ob. cit. p. 8.

[4] Aqui nos referimos à natureza humana, ou seja, às características próprias do ser humano. O motivo de inserirmos a natureza humana junto com a vontade se encontra na descoberta psicanalítica do inconsciente, o que nos obriga a reconhecer que a vontade e a consciência não são os únicos critérios para se definir a integridade de um indivíduo.

[5] Fromm, Erich. O Coração do Homem. Rio de Janeiro, Zahar, 1965.

[6] A ideia da existência de um instinto de morte foi rejeitada pela maioria dos principais psicanalistas depois de Freud, com raras exceções, tal como a de Melanie Klein. Tal tese foi retomada por Marcuse em sua interpretação filosófica de Freud e foi criticada por MacIntyre (cf. MacIntyre, Alaisdar. As Ideias de Marcuse. São Paulo, Cultrix, 1970; Segal, Hanna. As Ideias de Melanie Klein. São Paulo, Cultrix, 1983). Uma refutação radical e complexa dos instintualistas foi realizada pelo psicanalista Erich Fromm e pelo antropólogo Ashley Montagu (Cf. Fromm, Erich. A Anatomia da Destrutividade Humana. Rio de Janeiro, Zahar, 1975; Montagu, Ashley. A Natureza da Agressividade Humana. Rio de Janeiro, Zahar, 1978).

[7] Cf. Hobbes, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. In: Col. Os Pensadores. 3a edição, São Paulo, Abril Cultural, 1983; sobre Éric Weil, Perine, Marcelo. Filosofia e Violência. Sentido e Intenção da Filosofia de Éric Weil. São Paulo, Edições Loyola, 1987. Obviamente, estas duas concepções possuem caráter meramente especulativo e podem ser consideradas como destituídas de fundamentação, apesar de terem seguidores em nosso país, tal como é o caso da antropóloga Alba Zaluar — que considera que a pobreza não tem nada a ver com a criminalidade e que retira a “autonomia individual” e a “responsabilidade moral” do criminoso (...) — e de Vicente Barreto — que se fundamenta justamente nas teses de Hobbes e Weil para explicar a violência (cf. Zaluar, Alba. Exclusão Social e Violência. In: Zaluar, Alba (org.). Violência e Educação. São Paulo, Cortez, 1992; Barreto, Vicente. Educação e Violência: Reflexões Preliminares. In: Zaluar, Alba (org.). Violência e Educação. São Paulo, Cortez, 1992). Não deixa de ser curioso o fato de cientistas sociais buscarem na especulação filosófica a explicação de fenômenos sociais que são de sua responsabilidade pesquisar.

[8] O cientista político Edward Müller, refutando as teses afirmam que a frustração ou a privação relativa são a “causa psicológica” do protesto e da violência (política), coloca que “o melhor que pode ser dito sobre a hipótese frustração-agressão aplicada à ação política agressiva é que um tipo de frustração — que surge das discrepâncias percebidas entre o direito inato de uma pessoa e sua satisfação efetiva — pode comportar uma relação modesta com a propensão individual para o protesto e a violência políticos”. Por direitos inatos o autor entende aquilo que as pessoas julgam merecer e não um ideal desejado (Müller, Edward. A Psicologia do Protesto Político e da Violência Política. In: Gurr, Ted Robert (org.). Manual do Conflito Político. Brasília, UNB, 1985, p. 105).

[9] Cf. Bourdieu, Pierre & Passeron, Jean-Claude. A Reprodução Elementos Para Uma Teoria do Sistema de Ensino. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978.

[10] Domenach, Jean-Marie. La Violencia. In: Domenach, Jean-Marie e outros. La Violencia y Sus Causas. Paris, Editorial de la Unesco, 1981, p. 39.

[11]Cf. Domenach, Jean-Marie e outros. Ob. cit.

[12] Cf. Marx, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2a edição, São Paulo, Martins Fontes, 1983; Marx, Karl. O Capital. 3a edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988; Viana, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. Goiânia, Edições Germinal, 1998.

[13]Santos, José Vicente Tavares dos. A Violência como Dispositivo de Excesso de Poder. In: Revista Sociedade e Estado. Vol. X, nº 2, julho/dezembro de 1995.

[14]Sem dúvida, esta interpretação pode ser questionada, mas, a nosso ver, mesmo mudando a interpretação e dando outro significado aos conceitos, a ideia central sobre a relação crime e sociedade nos parece correta.

[15]Berger, Peter. Perspectivas Sociológicas. 7a edição, Petrópolis, Vozes, 1986, p. 81.

[16] Sobre as várias definições de controle social, cf. , Celso Pereira de. Psicologia do Controle Social. Rio de Janeiro, Achiamé, 1979; a sociologia norte-americana, como não poderia deixar de ser, produziu diversos livros especificamente sobre o tema do controle social. Sobre isso, cf. Koenig, Samuel. Elementos de Sociologia. 2a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1970.

[17] “A Sociedade não é algo estático, acabado; pelo contrário, é algo que acontece, que está acontecendo. O objeto da sociologia são esses processos sociais, num constante fazer, desfazer e refazer, e assim incessantemente. É através das múltiplas interações de uns-com-os-outros, contra-os-outros e pelos-outros, que se constitui a sociedade, como realidade inter-humana. Ao processo fundamental mental Simmel dá o nome de Vergellschaftung, ao pé da letra, socialificação, mais do que sociedade, denotando o seu dinamismo, sempre in fieri. (...) Adotamos aqui a sugestão dos norte-americanos, traduzindo-o por sociação, que não se confunde com socialização e nem com associação” (Moraes Filho, Evaristo. Formalismo Sociológico e Teoria do Conflito. In: Moraes Filho, Evaristo (org.). Simmel. São Paulo, Ática, 1983, p. 21).

[18] Simmel, Georg. A Natureza Sociológica do Conflito. In: Moraes Filho, Evaristo (org.). Ob. cit.

[19] Coser, Lewis. Las Funciones del Conflicto Social. México, Fondo de Cultura Económica, 1961, p. 176-177.

[20] Gurr, Ted Robert. As Consequências do Conflito Violento. In: Gurr, Ted (org.). Manual do Conflito Político. Brasília, UNB, 1985.

[21] É por isso que István Mészaros critica Coser e afirma que sua refutação de Parsons é falsa, pois ele não sai do campo daquele que ele critica e sua concepção de conflito evita tratar dos conflitos de classes (cf. Mészáros, István. Filosofia, Ideologia e Ciências Sociais. São Paulo, Ensaio, 1993).

[22] Hanna Arendt afirma que o ódio não é uma reação natural e espontânea e sim um profundo sentido de injustiça diante de uma situação ultrajante. Erich Fromm, por sua vez, trata da questão do ciúme e da inveja, que são sentimentos que geram hostilidade e são formas específicas de frustração. Segundo ele, ciúme e inveja “são causados pelo fato de B ter um objeto desejado por A, ou ser amado por pessoa cujo amor é desejado por A. ódio e hostilidade são mobilizados em A contra B que recebe aquilo que A quer, e não pode ter. inveja e ciúme são frustrações, acentuadas não só pelo fato de não só A não conseguir aquilo que deseja, como por outra pessoa ser favorecida em seu lugar. A estória de Caim, desamado sem ser por culpa sua, que mata o irmão preferido, e a estória de José e seus irmãos, são versões clássicas de ciúme e inveja” (Fromm, Erich. O Coração do Homem. Rio de Janeiro, Zahar, 1965, p. 28).

[23] Para se falar nos demais conflitos sociais (de geração, sexo, raça, religião, etc.) é preciso remeter ao conflito de classe, pois é este conflito fundamental que explica os demais conflitos. Como explicar o racismo sem remeter ao processo histórico de engendramento do capitalismo, da escravidão negra, da competição pelo mercado de trabalho, etc.? Como explicar a atual forma de opressão da mulher sem nos remeter ao processo histórico de separação entre unidade de produção e unidade de consumo, a formação cultural burguesa, ao predomínio da propriedade privada e da herança, entre outras determinações? Como explicar os problemas psíquicos sem tratar das relações familiares e do conjunto das relações sociais conflituosas nas quais vive o indivíduo? Por conseguinte, os conflitos sociais só são compreensíveis no interior de análise do conflito de classe.

[24] Sobre esta questão os trabalhos de Georges Sorel e Franz Fanon apresentam uma importante contribuição e colocam novas questões a serem debatidas no interior da teoria da violência derivada da perspectiva aqui apresentada (cf. Sorel, Georges. Reflexões sobre a Violência. Petrópolis, Vozes, 1993; Fanon, Frantz. Os Condenados da Terra. 2a edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979).

[25] Apesar da controvérsia em torno do termo lumpemproletariado e de sua definição, julgamos mais adequado utilizá-lo em lugar de exército industrial de reserva.

[26]Cf. Offe, Claus. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984.

[27] Sobre a ideologia da doença mental, veja-se Szasz, Thomas. A Ideologia e Doença Mental. Rio de Janeiro, Zahar, 1977; Szasz, Thomas. O Mito da Doença Mental. Rio de Janeiro, Zahar, 1979. Sobre a violência psiquiátrica, cf. Foucault, Michel. História da Loucura. 5a edição, São Paulo, Perspectiva, 1997.

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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Violência, Conflito e Controle. In: Dijaci David Oliveira; Ricardo Barbosa Lima; Sales Augusto Santos; Tânia Ludmila Dias Tosta. (Org.). 50 Anos Depois - Relações Raciais e Grupos Socialmente Segregados. 2a ed. Goiânia: Cegraf, 1999, v. 1, p. 223-239.

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